Número 9

Año 2021


Revoltas estudantis em São Paulo: levante das juventudes e a representação dos corpos em filmes sobre as ocupações secundaristas

Student revolts in São Paulo: uprising of youth and the representation of bodies in films about secondary occupations

Gabriela do Amaral Peruffo

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil

gabrielaperuffo@gmail.com

Juliana Vieira Costa

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil

juvieiracosta01@gmail.com

__

ARK: http://id.caicyt.gov.ar/ark:/s22504524/hyhsq9eni

Resumo

No ano de 2015, na cidade de São Paulo, Brasil, milhares de estudantes secundaristas ocuparam suas escolas contra um projeto de reorganização do sistema educacional que previa a mudança de escola de 311 mil estudantes e 74 mil professores, e o fechamento de 93 escolas no estado. Este artigo faz uma reflexão acerca deste movimento contra hegemônico a partir da representação dos corpos dos estudantes em imagens produzidas por eles próprios e por terceiros, utilizadas em filmes documentários produzidos após as ocupações. Para tanto, vamos analisar as imagens dos gestos de levante desses corpos que protagonizaram as ocupações escolares secundaristas a partir de dois filmes que apresentam diferentes narrativas do período: Lute como uma menina (2016), de Beatriz Alonso e Flavio Colombini, Espero tua (Re)volta (2019), de Eliza Capai. 

Palavras chave : corpo, juventudes, levante, currículo. 

Abstract

In 2015, in the city of São Paulo, Brazil, thousands of high school students occupied their schools against a project to reorganize the educational system that called for the change of schools of 311,000 students and 74,000 teachers, and the closure of 93 schools in the state. This article is about the counter-hegemonic movement that were secondary school occupations in São Paulo, Brazil, in 2015, based on the representation of students' bodies in images produced by themselves and by others, used in documentary films. We will analyze the images of the uprising gestures of these bodies that starred in the secondary school occupations from two films that present different narratives of the period: Lute como uma menina (2016), by Beatriz Alonso and Flavio Colombini, Espero Tua (Re) Volta (2019), by Eliza Capai.

Key words: body, youths, upraise, curriculum.


Recibido: 15/06/2021 - Aceptado con modificaciones: 20/06/2021

TOMA UNO, Nº 9, 2021 - https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/ 
ISSN 2313-9692 (impreso) | e-ISSN 2250-4524 (electrónico)

Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-Sin Derivadas2.5 Argentina.


                

        

Vai ser filme hoje?” Assim começa o filme Espero tua (Re)volta (2019), de Eliza Capai, sobre o movimento das ocupações escolares de 2015 no estado de São Paulo, Brasil. Perguntar se “vai ser filme hoje” nos diz sobre a aula, diz sobre a rotina da escola, diz muito sobre currículo. Currículo esse que também é colocado em questão quando a escola é ocupada. Quando a autonomia de decidir fica nas mãos dos estudantes. Falar sobre as ocupações secundaristas de 2015 no Brasil, seus efeitos ou possíveis desdobramentos na realidade escolar, nos coloca na tarefa de compreender as culturas juvenis[1]. E nos possibilita avistar a experiência das ocupações como um período de intensa socialização dessas culturas para além dos padrões regulares do cotidiano escolar. O movimento das ocupações escolares revelaram um potencial espaço de experimentação e um possibilitador da “emergência da multiplicidade de sujeitos culturais que se encobrem sob o manto da uniformização e homogeneidade que a categoria aluno encerra” (Carrano, 2008, p. 184). Acontece que essas culturas compartilhadas nunca cessam, existe um fluxo dinâmico que nunca as deixa serem concluídas e, portanto, não podemos defini-las de maneira homogênea. Cada sujeito cultural, cada jovem dentro da escola ocupa diferentes posições que nunca cessam de mudar. A uniformização e homogeneização citadas por Carrano se apresentam em diferentes expedientes escolares. Desde aquilo que a escola regula em termos de regras de convivência até as políticas de currículo. A escola reprime as diferenças de tantas maneiras desde suas origens. Mas parece que as cenas da polícia reprimindo corpos de jovens estudantes nos permite e nos provoca a refletir e entender o que representa esses corpos que ocupam a escola.

Para pensar nestas representações dos corpos e culturas juvenis nas ocupações de 2015, nos voltamos aos filmes produzidos nesses contextos, pela perspectiva da sobrevivência das imagens e da análise gestual de Didi-Huberman (2010, 2013). As teorias contemporâneas da cultura têm as imagens como foco e perspectiva para pensar as relações sociais e sua historicidade. Neste sentido, Didi-Huberman, a partir da obra de Aby Warbug, propõe a teoria da sobrevivência das imagens, na qual uma composição visual é uma sedimentação de uma multiplicidade de movimentos históricos, psicológicos e políticos. Haveria então uma dinâmica interna das imagens que lhes é própria, um “nó” temporal ao qual Huberman chama de sobrevivência. A principal categoria de análise da teoria de Huberman é a análise gestual, ou seja, os gestos presentes nas imagens que atravessam o tempo e as áreas do conhecimento humano e se depositam nas imagens como sobreviventes.

O audiovisual foi sem dúvida, se não o principal, um dos principais meios de disputa narrativa dos estudantes em relação a mídia hegemônica. Os vídeos realizados nas ocupações pelos próprios estudantes foram amplamente difundidos em redes sociais de mídias alternativas do período. Para além do discurso político explícito nesta produção, podemos observar como as imagens e os gestos impressos desses corpos em luta podem produzir sentido para a compreensão destas juventudes e a organização escolar que elas propõem. Muitas dessas imagens foram utilizadas por filmes mais ou menos independentes que posteriormente se dedicaram a narrar os acontecimentos das ocupações sob diversas perspectivas.

Neste artigo vamos analisar as imagens dos gestos de levante de corpos que protagonizaram as ocupações escolares secundaristas a partir de dois filmes que apresentam diferentes narrativas do período: Lute como uma menina (2016), de Beatriz Alonso e Flavio Colombini, Espero tua (Re)volta (2019), de Eliza Capai. O primeiro, um filme independente, que narra as ocupações por uma perspectiva feminista em relação a atuação e representação das mulheres no movimento. O segundo, um filme comercial, produzido pela Globo Filmes, que propõem um jogo narrativo plural a partir do relato de três jovens secundaristas tiveram diferentes protagonismo nas ocupações. Para as análises foram escolhidas sequência exemplares de imagens que acreditamos catalisar gestos recorrentes nos filmes e que dispararam reflexões acerca do caráter contra-hegemônico do fenômeno das ocupações e da emergência da multiplicidade destes sujeitos culturais (Carrano, 2008).

O levante

“Revolução é assim mesmo. Porque ocupar a rua é político e trazer essa revolução para os nossos corpos também é um ato revolucionário” (16' 34") disse a estudante Nayara Souza em Espero tua (Re)volta. Aqui o político ao qual a estudante se refere vai no sentido dessa força de ruptura e disputa que não se deixa capturar por discursos hegemônicos e institucionais (Mouffe, 2015). A fala de Nayara está inserida em um contexto que suscitou a possibilidade de emergência desses discursos anti hegemônicos.

No dia 23 de setembro de 2015, o então governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou um projeto de reorganização do sistema educacional, sem qualquer diálogo com a comunidade escolar, que previa a mudança de escola de 311 mil estudantes e 74 mil professores, e o fechamento de 93 escolas no estado. Ameaçados por este projeto violento de precarização do ensino público, diante da iminência da perda de seus direitos educacionais —à exemplo da conhecida Revolta dos Pinguins[2] estudantes secundaristas colocam seus corpos à frente de um combate ocupando 213 escolas em todo o estado de São Paulo, ao longo dos 40 dias entre o anúncio do projeto de reorganização e a sua revogação. As ocupações logo alcançaram outros estados do país, que reivindicavam melhorias na educação pública.

A ideia de levante que trazemos neste texto está relacionada a um gesto de reação a esta perda de direitos. Didi-Huberman (2017) é quem nos traz esta relação entre perda e levante: “Seria possível dizer até mesmo que a perda, que de início nos aflige, pode também —pela graça de uma brincadeira, de um gesto, de um pensamento, de um desejo— sublevar o mundo inteiro. Essa seria a primeira força dos levantes” (p. 290). É preciso que os corpos estejam rebaixados pela perda para se levantarem, assim como é preciso que atuem coletivamente para configurar um levante, e é isso que grande parte dos filmes que trazem as narrativas e registros dessas ocupações revelam em imagens: corpos adolescentes e coletivos, colocando-se na vertical, por um impulso de vontade, de desejo, de liberdade, de direitos e de expressão de um discurso anti hegemônico.

São os corpos os personagens principais de grande parte dos filmes sobre as ocupações escolares[3]. Lugar de disputas políticas por excelência e imagem física do levante, como explicita Judith Butler (2017): “No levante, porém, fica claro que não pretendem voltar a se sentar nem se deitar de imediato. A ação é reflexiva: elas fazem um levante e, com isso, ao se colocar na vertical, assumem seus corpos” (p. 24). Corpos erguidos, em bancos, escadas, sob os ombros de um colega, em frente ao batalhão da polícia militar, que ao movimentarem-se para cima reconhecem a sua força. “Eu tive que subir no banco para comunicar pra todo mundo que a escola tava ocupada” (06' 58"), diz uma das personagens do “coral” de testemunhos do filme Lute como uma menina.

Cadeiras ao alto

Corpos habituados e oprimidos pela imobilidade do dispositivo escolar, educados para a posição passiva, sentada, que se erguem exigindo participação nas decisões do Estado. Não por acaso, um dos objetos mais ressignificados nas imagens das manifestações seja a cadeira. Quase sempre à frente dos protestos, as cadeiras escolares se transformaram em símbolo de luta pelos direitos dos estudantes. Erguidas ao alto, como bandeiras, como se dissessem: “As cadeiras estão para cima, nossos corpos estão de pé”. Em outros momentos, as cadeiras servem como escudos, proteção da violência do Estado, ou mesmo como construtoras de barricadas. Em imagens gravadas pelos próprios estudantes durante a tentativa de entrada da polícia em uma escola, ouvimos a voz de um deles, por trás das grades, visualizando o agente que se esforça para pular o muro: “Pega as cadeiras! Pega as cadeiras!”. Nos atos públicos, são as cadeiras os maiores objetos de disputa entre estudantes e policiais. O Estado exige que elas voltem a sua função de assento, que aqueles corpos voltem a se sentar, mas os corpos se projetam para defender a sua verticalidade e manter as cadeiras como bandeiras.

         

Imagem 1: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil. Cadeiras ao alto.

Imagem 2: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil. Cadeiras escudo.

Imagem 3: Capai, E. (Dir.) (2019). Espero tua (Re)volta [documentário]. São Paulo, Brasil. Cadeiras barricada.

Imagem 4: Capai, E. (Dir.) (2019). Espero tua (Re)volta [documentário]. São Paulo, Brasil. Cadeiras em disputa.

Corpos resistentes

        O levante está nos corpos também como resistência física. É recorrente nas imagens dos documentários, adolescentes que interpõem a sua estrutura física à violência policial ou à proteção da ocupação. Estes corpos não só estão erguidos, mas em postura de fortaleza, e, por que não, de ataque. A força do desejo oposta à força da coerção. Capturados pelo instante fotográfico (algumas das imagens mais emblemáticas dos corpos resistentes integram os filmes como fotografias), os corpos em movimento de enfrentamento adquirem um aspecto de muralha intransponível. Como esculturas pegas de surpresa no meio do movimento, em instante pregnante de ação. Apesar de sabermos que segundos após aquele instante congelado a força policial irá se impor de forma violenta, por um momento vislumbramos a determinação e o desejo daqueles jovens representados em tônus, coragem e vigor.

Imagem 5: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil. Jovem diante da força policial.

Imagem 6: Capai, E. (Dir.) (2019). Espero tua (Re)volta [documentário]. São Paulo, Brasil. Jovem diante da força policial.

A resistência é ainda mais evidente nas sequências filmadas de repressão policial. Indomáveis, os adolescentes recusam sujeitar-se a uma ordem coercitiva e lutam com todo seu aparato físico, ainda que desproporcional à força imposta. Cenas gravadas por celulares muitas vezes inserem o espectador no conflito, como para testemunhar a insubmissão dos corpos à injustiça e à covardia da ação do Estado.

Corpo coletivo

        Em um movimento que vai do sujeito ao grupo, Lute como uma menina constrói a partir de depoimentos uma idéia de corpo coletivo, característico dos levantes: “Um nós então se forma no levante, cristalizando um sentimento de indignação generalizada” (Butler, 2017, p. 26). Aqui o coletivo não é uniforme, ao contrário, é um mosaico de individualidades que formam uma voz uníssona. Em Espero tua (Re)volta, o artifício de narrar o filme a três vozes, em um esforço de demonstrar a pluralidade do movimento juvenil, em alguns pontos encobre a coletividade dos corpos e seu caráter de conjunto. Ainda assim, as imagens são eloquentes e podemos observar as construções desses corpos coletivos sobretudo nas imagens feitas pelos estudantes na ocasião das ocupações e que foram utilizadas pelo documentário.

A melhor representação desse corpo conjunto é a do megafone humano, tão comum em manifestações espontâneas, sem acesso aos aparatos de amplificação sonora. Um integrante do grupo diz uma frase e os outros repetem em coro, para que as pessoas mais afastadas escutem. A informação é unificada, mas não o emissor. O que ouvimos é um coral de vozes, afinado, em que o timbre de cada um se mantém ao mesmo tempo em que integra um som comum.

É também a partir de uma situação de megafone humano que os filmes nos oferecem uma imagem exemplar de levante de corpos coletivos. Em Lute como uma menina e Espero tua (Re)volta, um mesmo registro fílmico é utilizado. Em frente à entrada da escola, um grupo de estudantes está sentado repetindo frases ditadas por uma menina (provavelmente escritas pelo grupo). No final do manifesto, ou ainda um pouco antes do fim, um dos estudantes faz um gesto que sugere uma ideia, ao mesmo tempo em que seu corpo levanta. Quase inconscientemente todo o grupo se levanta ao mesmo tempo e começa a entoar um verso de protesto: “Pula e sai do chão quem defende a educação”. Em um corte sutil, a câmera (que parece ser de celular) avança em direção ao grupo e nos coloca no meio do levante, literalmente. Estamos quase pulando juntos, formamos um corpo coletivo com os estudantes.

Imagem 7: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário] e Capai, E. (Dir.) (2019). Espero tua (Re)volta [documentário]. São Paulo, Brasil. Frames de filmagem dos estudantes.

A resistência também se expressa no corpo coletivo. “A sujeição diz respeito a indivíduos e grupos, de forma que, no levante, é com outros corpos que um corpo participa, tendo como base uma recusa compartilhada da ultrapassagem dos limites daquilo que pode ou deve ser suportado” (Butler, 2017, p. 24). Unidos por uma perda em comum, os corpos encontram uma unidade coletiva para resistir e enfrentar o poder maior. Na fala de uma das personagens em Lute como uma menina: “Quando eu terminei de falar eu pensei: ‘- O que? Você acha que o governo vai lembrar que você existe?’. Foi aí que vi aquela multidão... ‘aqui eu to, aqui eu vou ficar…’” (07' 53"). O documentário Lute como uma menina registra o relato da estudante sobre o momento de virada da sua compreensão sobre o movimento. Agora ela não está mais sozinha, a sua perda é a perda de muitos outros e juntos eles podem alguma coisa.

Diferentemente de organizações coletivas hierarquizadas, a formação do corpo do levante para a resistência física aparece nos documentários muitas vezes em linha horizontal. Sem estratégia e sem armas, são os corpos dos indivíduos que se projetam para o enfrentamento a partir de uma imobilidade. “Aqui eu to, aqui eu vou ficar”, a expressão própria da resistência.                 

 Imagem 8: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil.

        Outro relato de resistência coletiva, desta vez de um momento posterior, já sob o jugo da polícia militar: “A gente fez uma roda e deu as mãos, e ficamos ali, resistindo”. A imagem da roda e das mãos dadas para a ideia de horizontalidade e de proteção de grupo prescinde de explicação, mas destacamos aqui como esta imagem foi construída pela adolescente como uma imagem também de resistência.

Corpos ocupando

        Outro papel dos corpos nos documentários é o de apropriação dos espaços escolares pela sua ressignificação. Fazemos uma leitura do lugar dos corpos neste processo a partir de uma das experiências relatadas. São muitas as experiências de oficinas promovidas nas ocupações escolares de 2015, com temas e práticas decididas pelos estudantes: feminismo, educação indígena, história afro-brasileira, teatro, música, entre outras. Em uma das falas de Lute como uma menina, uma estudante destaca uma oficina de intervenção urbana com o tema: o que é ocupar? O que é uma ocupação? O que é seu corpo ocupar um lugar no espaço?

Imagem 9: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil. Imagem de intervenção artística.

        

        As imagens deste trabalho são eloquentes e falam por si só. Trazemos acima uma delas em que a grade que separa a escola e a rua transforma-se em rede para descanso e deleite, e a porta, lugar de passagem, é apoio para um corpo afastar-se do chão, moldura de uma expressão, desafio corporal, possibilidade de reinvenção física e subjetiva da estudante. Nestas imagens, os corpos exploram os espaços da escola como nunca antes permitidos. A escola é deles. O espaço é deles. Os corpos transitam e reinventam os lugares que sempre tiveram função única: a manutenção da ordem escolar. Ao desestabilizar esta ordem, re-simbolizam também seu lugar de participação na gestão e manutenção deste espaço.        

Mais uma imagem que destacamos para pensar como os estudantes tencionam os lugares de poder por meio de seus corpos no espaço, é a de um grupo de jovens dormindo no palco de um auditório. A imagem aparece na longa sequência em que o documentário apresenta a “descoberta” da escola pelos estudantes. Apesar do tom de denúncia a respeito do não acesso dos estudantes aos materiais escolares e aos espaços oferecidos na escola —o relato desta imagem que replicamos abaixo é sobre o ar condicionado do auditório que nunca foi ligado e a denúncia da pouca utilização deste espaço pelos alunos—, esta imagem nos traz mais algumas informações.

Imagem 10: Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. São Paulo, Brasil. Instalação artística.

        Em termos práticos fica claro que os estudantes estão dormindo no teatro para usufruir do ar-condicionado antes negado. Simbolicamente podemos pensar no que representam estes corpos em descanso, realizando uma função fisiológica básica, que é dormir, em cima de um palco. Não é a imagem das ocupações? Corpos existindo cotidianamente, em espaços igualmente cotidianos, porém ressignificados, e transformados em espetáculo? O espetáculo da ressignificação dos espaços escolares, mas também o espetáculo da autodeterminação destes corpos, da sua insubmissão a uma ordem decadente. Se o poder quer reorganizar a escola, nós reorganizamos antes.

Reorganização

Estos movimientos implican una doble condición: de una parte, su inserción en una tipología de acción política emergente que expresa características en común con otras dinámicas discursivas y organizativas a nivel internacional; de otra parte, la singularidad propia de la producción de saberes y de formas de acción política colectiva

(Galindo, 2016, p. 35).

        Esta reorganização escolar feita pelos estudantes em 2015 é de toda ordem: estética, política, econômica e social. Em primeiro lugar, o desafio da autogestão implicou para os estudantes a reestruturação dos tempos e espaços da escola. Na reorganização estudantil, os corpos dançam livres, fazem música, cozinham, debatem em assembleia, andam de bicicleta, discutem temas como questão de gênero, homossexualidade, machismo, racismo e outros tópicos que revelaram suas demandas enquanto juventudes. Demandas por um espaço de reflexão sobre questões que já são parte de uma cultura juvenil, de suas realidades, mas que nem sempre estão presentes nas pautas da escola. Estas juventudes já são plurais, já são a própria diversidade, já conhecem e convivem com o diferente, o que eles estão demandando é um espaço para elaborar essas questões, para refletir crítica e cuidadosamente sobre elas (Ferreira e Peruffo, 2018). Fica a provocação para pensar quais as ideias de reorganização escolar estes corpos nos estimulam a pensar?

        “Eu sonho com uma escola cheia de graffiti, onde as salas de aula sejam menos lotadas, onde as meninas podem se vestir como quiserem... Eu tô numa cadeia ou numa escola? Eu quero uma escola livre”. Ou ainda: “A gente tá fadado a um ensino de cabresto, onde a gente vai na mesma direção. Essa luta é muito maior do que contra a reorganização escolar e o fechamento de escolas. É um modo de a gente dizer que este sistema de ensino tá falido. [...] A reorganização é um reflexo disso. As escolas são pensadas como empresas”. A estas falas seguem imagens dos estudantes se organizando coletivamente e, em seguida, um poema declamado por uma jovem que termina com: “E hoje, juntos, nós aprendemos”. Importa que os estudantes tenham aprendido coisas ao longo das ocupações, mas importa mais ainda a palavra que está entre vírgulas: juntos. Um aprendizado construído pela prática comum e pela experiência dos corpos em comunidade.

Por fim retomamos à categoria juventudes para pensá-la em sua heterogeneidade, de jovens que experimentam e sentem essa etapa segundo os contextos socioculturais em que se inserem (Carrano e Dayrell, 2014). A partir das experiências coletivas de reorganização do espaço escolar, esses estudantes, jovens e sujeitos de experiências, saberes e desejos se apropriaram do social e reelaboram práticas, valores normas e visões de mundo a partir de representações dos seus interesses e de suas necessidades; interpretando e dando sentido ao seu mundo (Carrano e Dayrell, 2014). Os gestos dos corpos estudantis que tencionam a estrutura escolar pedem o fim da reorganização do sistema e do fechamento das escolas, mas, sobretudo gritam pela sua existência múltipla, heterogênea. São gestos que reivindicam as suas juventudes plurais, lutando contra os corpos disciplinadores moldados pelo sistema escolar.

“O que significa para mim o lute como uma menina? Mudança”. Com esta frase, fomos apresentados a uma das personagens de Lute como uma menina (2016). De frente para a câmera, respondendo a um interlocutor fora de campo, uma adolescente negra, sorridente, dá o primeiro relato dos muitos que se seguem no decorrer do filme. A série de testemunhos, intercalados com imagens das ocupações das escolas de São Paulo, matérias de jornais, registros de passeatas e de repressão policial violenta, desvelam aos poucos o que foi evidente para quem acompanhou o movimento no período: as juventudes ao levantarem seus corpos reorganizaram, por um breve período as escolas foram sim reorganizadas mas por corpos de juventudes que se levantaram. Encerramos este breve texto pensando na singularidade das ações criadas pelo movimento das ocupações em termos de criar um espaço autônomo de organização coletiva. Emergem destas práticas questões: que escola queremos? Que educação nos diz respeito? O que podemos aprender com nossos corpos no espaço, convivendo em coletividade?

Referencias

Bibliografia

Butler, J. (2017). Levante. In G. Didi-Huberman (Org), Levantes. São Paulo: Edições SESC São Paulo.

Carrano, P. (2008). Identidades culturais juvenis e escolas: arenas de conflitos e possibilidades. In A. F. Moreira e V. M. Candau (Orgs.), Multiculturalismo: Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas. Petrópolis: Vozes.

Carrano, P. e Dayrell, J. (2014). Juventude e Ensino Médio: quem é este aluno que chega à escola. In J. Dayrell, P. Carrano y C. L. Maia (Orgs.), Juventude e ensino médio: sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: UFMG.

Didi-Huberman, G. (2010). Diante da Imagem (P. Neves, trad.). São Paulo: Editora 34.

Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Contraponto, Museu de Arte do Rio.

Didi-Huberman, G. (2017). Através dos Desejos (Fragmentos sobre o que nos subleva). In G. Didi-Huberman (Org), Levantes. São Paulo: Edições SESC São Paulo.

Ferreira, S. e Peruffo, G. (2018). Autonomia e reconhecimento: a organização das juventudes no fenômeno das ocupações. Simpósio Juventudes Contemporâneas Porto Alegre. RS: EDIPUCRS.

Galindo, L. (2016). Jóvenes activistas. Movimientos de protesta e internet en Colombia y Brasil. In C. Feixa e P. Oliart (Orgs.), Juvenopedia. Mapeo de las juventudes iberoamericanas. Barcelona: NED Ediciones.

Mouffe, C. (2015). Sobre o político. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes.

Filmografia

Capai, E. (Dir.) (2019). Espero tua (Re)volta [documentário]. Brasil: Globo Filmes, TVa2.

Alonso, B. y Colombini, F. (Dirs.) (2016). Lute como uma menina [documentário]. Brasil: Filme independente.

___

Cómo citar este artículo:

Costa Vieira, J. y Peruffo Amaral, G. (2021). Revoltas estudantis em São Paulo: levante das juventudes e a representação dos corpos em filmes sobre as ocupações secundaristas. TOMA UNO, 9(9), Recuperado de https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/article/view/35795.


Biografías

_xEe4AcRbgLywwOaTH8LzhQmJit0tG6wN8vn-3pLJr8S5IRvEeuyXL77H_ZkCA1QPxWYNkeu6CLdAlmUBldP1WU1gQjNr_HcZPBHPRbsT3Vv2qCs4BN4AbuMrKOZIg

Juliana Costa

Doutoranda em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica, mestre em Educação e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisa em Cinema e Educação. De 2012 a 2020 colaborou no Programa de Alfabetização Audiovisual, projeto da Prefeitura de Porto Alegre e entre 2016 e 2018, integrou a equipe de coordenadores da Rede Kino-Rede Latino Americana de Cinema e Educação. 

Contato: juvieiracosta01@gmail.com

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4668645675162453 

20210314_174722

Gabriela do Amaral Peruffo 

Doutora em Educação pela PUCRS, com pesquisas em Cinema e Educação, a partir de temas como repertório cultural de alunos e professores, usos dos filmes em sala de aula e abordagens de temas sensíveis na aula história. Integra o grupo de pesquisa sobre Cinema e Educação vinculado à PUCRS. Atua como docente de História desde 2009 na Educação Básica e atualmente é coordenadora na modalidade de Educação de Jovens e Adultos.

Contato: gabrielaperuffo@gmail.com 

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9883447307791879



[1] Embora o Estatuto da Juventude (Instituído em 2013 pela Lei 12.852 que dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude) defina que seus direitos como jovens estão assegurados até os 29 anos, as políticas públicas pensadas para os jovens, que os considere como protagonistas no presente, e não somente como mera transição de gerações, ainda são um desafio no cenário brasileiro.

[2] Revolta dos Pinguins é como ficou conhecida informalmente a série de manifestações de estudantes secundaristas que aconteceu no Chile entre abril e junho de 2006. O movimento, que aconteceu em oposição às reformas liberais do governo chileno, também contou com ocupações nas escolas e serviram de inspiração para as ocupações no Brasil em 2015. A Revolta dos Pinguins é também o nome de um documentário de média-metragem de Carlos Pronzato.

[3] Longe de esgotar a lista, podemos citar algumas outras produções como: Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile! (2016) de Carlos Pronzato, Primavera (2017) de Ana Petta e Paulo Celestino, Secundas (2017) de Cacá Nazário, o curta metragem A escola é nossa (2020) de Othilia Balades.