MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL DOS PRODUTORES DA
MINISSÉRIE A CASA DAS SETE MULHERES 20 ANOS DEPOIS
https://revistas.unc.edu.ar/index.php/testimonios/index
Jéfferson Balbino
TESTIMONIOS
Año 13 N°13 2024
ISSN 1852-4532
* Universidade Estadual Paulista, Brasil. Email: jefferson.balbino@unesp.br. ORCID: http://orcid.org/0000-
0002-2516-5122
Esta obra está sujeta a la Licencia Reconocimiento-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional de Creative
Commons. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/
Memória, significados e construção de identidades: a
representação feminina na narrativa oral dos produtores da
minissérie A casa das sete mulheres 20 anos depois
Memoria, signficados y construcción de identidades: la representación
femenina em la narrativa oral de los productores de la miniserie La casa de las
siete mujeres 20 años después
Memory, meanings and identity construction: the representation of women in
the oral narrative of the producers of the miniseries The house of the seven
women 20 years later
Jéfferson Balbino *
Resumo
Nesse artigo, iremos analisar a minissérie A Casa das Sete Mulheres sobre o seguinte
aspecto: o conteúdo propriamente dito, porém, sob o ponto de vista de seus produtores: os
autores/roteiristas Maria Adelaide Amaral, Vincent Villari e Lúcio Manfredi. Tal análise
será feita a partir de pontos polêmicos da representação que as mulheres tiveram na
referida minissérie, isto é, dialogando com a historiografia e com os narradores
supracitados, justamente, para entender as significações que as representações das
mulheres farroupilhas tiveram na obra e assim identificar as intencionalidades por trás
dessas reproduções. Assim poderemos constatar como esses sujeitos enxergaram as
representações ficcionais que promoveram da figura da mulher na televisão vinte anos
atrás. Ou seja, estabeleceremos um diálogo atemporal da obra para atestar até que ponto
essa representação emancipatória das mulheres foi para despertar uma causa social junto
ao seu público ou apenas uma estratégica mercadológica de marketing para o produto em
si e para a TV Globo, haja vista as problemáticas passagens nessa representação que em
muitas vezes realocam essas mulheres a submissão secularmente imposta. Para isso
recorremos à metodologia da História Oral Temática para vislumbrar os efeitos causados
na obra no que tange a emancipação e submissão das mulheres farroupilhas
representadas na minissérie A Casa das Sete Mulheres, a partir de seus respectivos
roteiristas que foram recrutados, excepcionalmente, para essa pesquisa.
Palavras-chave: Representação Feminina História Oral Temática Minissérie
Emancipação e Submissão Intencionalidade dos Roteiristas.
Resumen
En este artículo, analizaremos la miniserie A Casa das Sete Mulheres desde el siguiente
aspecto: el contenido propiamente dicho, pero desde el punto de vista de sus productores: los
Jéfferson Balbino
203
autores/guionistas Maria Adelaide Amaral, Vincent Villari y Lúcio Manfredi. Este análisis se
realizará a partir de puntos polémicos de la representación que tuvieron las mujeres en
dicha miniserie, es decir, dialogando con la historiografía y con los narradores mencionados,
justamente, para entender los significados que las representaciones de las mujeres
farroupilhas tuvieron en la obra y así identificar las intencionalidades detrás de estas
reproducciones. Así, podremos constatar cómo estos sujetos percibieron las representaciones
ficcionales que promovieron de la figura de la mujer en la televisión hace veinte años. Es
decir, estableceremos un diálogo atemporal de la obra para constatar hasta qué punto esta
representación emancipatoria de las mujeres fue para despertar una causa social entre su
público o simplemente una estrategia de marketing para el producto en y para TV Globo,
teniendo en cuenta los pasajes problemáticos en esta representación que - en muchas
ocasiones - reubican a estas mujeres en la sumisión impuesta secularmente. Para ello,
recurrimos a la metodología de la Historia Oral Temática para vislumbrar los efectos
causados en la obra en lo que respecta a la emancipación y sumisión de las mujeres
farroupilhas representadas en la miniserie A Casa das Sete Mujeres, a partir de sus
respectivos guionistas que fueron reclutados, excepcionalmente, para esta investigación.
Palabras clave: Representación Femenina Historia Oral Temática Miniserie
Emancipación y Sumisión Intencionalidad de los Guionistas.
Abstract
In this article, we will analyze the miniseries A Casa das Sete Mulheres from the following
aspect: the content itself, but from the point of view of its producers: the
authors/screenwriters Maria Adelaide Amaral, Vincent Villari, and Lúcio Manfredi. This
analysis will be conducted based on controversial points of the representation of women in
the miniseries, that is, by dialoguing with historiography and the aforementioned narrators,
precisely to understand the meanings that the representations of the Farroupilha women
had in the work and thus identify the intentions behind these portrayals. In this way, we can
ascertain how these individuals perceived the fictional representations they promoted of
women on television twenty years ago. In other words, we will establish a timeless dialogue
with the work to determine to what extent this emancipatory representation of women was
intended to awaken a social cause among its audience or simply a marketing strategy for the
product itself and for TV Globo, considering the problematic aspects in this representation
thatoftenrelegate these women to the secularly imposed submission. For this, we resort
to the methodology of Thematic Oral History to glimpse the effects caused in the work
regarding the emancipation and submission of the Farroupilha women represented in the
miniseries A Casa das Sete Mulheres, based on their respective screenwriters who were
exceptionally recruited for this research.
Keywords: Female Representation Thematic Oral History Miniseries Emancipation and
Submission Intentionality of the Screenwriters.
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
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Introdução
Quando eu escrevi essas coisas não havia essa demanda, essa
exigência que é uma questão de responsabilidade social e
política. Eu sempre costumava contar as histórias até pra
manter o público atualizado. Eu não passei o que estão
passando os autores de teledramaturgia desse momento.
Maria Adelaide Amaral
Cabe esclarecer que foram convidados e concordaram para falar sobre o assunto que
perpassa durante todo esse estudo quatro indivíduos. Esse seleto grupo foi, previamente,
selecionado partindo do pressuposto que essas pessoas são peças fundamentais para a
criação e desenvolvimento dessa obra artística que trouxe consideráveis contribuições
socioculturais para esse campo. Logo assim, foram ela/eles os narradores: Maria Adelaide
Amaral
1
, Vincent Villari
2
, Lúcio Manfredi
3
e Letícia Wierzchowski
4
.
1
Ingressou na televisão colaborando com o escritor Lauro César Muniz no roteiro da telenovela Os Gigantes,
porém, não considera ter sido uma experiência bem-sucedida, pelo contrário, como um momento
traumático que naquele momento fez ela ter certeza de que jamais escreveria para telenovela. Porém, em
1990, recebe um convite de Cassiano Gabus Mendes para integrar à equipe da telenovela Meu Bem, Meu Mal e
se encanta pelo ofício passando a colaborar nos roteiros das seguintes telenovelas: Deus nos Acuda (1992), O
Mapa da Mina (1993), Sonho Meu (1993) e A Próxima Vítima (1995). Em 1997, tem sua estreia como autora-
titular ao escrever o remake da telenovela Anjo Mau, escrita em sua primeira versão por Cassiano Gabus
Mendes, em 1976. Em 2010, roteiriza a refilmagem de Ti-Ti-Ti. E, posteriormente, em 2013, escreve Sangue
Bom. Em 2016, estreia no horário das nove com a trama A Lei do Amor. Também é autora de 11 livros e 25
peças de teatro. É, desde 2020, a autora é membra da Academia Paulista de Letras, sucedendo o poeta Paulo
Bomfim, ocupando a cadeira n. 35.
2
Após cursar a Oficina de Autores da TV Globo, Villari é contratado como roteirista pela emissora integrando a
equipe de colaboradores da telenovela Anjo Mau, em 1997. A partir daí emendou um trabalho atrás do outro
na condição de colaborador de texto, sendo as seguintes produções: A Muralha (2000), Os Maias (2001), A Casa
das Sete Mulheres (2003), Da Cor do Pecado (2004), Cobras & Lagartos (2006) e A Favorita (2008). Em 2010,
divide a autoria de Ti-Ti-Ti com Maria Adelaide Amaral. Em 2013, repete a parceria com a autora escrevendo
para o horário das sete a trama Sangue Bom. E em 2016, a dupla, estreia no horário nobre (21 horas)
escrevendo a telenovela A Lei do Amor.
3
Após cursar a segunda edição da Oficina, Lúcio Manfredi passou a ser contratado pela emissora onde atuou
como roteirista de diversos programas infantis como os apresentados por Angélica como Flora Encantada
(1998) e A Turma do Didi (2000), apresentado por Renato Aragão. Atuou como colaborador de texto nas
minisséries A Casa das Sete Mulheres (2003) e Um Só Coração (2004) e nas telenovelas Como uma Onda (2004)
e Ciranda de Pedra (2008). E escreveu os romances Dom Casmurro e os discos voadores (2010)
e Encruzilhada (2015).
4
É uma premiada autora de romances e roteirista. Inicialmente, cursou arquitetura, não concluindo a
graduação. Começou sua carreira de escritora quando ainda trabalhava no escritório de construção civil de seu
pai. Na ocasião, escreveu seu primeiro romance: O Anjo e o resto de Nós, publicado em 1998. Em 2002, lançou o
best-seller A Casa das Sete Mulheres que foi adaptado pela TV Globo no formato de minissérie. A autora ainda
trabalhou com o cineasta Tabajara Ruas no roteiro do longa-metragem O Continente, baseado na obra de Érico
Veríssimo. A autora foi convidada para prestar um depoimento para a presente pesquisa via mensagem na
rede social Facebook e, prontamente, aceitou respondendo algumas perguntas por áudio de modo
instantâneo via o aplicativo de mensagens WhatsApp.
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205
Os depoimentos dos roteiristas foram essenciais para conduzir nossos estudos, haja vista
que a partir de diferentes prismas e subjetividades de cada um dos autores pudemos
compreender as questões de gêneros perpassadas a partir das personagens femininas da
minissérie A Casa das Sete Mulheres e, também, as memórias e os silêncios repletos de
significados desses produtores.
Tal como ponta o sociólogo e intelectual austríaco Michael Pollak (1989: 3-15) a memória
se constitui como um objeto de poder, ou seja, nossos entrevistados ao serem lembrados
para esse estudo tiveram suas identidades legitimadas e, logo assim, se tornam donos de
suas respectivas narrativas, isto é, aquela circunscrita na realidade (os produtores e o seu
envolto profissional) e não a narrativa ficcional (como resultou o produto em si).
Para realizar as entrevistas
5
com cada depoente, foram feitos, inicialmente, um contato via
e-mail
6
, no qual foi explicado o intuito da pesquisa e o motivo pelo qual o depoente seria
essencial para elucidar nossa análise. Inclusive, de modo a estabelecer um vínculo de
confiança/credibilidade foi feita uma apresentação institucional, isto é, como pesquisador
da UNESP (Universidade Estadual Paulista) e vinculado a grupos de pesquisas.
Tal procedimento denota o compromisso que os historiadores orais devem ter com os
entrevistados, pois conforme aponta a historiadora oral argentina Laura Benadiba (2013:
17):
O que o pesquisador que constrói e/ou utiliza fontes orais na verdade faz é amplificar
essas vozes as vozes, os nomes, a luz, existem antes da entrevista coordenando-as,
percebendo seu valor, fortalecendo e reconhecendo sua identidade. Como? Fazendo com
eles façam uma denúncia social a partir de toda a sua obra para além do que tem feito
5
De acordo com o historiador oral, Alessandro Portelli: “Uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos:
literalmente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra a menos que a outra possa -lo ou
-la em troca. Os dois sujeitos, interatuando, não podem agir juntos a menos que alguma espécie de
mutualidade seja estabelecida. O pesquisador de campo, entretanto, tem um objetivo amparado na igualdade,
como condição para uma comunicação menos distorcida e um conjunto de informações menos tendenciosas.
[...] A entrevista de campo, por conseguinte, não pode criar uma igualdade que não existe, mas ela pede por
isto. A entrevista levanta em ambas as partes a consciência da necessidade por mais igualdade a fim de
alcançar maior abertura nas comunicações”. (PORTELLI, Alessandro. A forma e o significado na História Oral: a
pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, n. 14, p. 7-24, 1997).
6
Segundo a historiadora oral, Marta Rovai: “[...] Desde quando ocorre a abordagem para a entrevista, afetamos
as experiências de nosso(a)s entrevistado(a)s, sua forma de lembrar e de conduzir as narrativas, pois
intervenção em seu mundo objetivo e subjetivo. As experiências dele(a)s e as nossas reorganizam posturas,
certezas e perguntas. A história oral configura-se, então, como território simbólico em que também se
estabelecem relações de poder e acolhimento que colaboram para nos construir como seres autônomos e ao
mesmo tempo interligados, encantados pela oportunidade de aprender com a diferença”. (ROVAI, Marta
Gouveia de Oliveira. SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). Op. Cit., 2021. p. 55.
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com as fontes orais e assim intervir no presente, superando a tradicional endogamia
académica e o pouco impacto social deste tipo de investigação
7
.
Além do mais, buscamos ter uma escuta sensível, ou seja, aquela sem intento julgador,
capaz de ouvi-los e vê-los em sua humanidade e, também, em vulnerabilidade, isto é,
respeitando
8
nossos narradores. As entrevistas
9
foram realizadas na casa de cada um
deles, em São Paulo (SP)
10
. Optamos, ainda, por respeitar os tempos determinados pelo
narrador, isto é, sem interpelações no sentido de mudar o discurso que o mesmo estava
traçando no momento de sua resposta, algo sob nosso olhar necessário, visto que,
conforme aponta a historiadora Carla Lisboa Porto,
diferentes tempos do narrador os fatos do passado e seu impacto no presente para
criar um espaço de escuta, de modo a estabelecer um engajamento com alguém e não
por alguém. [...] antes de os narradores serem uma fonte, eles são indivíduos e, por isso,
merecem ser ouvidos e respeitados em suas fragilidades e limitações, inclusive
discursivas .(Porto, 2021: 40).
Posto isso, é fundamental que haja uma relação de franqueza do
pesquisador/entrevistador com seu depoente para que o segundo traga um depoimento
autêntico, sem filtro. Inclusive, num dos momentos da entrevista com a roteirista Maria
7
“Lo que realmente hace el investigador que construye y/o utiliza fuentes orales es amplificar esas voces las
voces, los nombres, la luz, ya existen antes de la entrevista coordinándolas, realizando su valor, fortaleciendo
y reconociendo su identidade. ¿Cómo? Haciendo com ellas uma denuncia social fundamentada em todo su
trabajo además del que hecho com las fuentes orales y con ello intervenir em el presente, superando la
tradicional endogamia académica y la poca incidência social de este tipo de investigación”. (texto original).
8
Para Portelli: “O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras
lições de ética sobre a experiência de campo com história oral. [...] Cada pessoa é um amálgama de grande
número de histórias em potencial, de possibilidades imaginadas e não escolhidas. [...] A História Oral, como
uma arte do indivíduo, portanto, leva ao reconhecimento não da diferença, como também da igualdade. A
diferença é, antes de mais nada, aquela entre as numerosas pessoas com quem conversamos, porém,
compreende também, o elemento de serem diferentes de nós constituindo essa a razão primordial que nos
motiva a procura-las”. (PORTELLI, Alessandro. Op. Cit. 1997, p. 17-18).
9
As entrevistas produzidas nessa investigação foram realizadas com um gravador de voz para registrar os
depoimentos proferidos por nosso grupo. Cabe ainda esclarecer que o uso de entrevistas, nesse estudo, é
fundamental, visto que “facilita a compreensão de que o conhecimento histórico não consiste em uma
reconstituição exata, verídica, precisa, incontestável, do passado. Mostra, na verdade, que o que existe é um
passado plural que deve ser refletido em um conhecimento também plural”. (SANTHIAGO & MAGALHÃES,
2015, p. 154).
10
Optamos pelo tradicional protocolo da metodologia da História Oral que é desenvolver
entrevistas/gravações presenciais, visto que não é apenas a voz do depoente que é levada em consideração
para analisar a fonte oral, uma vez que os gestos e expressões servem para a “construção/reconstrução das
identidades” (COSTA, Cléria Botelho da. A escuta do outro: os dilemas da interpretação. História Oral, v. 17, n.2,
p. 31-46, 2014).
Jéfferson Balbino
207
Adelaide Amaral, ela teve um momento de confiança/desabafo contra o fato da TV Globo
não produzir mais minisséries históricas e isso ocorre, justamente, pela confiança mútua
estabelecida entre o pesquisador com a depoente. Sobre o relato, a autora nos diz:
Eu fui muito feliz enquanto [estive por] 32 anos. Eu fui muito feliz na Globo, por 32
anos, sou muito grata por tudo o que eu pude fazer dentro. Eu tive muita liberdade ao
longo dos anos 2000 até a permanência do Manoel Martins. Com a saída do Manoel
Martins as coisas realmente pra mim nunca foram iguais. O Manoel Martins gostava
muito daquilo que eu fazia e me dava muita autonomia. Ele queria que eu voltasse a
escrever novela. Eu poderia escrever o que eu quisesse, mas tinha que escrever novela. E
ele foi muito legal comigo, aliás, o rio Lúcio [Vaz] foi, enfim, todo aquele pessoal que
estava lá, o Figueira, o Boni… É que eu entrei e o Boni estava saindo, mas mesmo
assim, como aquele pessoal da velha guarda, né? Eu fiz o que eu quis lá, mas
evidentemente, o Nassau eu não consegui fazer, mas assim, eles compravam meus
projetos, eles acreditavam e davam certo de modo geral
11
.
Esse momento de cumplicidade entre entrevistada-entrevistador é fundamental, uma vez
que “a parceria entre narrador e ouvinte é necessária, porque essas fontes são construídas
por meio da negociação, mas também da generosidade” (Porto, 2021: 41). No tocante a
isso, Rovai afirma-nos como a História Oral possibilita descobertas, incômodos,
encantamentos tanto no entrevistador como no entrevistado.
[...] a história oral é muito mais do que uma metodologia, pois ela é atravessada por
descobertas, incômodos, encantamentos e expectativas que ganham dimensão social,
afetando pesquisadore(a)s e entrevistado(a)s num encontro de alteridades que se
desafiam. (Rovai, 2021: 48-49).
Dessarte disso, explicamos ainda para esses indivíduos no que consistia a investigação e
esclarecemos alguns pontos no que diz respeito à metodologia da história oral
12
, haja vista
que protocolos próprios que diferem das entrevistas que esses profissionais são
acostumados a conceder, no caso, as entrevistas jornalísticas, geralmente veiculadas em
outras plataformas (televisão, internet, revistas e jornais impressos). Vejamos abaixo, um
quadro com os dados técnicos e informações desse material produzido.
11
AMARAL, Maria Adelaíde. 2022. n/p. Entrevista concedida a Jéfferson Luiz Balbino Lourenço da Silva.
01/09/2022.
12
A história oral é um recurso moderno no campo historiográfico (embora seja, também, uma metodologia
interdisciplinar) que utilizamos quando pesquisamos assuntos que transitam nas esferas da memória, de
identidade e, por conseguinte, de sociabilidade. O historiador José Carlos Sebe B. Meihy (2015) afirma que
passou a ser utilizada com maior frequência após a Segunda Guerra Mundial, momento em que possibilitou a
criação dos gravadores. Assim, “[...] a história oral passou a ser um mecanismo para validar as experiências que
não estão quase sempre registradas em documentos escritos e/ou então quando encontram-se registradas em
documentos escritos elas têm outra mensagem, outra dimensão que quase sempre são de valor subjetivo. A
história oral passa a ser, portanto, um tipo de narrativa onde a entrevista, particularmente, gravada ou filmada
tenham um fundamento de registro em cima de um suporte material que varia, portanto, das possibilidades da
documentação escrita.” (MEIHY, 2015, p. 42).
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Essas fontes orais
13
serão analisadas e fundamentadas a partir da metodologia da História
Oral que segundo a historiadora Verena Alberti (1989) é “[...] um método de pesquisa
(histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas com
pessoas que participaram de, ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de
mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Trata-se de estudar
acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais,
movimentos, etc.” (Aberti, 1989: 52). Nessa pesquisa, o uso da história oral demonstra ser
um recurso de pesquisa fascinante, haja vista que permite “através da fala e da escuta, do
registro de histórias narradas, entrar em contato com a memória do passado e a cultura do
presente” (Santiago & Magalhães, 2015: 7).
Entrevistador
Depoente
Data da Entrevista
Quantidade de
Perguntas
Duração Total da
Entrevista
Vincent Villari
30/08/2022
64
2h08min.
Jéfferson
Balbino
Lúcio Manfredi
31/08/2022
66
1h34min13s
Maria Adelaide
Amaral
01/09/2022
40
2h02min58s
Letícia Wierzchowski
11/10/2023
3
10 min24s
Quadro 1: Informações sobre as entrevistas producidas. Fonte: Elaborado pelo autor
Dessa maneira, concebemos que um testemunho oral propicia um novo caminho para a
historiografia, pois o historiador/pesquisador não manuseará um documento escrito, mas,
sim, um documento oral, cabendo a esse profissional, analisá-lo para fazer uso desse tipo
de narrativa, argui-lo conforme os protocolos metodológicos desse próprio campo. É o que
faremos mais adiante com as colaborações desses profissionais da televisão.
Destarte disso, Portelli (2010: 174) traz outros elementos para essa reflexão:
13
Cabe ponderar que o trabalho com fontes orais é essencial, pois proporciona ao pesquisador uma gama
variada de ferramentas que, por sua vez, “facilitam a análise do passado, estabelecendo um diálogo
significativo do passado com o presente”. (tradução nossa). Ademais, conforme esclarece a historiadora oral
Laura Benadiba: O processo de construção de fontes orais provoca uma forte sensibilização em todos os
atores sociais que se dispõem a trabalhar com essa metodologia, até porque a construção do conhecimento de
que falamos [...] é gerada a partir de depoimentos diretos de pessoas que vivenciaram o processo que está
sendo investigado. Essa consciência é evidente, para dar um exemplo, quando trabalhamos com alunos de
todas as idades de forma sistemática e sustentada ao longo do tempo. Através das entrevistas os alunos podem
verificar, ao ouvirem um testemunho, que algumas características do passado permanecem no presente, e
desta forma podem perceber que os dois (entrevistado e entrevistador) fazem parte de um mesmo processo
histórico. A partir desse momento, a partir da po sterior análise dos documentos orais e sua utilização, esses
mesmos jovens adotam uma atitude crítica em relação à realidade em que vivem”. (BENADIBA, Op. Cit. 2013, p.
20) tradução nossa.
Jéfferson Balbino
209
Obviamente, uma coisa que esta história compartilha com todas as outras é que
nenhuma delas é exatamente como as outras. Nenhuma declaração individual se ajusta
perfeitamente na grade cultural à qual pertence. Na verdade, a cultura não é uma grade
(que é tão somente um recurso teórico útil), mas um mosaico no qual cada peça se
encaixa com as outras, mas é diferente de todas elas. Uma das coisas que as ciências
sociais geralmente se esquecem é que a cultura é formada por indivíduos diferentes uns
dos outros e é isso o que a história oral nos lembra.
Respaldando-nos na concepção de Portelli, veremos que cada depoente recrutado para
essa pesquisa pode vir trazer inúmeras compreensões para corroborar nossa análise e,
conseguintemente, nossa tese acerca do modo que se deu a representação das mulheres
farroupilhas na minissérie A Casa das Sete Mulheres.
A Leitura que os roteiristas fazem da minissérie após duas décadas
Dando continuidade, pretendemos aqui recuperar a partir de entrevistas temáticas a
leitura que os roteiristas da minissérie A Casa das Sete Mulheres fazem da obra como um
todo. Ou seja, a maneira que eles veem temas polêmicos e controversos abordados a partir
da representação das mulheres na trama. Problematizando o que eles fizeram nessa obra
produzida em 2003 e o que eles pensam que fizeram duas décadas depois para assim
conseguirmos fechar nossa análise sobre o que influenciou esses profissionais a trazerem
uma representação emancipada das personagens femininas. Seriam influências feministas,
próprias do ideário pós-moderno? Ou apenas uma questão, estritamente, mercadológica
para atrair audiências e repercussão positiva para a emissora e os demais envolvidos na
produção sem qualquer vínculo com pós-moderna?
Para responder tais questionamentos, buscamos ouvir os autores supracitados que, por
conseguinte, explanaram suas reflexões que serão analisadas na sequência.
Antes disso, é preciso racionalizar e, conseguintemente, refletir quanto à memória. O
historiador francês Jacques Le Goff elucubrou a memória “como propriedade de
conservar certas informações, [...] um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas” (Le Goff, 2003: 419).
Le Goff apontou ainda em sua obra História e Memória o quão complexa é a memória
que em sua visão é um fenômeno individual e psicológico que abarca várias áreas de
estudo e interpelam tantos aspectos biológicos quanto psicológicos o que a enviesa ainda
para o social, haja vista que se trata de comunicação.
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REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
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Nesse sentido, o antropólogo francês André Leroi-Gorhan distingue três tipos de memória:
i) memória específica; ii) memória étnica; e, iii) memória artificial:
Memória é entendida, nesta obra, em sentido muito lato. o é uma propriedade da
inteligência, mas a base, seja ela qual for, sobre a qual se inscrevem as concatenações de
atos. Podemos a este título falar de uma “memória específica” para definir a fixação dos
comportamentos de espécies animais, de uma memória “étnica” que assegura a
reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas, e no mesmo sentido, de uma
memória “artificial”, eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem recurso
ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados. (Leroi-Gorhan,
1981: 269).
Dessarte disso, vemos que o desenvolvimento tecnológico e da biologia propiciaram uma
espécie de desenvolvimento da memória humana remodelando o entendimento da noção
de memória. Ou seja, o livre acesso às fontes do passado traz à tona um passado que não
passa que está sempre perceptível e que, por vezes, incomoda a memória, basta ver que as
manipulações conscientes não se solidificam, uma vez que em alguns casos não
esquecimentos e silenciamentos como mecanismo de manipulação da memória coletiva
como é o caso de alguns pontos problemáticos que perpassam o nosso objeto de estudo.
Em consonância com essa temática, o antropólogo francês Joël Candau (2011: 23) elucida
o conceito de memória em três níveis:
Protomemória: A memória social incorporada, isto é, aquela que aparece nos gestos, na
linguagem, nas práticas... Aquela que ocorre “quase sem tomada de consciência”, sendo o
próprio senso prático, tal como se o passado não fosse sequer representado, uma vez que
já se encontra de modo inerente no corpo.
Memória de Evocação: Seria a memória propriamente dita, ou seja, aquela que a gente
evoca voluntariamente e que vem à tona. Aquela que se abdica de extensões como, por
exemplo, saberes advindos, sentimentos, crenças, enfim de algo que advém da cultura de
memória que, por conseguinte, amplifica essa memória.
Metamemória: Diz respeito à construção identitária, isto é, a representação e o
conhecimento das próprias lembranças. Para Joël Candau (2011: 24) é essa a memória
que se refere à memória coletiva, ou seja, aquela que pode ser compartilhada, uma vez que
reúne um conjunto de representações da memória. Na visão de Candau, a representação
da memória é “um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma
memória supostamente comum a todos os membros do grupo”.
Jéfferson Balbino
211
Ainda, a despeito disso, em sua obra Memória e Identidade, o autor tece uma importante
contribuição ao diferenciar a memória forte e a memória fraca.
Memória Forte: É uma memória massiva, coerente, compacta e profunda” (Candau,
2011: 44). Seria aquela encontrada em pequenos grupos, aquela que reduz as disputas
internas. Serve para lembrar, justamente, por ser uma estrutura estruturante” de
identidade, ou seja, é uma “retórica holística” que pode ser interpretada como “grandes
narrativas”. (Candau, 2011: 25-125).
Memória Fraca: Aquela superficial, que desnaturaliza um grupo, desorganiza e limitam a
pluralidade de lembranças.
Ainda, de acordo com o antropólogo a transmissão de lembranças não traz o mesmo
sentido, tendo em vista que os estados mentais dos sujeitos são indissociáveis, ou seja, não
é passível de ser observado de modo simultâneo pelos indivíduos. Por isso que nem
sempre a memória social torna-se memória coletiva.
Por se tratar de depoimentos orais devemos ainda levar em consideração a memória oral
que, segundo a estudiosa argentina Laura Benadiba (2013: 123), é um antídoto perfeito
que “reúne a escuta, se constrói na comunicação, se apoia na experiência e facilita a
narração, ou seja, a vida. Além disso, ela é capaz de revelar segredos...”
14
.
Ainda dentro dessa perspectiva, Andreas Huyssen, em sua obra Seduzidos pela memória,
nos lembra que no final do século XX, as sociedades ocidentais, voltaram seus olhares para
o passado. Esse movimento é o que o teórico chama de passados presentes que advém de
uma “cultura da memória”, pois um significativo aumento de discursos memoriais e a
apropriação bem sucedida desses discursos pela indústria cultural (Huyssen, 2000:
15).
Diferentemente dos intelctuais anteriores, listados acima, que nos mostram como esse
paradigma (Pós-Moderno e Pós-Modernidade) se completou, pois existe uma convivência
entre as duas modalidades, o sociólogo Manuel Castells o reconhece, pois aborda o
conceito de pós-modernismo no contexto de sua análise sobre a sociedade
contemporânea, caracterizada pelo impacto da revolução da informação e da globalização.
Ou seja, Castells não rejeita totalmente o termo pós-modernismo, mas ele o utiliza de
forma crítica e o situa em um contexto mais amplo.
Em seu livro O Poder da Identidade: A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura,
Volume II, Manuel Castells (2018) argumenta que a pós-modernidade é uma fase histórica
caracterizada por transformações significativas, como a ascensão da informação e da
14
“reúne la escucha, se construye sobre la comunicación, se soporta sobre la experiencia y facilita la narración,
es decir, la vida. Además, es capaz de develar los secretos” (texto original).
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
Jéfferson Balbino
TESTIMONIOS N°13 2024
212
tecnologia, mudanças na economia global e na cultura, e a emergência de novas formas de
organização social. Ele observa que o pós-modernismo frequentemente se manifesta em
uma fragmentação da cultura, a multiplicidade de identidades e a fluidez das fronteiras
tradicionais.
No entanto, o autor considera que o termo pós-modernismo pode ser enganador e
limitado em sua capacidade de capturar a complexidade dessas mudanças. Ele argumenta
que a pós-modernidade não é uma ruptura completa com a modernidade, mas sim uma
continuação e transformação das tendências modernas.
Castells enfatiza que, embora o pós-modernismo traga elementos de fragmentação e
diversidade, também traz a centralidade da informação e da tecnologia como
características fundamentais. Ele argumenta que a revolução da informação desempenha
um papel central na reconfiguração da sociedade contemporânea.
Ou seja, Manuel Castells discute o pós-modernismo como parte de uma análise mais ampla
sobre a era da informação, a globalização e as transformações sociais e culturais. Ele
aborda o pós-modernismo de maneira crítica, destacando suas características, mas
também argumentando que é importante contextualizá-lo dentro do quadro mais amplo
das mudanças que ocorrem na sociedade contemporânea.
Também, devemos ter ciência de que a mídia por si nos poupa do trabalho de lembrar
coletivamente. A despeito disso, Sara Feitosa, em sua obra Ficção Controlada: o efeito real
da minissérie histórica nos diz que “embora se saiba que a memória é uma ação que se
consolida no indivíduo, ela é sempre mediada, e a preocupação, [...], é com a construção de
um discurso público, social e coletivo sobre o passado, a partir da mediação audiovisual”
(Feitosa, 2016: 64). Feitosa também esclarece em seu estudo o quão a teledramaturgia
pode se constituir enquanto lugar de memória, uma vez que “a historiografia funciona
como [...] espaço de organização do discurso sobre o passado” (Feitosa, 2016: 66).
Algo recorrente nas entrevistas com os autores da minissérie (Maria Adelaide Amaral,
Lúcio Manfredi e Vincent Villari) é o esquecimento de fatos que envolvem seus respectivos
trabalhos na roteirização da minissérie A Casa das Sete Mulheres, alegando o
distanciamento temporal de duas décadas. Inobstante isso, vemos nos estudos do
antropólogo brasileiro Renato Ortiz que tal esquecimento pode ser caracterizado no que o
autor chama de amnésia seletiva. Para esse intelectual “esquecer significa confirmar
determinadas lembranças, apagando os rastros de outras, mais incômodas e menos
consensuais” (Ortiz, 2003: 139).
Jéfferson Balbino
213
A partir dessa discussão teórica, vemos que é plausível quando os nossos entrevistados se
incomodaram (ou não) com a memória que lhes acometem em algumas indagações.
Observemos num primeiro momento a visão da escritora Letícia Wierzchowski sobre a
adaptação de seu romance para a TV e a pauta feminista que imbui sua criação:
- O que você achou da adaptação televisiva de seu romance A Casa das Sete Mulheres? E como você viu a
emancipação das mulheres farroupilhas que na minissérie tiveram uma atuação mais transgressora do que
em sua obra literária como, por exemplo, a representação da Manuela (Camila Morgado)?
- A série foi exibida 20 anos, né? Então de pra muita coisa aconteceu na minha carreira
profissional, mas desde o começo eu entendia que um romance tem uma estrutura narrativa muito
diferente de uma série de televisão, ? [Enfim] de uma história que é narrada em imagens. Quando A Casa
das Sete Mulheres foi adaptada para a televisão eu não trabalhava com roteiro, mas hoje metade do meu
trabalho é voltada para o roteiro de cinema e de TV. Eu trabalho muito com a narrativa de roteiro. Então eu
entendo quando você fala “mais transgressora” o seguinte: no livro a gente tem um triangulo amoroso, na
verdade, uma história de amor que eu quis contar, porque na verdade era uma história muito inferior a
história do Garibaldi com a Anita que foi de fato a e dos filhos dele, mas eu entrei na Revolução
Farroupilha pelas portas dos fundos. Que era contar a história das mulheres, contar a história da figura
feminina durante aquela guerra tão longa e tal. E também na vida do Garibaldi para contar o que aconteceu
naquele período, ali naquele lugar, que era uma história mais escondida, mais secreta. De fato era
verdadeira, [pois] ele se apaixonou pela Manuela, queriam noivar, não noivaram em função da família. Ela
era filha de uma das famílias mais ricas da província e naquele tempo ele era um revolucionário com a
cabeça na Europa... Quando você faz uma história (eu também tive esse problema quando comecei a
planejar o romance), o mocinho da história, o Garibaldi, permanecia um ano dentro dos dez anos de
narrativa da história. Porque ele chegava no Rio Grande do Sul em 1838 e ia embora em 1839 pra fazer a
República Juliana, ou seja, junto com a Manuela ele ficava um ano. Para solucionar esse problema: nove anos
do meu romance, eu o tinha personagem principal presente e foi quando eu trouxe a Manuela como
narradora. Então dentro do livro, da estrutura que montei antes do Garibaldi chegar: ela sendo intuitiva,
esperando a chegada dele. E quando ele vai embora ela passa a esperar que ele volte para busca-la, para vê-
la. Apesar de o Garibaldi não estar presente fisicamente ali com ela na Estância ele é citado o tempo inteiro,
ele paira no romance. E na televisão a gente não pode fazer isso, a gente não tem um narrador em primeira
pessoa que está contando a história ali, a voz do narrador em primeira pessoa num roteiro ela é muito
pequena. Você não pode narrar um roteiro. O roteiro tem que estar em ação, o roteiro é cena. Então como
eles [produtores da minissérie] não podiam usar dessa alternativa que eu criei para a TV e, simplesmente, o
personagem não podia desaparecer e outra: se criava um triângulo amoroso que não podia ser rompido por
uma questão de Ibope, [afinal] as pessoas estão torcendo pela mocinha e de repente a mocinha não vai mais
atrás do mocinho. No romance eu crio uma estrutura e uma tensão e uma expectativa de que o Garibaldi
voltará. Agora na rie que a gente está vendo as imagens, a sucessão dos acontecimentos em imagens, o
Garibaldi conhece a Anita e o telespectador que está acompanhando aquilo vai esperar que ela não vai
voltar, o tem mais pelo que esperar. Então a única alternativa que os adaptadores tiveram foi levar a
Manuela para o drama, já que o drama se afastava dela então a Manuela vai atrás do drama. Na época que [o
romance] foi adaptado a Maria Adelaide Amaral me ligou para falar sobre isso e tal. Então foi uma das
grandes lições que eu tive para começar a pensar as diferenças entre uma narrativa literária e uma
narrativa audiovisual. Pra mim isso é muito natural hoje em dia. Eu cheguei a adaptar há alguns anos atrás o
primeiro volume do Érico Verissimo O Continente e passei por essa experiência do lado inverso. Então eu
acho que é uma maneira de se contar diferente e a gente [quando] tem uma história precisa adaptar ela
para o formato que a gente está contando. Então [respondendo] a tua pergunta: eu fiquei feliz, achei que a
adaptação foi muito bem sucedida. Na verdade, recentemente eu vendi os direitos [da obra] para uma nova
adaptação que não vai ser pela Globo, vendi para uma produtora. A ideia é vender para um streaming [tipo]
HBO, Netflix...Isso ai ainda não está solucionado, decidido, mas em breve a gente vai ter uma nova versão d’
A Casa das Sete Mulheres. Mas o que foi feito na época foi muito bem sucedido e a gente teve que jogar o jogo
conforme as regras, né?! Mas eu gostei bastante!
Quadro 2: Recepção de Letícia Wierzchowski diante da adaptação televisiva. Fonte: Elaborada pelo autor
A partir de seu depoimento, Letícia Wierzchowski, autora do romance A Casa das Sete
Mulheres, oferece uma análise esclarecedora sobre a adaptação televisiva de sua obra e,
conseguintemente, a representação das mulheres farroupilhas na minissérie,
especificamente a personagem Manuela, interpretada pela atriz Camila Morgado.
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
Jéfferson Balbino
TESTIMONIOS N°13 2024
214
A partir de seu relato é possível compreender que, na época de exibição da minissérie, o
motivo pelo qual a escritora se incomodou com as alterações que seu romance sofreu em
sua adaptação televisiva ocorreram por ainda não estar envolvida no ofício de roteirista.
Ou seja, precisou a escritora migrar para esse ramo da escrita para assim compreender a
necessidade de uma narrativa diferente para a TV em comparação com um romance
literário. Ela destaca também a diferença entre contar uma história em palavras e imagens,
reconhecendo que uma série de televisão exige um ritmo e uma abordagem diferentes.
Portanto, o suporte sempre irá influenciar os limites entre ficção e realidade.
A partir dessa interlocução com Wierzchowski, vemos que a questão da "transgressão" na
representação das mulheres farroupilhas é abordada pela escritora com cuidado. Ela
menciona que, em seu livro, a ênfase estava na história de amor entre Manuela e Garibaldi,
que era um aspecto secundário em relação à história principal do herói revolucionário.
Wierzchowski queria destacar as mulheres e a vida de Garibaldi na época, que era menos
conhecida e mais secreta. No entanto, na série, eles não podiam usar a mesma estrutura
narrativa do livro, pois Garibaldi não poderia simplesmente desaparecer da trama e criar
um triângulo amoroso que não pudesse ser rompido. Assim, a adaptação televisiva optou
por tornar Manuela mais envolvida no drama, mantendo a atenção dos telespectadores.
A autora também destaca a importância da voz narrativa em primeira pessoa no romance,
algo que não é facilmente transmitido em um roteiro de TV, que deve ser focado em ações
e cenas. A série precisava manter o interesse do público, e a adaptação teve que se ajustar
a essa demanda. Inclusive, Wierzchowski menciona que essa experiência a ajudou a
compreender as diferenças entre narrativas literárias e audiovisuais, algo que agora
considera natural. Ela também compartilha sua satisfação com a adaptação da série,
destacando que foi bem-sucedida em sua própria maneira de contar a história.
Além disso, ela revela que vendeu os direitos da obra para uma nova adaptação que não
será produzida pela Globo, sugerindo que a nova versão poderá ser exibida em serviços de
streaming como HBO ou Netflix, embora os detalhes ainda não estejam totalmente
definidos. Ou seja, será possível no futuro uma nova leitura da representação das
mulheres farroupilhas.
Portanto, a resposta de Letícia Wierzchowski mostra que ela compreende as diferenças
entre narrativas literárias e audiovisuais e valoriza a necessidade de adaptação para
contar uma história de forma eficaz em diferentes formatos. Ela expressa sua aprovação
pela adaptação anterior e sua expectativa de que uma nova versão da obra alcance sucesso
semelhante.
Jéfferson Balbino
215
- Na entrevista que realizamos com a autora Maria Adelaide Amaral, ela disse que quando a Manuela sai da
Estância, vai para Guerra e ainda faz sexo com o Giuseppe Garibaldi, ou seja, atos transgressores que não
estavam presentes em sua obra literária e que foi um recurso utilizado pela teledramaturgia você se revelou
chocada, sobretudo, porque tal situação também não ocorreu na realidade. Na época, isso te incomodou por
qual razão? E, outro ponto, que a minissérie e sua obra literária convergem é a emancipação feminina, isto é,
com personagens destemidas. De alguma forma intentos da pós-modernidade ou pautas do movimento
feminista perpassaram por você no momento de criação da narrativa?
- Vamos por partes: a questão da Manuela. Na época, a Maria Adelaide super querida me contava tudo
que eles iam fazer na minissérie. Me lembro até dela me escrever: “agora você vai ficar apavorada com o que
vai acontecer”. E claro que é um pouco tocante. Agora que eu trabalho com roteiro eu entendo que eles
precisaram fazer isso. Ela deve ter te dito que embora fiquei espantada eu compreendi e nos damos todos
bem e somos amigos. É claro que eu entendo a necessidade, na época toda... O que acontece é que a TV
trabalha com uma estrutura um pouco mais solta do que a literatura [onde] as pessoas podem voltar às
páginas e ler e pensar sobre o assunto. E a lógica interna da personagem se destrói um pouquinho, porque a
família da Manuela não permite que ela fique com o Garibaldi. E isso é um fato histórico! Porque ela era de
uma família muito rica. E no século XIX a tarefa de uma mulher era, exclusivamente, se casar e gerar filhos,
descendentes. E casar com quem a família escolhesse que seria monetariamente ou politicamente
importante e tal, era o caso sempre de uma moça rica como ela. Quando o noivado dela com Garibaldi é
vetado [por sua mãe], isso é excluído da vida dela. Caso ela seguisse atrás dele não teria mais nenhum
motivo para eles não ficarem juntos, entende? Então tem um rompimento de lógica dentro da minha
narrativa, da narrativa que eu estava construindo, porque esse fato não aconteceu. É real! A Manuela morre
com mais de 70 anos, foi super longeva para o século XIX e ela não casa com ninguém. Aí vem a transgressão
dessa personagem da vida real. Ela tinha a obrigação de casar e gerar descendência, [mas] não deixam ela
ficar com o homem que ela ama e ela acaba não se casando com ninguém. Tem crônicas da época, do Jornal
de Pelotas onde ela viveu e morreu contando que ela idosa se vestia de branco e andava pelas ruas
carregando um pacote de cartas que ela dizia que eram cartas do Garibaldi. Ela ficou conhecida como a
noiva do Garibaldi. E as crianças jogavam pedras nela [que ficou conhecida] como a louca do bairro’. Eu
acho que ela estava com algum processo de demência. Isso é um fato, mas a opção de transformar a
Manuela nessa mulher que vai pra guerra é totalmente compreensível pra mim, inclusive, foi um
aprendizado narrativo pra mim. Sobre a questão do feminismo eu acho que sim. Eu sou gaúcha, aqui no Rio
Grande do Sul, você estuda a Revolução Farroupilha na escola e toda vez que você vai estudar uma guerra
isso é um fato geralmente, a perspectiva é masculina. A História até recentemente foi escrita por homens
para homens. As mulheres são pegadas, tanto que para escrever esse romance eu tive que praticamente
revirar o Instituto Histórico e Geográfico, as bibliotecas para encontrar pegadas que eram muito frágeis
dessas mulheres. E depois que eu fui escrever a própria história da Anita Garibaldi que é um vulto histórico
importante associado a essa determinada mulher que quebrou paradigmas gigantes que até hoje são
impressionantes. Porque uma mulher fazer o que ela fez é pasmificante e não ter quase nada sobre ela
tendo só a partir do momento que ela está vinculada a Garibaldi. Então a História não olha para as mulheres
e quando eu decidi contar um dos maiores fatos históricos do sul do país, uma guerra tão amplamente
estudada e tal pelo ponto de vista feminino eu acho que eu estou querendo, justamente, trazer uma
bandeira feminista e eu acho que essa é de fato a grande graça do romance que faz com que ele
permaneça sendo lido ahoje. O livro é super adotado em escolas, eu vendi de novo os direitos para uma
nova série, a gente fez uma versão do romance em HQ, lindo. Então eu acho que sim, eu quis dar a essas
mulheres um protagonismo muito importante. O Rio Grande do Sul viveu muitas batalhas, duzentos anos de
batalhas, porque fazia fronteira do Império com toda a Cisplatina, o que acontece é que esses homens saiam
para guerra constantemente. Cada geração tinha uma guerra e as mulheres ficavam, elas tinham que ficar e
manter as coisas em ordem e esperar seus homens (maridos, pais, filhos, sobrinhos, enfim...) voltarem
quando voltavam para seguirem a vida. Na Revolução Farroupilha isso foi mais intenso ainda, porque foi
uma Revolução [onde] esses estancieiros tinham que financiar uma parte dessa guerra. E de onde vinha
esse dinheiro? Vinha das próprias Estâncias que eles tinham e que eles não estavam cuidando, [pois] quem
estavam cuidando eram as mulheres que se mostraram grandes empreendedoras nesse período. Então, sim,
tem uma bandeira feminista no livro.
Quadro 3: Recepção de Letícia Wierzchowski diante da adaptação televisiva Continuação. Fonte: Elaborado
pelo autor
Como vemos acima, Letícia Wierzchowski, ao responder às perguntas sobre a adaptação
televisiva de sua obra A Casa das Sete Mulheres e as questões relacionadas à emancipação
feminina na narrativa, oferece uma análise abrangente e esclarecedora.
Em relação à representação de Manuela na minissérie, Wierzchowski expressa que,
embora tenha ficado inicialmente surpresa e tocada com a inclusão de cenas
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
Jéfferson Balbino
TESTIMONIOS N°13 2024
216
transgressoras que não estavam em sua obra literária, ela compreendeu a necessidade de
tais mudanças. Ela observa que a TV possui uma estrutura diferente da literatura, em que
as pessoas podem voltar e reler partes do livro para refletir sobre o conteúdo. A lógica
interna da personagem Manuela se tornaria incoerente se ela seguisse atrás de Garibaldi
após o veto do noivado por sua família, que é um fato histórico.
No entanto, a adaptação precisava manter a coesão da narrativa e, portanto, optou por
transformar Manuela em uma personagem que participa ativamente da guerra, o que se
revelou um aprendizado narrativo para a autora.
Quanto à questão da emancipação feminina, Wierzchowski aborda a perspectiva histórica
e de gênero da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. Ela destaca que, em geral, as
guerras eram predominantemente abordadas sob a perspectiva masculina na História e
que as mulheres eram frequentemente relegadas a um segundo plano. Para escrever seu
romance, a autora teve que pesquisar extensivamente para encontrar vestígios das
mulheres envolvidas na Revolução, uma vez que a História raramente as mencionava. Ela
menciona que, ao contar essa história sob a perspectiva feminina, queria destacar a
importância das mulheres na manutenção das famílias e das estâncias durante o período
de guerras. A figura de Anita Garibaldi, que quebrou paradigmas e desafiou as normas da
época, se destaca nesse contexto. Portanto, a autora afirma que, ao contar essa narrativa
sob a perspectiva feminina, ela pretendia trazer à tona uma bandeira feminista, dando às
mulheres um protagonismo importante em um contexto histórico predominantemente
masculino.
No geral, a resposta de Letícia Wierzchowski demonstra seu entendimento da necessidade
de adaptação de histórias para diferentes mídias e seu compromisso em dar destaque às
mulheres e à sua influência durante a Revolução Farroupilha, contribuindo para a
discussão de questões de gênero e emancipação feminina em seu romance. Ela ressalta a
importância de abordar a história sob diferentes perspectivas e como isso enriquece a
narrativa. Ademais, vemos que o cerne da obra é de intento feminista e que isso é
transmutado para versão televisiva mesmo que os roteiristas não se deram conta (como é
possível verificar, posteriormente, em seus respectivos depoimentos).
Ainda, no tocante ao trecho acima do depoimento da escritora, podemos compreender que
uma narrativa com contexto histórico, tal como A Casa das Sete Mulheres, é uma
construção que se baseia no passado. E, embora o discurso historiográfico produzido
esteja relacionado à realidade dos fatos, ainda assim não o reproduz com precisão, uma
vez que não é uma tradução exata dos acontecimentos. De acordo com Rossini, “o real é
Jéfferson Balbino
217
inatingível na sua totalidade [...] o que nos possibilita chegar a ele e construir um
conhecimento sobre ele são as representações”. Para essa intelectual, “falar sobre o real é
produzir um discurso que já é a priori ficcional, pois é narrativo, é representação” (Rossini,
1999: 60). Outro ponto peculiar que se faz presente no depoimento de Wierzchowski é o
reconhecimento da vertente feminista na criação das personagens femininas do romance.
Algo que não é reconhecido, sobretudo, nos depoimentos de Villari e Amaral, algo que nos
faz repensar a relação memória e esquecimento. Sendo o esquecimento uma espécie de
“memória escondida”. (Huyssen, 2000: 18).
Nos trechos, abaixo, as interpretações dos autores elucidam suas compreensões sobre o
assunto.
Você vê as representações das mulheres farroupilhas na minissérie sob uma película de protagonismo ou de
submissão?
Lúcio Manfredi
Vincent Villari
Eu acho que o saldo final é pró-
empoderamento. Eu acho que
isso pesou muito mais. A
minissérie criou, inclusive,
uma série de imagens
emblemáticas, fortes… A
imagem no final do primeiro
capítulo: as sete mulheres de
braços dados entrando na casa
e tal, aquilo é uma imagem de
sororidade muito forte. Então
apesar dos escorregões, apesar
dos pontos cegos, das coisas
que a gente não via na época, o
saldo final foi positivo, de
empoderamento.
Acho que elas foram protagonistas de
suas próprias histórias. Elas não
foram pra guerra, à função delas não
era essa. Quer dizer, teve uma até que
foi, mas não pra guerrear, ela foi em
busca do homem que ela amava. Elas
foram protagonistas de suas próprias
vidas, a gente queria contar como
essas mulheres sobreviveram aquele
período, tendo que assumir um papel
que antes - com os homens presentes
- não lhe pertenciam. Então elas
assumiram um protagonismo, sim!
Em termos [tele]dramatúrgicos eu
acho que elas foram [protagonistas]…
A Casa das Sete Mulheres o
protagonismo chamava por elas, mas
ao mesmo tempo, se a gente não
mostrasse a guerra, não mostrasse a
ação dos homens, elas próprias
ficariam diminuídas. Se a gente
ficasse naquela Estância daria a
impressão de um bando de mulheres
entediadas que estavam ali sofrendo,
esperando… [...]
Então isso enriquece, mostrar a
guerra também enriquece as
personagens femininas. E a presença
delas enriquece os homens, porque
eles não são simplesmente fantoches
de uma guerra, são homens com
esposas, com filhas, com mães, que
desejam voltar pra casa. [...].
Quadro 4: Comparativo de respostas dos entrevistados. Fonte: Elaborado pelo autor.
Nesse comparativo de respostas vemos similitudes, mas também discrepâncias no modo
que os produtores da minissérie analisam o resultado da obra audiovisual, no tocante a
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
Jéfferson Balbino
TESTIMONIOS N°13 2024
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representação das mulheres farroupilhas. Embora os três narradores vejam a
representação feminina sob um viés de empoderamento/emancipação, somente um deles,
no caso Lúcio Manfredi, que reconhece que a minissérie pecou nessa representação
feminina de protagonismo.
No caso, a autora Maria Adelaide Amaral fala que havia uma zona cinzenta
15
, pois suscita
que havia mulheres submissas ou com traços de submissividade e que era um jogo de
hipocrisia que muitas vezes era benéfico para elas. O que, obviamente, caberia um tipo de
problematização na minissérie.
o terceiro depoente, Vincent Villari, além de ver a representação das mulheres na
minissérie de maneira empoderada, observa que havia a necessidade de trazerem uma
representação masculina eloquente, pois ambas estão coadunadas, ou seja, para o
roteirista mostrar o heroísmo dos homens na guerra foi um fator preponderante para
enriquecer a representação das personagens femininas.
Intento feminista ou recurso teledramatúrgico?
Conforme foi explicitado anteriormente, utilizamos a metodologia da História Oral e,
conseguintemente, a realização de entrevistas como base procedimental para assim
averiguarmos o modo como transcorreu a representação do feminino na minissérie A Casa
das Sete Mulheres. Tal método foi crucial, pois conforme determina a estudiosa Marta
Rovai o momento “em que se realiza o cruzamento de olhares, de mundos e de análise
mútua” ocorre o “encontro em que se perguntam entrevistado(a) e entrevistador(a)
sobre quem é aquela pessoa diante de si e sobre o que ela tem a oferecer e a revelar” e
isso, de acordo com Rovai, “não se trata de distanciamento desinteressado e ingênuo, mas
de um processo em que precisamos reconhecer e garantir uma vivência paradoxal”.
(Rovai, 2021: 53-54).
15
A "zona cinzenta" é um termo que se refere a uma área ou situação que não é claramente definida ou que
não se encaixa em categorias distintas. É uma região onde as fronteiras, limites ou características o são
nítidas, resultando em ambiguidade, incerteza ou complexidade. Este conceito pode ser aplicado em várias
áreas, incluindo ética, direito, ciência, política e muitos outros contextos. Em suma, a zona cinzenta é um
conceito que reconhece a complexidade e a ambiguidade em várias áreas da vida e do conhecimento,
destacando que nem tudo pode ser facilmente categorizado como preto ou branco. Em muitos casos, é
necessário lidar com essa ambiguidade e complexidade de forma cuidadosa e ponderada. [Fonte: Bureau,
Marie-Christine; Dieuaide, Patrick. Institutional change and transformations in labour and employment
standards: ananalysis of ‘grey’ zones. Transfer, v. 24, n. 3, p. 261-277, 2018.].
Jéfferson Balbino
219
Posto isso, percebemo-nos que a minissérie trouxe, a nosso ver, uma abordagem que
atravessa a questão do feminismo, diferentemente do romance literário que a originou,
isto é, na minissérie as mulheres farroupilhas tiveram uma representação muito mais
emancipatória do que sugere o livro original.
Diante disso, buscamos ouvir os autores que adaptaram esse romance histórico para a
televisão para aferir se foi intencional essa representação “feminista” ou apenas algo que
surgiu para atender os anseios que um produto mercadológico dessa envergadura exige.
E o que aferimos foram dois posicionamentos similares e outro discrepante acerca dessa
problemática, visto que para o roteirista Vincent Villari o período histórico e os
acontecimentos históricos que perpassam a narrativa estão imbuídos de valores morais
que por si próprios demarcam para o telespectador o contexto de ambiência da
narrativa e de suas personagens. E para Villari, o que fugiu à regra do conservadorismo
que o período denota e que houve na minissérie como o episódio em que Manuela sai da
Estância de madrugada e vai atrás de Garibaldi no meio da guerra é um dos exemplos
das exceções que existia.
Sobre isso, o autor relata que:
[...] A Manuela saiu daquela Estância, foi atrás do Garibaldi, se meteu no meio da guerra, fez o
parto da Anita, porque a teledramaturgia tem suas próprias leis. Cometemos uma liberdade
[poética]? Cometemos uma liberdade, mas foi para o bem da ficção, sem trair os personagens,
sem trair a essência dos personagens. E sem trair sequer a realidade histórica. Porque uma
moça de Estância entrar no meio daquela guerra, podia ser improvável, mas não era
impossível. Então, nós, apostamos no improvável, afinal a teledramaturgia é feita do
improvável, das histórias improváveis. Isso, talvez, tenha soado até um pouco feminista: o
poder das mulheres, mas muito antes de falar de feminismo não é verdade que todas as
mulheres ficavam em casa bordando, a História mostra que não! A História mostra que
apesar de a regra ter sido essa, nos últimos dois mil anos, havia suas exceções à regra. A
Manuela seria uma dessas exceções e foi muito interessante
16
.
Para Villari, essa representação emancipatória de Manuela não se confunde com uma
abordagem feminista por parte da equipe de roteiristas, mas sim um recurso exigido
pela teledramaturgia para que a narrativa ficcional tivesse mais emoção junto ao público.
No entendimento do autor, precisava haver essas mulheres “mais ativas com conflitos
mais palpáveis”, pois dessa maneira era possível construir a psique das personagens e
tirá-las da introspecção em que estavam inseridas na obra literária. Inclusive, chegamos a
questioná-lo se não haveria sido o contexto social (2003) de produção da minissérie que
lhe influenciaram a adotar uma vertente feminista para representar as mulheres
16
Villari, Vincent. 2022.
MEMÓRIA, SIGNIFICADOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
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TESTIMONIOS N°13 2024
220
farroupilhas, ao passo, que ele negou, alegando que não tinham o feminismo como pauta,
além de dizer que o feminismo “não era uma pauta de 2003”.
Vincent Villari ainda esclarece:
[...] A gente não pensava em feminismo. É preciso também compreender a realidade. Em
todas as guerras, os homens vão e as mulheres são as responsáveis pela sobrevivência.
Isso em toda guerra civil, guerra mundial… As mulheres ocupam funções muito
masculinas durante as guerras. Então eu acho que não tem nada a ver com feminismo.
Eu acho que é uma questão de sobrevivência quando essas mulheres pegam em armas,
quando essas mulheres cuidam da casa, quando elas tomam decisões, quando elas são
autoritárias, quando elas são brutas a quando elas se envolvem amorosamente,
romanticamente com quem elas não deveriam - de acordo com os valores -, porque elas
adquirem um grau de independência e de subsistência tão maior do que se elas
estivessem seus companheiros, seus familiares perto que isso é viável. uma mudança
de valores, uma mudança de comportamento que a guerra determina. Então eu acho
que não nenhuma bandeira feminista sendo levantada. É um retrato do que acontece
nas sociedades durante uma guerra
17
.
De fato, a História, mais especificamente a História das Mulheres, mostra-nos que em
situações de guerra, as mulheres sempre fugiram as regras convencionais para garantir a
própria subsistência do núcleo familiar, porém, o que chama-nos atenção é que a
teledramaturgia pouco se preocupou em resgatar esse movimento histórico, ou seja, nunca
mostrou pelo menos de maneira
grandiosa como em A Casa das Sete
Mulheres esse exigência que a própria
natureza feminina impõe em momentos
conflituosos.
Na imagem abaixo, vemos Garibaldi
ensinando Manuela a manusear uma
arma de fogo e ela se mostra apreensiva,
o que denota ao telespectador que tal
atitude não é um traquejo comumente
realizado por uma mulher de elite.
A imagem acima que, por conseguinte, é estática de uma cena em movimento reproduz
uma mulher tensa por estar fazendo algo que não lhe é permitido e um homem feliz
(possível perceber através de seu sorriso) por estar de certo modo “comandando”
17
Villari, Vincent. 2022, n/p.
Imagem 15: Giuseppe Garibaldi (Thiago Lacerda) ensina Manuela
(Camila Morgado) a atirarFonte: Reprodução/Globoplay
Jéfferson Balbino
221
Manuela. Ademais, nessa imagem capturada Garibaldi é uma espécie de instrutor militar
da moça e ao compartilhar seus conhecimentos sobre armamento reforça sua
representação heroificada, haja vista que o comandante militar, historicamente,
desempenhou um papel importante na formação de tropas durante os conflitos que
levaram à unificação da Itália no século XIX.
A representação de Manuela sendo treinada no manuseio de armas destaca a intrínseca
relação entre gênero e atividades militares na sociedade da época. A participação de
mulheres em contextos militares pode ser vista como uma subversão dos papéis de gênero
tradicionais, questionando as normas sociais prevalecentes.
Portanto, esse fragmento imagético reluz não apenas por retratar um momento específico
na vida de Garibaldi, mas também oferece uma janela para as complexidades das relações
de gênero e o papel das mulheres em contextos militares. Ao analisar essa representação,
é essencial considerar as nuances históricas e as motivações por trás das escolhas de
roteiro, reconhecendo que a ficção muitas vezes incorpora elementos da realidade para
transmitir mensagens mais amplas sobre a sociedade e seus valores.
A roteirista Maria Adelaide Amaral compactua da opinião de seu colaborador de texto,
pois também não se atravessada pelo feminismo para criar o enredo da minissérie que,
em sua opinião, se ficasse restritamente circunscrita ao livro não renderia sequer 20
capítulos, pois a obra literária, criada pela escritora Letícia Wierzchowski, não
contemplava, maiormente os homens e, sobretudo, os conflitos armados, apenas os
mencionavam. Para a dramaturga, não tinha alternativa para representar as mulheres
farroupilhas senão do jeito que estiveram representadas. Inclusive, sobre o fato de a
Manuela sair da Estância para ir atrás de seu amor é o que, justamente, fez com que os
telespectadores da minissérie se rendessem à narrativa.
Para Maria Adelaide Amaral, as mulheres farroupilhas eram fortes, empoderadas, pois
[...] aquele momento [da guerra] você não tinha alternativa a não ser transformar essas
mulheres [em heroínas]. E isso estava esboçado no livro, é claro que ela deu outra
direção e tal, mas estava limitado. [...] Então, tudo tem que surgir naturalmente, tudo
tem que ser exigência da trama, a história vai se contando. Quando você começa uma
história e tudo certo ela vai se contando por si mesma. Os personagens vão ganhando
autonomia, qualquer autor vai te dizer isso... Ele escapa de um desejo inicial do autor de
ter algum controle. A gente não controla o personagem, ele vai embora. É como se
ganhasse vida própria, é assim o tempo todo, mesmo no teatro, no romance, os
personagens vão ganhando vida própria
18
.
Isto é, o rumo heroico que essas mulheres tomaram na minissérie para Adelaide nada
reporta ao fato dela e de sua equipe de roteiristas estarem atravessadas pela pauta de
18
Amaral, Maria Adelaide. 2022. n/p.
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espectro feminista. O que faz-nos pensar como as atrizes também estão imbuídas nesse
processo de construção cênica dessas mulheres fortes e, tal qual, talvez, trouxeram uma
verve feminista mesmo que intuitivamente. A autora ainda atesta não ter preocupação em
construir personagens verossímeis, pois senão aquele ser ficcional torna-se “uma máquina
de falação” e de conceitos, ou seja, em sua visão profissional a personagem precisa parecer
uma pessoa real, pois desse modo funcionará junto ao público ocasionando “um mínimo
de identificação
19
.
Ao ser questionada sobre o fato de haver no início do século XXI, uma efervescência
feminista no Brasil que poderia ter sido o estopim para sua equipe de roteiristas adotarem
uma abordagem mais emancipada na representação das mulheres farroupilhas, em
especial, das descendentes de Bento Gonçalves, a roteirista justifica que a narrativa pedia e
que
[...] não é por causa do movimento [feminista] é porque sempre houve mulheres
empoderadas, é porque sempre houve no meio de 550 mil mulheres submissas as Marias
Mouras da vida, sempre houve as grandes heroínas [como:] Joana d’Arc, Maria Quitéria.
E as mulheres que estavam além do sexo que não era uma limitação [porque] a
determinação delas era maior do que as limitações que o gênero impinge. Então na
verdade essas mulheres estão presentes ao longo da história em todos os momentos da
história. Elas estão presentes em Homero que viveu - se presume - no século XII ou XIII
a.C. Isso [o empoderamento feminino] está na Ilíada, esna Odisséia… Tem mulheres
fortes em todas as narrativas, você pega Shakespeare, na Grécia, em Roma, nas
narrativas medievais sempre tem essas mulheres por isso elas são heroínas, elas são
mulheres excepcionais. Você pega Abelardo e Heloísa, o que era a Heloísa? E era uma
história da Idade Média. A Heloísa era uma mulher que foi estudar na Universidade e era
uma mulher que fazia aquilo que ela achava que tinha que fazer, entendeu? Então
sempre houve… E essas mulheres são mulheres excepcionais então era natural [haver
esse tipo de representação na minissérie] e não porque estava na moda. É porque era
assim, a história pedia
20
.
Portanto, vemos a partir do depoimento de Maria Adelaide Amaral que o norteamento
dos autores durante um processo narrativo é se basearem nas clássicas estórias universais
de amor, intrigas, conflitos etc.
Como os colaboradores não tiveram até o momento acesso uns nas entrevistas dos
outros vemos que alguns depoimentos possuem um tom amplamente discrepante como
o do roteirista Lúcio Manfredi que ao ser questionado sobre qual motivo levou os autores
de A Casa das Sete Mulheres optarem por uma abordagem diferenciada na minissérie,
19
Amaral, Maria Adelaide. 2022. n/p.
20
Amaral, Maria Adelaide. 2022. n/p.
Jéfferson Balbino
223
Manfredi acredita que Maria Adelaide Amaral adotou conscientemente uma perspectiva
feminista das mulheres, ela queria usar essa história para falar das mulheres”
21
, algo
refutado pela dramaturga. Inclusive, Lúcio Manfredi atesta em seu depoimento que o fato
da autora ser uma mulher feminista e estar em voga na sociedade brasileira debates da
agenda feminista foram em sua perspectiva o que levou a autora a trazer tal
abordagem ao representar as mulheres farroupilhas da minissérie.
Eu acho que é uma confluência das duas coisas: a perspectiva natural da Maria Adelaide
[Amaral] que tem esse foco e as coisas que estavam acontecendo pura e simplesmente,
porque numa época atrás, provavelmente, não haveria tanto espaço [para tratar
desse assunto]. Mesmo se ela quisesse dar uma perspectiva feminista haveria menos
espaço disponível na mídia, na década de [19]80, por exemplo, as coisas estavam
começando a ser percebidas. Então foi uma confluência das duas coisas: ela tinha essa
perspectiva e o contexto da época permitia ela levar essa perspectiva ao ar, inclusive,
havia uma abertura maior nessa época, mas ela era infinitamente menor do que a que a
gente tem hoje para discutir esses temas
22
.
Portanto, vemos que a questão do feminismo atrelado na escrita dessas mulheres
representadas na minissérie torna-se um ponto paradoxal dentre os próprios produtores
da obra teledramatúrgica. Talvez, isso ocorra devido tratar-se de um “passado recente”,
isto é, embora tenha se passado duas décadas de sua produção, sobretudo, devido ao fato
das constantes reprises da minissérie A Casa das Sete Mulheres e pelo motivo de ser uma
obra permeada dentro de um contexto de masculinadade (Revolução Farroupilha), porém,
fundamentada numa perspectiva de empoderamento feminino que a circunscreve dentro
de um “universo concentracionário”, por isso que
[...] os entrevistados nos falam de um passado não linear, em conflito permanente; um
passado que se reconstrói a partir de rupturas, movimentos, contradições, que
transformam a memória em resistência, e é isso que lhe sentido, aquele que legitima
cada experiência pessoal única e irrepetível. (Benadiba, 2013:36-37).
Ou seja, trata-se de um passado que é alvo de disputas, por isso gera uma espécie de
idiossincrasia entre os roteiristas que apresentam uma confusão ao analisarem a
representação emancipada que eles próprios desenvolveram sob a ótica feminista. É
como se ao reconhecerem que o feminismo atravessa tais representações, seus criadores
perdem o mérito da tenacidade por representarem as mulheres farroupilhas dessa forma
autônoma que difere da obra literária que a originou.
21
Manfredi, Lúcio. 2022. n/p.
22
Manfredi, Lúcio. 2022. n/p.
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REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
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Representação empoderada das mulheres farroupilhas: intento feminista
influenciado pelo contexto de pós-modernidade
É sabido que a minissérie A Casa das Sete Mulheres ganhou destaque por sua abordagem
centrada nas histórias das mulheres envolvidas no conflito da Revolução Farroupilha,
buscando dar visibilidade as suas perspectivas e experiências.
A representação dessas mulheres na minissérie pode ser analisada a partir de divergentes
óticas. Por um lado, a série apresenta uma abordagem aparentemente empoderada das
mulheres farroupilhas, destacando seus papéis ativos na resistência e nos eventos
históricos. Isso pode ser interpretado como uma tentativa de trazer à tona a contribuição,
muitas vezes, negligenciada das mulheres na história, desafiando assim as narrativas
tradicionais que tendem a focar predominantemente nos homens e nas ações militares.
Essa abordagem também pode ser vista como uma intenção feminista, pois busca
questionar as estruturas patriarcais que historicamente minimizaram seu papel na
sociedade e nos eventos históricos. Ao mostrar mulheres como personagens centrais,
fortes e decisivas na trama, a minissérie buscou reivindicar um espaço mais justo e
igualitário para as mulheres na representação histórica.
Por outro lado, também é válido considerar que a produção televisiva, incluindo
minisséries como A Casa das Sete Mulheres, é influenciada por fatores comerciais e de
entretenimento.
A inclusão de protagonistas femininas empoderadas pode ser um recurso mercadológico
para atrair um público diversificado e capturar a atenção de telespectadores interessados
em narrativas que fogem do convencional. Nesse sentido, o empoderamento das
personagens femininas pode ser uma estratégia para aumentar a audiência e o apelo da
minissérie.
Além disso, é importante considerar os aspectos de s-modernidade presentes na
minissérie. A pós-modernidade frequentemente desafia narrativas lineares e unilaterais,
buscando dar espaço a múltiplas perspectivas e posicionamentos de sujeitos dissonantes
ou não. Ao destacar as histórias das mulheres farroupilhas, A Casa das Sete Mulheres pode
estar aderindo a esse ethos pós-moderno, que valoriza a alteridade e experiências de
novos grupos em cena.
Em última análise, a representação das mulheres na minissérie é provavelmente uma
combinação complexa de intenções feministas e pós-modernas. Embora a série possa ter
se inspirado em um desejo genuíno de dar visibilidade às mulheres na história e desafiar
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as normas tradicionais de representação, também é possível que aspectos comerciais e de
entretenimento tenham desempenhado um papel na escolha dessa abordagem. Portanto, a
análise crítica dessa representação deve levar em consideração tanto as intenções
subjacentes quanto o contexto em que a série foi produzida.
Ainda dentro desse espectro, tencionamos a trazer com embasamento teórico,
Inclusive, um dos narradores, o roteirista Lúcio Manfredi, deixa isso evidente em uma de
suas respostas em depoimento prestado, exclusivamente, para esse trabalho.
[...] As decisões que levaram a casa [TV Globo] a aprovar o projeto eu não saberia dizer,
mas é evidente que sim. Se o produto foi lançado é porque a Globo considerou que teria
uma boa repercussão. Isso é o mínimo de qualquer produção de TV aberta - e de
qualquer outra produtora de TV, seja aberta, seja a cabo, seja streaming -. Você precisa
da audiência, você vai lançar uma coisa que espera que vai repercutir positivamente.
Num certo nível, sim! Mas a questão me parece muito mais mercadológica do que
ideológica, propriamente dita
23
.
A declaração de Manfredi sobre o assunto destoa dos outros dois roteiristas recrutados
para essa pesquisa, especialmente, de Vincent Villari que alega não haver interferências
internas da TV Globo sobre a temática que os roteiristas devem abordar em sua
teledramaturgia e, também, o modo que eles devem tratar essas questões.
A respeito de uma possível intervenção da TV Globo no trabalho autoral, Villari afirma que
na emissora:
Ninguém faz isso! Não existe isso! O autor observa a sociedade, ele tem a sua própria
história de vida, e ele vai escolher o assunto sob os quais ele vai tratar. Mas - pelo menos
até o presente momento - a empresa a qual eu trabalho não impôs nenhum assunto pra
nós, visando o interesse de um mercado consumidor. Isso nunca existiu! Não enquanto eu
estive na empresa nesses vinte e tantos anos
24
.
No tocante ao modo como os roteiristas de A Casa das Sete Mulheres veem a questão
mercadológica, sobretudo, na referida obra um contraponto, pois enquanto Manfredi
afirma mesmo que superficialmente que ocorrem questões comerciais de mercado
envolvidas numa produção televisiva, Villari não reconhece essa interferência por parte
direta da emissora de TV.
A Casa das Sete Mulheres enquanto obra cultural de ruptura
Após analisarmos a visão dos produtores acerca do produto final e ainda mais com um
distanciamento de 20 anos da obra intencionamos a trazer uma problematização de
como essa obra ficcional e mercadológica pode ser vista como uma obra de ruptura,
23
Lúcio Manfredi, entrevistado em 31/08/2022.
24
Vincent Villari, entrevistado em 30/08/2022.
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REPRESENTAÇÃO FEMININA NA NARRATIVA ORAL
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haja vista todas as representações e significações pela qual a mesma está imbuída.
Dessarte disso, é possível avaliarmos o quão é (ou não) importante haver peças
teledramatúrgicas que trazem não apenas essa contextualização histórica e social, mas que
evidencia o espaço de pertencimento das mulheres.
Posto isso, sabe-se que uma obra cultura de ruptura é uma expressão artística seja na
forma de literatura, cinema, música, arte visual, teatro, telenovela, minissérie ou qualquer
outra manifestação cultural , que desafia de maneira significativa as normas, valores e
convenções predominantes em uma determinada época ou contexto. Essas obras têm a
capacidade de romper com as tradições estrangeiras, questionar as ideias convencionais e,
muitas vezes, provocam mudanças profundas na sociedade, na forma como as pessoas
pensam e na maneira como a cultura é percebida.
Logo assim, dada às características que a minissérie A Casa das Sete Mulheres possui,
sobretudo, devido à representação do feminino, pode-se dizer que é uma obra cultural de
ruptura.
Contudo, embora seja uma obra que rompe com paradigmas arraigados socialmente ainda
assim contém traços de situações problemáticas que realocam as mulheres emancipadas
em posição de submissividade.
Acerca dessa questão, o roteirista Lúcio Manfredi pondera que se trata de altercação de
relatividade histórica e
relatividade da época que se passa a história, porque, obviamente, se essas sete mulheres
tivessem existido (algumas delas existiram de verdade, outras não) com toda certeza
elas eram menos livres, menos empoderadas do que representadas na minissérie, a
situação completa histórica seria muito pior; [...] é os nossos próprios pontos cegos, eu
fico besta de perceber que o mundo pós-[século]XXI é radicalmente mais woolf - pra usar
o termo - do que ele era antes. É uma coisa que mudou, literalmente, da noite pro dia.
Olhando pra trás é impressionante como representa um ponto de corte onde,
atualmente, fazemos várias coisas que antes não fazíamos ou naturalizava sem perceber
ficarem com uma evidência que antes a gente não via. Então mesmo tentando
representar mulheres mais empoderadas - a questão do racismo também vai pra mesma
direção - se você for olhar as coisas da década de [19]90 até por volta de 2010/2012
assim, você vai encontrar um monte de coisa desse tipo, obras que você vê que a intenção
é progressista, mas que de vez em quando sai umas falas assim que passa batido e que
hoje não passariam. Hoje a gente tem uma consciência crítica maior do que a gente
tinha, engraçado que parece que eu falando de uma coisa de 50 anos atrás e assim
de] 15/20 anos [atrás]. A nossa consciência em relação a essa problemática toda se
expandiu muito nos últimos tempos, muito!
25
25
Manfredi, Lúcio. 2022.
Jéfferson Balbino
227
A partir da reflexão de Manfredi vemos que embora haja uma transgressão na
representação das mulheres, tal reprodução vai até um determinado limite, pois os
pontos cegos que são obstruídos pela penumbra de (pre)conceitos que perpassam a
sociedade.
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Alegre: UFRGS/Programa de Pós-Graduação em História; Tese de Doutorado.
FECHA DE RECEPCIÓN: 01/06/2024
FECHA DE ACEPTACIÓN: 21/09/2024