A presença da mulher nordestina na democracia brasileira: o protagonismo na história oral de vida de Luiza Erundina

 

The presence of northeastern women in brazilian democracy: the protagonism in the oral history of Luiza Erundina's life

 

                                                                          Ana Cristina Gonçalves de Abreu Souza

 

Universidade Federal de Alfenas, Brasil

ana.abreu.souza@unifal-mg.edu.br

 

 

Marta Gouveia de Oliveira Rovai

 

Universidade Federal de Alfenas, Brasil

marta.rovai@unifal-mg.edu.br

 

 

Resumo:

O texto aborda a trajetória de vida de Luiza Erundina, que durante anos fez parte do quadro político do Partido dos Trabalhadores (PT), sendo eleita a primeira prefeita da cidade de São Paulo nos anos de 1990 e hoje deputada federal brasileira pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A pesquisa não trata de uma biografia sobre ela, mas de um trabalho com história oral, com a finalidade de compreender como as memórias sobre sua vida como uma mulher de origem nordestina e pobre, mas que conseguiu formar-se assistente social e destacar-se como referência política de trabalho ético e dedicado à educação e aos movimentos sociais, contribui para provocar reflexões sobre questões de gênero e de classe que atravessam a sociedade brasileira. As narrativas de Luiza Erundina, por meio da metodologia da história oral, importam, também, para compreendermos a polifonia de sua voz em relação a grupos invisibilizados e os diferentes significados atribuídos às relações entre passado e presente na voz de uma mulher cuja trajetória foi marcada por estigmas de todo tipo, mas também pela admiração por seu comprometimento histórico com a cidadania dos chamados "excluídos".

Palavras-chaves: Luiza Erundina, memorias, experiências, mulheres nordestinas, história oral de vida.

 

Abstract:

The text addresses the life trajectory of Luiza Erundina, who for years was part of the Workers' Party (PT) political framework, being elected the first mayor of the city of São Paulo in the 1990s and today a Brazilian federal deputy for the Party Socialism and Freedom (PSOL). The research is not a biography about her, but a work with oral history, in order to understand how the memories of her life as a woman of northeastern and poor origin, but who managed to graduate as a social worker and stand out as a political reference for ethical work dedicated to education and social movements, it contributes to provoke reflections on gender and class issues that cross Brazilian society. Luiza Erundina's narratives, through the methodology of oral history, are also important to understand the polyphony of her voice in relation to invisible groups and the different meanings attributed to the relations between past and present in the voice of a woman whose trajectory was marked by stigma of all kinds, but also by admiration for his historic commitment to the citizenship of the so-called "excluded".

Keywords: Luiza Erundina, memories, experiences, Northeastern women, oral history of life.

 

 

 

 

Introdução

Este artigo é uma reflexão sobre alguns aspectos das memórias pessoais de Luiza Erundina de Sousa, de 86 anos, referência de atuação ética e comprometida com os movimentos sociais na política brasileira. Defensora da liberdade e do socialismo, foi a primeira e única mulher (e nordestina) a assumir a gestão da maior cidade da América Latina, o município de São Paulo, entre 1989 e 1992. Ela atuou em partidos de esquerda como o Partido dos Trabalhadores (PT) do qual é uma das fundadoras, no Partido Socialista Brasileiro (PSB) e no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo qual é hoje deputada federal, cumprindo seu sexto mandato. Além de ser reconhecida publicamente como exemplo de atuação política, procuramos dar ênfase ao seu papel como feminista e educadora, atuando como assistente social e professora inserida num processo de luta e de resistência junto a grupos invisibilizados na história e com os quais mantém forte relação pessoal e coletiva: nordestinos e mulheres.

Não pretendemos apresentar a sua biografia neste breve texto, mesmo porque sua trajetória nos remete a vários debates que não caberiam em nossa proposta aqui. Nosso objetivo é o de apontar algumas marcações identitárias nas suas memórias de expressão oral, que nos permitem refletir sobre os diferentes conflitos sociais e as relações desiguais de gênero e raça na sociedade brasileira. Acreditamos, baseadas em Losandro A. Tedeschi (2015), que a história oral relativa às mulheres -historicamente deixadas à parte por uma narrativa oficialmente masculina- volta-se a uma fala polifônica que carrega não apenas uma história individual, mas representativa de muitas outras que, como a entrevistada, sofreram com o estigma num país historicamente racista, patriarcal e autoritário, e que permanecem resistindo contra práticas e discursos que pretendem discriminá-las e excluí-las da cidadania:

 

Quando falamos de história das mulheres, referimo-nos a um processo de tomada de consciência de si mesmo. Se um grupo ou um indivíduo pensa historicamente, faz história oral. Ao narrá-la em si mesma, cria um processo de identidade a partir da experiência da própria vida e dos sujeitos que a cercam.

Nesta perspectiva, a história oral enquanto método é signatária da nova história, que apresenta uma valorização das experiências femininas mediante uma nova forma de abordar a história, revisando modelos de significação que estavam impregnados em todos os grupos sociais e visibilizando os fatores que silenciaram as mulheres na história (Tedeschi, 2015: 334).

 

A reflexão que apresentamos, portanto, foi elaborada a partir do diálogo com Luiza Erundina[1], com quem nos encontramos com a proposta de que ela nos falasse de sua trajetória num processo constitutivo de ser mulher, nordestina, educadora e política profissional em diferentes contextos históricos, como na sua vivência na ditadura militar (1964-84) e na construção recente de uma democracia que até o momento encontra-se fragilizada por negacionismos e revisionismos defendidos por setores sociais e políticos reacionários que tentam barrar conquistas na educação e nos movimentos sociais ligados ao feminismo, ao combate antirracista e à luta LGBTQIA+.

O gênero de história oral utilizado nesta pesquisa foi o da história oral de vida, de acordo com José Carlos Sebe. B. Meihy (2005), pela qual fizemos recortes e estímulos ligados à infância de Luiza Erundina no nordeste, à sua trajetória como estudante, como assistente social, educadora e à sua carreira política, para que a entrevistada tivesse maior liberdade de conduzir sua própria narrativa, selecionando e enfatizando a mensagem que desejava ser publicizada. Entendemos a história oral de forma semelhante a Alessandro Portelli (2010), como uma relação de poder, em que diferentes sujeitos, intencionalidades e lugares sociais se encontram e negociam o registro multivocal das memórias de quem narra. Afirma ele que este é um exercício que leva em conta as diferenças que ali se encontram e procura produzir umaexperiência de igualdadena medida em que o direito de dizer é garantido e reconhecido na entrevista, que não é apenas uma troca de falas, mas também de escutas. Desta forma, afirma ele, ao assinarmos a autoria de um texto que se originou de um encontro vivo, não apenas geramos uma fonte oral, mas nos responsabilizamos pela voz que nos foi oferecida por quem se propôs a confiar suas experiências; exercemos uma escuta sensível para a qual nos tornamos mediadores em outras esferas. É importante sempre lembrar que a voz nunca é dada por nós, intelectuais, a pessoas dela destituídas, porque esta lhes pertence e nos é, seletivamente, concedida por alguém que reflete e filosofa sobre o que diz (Portelli, 2010). Os chamados subalternizados não são destituídos de voz, mas de espaços de escuta, como afirmou Gayatri Spivak (2010), e a história oral é um dos caminhos para produzi-los mutuamente pelo diálogo e pelo reconhecimento de que quem narra também exerce poder.

Pensar em Luiza Erundina como uma mulher subalternizada não consiste em compreendê-la como vítima ou como destituída de voz e de ação sobre o mundo, até porque sua própria trajetória aponta histórias de sobrevivência, de empoderamento e de existência que não são apenas individuais, mas coletivas. Pelo contrário, o trabalho com a escuta atenta e sensível de sua voz é um posicionamento que acredita que ao publicizarmos dimensões de sua memória, a partir de sua própria voz, possamos produzir cada vez mais presença nos espaços públicos e compartilhamentos de lutas que combatem formas de silenciamento histórico. Reconhecer a história construída e sentida, por meio de memórias de trajetórias e experiências como a de Luiza Erundina, coloca em evidencia a voz de autoria exatamente num contexto permeado de construções históricas, políticas e sociais que se entrelaçam no agir do próprio sujeito, inacabado e em ação no mundo, como afirmou Paulo Freire (1967), modificando a si, modificando ao outro, modificando o mundo e o transformando de maneira permanente e singular.

A narrativa oral nos revela memórias em processos contínuos de formação dos próprios sujeitos e grupos sociais, identificando trajetórias, contextos e ações que revelam escolhas, lutas e aprendizagens. Para provocar reflexões que nos permitam pensar as articulações subjetivas e coletivas, as narrativas da entrevista foram divididas e desdobradas aqui em três dimensões: a infância e a família, seus estudos e trabalho e sua trajetória política, com o propósito de se compreender os trabalhos de memória no presente de uma mulher pobre e nordestina que se transformou numa das maiores referências políticas do Brasil para os movimentos sociais e também para a classe política em geral.

Memórias de uma infância indignada: uma construção em luta

Os estudos sobre a subjetividade dos processos formativos nos mostram características singulares e múltiplas em suas perspectivas teóricas e práticas; uma construção humana que nos traz o “devir”, um conceito importante para compreendermos territórios e rizomas na trajetória contínua que atravessa cada um de nós (Deleuze & Guattari, 2011). A sujeita desta pesquisa, Luiza Erundina, foi escolhida a partir de estudos e indagações sobre as marcas e presenças que se estabelecem na construção subjetiva de uma liderançamulherna contemporaneidade, em suas mais diversas áreas, no processo de redemocratização brasileira. A narrativa sobre si nos provoca a pensar sobre um arcabouço significativo e robusto que liga aspectos pessoais e coletivos na construção singular de uma representatividadefeminina[2] nos espaços de poder em que predomina, ainda, uma estrutura sexista, racista, capitalista e cisteronormativa.

Que experiências e práticas cotidianas de resistência e existência são construídas na experiência de uma mulher nordestina e pobre, num processo histórico em que mulheres sempre foram colocadas à margem, compreendidas como “menores” considerando um sistema patriarcal em todos os espaços de poder, principalmente nos de atuação política? Que memórias são estabelecidas, na perspectiva de uma mulher, autora de sua prática, de sua fala e do seu pensar, no processo de formação, rememorando cenas, personagens, contextos e produções? Que referências de pessoas, lugares, causas sociais e identitárias foram selecionadas em sua memória presentificada para abordar a sua trajetória, sendo hoje uma referência de luta na sociedade brasileira?

Sobre sua origem social no estado da Paraíba, nordeste brasileiro, Erundina traz os marcadores da desigualdade e das dificuldades que entre o começo e meados do século XX atravessaram a vida de milhares de nordestinos, obrigados a migrar para os grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro:

 

Eu era filha de uma família de nordestinos, dez filhos... Meu pai era artesão, fazia cela para cavalos. Minha mãe ajudava meu pai fazendo bolo, fazendo café, vendendo na feira pra poder sustentar essa familhada toda. E numa região de seca do Nordeste, lá no interior da Paraíba, que é uma região que vez por outra tem uma grande seca de anos, ? E essa seca obriga as famílias pobres que não têm condição de esperar outro ano de chuva e têm que migrar. Meu pai levou a gente duas vezes: uma delas eu não era nascida ainda, a seca de 1932. Na seca de 42 eu era criança, acho que tinha quatro ou cinco anos, e era uma das piores condições de migração. E eu, desde muito criança, percebia que essa realidade não era justa, era uma realidade que a maioria tinha que migrar pra não morrer de fome nem de sede e retornar depois que a chuva voltava.

 

Evidencia-se que na infância, diante de condições exigentes na busca pela sobrevivência, revelou-se precocemente a compreensão da realidade, afirmando a narradora que percebia uma situação injusta que exigia o migrar para que a morte não chegasse. Posteriormente, quando adulta, seja como vereadora, deputada federal por seis vezes ou como prefeita, na década de 1990, eleita para administrar umas das maiores cidades da América Latina em que a presença de nordestinos é significativa, ela elaborou suas vivências transformando em bandeira política questões como a reforma agrária e a defesa de demandas de populações da periferia, como o direito à própria terra, à moradia e à educação, estando presente, ainda, no movimento de mulheres.

O lugar que Erundina ocupa hoje nos permite compreender a seleção de sua memória, da qual trazemos um trecho significativo para apresentar/interpretar sua infância inserida em problemas sociais que afetaram sua vida. Ao se referir à sua consciência de menina sobre a desigualdade, principalmente agrária, seu tom vital[3] anuncia as marcas de sua coragem como parte do processo coletivo de migração, mas também de sua militância posterior assumida nas comunidades eclesiais de base, na luta pela terra junto à Igreja Católica, em sua formação acadêmica como assistente social e em sua participação na política:

 

E eu criança me intuí que alguma coisa não tava certa. A questão da propriedade da terra; alguns tinham terra pra trabalhar, outros não tinham terra pra trabalhar. E , precocemente, eu me dei conta de que era uma sociedade injusta, era uma sociedade desigual e o problema não era a falta de chuva, porque quem tinha terra acumulava água nos açudes construídos com o dinheiro do governo, que é dinheiro do povo, em terras privadas. Portanto, o problema, e eu intuí isso desde muito cedo: “O problema da seca no Nordeste não é a falta de chuva, é a concentração da terra”.

Eu sempre fui uma pessoa inquieta, questionadora, que não me conformava que as coisas aconteciam daquela forma, como se estivesse tudo certo. Eu fui sempre uma pessoa que indagava, que me questionava também, sabe? Questionava também os outros e isso me levou a desembocar na política; primeiro na política profissional, depois na política sindical (...), numa perspectiva com o trabalho educativo.

 

A narrativa de Luiza Erundina traça um processo quase que linear, ligando passado pessoal e presente político, dando sentido militante à sua própria vida. O conceito de “ilusão biográfica”, desenvolvido por Pierre Bourdieu (1998), contribui para compreendermos os sentidos da entrevistada em reconstruir sua trajetória: ao trazer aspectos recorrentes que se referem ao problema da terra e da situação dos nordestinos, importa menos a relação direta entre os fatos e mais a importância que eles ganham em seu relato, dando sentido à vida de uma mulher num contexto em que poucas conseguiram escapar do êxodo rural, da pobreza, da opressão de gênero e do preconceito. Ela constrói, por suas palavras e sua performance serena, mas firme ao falar, uma autoimagem de superação que nasceu de sua indignação pessoal na infância, mas que ganhou dimensão coletiva ao amadurecer, identificando-se com a luta de famílias e grupos que, como ela um dia, continuam a enfrentar problemas relativos à concentração agrária. Ao abordar sua infância e suaconsciência precoce”, ela aponta para tomadas de decisão e escolhas que indicam a tensão entre os sistemas econômicos determinantes da miséria e a liberdade que resiste contra eles, construída nas relações coletivas. Para isso, ela “convoca” ao diálogo suas experiências vividas na Igreja, orientada pela Teologia da Libertação, e nas ligas camponesas, nos anos 1960, e a figura fundamental em sua formação e atuação profissional: o educador Paulo Freire[4].

Eu conscientemente decidi: “Não vou repetir esse modelo”

A historiadora Vânia Vasconcelos (2018), ao desenvolver pesquisa sobre mulheres nos sertões nordestinos, refletiu sobre as representações em torno do “feminino”, associado a comportamentos de submissão, a uma conduta recatada e à resignação a certo sofrimento dado pelas condições econômicas, pelo patriarcado e pelas crises de secas. No entanto, ao entrevistar mulheres sertanejas, ela demonstrou como os sertões brasileiros são espaços plurais e potentes, mesmo que historicamente fossem e ainda sejam associados à fome, à seca, a concepções de masculinidades ligadas ao machismo e à agressividade. A autora trouxe para a reflexão as narrativas orais de mulheres que, segundo ela, demonstram a ideia de um “feminismo sertanejo”, repleto de ações transgressoras contra dispositivos de poder; vivências de submissão, mas também de rupturas e de recriações por parte de mulheres que cuidam de seus filhos, que migram, mas que também criam autonomias pelo trabalho e pelo estudo. Boa parte das entrevistadas por Vasconcelos rejeitaram o desejo de casar-se, nas décadas de 1970 e 1980, substituindo-o pela vontade de ter uma profissão ou pelo enfrentamento à opressão masculina.

Ao construir sua autoimagem como nordestina, mulher e migrante, Luiza Erundina é representativa desse “feminismo sertanejo”, evidenciando uma memória de rebeldia e coragem; de rupturas inclusive com a imagem de um feminino hegemônico. Ela se refere ao fato de as mulheres de sua família, como suas irmãs e primas mais próximas, se casarem cedo e reproduzirem o modelo de família patriarcal, grande e pobre, submetida à fome, ao machismo, à instabilidade e à migração forçada. Sua coragem, no entanto, não é apenas um elemento subjetivo, mas fruto das vivências com mulheres como elas que estiveram ao seu lado na escola, na universidade, na Igreja e nas lutas pela terra, assim como nos partidos em que atuou, elegendo-se vereadora, deputada e prefeita. Com a fala firme, ela lembra de como optou por romper com aquele modelo e aquele destino ao qual sua família e os sertanejos em geral estavam fadados como subalternos de um sistema desigual e opressor:

 

Percebi a necessidade de transformar essa realidade, de não me casar, não ter uma filharada, não ter um modelo e reproduzir aquele modelo que vinha de gerações e gerações. Eu rompi! Foi a primeira ruptura que eu fiz na vida, do ponto de vista pessoal. Foi exatamente romper com o padrão de organização pessoal de vida, de ter família, enfim. Porque eu descobri a política como sendo um instrumento mais eficaz para se ajudar a mudar a realidade: realidade social, realidade econômica, a realidade política, e pensar na perspectiva histórica de mundo, não de minha cidadezinha, meu país, mas uma perspectiva de mundo.

 

Ao se colocar como sujeito ativo entre as mulheres de sua família, ela aponta como a escola foi fundamental para romper com a situação social e de gênero. Ela afirma que, inclusive, pediu para fazer a 5ª série duas vezes, porque em sua cidade não havia uma instituição em que pudesse dar continuidade à trajetória educacional. Para não perder a oportunidade de estudar, pediu para “reprovar” até que sua família conseguiu sua ida para outra cidade, onde pode morar com uma tia e dar sentido ao seu sonho. Estudar, para ela, ofereceu condições para modificar sua situação social, mas sem deixar de se identificar com pessoas e grupos que ainda sofriam com a seca, com o analfabetismo, com a concentração agrária e com as opressões de gênero[5]. A entrevistada enfatiza como a educação também afetou a vida e a colocou em situação diferente de suas irmãs e prima. Ela percebeu que o estudo não apenas a libertava como mulher, dando-lhe autonomia econômica e subjetiva, mas era um instrumento para atuar na política num momento em que poucas mulheres nordestinas se envolviam.

Em sua narrativa, educação, religião e militância social e política não se separavam. Eram frutos de uma consciência que ela chama de intuição, desde quando era criança: “Eu não queria romper o vínculo com a escola”. Num esforço coletivo da família, seus pais decidiram que ela iria para a cidade de Patos fazer o colégio, onde ela conseguiu uma bolsa juntamente com a sua prima. Dessa forma, ela conseguiu evitar que sua história entrasse para as estatísticas de crianças que eram obrigadas a parar os estudos, com a finalidade de ajudar os pais logo na infância. Como o colégio era confessional, Erundina se envolveu com a luta de uma parte da Igreja, voltada para a reforma agrária e para a melhoria nas condições de vida dos trabalhadores submetidos ao latifúndio, uma herança colonial brasileira.

No II Concílio do Vaticano e da Conferência de Medelín, entre 1962 e 1966, o Papa João XXIII defendia o compromisso da Igreja com os trabalhadores e com os pobres de forma mais progressista e humanizada. Na América Latina, essa ideia se converteu na Teologia da Libertação, na criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas pastorais, entre elas a Pastoral da Terra, da qual Luiza Erundina participou ativamente, tanto na região nordeste como no sudeste do país, para onde migrou mais tarde. Ela tornou suaconsciência individual” em militância coletiva, principalmente após cursar a faculdade de Assistente Social:

 

(...) Depois dos nove anos que eu fiquei trabalhando, eu tava na militância política, mas assim, lutando ligada a Pastoral da Terra, ? Voltada de novo à questão da terra, da terra rural, a luta da reforma agrária. Eu entendia que não era justo concentrar tanta terra na mão de alguns poucos, quando a maioria dos trabalhadores rurais não tinha as condições de terra pra sobreviver com o mínimo de dignidade. Então, como assistente social, eu adquiri uma formação que veio complementar a formação que tinha da minha formação cristã, religiosa, pelo trabalho na Pastoral da Terra. Eu trabalhava, também, no colégio de irmãs de caridade e lecionava à noite.

 

Durante a ditadura militar, especialmente depois do chamado AI-5[6], Luiza Erundina veio para São Paulo cursar o mestrado de Ciências Sociais na Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, agregada à Universidade de São Paulo (USP), momento em que associou a luta social pelo direito à terra com a demanda pela moradia nos grandes centros urbanos:

 

Eu vim pra São Paulo em 1971 e fiquei. E, em 1971 mesmo, eu fui admitida, porque tinha feito concurso antes como assistente social da prefeitura. E fui trabalhar nas favelas e nos cortiços como assistente social. Descobri que a luta era a mesma! A luta no campo pela reforma agrária, pela divisão da terra no campo. E na cidade, a divisão da terra, que também estava ociosa, sobrando, sendo especulada, enquanto tinha pessoas amontoadas nas favelas, nos cortiços e embaixo de viadutos.

 

Como educadora, ela também conheceu o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), um projeto criado pelo governo que não tinha somente o objetivo de diminuir os altos índices de analfabetismo, mas também estava voltado à implantação de um modelo para a formação de mão de obra, adotando uma educação de concepção tecnicista em contraposição à perspectiva libertadora do método Paulo Freire, que desde 1963 permeava o Plano Nacional de Alfabetização e que foi abortado com o golpe militar de 1964:

Num momento de resistência da sociedade a um regime de força, que era a ditadura militar, isso tudo foram forças, energias e inspirações. Na experiência do método Paulo Freire, a gente trabalhou com os camponeses... Não conhecia Paulo Freire, mas usava seu método. Fui perseguida pela ditadura, tinha suas razões, porque trabalhava com o método do Paulo Freire; enfim, isso tem muita coisa que poderá explicar o fato de que eu nasci nesta origem e ter vindo para cidade grande.

Eu me lembro de que quando eu cheguei em São Paulo, no ano de 1971, me caiu como trabalho, também na prefeitura, o Mobral. E eu encontrei no Mobral uma equipe de profissionais e educadores, trabalhando no Mobral. Pedagogos, outros de outra área, mas sempre da educação, e pessoas que vinham de antes, do modelo Paulo Freire; vinham do modelo da educação emancipadora. E vinham aqueles livros da Editora Abril, aqueles montes de livro do governo, , produzidos pro país inteiro, pra servir pra todas as escolas do país. Então, aquela equipe que fez sob minha coordenação: “Nós vamos fazer material clandestino, com os conteúdos que a gente entende e interessa”. Veja bem, em plena ditadura militar, com o poderio que aquela ditadura tinha, com secretários, como era um deles o Coronel Ávila, que era um coronel da reserva...

 

Mais uma vez a memória de Luiza Erundina deixa evidente o inconformismo com certa realidade imposta pelas relações de poder em diferentes dimensões. A lembrança daquela consciência, apresentada por ela como uma intuição quando criança, vai se alinhando a outras rebeldias, na constituição de uma mulheridade fora dos parâmetros tradicionais e patriarcais -ousamos dizer uma mulher decolonial- na luta contra latifundiários e no trabalho pela alfabetização das classes populares. É memória que escreve uma história decolonial, que não procura preencher lacunas, mas romper silenciamentos e enfrentar as colonialidades de ser, saber e de gênero, como defendeu María Lugones (2008).

Paulo Freire, que historicamente esteve ligado à história dos oprimidos e à concepção de educação libertadora e emancipatória é lembrado como alguém que a reconheceu como esta mulher, sujeita comprometida com o enfrentamento às injustiças sociais desde criança, quando percebeu a desigualdade da terra, a fome, a seca e a imposição de um padrão colonial para o destino de gênero. Em sua narrativa, sua trajetória se explica por essa formação como uma educadora marcada pelo olhar político que a atravessou desde criança:

 

(...) Paulo Freire dizia o seguinte: “Você não é política; você é educadora”. ele corrigiu: “Não, você é uma educadora política”... Portanto, o viés como educadora, tanto para minha formação como assistente social, na minha militância política, tem tudo a ver. Na minha inspiração, na minha formação e na minha atuação política havia muito desta perspectiva pedagógica, educativa, conscientizadora e politizadora. Isso tem a ver com tudo o que fiz... Com a assistente social que sou, com a vereadora que eu fui, a deputada federal que eu sou. Fui a prefeita que fui com uma marca muito forte desta minha formação e deste meu viés como educadora.

 

Este recorte nos evidencia a sujeita do “dito e do jeito”, da práxis (Vasquez, 2007) que revela a ação consciente e constante num processo em que a atuação política foi transpassada pelo ato de educar e pela importância da coletividade. O compromisso com a coletividade, num processo de atuação com e entre as camadas populares e os movimentos sociais, na perspectiva da Teologia da Libertação e do método Paulo Freire, foi o alvo para a sua perseguição pelo governo autoritário e, posteriormente, por setores conservadores da sociedade. Depois do decreto do AI-5, em 1968, que concentrava o poder nas mãos do Executivo, com poderes para censurar e prender, entre outras medidas, ela foi perseguida. Quando procurou voltar para a Paraíba, a fim de dar aula na Universidade Federal, foi vetada pela ditadura militar:

E neste um ano, foi o ano de maior aperto na década de 1970-71. Era o auge da repressão política, da ditadura com a vigência do AI-5. E eu fui ameaçada... Eu vivia sendo ameaçada de perseguição e começou a desaparecer gente que tinha militância com a gente, gente que morria. Tinha um estudante de medicina que trabalhava com outra menina que também fez Serviço Social, depois. E uma amiga minha que era freira, irmã do Porto, que foi o colégio onde lecionei. Ela tinha um parente lá no comando militar do Recife, que era um quarto comando militar das Forças Armadas. Ela foi consultada sobre qual era a minha situação política e ele recomendou que era melhor eu sair de lá. Havia riscos reais de eu desaparecer ou ser presa, que era melhor eu sair de lá. Porque exatamente eu tinha um vínculo com a Igreja, trabalhando com o camponês, trabalhando numa região que tinha havido o massacre das ligas camponesas. Então, estava tudo ligado.

 

 

O processo de redemocratização e o papel das mulheres

Eder Sader, em seu livro Quando novos personagens entraram em cena (1988), aponta como a partir de 1974 novos grupos tomaram os espaços públicos, no combate à ditadura militar. No final dos anos 1960 e entre os anos de 1970 e 1971 -como lembra Luiza Erundina- a repressão aos grupos armados, ao movimento estudantil, às ligas camponesas e aos operários desembocou em tortura, exílio e assassinato e no desmantelamento das organizações militantes. Sobre aquele momento de “esvaziamento” político, Sader nos convida a reconhecer outras formas de luta que começaram a se destacar no cenário social e político e que também contribuíram para questionar e desestabilizar o autoritarismo: donas de casas organizadas nos Clubes de Mães, na igreja, Comunidades Eclesiais de Base, novos sindicatos e associações de bairro começaram a se constituir e a ocupar espaços. Para o autor, com as fragilidades da ditadura (dadas pela crise econômica devido aos endividamentos externos e pelo aumento do preço nos barris de petróleo), inaugurou-se nova forma de fazer política, que ainda evidenciava as contradições geradas pelo capitalismo, mas que não estava orientada por pautas mais ideológicas (devido à grande repressão que se abateu sobre os grupos militantes e armados).

A originalidade da atuação política estaria no padrão comunitário e em novas formas de se pensar o direito e a justiça, na luta contra a carestia e pela anistia de presos e exilados políticos. Mulheres da periferia, em especial aquelas que não haviam se envolvido diretamente nos grupos anteriores, tiveram presença marcante nesse processo político, inserindo-se em lutas locais e no espaço público, demonstrando que as tentativas de silenciamento em anos de autoritarismo não resultaram em silêncio e subalternização. Nessas resistências, as memórias de Erundina também se inserem. Ela se refere à organização política de novas associações e sindicatos em torno de políticas públicas junto à população em busca de melhorias na saúde, na educação, por saneamento básico e por creches: “Quer dizer, era uma luta por direitos sociais da população através de profissionais não de Serviço Social, mas de outras áreas, enfrentando os governos ditatoriais e empoderando a população das favelas, dos cortiços”.

Sader afirmou que essa percepção e auto-reconhecimento cada vez maior das mulheres se deveu, em parte, ao crescimento de sua participação no mercado de trabalho: correspondiam a 28,2% no ano de 1970 e passaram a 32,8% em 1980. Cargos antes destinados aos homens, nos setores industrial e comercial, foram sendo ocupados por elas. Luiza Erundina é representativa daquelas que, por meio do estudo e da militância política, conseguiram “abrir brechas” nas estruturas e ocupar a arena pública, em meio à tática cotidiana fora dos estereótipos absolutos, conquistada todos os dias pela necessidade de mudança.

Erundina se refere, em sua trajetória pessoal, à sua relação íntima com esses movimentos sociais liderados por mulheres em São Paulo, principalmente ligados à reivindicação por creches e moradia, o que Sader (1988, p.147) chamou de ação comunitária pela vida. Marta Rovai (2014), que entrevistou mulheres de operários que atuaram em São Paulo entre as décadas de 1960 e 1970, também destaca que a luta pela anistia política, no Brasil, foi iniciada e liderada por sujeitas das camadas populares e de classe média que desejavam ver transformações, tanto relativas às condições de vida quanto à própria democracia. O retorno das exiladas, a partir de 1979, também permitiu a constituição de um feminismo brasileiro atravessado por questões políticas de combate à ditadura e pela reivindicação de direitos relativos às classes, raças e gêneros.

De acordo com Céli Pinto (2003), entre concepções diferenciadas sobre a luta de mulheres e o feminismo mais intelectualizado e politizado, surgiam pautas em comum sobre questões como a autonomia do corpo e da vida feminina, mas também sobre a carestia e políticas públicas voltadas ao trabalho, à maternidade e à melhoria na infraestrutura dos bairros[7]. São fatos também narrados pela entrevistada que insere sua experiência nesse processo e que, em 1980, foi convidada por Luís Inácio Lula da Silva, um dos líderes da greve de operários no ABC paulista, a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), fruto do processo de retomada da pluralidade partidária, do movimento operário, do retorno de exilados, da atuação da Igreja progressista e da luta das mulheres contra a carestia e pela anistia. Nesse processo, outras militantes com trajetórias políticas e origens sociais diferentes se juntaram ao Partido, como Irma Passoni, Lélia Abramo e Marilena Chauí. A luta pela terra, na qual Erundina estava inserida desde a década de 1960, por meio das ligas camponesas e da Pastoral da Terra, também ganhou força com a formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em 1984, que durante anos teve estreita relação com o PT.

Uma mulher com a força da coletividade

Luiza Erundina foi eleita vereadora da cidade de São Paulo nas primeiras eleições municipais, em 1982, ainda sob controle da ditadura que teve seu fim em 1984. Como representante de educadores e de setores populares, ela se tornou deputada estadual, em 1986, quando os debates para a elaboração de uma nova Constituição ganharam força e setores progressistas e conservadores se enfrentaram. Entre as demandas, a permanente reinvindicação da reforma agrária que ainda hoje segue a “passos lentos” no Brasil e a não criminalização dos movimentos sociais. Sua atuação política no Congresso Nacional levou o PT a lançá-la como candidata a prefeita em 1988, eleição que ganhou com votos que vieram dos bairros periféricos de São Paulo e também rompendo uma estrutura partidária de militância majoritariamente masculina:

Foi o “povão” que sustentou minha candidatura na prévia do Partido e depois a sustentou, porque os dirigentes, os “capa pretasnão assumiram a minha candidatura, não quiseram assumir, não tinha a menor condição. Mas o Partido se empoderou, a militância de base conquistou a candidatura a prefeito e a levou independente de setores do Partido.

 

A memória desse processo é traduzida por ela como fruto de uma esquerda comprometida com a coletividade, com a justiça social, com os movimentos de base. Em 1992, durante seu governo municipal, uma vala clandestina com milhares de ossadas de “indigentes” e de “desaparecidos” políticos foi descoberta no cemitério de Perus, bairro periférico da cidade de São Paulo. O impacto provocado pelas imagens das ossadas televisionadas e o empenho de Luiza Erundina em atender a demandas de muitas famílias pela identidade dos corpos, pelo reconhecimento de responsabilidade e pela reparação do Estado associaram sua atuação a mais uma bandeira pelos direitos humanos e pelo direito à verdade, tendo apoio de diferentes grupos políticos de esquerda[8]. Questionada sobre seu compromisso com a chamada esquerda, ela a definiu a partir de seu envolvimento com a Igreja progressista, com a luta pela terra e por moradia, com o movimento de mulheres e pelos direitos humanos e, mais tarde, dentro dos quadros de um partido político de caráter ideologicamente socialista:

Na política, o próprio termo vem de pólis, a cidade, o cidadão, cidadania esse componente coletivo...  Da política, o filósofo Ananias diz muito bem: “a política é a ação de sujeitos coletivos". (...) E, portanto, valores, princípios e comportamentos de esquerda, porque ser de esquerda não é esperar que um dia se faça a revolução e se implante o socialismo no mundo. Não é isso, não! São os valores socialistas que você tem que viver desde . Senão, você é mentiroso e mentirosa. Se você não vive a solidariedade, não vive o socialismo.

 

Sua indignação pessoal, mencionada como um elemento de sua vida desde criança, atravessa suas lembranças sobre sua formação como uma sujeita política que também faz referências às diversas mulheres que conheceu ou que estão nos movimentos combatendo as injustiças. É uma voz polifônica, que traz a diversidade de muitas lutas não registradas pela história ainda predominantemente cisheteronormativa, burguesa e masculina; uma voz e uma memória que produz não apenas a sua presença, mas a presença de uma coletividade de mulheridades, tão inconformadas como ela própria em sua experiência:

 

Eu me inspirei na mulher do campo, da periferia. Aquela mulher que se sustenta das pernas, mas que ainda mais se sustenta sem marido, sem pai de família. Uma grande heroína! Isso é uma situação ainda muito presente hoje. A violência contra a mulher é fruto de uma cultura machista, patriarcal de opressão, de exclusão. De opressão, o tal ciúme, é uma forma de posse e a posse machista, patriarcal dominadora do macho sobre a fêmea, porque a fêmea é considerada mais fraca do que o macho, do ponto de vista físico etc. Tudo isso é uma cultura, ? É uma cultura sustentada por uma tradição religiosa e outras influências que realmente alienam as pessoas, não as emancipam.

 

Esta cultura à qual a deputada se refere é a de um país em que as relações desiguais de gênero são reforçadas politicamente por práticas e discursos misóginos, materializados nos altos índices de violência e feminicídio contra mulheres, ou politicamente em campanhas difamatórias como a que resultou no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, ex-guerrilheira e militante do PT, em 2016, ou no assassinato da vereadora negra, feminista e lésbica Marielle Franco, do mesmo partido de Luiza Erundina, o PSOL. Com a entrevistada não foi diferente: durante toda a sua trajetória no espaço político ela sofreu e ainda sofre com o fato de ser uma mulher que foge aos estereótipos do “feminino hegemônico”: não se casou, não teve filhos, não se submeteu à opressão econômica e de gênero; é nordestina e idosa. Como ela mesma afirma, a política brasileira ainda está baseada no imaginário do “chefe da família”, que se perpetua no poder público através das gerações: “Você , a maioria dos deputados lá na câmara é jovem, mas as novas gerações que se elegem recentemente ainda têm o mesmo nome dos coronéis, sempre”.

A política institucional que se no espaço do Estado brasileiro ainda é exercida a partir dessa cultura patriarcal, branca e cisheteronormativa. Aos 86 anos, Luiza Erundina é símbolo de resistência e marca presença em meio à reabilitação de uma extrema-direita violenta e autoritária que tenta desqualificá-la, nomeando-a como “comunista”, “feminista” e “mulher-macho”, o que não se limita à sua pessoa, mas aos grupos de mulheres com os quais divide sua luta:

 

Não sou um modelo individual. As pessoas dizem: “Mas você é diferenciada”. Eu não sou diferenciada coisa nenhuma! Eu tive oportunidades de atuar no mundo, de agir no mundo, de enfrentar o preconceito, a discriminação. Mas nunca me senti vítima disso... sabe? Porque, por exemplo, faltava eu ser negra pra completar, ?O que eu sofri de preconceito!... Recebia carta com fezes dentro e os policiais que me davam segurança sabiam que tipo de carta era. Eles evitavam que a carta chegasse em mim e é assim: “nordestina suja, volta pra tua terra!”...

(...) Portanto, minha luta não é a luta de uma fulana; não é a luta individual. É de todas as mulheres que insistem, resistem, disputam e conquistam poder! Tanto é que, como esse poder é construído coletivamente, você nunca se apropria dele como sendo seu.

 

As lutas das mulheres nunca passaram alheias à sua história e às suas memórias, auxiliando na construção de sua autoimagem e da compreensão relativa às relações de gênero e das injustiças que abarcaram a sua própria vida desde a infância. Nessas referências ela se reconhece e se apresenta como uma pessoa forjada na luta social, mas também por sua percepção singular como menina nordestina, na sua própria experiência de dificuldades existenciais, que a fez se construir como autônoma, militante e representante de coletividades; uma “educadora política”, como a nomeou Paulo Freire.

 

Então, eu vim em meio a esse turbilhão de vivências que desembocou em um caminhar que nunca foi individual, sempre com muita gente. Sem elas, eu não chegaria à prefeita, vereadora, deputada. Eu tinha mérito pessoal e contribuí com isso, mas se eu não estivesse em um partido que era aquele que tinha uma proposta de transformação da sociedade, que empoderava seus militantes, que formava seus militantes, eu também não teria sido eleita prefeita.

 

Sobre ser sempre lembrada como a prefeita Luiza Erundina, a primeira mulher e primeira nordestina a ser eleita em uma metrópole para o qual se dirigem milhares de nordestinos e ter realizado um governo com práticas sociais voltadas à base popular –e o método Paulo Freire é exemplo disso nas escolas públicas durante sua gestão entre 1989 e 1992– ela afirma que essa “marca” não corresponde ao que ela é, e que esse poder não lhe cabe mais; ou melhor, nunca lhe pertenceu:

Quando você deturpa o poder, passa a ser uma propriedade sua. E não é! O povo que te conferiu esse poder! Na hora em que você termina o mandato que o povo te deu, acabou esse poder; não é teu mais. Nunca foi! (...) O poder do povo não é de quem exerce o poder em nome do povo. Então, isso nos forma e nos tira esses vícios de alguém que, como eu, uma vez prefeita acha que é sempre prefeita e a sociedade alimenta isso. Todas as pessoas me chamam de “prefeita, prefeita, prefeita”. Eu não sou mais prefeita, não tem problema nenhum, chame como achar melhor, entendeu? Mas que a gente interiormente não pode se apropriar de algo que não é mais teu, que nunca foi teu. O poder é do povo! É isso que faz a gente acertar mais do que errar.

              

Luiza Erundina se percebe como uma sujeita histórica que não teve uma formação individualizada, mas que tinha certo protagonismo em sua família, numa pequena comunidade do nordeste: como a mais velha das mulheres, como a única que teve possibilidade de estudar e de liderar processos reivindicatórios em sua comunidade. Em seu relato mesclam-se a percepção da oportunidade de ruptura que a fez reagir de uma maneira precoce, como ela mesma diz, e o aprendizado com os movimentos sociais, fazendo com que sua caminhada nunca fosse isolada: “Sobretudo como mulher, eu tive um protagonismo na minha história de vida, que no grupo escolar, eu não era a diferenciada, a menina especial. Não era nada disto! Eu era filha do povo pobre que reagiu”.

Este caminhar, nunca solitário, mas que carrega a força de uma nordestina com todos os seus símbolos de resiliência, é o que explica, para ela, ser hoje ainda uma referência no cenário político do Brasil e da América Latina. Nas memórias subjetivas as marcas de um processo histórico se revelam por experiências (Abreu Souza, 2011) que nascem da singularidade e se incorporam nos movimentos coletivos, evidenciando a presença de Luiza Erundina nos espaços de poder, afirmando assim a importância de atitudes de(s)colonizadoras para o fortalecimento das mulheres nas esferas de poder que envolvem a humanidade e sua diversidade.

Considerações finais

Compreender o que marca e identifica a trajetória de mulheres que tatuam o tempo, o movimento e as conquistas em contextos diversos e exigentes, nos faz mergulhar em referências que expõem lutas públicas e que nos inserem em investigações que possibilitem o uso de histórias orais de vida, considerando a importância das memórias nas construções de novas realidades a partir de identidades individuais e coletivas. Se pensarmos na história do Brasil, podemos afirmar que mulheridades, e em especial as nordestinas como Luiza Erundina, sofreram um processo de tentativa de convencimento de sua inferioridade e de certo destino de submissão às condições econômicas, sociais e de gênero.

Uma mulher que se narra como protagonista de sua história e se sente parte de uma resistência coletiva em suas mais diferentes dimensões (religiosa, agrária, educacional, política, de gênero, entre outras), será sempre uma ameaça à manutenção do sistema desigual que classifica, hierarquiza e discrimina. Também será sempre referência de outras que nela se reconhecem. Mesmo não sendo negra, Erundina traz as marcas do preconceito, dos estereótipos criados por uma elite branca e machista que tenta apagar sua história nordestina, escrita e compartilhada nas experiências de grupos que a cada dia ocupam mais espaço na disputa política para subvertê-la. Assim como ela o fez.

Os relatos orais de Luiza Erundina nos apontam para uma sujeita ativa que, ao rememorar, descortina ações individuais que impactam em desdobramentos coletivos e são impactados por eles. Registrar suas memórias não se converte em revelar verdades, mas de reconhecer, na sua construção autoral, referências a outras histórias e vozes; de homens, mas em especial de sujeitas diversas que fazem de sua vida uma forma de rupturas de vínculos de opressão substituídos por alianças de solidariedade. A construção da experiência numa perspectiva crítica nos remete a reconhecer a singularidade dos processos, pois pressupõe sujeitos únicos e inacabados numa trajetória permanente de ações coletivas. Dentro da abordagem de uma pesquisa qualitativa que se estabelece a partir da história oral de vida, nos cabe escutar as vozes das mulheridades, como Luiza Erundina, que atuam em representações de espaços de poder em que são consideradas minorias, mesmo que sejam a maioria da população, e que, portanto, brigam para não serem invisibilizadas.

Como afirma Vânia Vasconcellos (2018), um dos desafios de escrever sobre sertanejas/nordestinas está em encontrar uma linha de equilíbrio entre compreendê-las e defini-las para além de “vítimas do patriarcado” ou das condições adversas da seca e da fome, e colocá-las num pedestal como mais revolucionárias e rebeldes que quaisquer outras, entendidas por certa “fortaleza natural”. Ao nos abrirmos para a escuta atenta à narrativa de Luiza Erundina saímos do lugar comum de tendermos a “um ou outro” destino para percebermos em sua trajetória a fluidez e o movimento da construção de pessoas que não apenas sobrevivem, mas existem em meio ao processo histórico de lutas coletivas que, se revelam fragilidades e injustiças sociais e de gênero, também nos falam sobre possibilidades de rompimentos e de reescrita de uma história em que mulheres possam se reconhecer como protagonistas e reconstruir caminhos não solitários, como fez questão de enfatizar Luiza Erundina ao compartilhar conosco as suas memórias.

 

Bibliografia

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Barrero Jr., Roger Camacho. 2021. Entre lágrimas, sorrisos e muita luta: a inserção das mulheres nos espaços políticos do Brasil por meio das trajetórias de três militantes de esquerdaLélia Abramo (1911 –2004), Luíza Erundina de Sousa (1934 –) e Irma Passoni (1943 –). Tese (Doutorado de História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Bourdieu, Pierre. 1998. “A ilusão biográfica”, in Marieta de Morais Ferreira e Amado, Janaina. Usos e abusos da história oral (pp. 183-191) Rio de Janeiro, Editora da FGV.

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Porcaro, Rosa Cristina. 2007. A história da educação de jovens e adultos no Brasil. Viçosa: Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa. Disponível em: <www.dpe.ufv.br/nead/docs/ejaBrasil.doc>. Acesso em: 20 agosto 2021.

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Rovai, Marta G.O. 2014. Osasco 1968: a greve no feminino e no masculino. São Paulo, Letra e Voz.

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Vasquez, Antonio S. 2007. Filosofia da práxis. Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales – CLACSO, São Paulo, Expressão Popular.

 

 

FECHA DE RECEPCIÓN: 28/09/2021

FECHA DE ACEPTACIÓN: 04/11/2021

 

 



[1]A entrevista com Luiza Erundina aconteceu no final de 2019, em seu escritório político na cidade de São Paulo. O diálogo foi gravado, transcrito e autorizado por ela. Sua entrevista faz parte de um projeto desenvolvido pelas autoras, que atuam no Grupo de Pesquisa: Formatio, da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), e que tem como finalidade trabalhar, por meio da história oral, com trajetórias pessoais de mulheres que promoveram impactos de resistência e existência em diferentes dimensões da sociedade brasileira, como na educação, nas artes e na política, tornando-se referências de lutas coletivas.

[2] Entendemos que as palavrasmulher” e “femininacarregam conceitos plurais que perpassam muitas interseccionalidades de raça, sexualidade, regionalismos, transgeneridades, entre outras. No entanto, o conceito de feminilidade hegemônica é definido culturalmente de maneira arbitrária dentro de uma sociedade patriarcal que normativa e naturaliza uma única forma de “ser/parecer mulher” (Áran, 2006). No caso de Erundina, ela é uma mulher cisgênera e branca, mas suas origens de classe, como filha de retirantes nordestinos e pobres, e sua opção por não se casar e não ter filhos a colocam, em toda sua trajetória, sob estigmas que a dissociam dos modelos de feminilidade hegemônica.

[3] Para José Carlos Sebe Bom Meihy (2005), o tom vital de uma entrevista é o sentido específico que cada indivíduo à sua própria vida, o núcleo da sua narrativa.

[4] Nascido em Recife, Paulo Freire foi um educador que propunha e praticava uma alfabetização que aliasse a educação a uma leitura da realidade enfrentada pelas classes populares. Segundo Porcaro (2007), ele representou um novo paradigma pedagógico, que muito incomodou a ditadura. Perseguido politicamente, Paulo Freire se exilou no Chile por 14 anos. Quando retornou, nos anos 1980, atuou como secretário da educação no governo de Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo.

[5] A estreita relação entre educação e religião na construção de seu feminismo na prática é uma marca da narrativa de Luiza Erundina, aparecendo em outros trabalhos, como o de Roger Camacho Barrero Jr. (2021), que também escreveu sobre sua trajetória junto a de outras mulheres como Irma Passoni e Lélia Abramo, também militantes do Partido dos Trabalhadores.

[6] O AI-5 foi um dos 17 Atos Institucionais decretados pelo regime militar. Ele foi assinado pelo presidente General Artur da Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. Sua imposição resultou em medidas repressivas tais como o fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas dos estados, a cassação de mandatos legislativos, a censura prévia, a proibição de reuniões políticas e o fim do Habeas Corpus, entre outras.

[7] Sobre a história da luta de mulheres e do feminismo no Brasil, entre outros, o trabalho de Céli Regina J. Pinto (2003) é uma referência.

[8] Sobre a descoberta dos corpos e o trabalho de identificação no contexto de justiça de transição ver o livro Vala Clandestina de Perus (2012).