VOLUMEN 36, NÚMERO 1 | ENERO-JUNIO 2024 | PP. 25-36
ISSN: 2250-6101
DOI: https://doi.org/10.55767/2451.6007.v36.n1.45305
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Intersecções entrenero e raça na
pesquisa em ensino de física: análise
dos percursos formativos de
estudantes negras de um curso de
Licenciatura em Física
Intersections between gender and race in physics
education research: analysis of the formative
pathways of black female students in a Physics
Education degree program
Maribel Jorge Buss
1
*, Maykon Gonçalves Müller
2
1
Mestranda em Ciências e Tecnologias na Educação (IFSul/CaVG), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.
2
Institución Doutor em Ensino de Física (UFRGS). Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências
e Tecnologias na Educação - IFSul, Pelotas, RS, Brasil.
*E-mail: maribeljbuss@gmail.com
Recibido el 22 de enero de 2024 | Aceptado el 15 de abril de 2024
Resumo
O estereótipo do/a cientista, baseado em uma perspectiva eurocêntrica, inferioriza e invisibiliza as mulheres, especialmente mulheres
negras, refoando desigualdades de nero e ra. A falta de representatividade desencoraja estudantes desses grupos a seguir carreiras
cienficas e, de igual modo, a divisão sexual do trabalho é um fator crucial de exclusão e sobrecarrega de mulheres negras, afetando suas
escolhas profissionais e suas vidas familiares. A pesquisa se ancora nas narrativas de estudantes negras de Licenciatura em Física de um
instituto federal brasileiro, buscando identificar discriminações enfrentadas ao longo de seus percursos formativos. A metodologia segue
uma abordagem qualitativa, tendo como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada. As narrativas revelam a persistên-
cia de discriminações de gênero e raciais nas Ciências Exatas, especialmente contra mulheres negras. Vemos a necessidade de ões para
reduzir tais discriminações e proporcionar uma educação inclusiva, longe de quaisquer estereótipos e segregação.
Palavras chave: Relações étnico-raciais; Ensino de Física; Mulheres na ciência; Inclusão.
Abstract
The stereotype of the scientist is based on a Eurocentric perspective, inferiorizes and makes women invisible, especially Black women,
reinforcing gender and racial inequalities. The lack of representation discourages students from these groups from pursuing scientific ca-
reers, and likewise, the sexual division of labor is a crucial factor in the exclusion and overburdening of Black women, affecting their pro-
fessional choices and family lives. The research is grounded in the narratives of Black female students in the Physics Teaching degree
program at a Brazilian federal institute, aiming to identify the discriminations they face in their formative journeys. The methodology fol-
lows a qualitative approach, with semi-structured interviews as the data collection instrument. The narratives reveal the persistence of
gender and racial discriminations in the Exact Sciences, especially against Black women. There is a need for actions to reduce such discrim-
inations and provide inclusive education, free from any stereotypes or segregation.
Keywords: Ethnic-racial relations; Teaching Physics; Women in Science; Inclusion.
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I. INTRODUÇÃO
Assimetrias de gênero e de raça estruturam os mecanismos de exclusão social no Brasil, manifestando relações de
poder baseadas em preconceitos de gênero, de raça e de classe. A despeito das décadas de lutas e conquistas, tal
estrutura pouco se modificou. Na pirâmide de poder, vemos que quem tem mais dinheiro é quem dita as regras,
pessoas brancas são mais valorizadas que pessoas negras, e homens mais dignificados que mulheres (Abram, 2006).
Dificilmente vemos pessoas negras em posições de maior poder e, da mesma forma, dificilmente vemos mulheres em
posições superiores à de homens. Não obstante, ao interseccionarmos gênero e raça, as mulheres negras acabam
sendo as mais invisibilizadas e desvalorizadas (Rosa, 2015).
Ao longo de décadas, notamos que as mulheres têm conquistado seu espaço de direito (acesso à educação, direito
ao voto, à igualdade no mundo do trabalho, dentre outros). Nesse percurso de conquistas, os estereótipos de gênero
foram constantemente questionados, especialmente no que tange os papéis e as atribuições profissionais designadas
às mulheres e aos homens. Entre os espaços profissionais que, historicamente, alimentaram compreensões assimé-
tricas de gênero, destacam-se as áreas científicas e tecnológicas. São evidentes os desafios enfrentados no que tange
a presença e representação de mulheres em tais áreas.
Resgatando o imaginário social do/a cientista, com facilidade obtemos a figura de um homem branco, de jaleco,
sozinho em seu laboratório e, obviamente, brilhante. Os meios de comunicação desempenham papel significativo na
configuração da imagem pitoresca aqui retratada. Vemos, por exemplo, que a representação de cientista em diversos
desenhos infantis é geralmente de um menino com inteligência superior, enquanto as meninas são sempre desajeita-
das, bagunceiras ou subordinadas. Pode parecer inofensivo, mas são os desenhos animados que criam as primeiras
imagens do mundo, profissões, etc., produzindo, também, uma visão distorcida sobre o papel dos homens e das mu-
lheres cientistas (Siqueira, 2005). Na vida escolar, os livros didáticos também influenciam tais concepções. Os livros
de Física, por exemplo, são frequentemente ilustrados com representações masculinas, vinculando mulheres ao papel
das atividades domésticas e familiares. Além disso, é quase inexistente a presença de exemplos de mulheres cientistas
na Física. Por conseguinte, a Ciência, e suas diversas formas de comunicação, acaba reproduzindo discursos sexistas,
construídos ao longo de séculos, sobre o lugar da mulher e o lugar do homem na sociedade (Silva; Ribeiro, 2011).
A partir de uma breve análise histórica, vemos que até o início do Século XX, a Ciência era considerada uma carreira
imprópria para mulheres e, embora teoricamente isso não se aplique mais, na prática, vemos uma realidade bem
diferente. Durante o percurso de formação até o Ensino Superior, grande parte das meninas acabam por não optar
pelas áreas científicas e tecnológicas. As que ainda assim ingressam nesse meio, enfrentam diversos obstáculos, tanto
em seu processo de formação, como na atuação profissional. Chassot (2004) destaca que, a despeito do aumento
significativo na participação das mulheres nas áreas da Ciência, o número de mulheres é significativamente menor
que o de homens. Do mesmo modo, acrescenta que as contribuições femininas não são valorizadas, sendo apenas
Marie Curie praticamente a única cientista citada nas aulas; ainda assim, difundindo conceitos e fatos históricos desa-
tualizados. Filho e Silva (2019, p. 137) enfatizam, nesse sentido, que “para uma ciência mais plural e diversa, (…) mu-
lheres precisam se sentir representadas (…) e certamente, escrever sobre o seu passado é uma forma de tornar isso
uma realidade”.
Na esteira de silenciamento e negação de espaços, é notoriamente percebido que os mecanismos de exclusão,
que distanciam as mulheres do campo científico e tecnológico, se acentuam nas minorias étnicas-raciais. O estereótipo
do cientista como homem branco, descrito anteriormente, exclui completamente a associação de mulheres negras
como cientistas (Barboza; Schittini; Nascimento, 2018). Embora o número de mulheres negras cientistas tenha cres-
cido nos últimos anos, estas permanecem na invisibilidade perante as concepções sexistas e racistas que prevalecem
nesse meio (Barboza; Schittini; Nascimento, 2018, Pereira; Elias, 2021). O debate acerca das relações étnico-raciais
dentro da pesquisa em Ensino de Ciências e, mais precisamente, dentro da área da Física se torna, portanto, funda-
mental. Como docentes de Ciências, devemos assumir o compromisso de desconstruir essas narrativas científicas se-
xistas e racistas.
A partir do exposto, o presente trabalho toma como ponto de partida as narrativas das estudantes negras do curso
de Licenciatura em sica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul) Campus
Pelotas Visconde da Graça (CaVG). Ao evocar tais narrativas, buscamos contribuir para a identificação e compreensão
dos mecanismos discriminatórios que estudantes negras enfrentam ao longo de sua formação em cursos de Licencia-
tura em Física. Nesse sentido, buscamos: (i) analisar o preconceito em relação às estudantes negras ao longo do seu
processo formativo; (ii) compreender como esses mecanismos acabam por promover o afastamento das meninas da
área da Física, mais propriamente meninas negras; (iii) identificar a existência, e sua respectiva influência, da aborda-
gem dessas temáticas ao longo do ensino de Física no Ensino Médio e no curso de graduação; (iv) evidenciar a impor-
tância da abordagem destas temáticas no ensino de Física, a fim de promover a inclusão de todos/as os/as estudantes.
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II. GÊNERO E RAÇA: DISCUSSÕES URGENTES NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE MULHERES CIENTISTAS
A baixa participação de mulheres em carreiras científicas, especialmente na Física, fez com que as questões de gênero
se tornassem campo de investigação nos últimos anos. Por conseguinte, a desigualdade de gênero no Ensino de Ciên-
cias passou a se tornar uma preocupação para cientistas e educadores (Vidor et al., 2020, Blazquez e Flores, 2005,
Blazquez e Romero, 2011). Do mesmo modo que destacamos a falta de representatividade de mulheres na área da
Física, podemos cogitar quando tratamos de uma identidade mais específica: mulheres negras cientistas. As relações
étnico-raciais na área do ensino de Física são questões muito pouco exploradas até o momento, tendo um baixo vo-
lume de materiais a serem consultados acerca deste tema.
Apesar de antiquado, a concepção de que a Ciência é uma área de atuação masculina e branca ainda prevalece.
Esse pensamento se traduz, mesmo que de maneira não intencional, por meio de discursos, imagens e formas de
lidarmos com os/as estudantes. Essa organização social imposta, em especial no ambiente familiar e acadêmico, acaba
por desestimular jovens estudantes a seguir carreira na área científica, especialmente jovens negras (Rezende; Oster-
mann, 2007, Miller; Nolla; Eagly; Uttal, 2018, Reuben; Sapienza; Zingales, 2014, Subramaniam et al., 2016).
As concepções de gênero na ciência estão permeadas por imagens que trazem, de maneira geral, sempre um
homem, despenteado, antissocial, genial, de jaleco branco e em seu laboratório realizando grandes descobertas, que
são absolutas e não sujeitas a erro. Esta visão estereotipada da Ciência e do/a cientista é performada, por exemplo,
em desenhos de grande circulação entre as crianças (Siqueira, 2005). Outro ponto relevante é a representação étnica
dos cientistas nos desenhos animados, onde a maioria é retratada como homens brancos, o que perpetua preconcei-
tos e limita a percepção das crianças sobre quem pode seguir carreira científica (Tomazi et al., 2009).
As tecnologias digitais de comunicação estão presentes desde muito cedo, acompanhando as crianças ao longo de
seu desenvolvimento; na programação infantil, os desenhos animados mantém padrões, preservando estereótipos, e
contribuindo para visões distorcidas sobre os/as cientistas, reforçando a ideia de que esse é um trabalho solitário e
perpetuando preconceitos, reafirmando a concepção de que a mulher, especialmente a mulher negra, não faz ciência
(Tomazi et al., 2009.). Francisco (2006, p. 295), ressalta que os meios de comunicação social parecem assumir um
papel de destaque na veiculação de diversas imagens estereotipadas sobre as características pessoais ou a atividade
profissional do cientista”.
A linguagem influencia diretamente a construção do conhecimento no ambiente escolar, e a maneira como nos
comunicamos molda os significados científicos durante as interações em sala de aula (Junior; Ostermann; Rezende,
2010, 2011); além disso, a criação marcada por direcionamentos distintos para meninos e meninas influencia suas
escolhas e interesses, acadêmicos e profissionais (Junior; Ostermann; Rezende, 2010). Os estereótipos de gênero en-
raizados historicamente na Ciência revelam um desequilíbrio na estrutura educacional e nas percepções sociais, o que
se reflete na preferência (ou não) por disciplinas científicas.
No âmbito escolar, vemos que os livros didáticos de Física são compostos, em sua maior parte, de imagens mas-
culinizadas, atribuindo às meninas apenas representações em contexto doméstico/familiar ou de cunho estético. Por
outro lado, os meninos têm representações de atividades de lazer ou científicas. Além de contribuir para o afasta-
mento das meninas da área científica, tais imagens reforçam os papéis impostos socialmente sobre os afazeres que
cabem a mulheres e homens (Rosa; Silva, 2015). Nesse sentido, o ambiente escolar está social e institucionalmente
organizado para favorecer o sucesso masculino na Ciência” (Junior; Rezende; Ostermann, 2011, p. 122).
Outrossim, “a história da Ciência muitas vezes passa despercebida, ou é esquecida” especialmente no que diz res-
peito à mulher negra, que “os relatos dentro desse material parece ser algo inexistente” (Pereira; Elias, 2021, p. 494).
A ausência de representações de pessoas negras nesse contexto marginaliza identidades e perspectivas, o que reforça
a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e diversificada nos materiais educacionais (Rosa; Silva, 2015).
Até aqui, foi possível destacar que no ambiente de desenvolvimento das crianças e adolescentes, isto é, ambiente
familiar e escolar, bem como nas mídias sociais, é continuamente reforçado o pseudo papel do homem e da mulher
na sociedade, onde constantemente o estereótipo de gênero na Ciência é erroneamente reforçado, acarretando uma
“preferência” das meninas por carreiras nas áreas humanas e sociais, onde elas têm uma maior representação, con-
forme apontado por Junior, Rezende e Ostermann (2011). Contudo, ainda há meninas que optam pelas áreas científi-
cas, ingressando na graduação e, ao que parece serem grandes os obstáculos vencidos, passam a ser apenas o início.
Corroborando esta ideia de conformação com imposições sociais/culturais em relação à participação do gênero
feminino, vemos uma análise das construções de liderança em um debate entre alunos da graduação em Física e as
relações com as diferenças de gênero, constatando que, em um grupo de maioria masculina, meninos ocuparam a
posição de liderança, enquanto as meninas presentes buscaram encontrar diferentes maneiras de expor suas opini-
ões, sendo uma delas exercer uma participação ativa para expor suas opiniões ao longo do debate, e outra de vincular
seu ponto de vista à autoridade da ciência”, buscando a visibilidade de sua opinião. De mesmo modo, os/as auto-
res/as repetiram sua análise em uma turma de maioria feminina, contudo, ainda foi constatado que a posição de
liderança foi mantida pelos meninos (Junior; Rezende; Ostermann, 2011).
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No que tange a relações étnicas sociais no ensino de Física, vemos que se entende a Ciência como uma construção
social. Logo, é dever da comunidade científica pensar de que maneira essas relações interferem no ensino. A promul-
gação da Lei 10.639, no contexto brasileiro, a qual tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira
(…) no âmbito de todo o currículo escolarpode ser compreendida como uma das ações das políticas blicas pensadas
e promovidas na perspectiva de combater as práticas racistas e discriminatórias ainda tão recorrentes nos espaços
escolares” (Pires; Silva; Souto, 2018, p. 43-44). Esta lei também vem de modo a reforçar o dever, também da Ciência,
de pensar em maneiras de inserir discussões sobre estas relações no ensino.
De acordo com Santos (2018), a história da educação não tem considerado a pluralidade étnica escolar, e, estudos
acerca dessa temática é fundamental para “a compreensão das demandas advindas das poucas e precárias oportuni-
dades de educação da população negra'' (Ibid., p.24). A escola é o ambiente em que formamos indivíduos críticos para
integrarem a sociedade. Deste modo, a educação está continuamente se modificando a fim de atender às necessida-
des sociais e, sendo assim, se torna necessário buscar estratégias de ensino que proporcione uma educação que va-
lorize as diferenças, que seja inclusiva (Oliveira; Queiroz, 2015, Pires; Silva; Souto, 2018, Pereira; Elias, 2021), pois
como muito bem colocado por Pires, Silva e Souto (2018) a escola é um lugar importante na desconstrução dessa
lógica e na construção de identidades mais fortalecidas” (Ibid., p. 44).
A partir disso, devemos destacar que os professores da área de Física não possuem formação nessa perspectiva,
da mesma forma que não dispõem de materiais adequados para tal abordagem. O uso da biografia de mulheres,
especialmente mulheres negras na História da Física, trazendo suas contribuições e a dedicação e superação de obs-
táculos, é um grande começo para trazer essa representatividade, inclusão e diversidade.
Pereira e Elias (2021), destacam que, embora o número de mulheres negras cientistas tenha aumentado, o preva-
lecimento de concepções machistas e racistas faz com estas mulheres continuem na invisibilidade e sendo silenciadas
dentro da ciência. Utilizar da representatividade de mulheres negras suscita não só reconhecer seus contributos, mas
também “reconstruir um novo olhar sobre estas mulheres” (Ibid., p. 497).
Atentando para a história da Física, raramente é exposto a produção de uma mulher, principalmente de uma mu-
lher negra, tendo que a concepção de Ciência parte de uma perspectiva eurocêntrica a qual exclui a participação de
mulheres negras na produção científica. Torna-se evidente o quanto a área das ciências da natureza são, ainda, um es-
paço de exclusão e silenciamento para essas mulheres (Santos, 2020, Blazquez e Flores, 2005, Subramaniam et al., 2016).
No que tange a divisão sexual do trabalho, temos que esta tem grande influência histórica e desempenha um papel
fundamental para perpetuar estas disparidades de gênero tanto no trabalho remunerado quanto no trabalho não
remunerado (sendo estes os trabalhos domésticos e de cuidado), bem como, se acentuando nas intersecções com
raça e classe social (BIROLI, 2017). Esta divisão está ancorada em concepções tradicionais dos papéis femininos e
masculinos, e exerce um impacto significativo na representação política de mulheres e sendo um dos principais fatores
para a opressão feminina por meio da atribuição desigual de tarefas e responsabilidades (Ibid.).
De mesmo modo, ao tratarmos sobre as chefias familiares e renda, também é possível destacar grande dispari-
dade, acentuando-se ao falarmos sobre mulheres negras. Essa divisão do trabalho contribui para a exclusão das mu-
lheres da participação, também, na política institucional, devido à sobrecarga de trabalho doméstico que recai sobre
as mulheres, restrições no acesso ao tempo disponível e à menor desenvoltura nas redes de contatos. É enfatizada,
nesse contexto, a importância dos movimentos feministas, que desafiam as fronteiras entre o público e o privado,
buscando uma maior inclusão das mulheres na esfera política. Eles desempenham um papel fundamental na luta
contra as desigualdades no contexto das mudanças políticas e econômicas (Ibid.).
Ao analisarmos as raízes históricas que contribuíram para essa desigualdade de gênero na área científica, através
do viés da nossa tríplice ancestralidade (grega, judaica e cristã), evidencia-se duas explicações. Uma delas trazendo
uma linha histórica, onde precede milênios de preconceitos; e a outra traz uma linha biológica, onde somos resumidos
apenas a características físicas, ocorrendo a distinção entre os papéis do homem e da mulher (Chassot, 2004).
Ao que se refere a nossa ancestralidade grega, Chassot destaca os mitos que atribuíam às mulheres como um
castigo de Deus. Embora sejam apenas mitos, estes doutrinaram povos ao longo de séculos.
... No princípio os mortais (os humanos) conviviam com os imortais (os deuses nascidos da Terra e do Céu), divididos em
linhagens paralelas e algumas vezes se estabeleciam conflitos entre os deuses e os humanos. Esses diferentes gêneros de
seres mortais e imortais formavam uma sociedade homogênea em que reinava felicidade. Um dia, porém, ocorre um
grave conflito. Prometeu, filho de Titão, zombou de Zeus quando da partilha de um boi destinado a um banquete. As disputas
sucedem-se. Prometeu rouba o fogo do Olimpo e o presenteia aos humanos. Depois de sucessivas lutas Zeus resolve dar um
castigo àqueles que estavam felizes com o presente de Prometeu: dá-lhes a mulher. Esta se chama Pandora e traz consigo
uma caixa fechada, de onde deixará escapar todos os males que afligiram os homens (Chassot, 2004, p. 16-17)
O autor também sublinha a concepção do papel da mulher no processo de geração de uma vida, o qual lhe estaria
atribuído apenas receber o esperma do homem; nele estariam todas as características do ser a ser gerado, sendo que
qualquer imperfeição que esta criança viesse a ter seria responsabilidade da mulher, desse modo, vinculando mulhe-
res à imperfeição.
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Pelas nossas raízes judaicas, temos a narrativa da mulher produzida a partir da costela do homem. A ela também
é atribuída toda a culpa pela perda do paraíso e por tudo o que consideramos sofrido. Ademais, de acordo com as
doutrinas judaicas, as mulheres eram atribuídas apenas às funções domésticas e sociais, além de serem obrigadas a
cortarem seus cabelos ao se casarem de forma a marcar o pertencimento da mulher ao marido” (Ibid., p.19). Os
homens, nesta tradição, possuíam os deveres religiosos e de estudo.
Nossa ancestralidade cristã, a qual tem como base os textos judaicos, reforça a ideia de que todos os problemas
da humanidade se deram por conta da mulher. As raízes cristãs contribuíam em argumentar que as mulheres deveriam
ser submissas, não sendo permitido a elas falarem em assembleias ou pertencerem ao sacerdócio, radicalizando as
interpretações. Ambas as três vertentes aqui analisadas, reforçam a ideia de subalternidade da mulher, não podendo
exercer nada além das funções domésticas as quais lhes foram atribuídas. Desta forma, a posição inferior em que as
mulheres foram colocadas que sucede de culturas milenares ainda permanece intrínseca na nossa sociedade, mesmo
que de maneira mais recatada, o que acaba promovendo um desequilíbrio entre homens e mulheres em determinadas
áreas científicas.
Davis (2016), por meio de um percurso histórico desde a época escravagista, destaca o papel da mulher negra no
trabalho escravo, e a ligação entre o movimento feminista e o movimento antiescravagista e a luta de classes. A autora
sublinha que a exploração da força de trabalho de pessoas negras não distinguia gênero; as mulheres trabalhavam
tanto quanto os homens nas lavouras ou em trabalhos domésticos, contudo, eram reduzidas exclusivamente à sua
condição de fêmeas” (Ibid., p.19) quando submetidas a punições, repressões e exploração que cabiam apenas ao sexo
feminino. Além disto, também eram atribuídas a função de reprodutoras “para repor e ampliar a população de escra-
vos” (Ibid.).
Com o crescimento do movimento antiescravagista, cada vez mais mulheres brancas se juntaram a esta causa. A
autora compreende que isto ocorreu devido ao fato de ambas buscarem liberdade, pois, assim como os/as negros/as
eram vistos como servis, as mulheres eram vistas como dóceis, indefesas, e sendo excluídas por discursos sexistas.
Após a abolição e a conquista de trabalho remunerado pelas mulheres, essas divisões de trabalho/tarefas eram
pautadas de acordo com o gênero, raça e classe social. Sendo assim, as mulheres negras eram designadas às funções
agrícolas e domésticas sob condições precárias de trabalho, perpetuando a exploração e violência. as mulheres
pobres e brancas eram conduzidas ao trabalho nas fábricas e, para as mulheres de classe média, cabia a função de
cuidar da casa e dos filhos, mantendo o padrão de discurso sexista.
Biroli (2017) destaca em seu trabalho que embora tenha sido garantido o acesso das mulheres à educação e ao
trabalho remunerado, “é na conjugação entre gênero, classe e raça que as posições relativas se estabelecem de fato
(Ibid., p.22). Sendo assim, as mulheres negras dispõem de maior desvantagem, compondo 39% do trabalho precari-
zado, enquanto as mulheres brancas compõe 27% (Ibid., p.22).
Vemos que, apesar das conquistas que as mulheres tiveram até o presente momento, o machismo enquanto me-
canismo de exclusão social ainda persiste, por vezes de maneira mais ostensiva, especialmente com as mulheres ne-
gras que, a partir da intersecção gênero e raça, são as mais afetadas (Rosa, 2015; Pereira; Elias, 2021, Subramaniam
et al., 2016).
As mulheres precisam se sentir representadas, precisam sentir que têm voz dentro do meio em que atuam. Nesse
sentido, a abordagem de conteúdos de Física no Ensino Médio precisa promover essa inclusão. Uma abordagem da
Física contando a história também de mulheres que fizeram contribuições valiosas para o avanço da ciência despertará
nos/as jovens/adolescentes esse lado da ciência mais igualitária. Para isso, é necessário a inserção destas questões
também na formação de professores de Física. Não atribuindo representatividade para as alunas em formação,
mas também considerando que será através destes que começará essa mudança significativa dos valores e práticas.
Para isso acontecer, é necessário que eles/as também tenham conhecimento dessas histórias das cientistas e dos
desafios que tiveram que superar ao longo de suas carreiras.
A partir do exposto, vemos a importância de apresentar estas questões e tentar compreender esta intersecção de
ser mulher negra dentro do curso de Física, um espaço majoritariamente masculino branco, bem como, pensar em
formas de desmantelar esse estereótipo, possibilitando que estas mulheres se sintam representadas e se sintam parte
desse meio. Assim, voltamos nossa análise para uma identidade menos retratada, que carece ser explorada e que
pode contribuir para tornar a Física verdadeiramente diversa e representativa (Vidor et al, 2020).
III. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A partir dos objetivos desta pesquisa, esta seguirá uma abordagem metodológica do tipo Pesquisa de Campo que,
conforme Marconi e Lakatos (2003), é utilizada com a finalidade de adquirir informações acerca de um determinado
problema ou hipótese. Para tal, descreve as fases necessárias para sua realização, a saber: pesquisa bibliográfica sobre
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o tema de pesquisa; elaboração de um modelo teórico de pesquisa para referência e elaboração do plano geral; de-
terminar as técnicas para coleta de dados, de registro desses dados e de análise. Os autores ressaltam que essa me-
todologia está voltada para o estudo de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e outros campos, visando à
compreensão de vários aspectos da sociedade” (Marconi; Lakatos, 2003, p.189).
A metodologia de análise possui caráter qualitativo, sendo o método que melhor se enquadra em pesquisas inter-
pretativas ou críticas, abrangendo variados procedimentos para se descrever, decodificar e traduzir o sentido e não
a freqüência de eventos ou fenômenos do mundo social(Teixeira, 2003, p. 186). Também, de acordo com Triviños
(1987), para análise das informações obtidas é necessário organizar, classificar e interpretar para se distinguir os pon-
tos fundamentais.
Como instrumento de pesquisa, utilizamos entrevistas semiestruturadas que, conforme estabelece Triviños (1987),
parte de questões básicas apoiadas em teorias e hipóteses que concernem ao tema da pesquisa, e, a partir das res-
postas obtidas surgem novas hipóteses. As questões que constituem essa entrevista partem da teoria do pesquisador
e, também, das informações já recolhidas sobre o fenômeno pesquisado, deste modo a entrevista semiestruturada
favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade,
tanto dentro de sua situação específica como de situações de dimensões maiores” (Triviños, 1987, p. 152).
Os sujeitos da pesquisa foram duas estudantes negras matriculadas no curso de Licenciatura em Física do IFSul
CaVG, no ano de 2021, conforme dados obtidos pelo registro acadêmico da instituição. Por conta do período da pan-
demia da COVID-19, onde a instituição encontra-se na modalidade de Ensino Remoto, uma delas encontra-se com a
matrícula trancada. As entrevistadas foram representadas pelas letras A e B, como forma de garantir a preservação
das identidades das participantes.
As entrevistas foram realizadas através do Google Meet e gravadas para auxiliar no processo de análise. A duração
média das entrevistas foi de 54 minutos. No início de cada entrevista, as estudantes declararam seu consentimento
para participação na entrevista. Após a transcrição, as respostas foram analisadas seguindo o seguinte protocolo: foi
lido atentamente todas as respostas da entrevistada A e, em seguida, foi realizada uma segunda leitura destacando
os pontos principais de cada resposta, os quais iam ao encontro aos referencias teóricos estabelecidos para a presente
pesquisa. Após, foram listadas as respostas, separadas por categorias de análise, e a seguir o processo foi repetido
para a entrevistada B.
Ao final do processo obteve-se duas listagens classificadas por categorias e com isso, buscou-se identificar a partir
das narrativas analisadas, os pontos similares, conflitantes e originais das entrevistadas.
IV. ANÁLISE DE DADOS
A partir do exposto ao longo deste trabalho, percebemos que a discriminação na área das Ciências Exatas é uma
questão que afeta significativamente as mulheres que optam por seguir formação nessas áreas de conhecimento,
principalmente as mulheres negras, sendo muito menos representadas. Por séculos, essas mulheres têm sido coloca-
das sob uma condição inferior aos homens, não tendo o direito de ocupar uma posição de destaque, apesar de seus
esforços e contribuições na pesquisa científica. Nesse contexto, a partir das narrativas de duas estudantes negras do
curso de Licenciatura em Física do IFSul CaVG, tem-se como objetivo analisar os desafios vivenciados ao longo do
seu processo formativo, o preconceito, e a importância de abordar as temáticas étnico-raciais e de gênero no Ensino
de Física.
A. Perfil das entrevistadas
Com base nas entrevistas, foi possível construir uma breve história da trajetória escolar dessas mulheres, que passa-
mos a apresentar na sequência deste capítulo.
Entrevistada A: Frequentou uma escola de artes antes da idade escolar. Seu pai era técnico contábil e sua mãe
professora e ambos trabalhavam em tempo integral; logo, ela e suas irmãs ficavam durante a parte da manhã com
uma senhora a qual trabalhava com sua família e na parte da tarde iam para escola. Cursou todo seu Ensino Funda-
mental no Instituto Estadual de Educação Assis Brasil, e no seu Ensino Médio entrou para o CaVG, em uma turma de
Economia Doméstica; ambas as Instituições de Ensino localizadas na cidade de Pelotas. Também fez um curso de inglês
e um curso pré-vestibular. Ao longo de seu percurso educativo, sempre percebeu que era a única menina negra da
turma, ou uma das pouquíssimas presentes.
Entrou para a Licenciatura em Matemática na Universidade Católica de Pelotas, onde realizou o curso na modali-
dade de licenciatura curta e, em seguida, começou a atuar como professora, profissão que exerce 12 anos. Sobre
a sua escolha de ser professora, a estudante comentou: eu percebi que quando eu estava estudando e eu estava
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ensinando, eu era outra pessoa. Eu ficava mais leve, eu ficava feliz com aquilo, eu me identificava né”.
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A estudante também relata que passou por momentos muito difíceis ao longo de sua formação, pois sua mãe
esteve muito doente, com câncer, e a mesma também teve filho, o que dificultou sua permanência. Ressalta também
que
o fato de eu ter continuado foi uma das válvulas pra que o meu casamento acabasse né, porque eu queria continuar estu-
dando e eu tinha filho pequeno e aquela situação “ah tu trabalhou o dia inteiro e tu vai pra aula de noite, quando é
que tu fica em casa? Final de semana tu ta estudando, se tu não ta estudando tu ta com teu filho”, então tu vira mãe e
profissional, tu não pensa mais, tu esquece até o teu gênero na verdade, porque tu vai fazendo tudo no automático;
Após alguns anos, entrou para o curso de Licenciatura em Física no IFSul CaVG. Segundo ela, eu sempre dizia
pra minha mãe que eu ia pra NASA né (risos). Sempre disse “Mãe, eu vou pra NASA. Eu não sei como, mas eu vou pra
NASA”.
Entrevistada B: Residiu em Porto Alegre até os 12 anos de idade, quando estava cursando a série sua mãe
mudou-se para Pelotas após divorciar-se. Ela recorda de não ver alunos negros nesse período, exceto um menino na
3ª série. Após mudar-se para Pelotas, foi transferida para a Escola Estadual Nossa Senhora Aparecida, onde terminou
a série e após foi transferida para a Escola Estadual Augusto Simões Lopes, que era mais próxima a sua casa, na
qual concluiu o Ensino Fundamental. No Ensino Médio, foi para o Colégio Municipal Pelotense, escola na qual começou
a participar de um grupo de dança afro, recordando que foi a primeira vez que integrou um espaço onde a maioria
das pessoas eram semelhantes a ela.
Entrou para o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET), e estudou por dois anos no curso de Eletrotécnica,
com apenas três estudantes mulheres, percebendo que o preconceito era mais em relação ao gênero, de forma que
os professores tinham falas voltadas somente para os meninos da sala, sem considerar as meninas.
Atualmente, trabalha no setor de cobrança de uma empresa e ingressou a alguns anos no curso de Licenciatura
em Física no IFSul CaVG, e contou acerca de sua escolha do curso
Na verdade, eu tinha vontade de ser psicóloga (risos), só que era um curso que não tinha a federal, era só na católica. Tu
tinha que pagar né. E como na minha família eu tenho primas que são professoras e minha madrinha é professora das séries
iniciais, então, como eu tinha essa referência de professor.… e eu gostava também.
Ainda relata que a escolha da Física se deu devido uma professora que a inspirou
... Eu tive uma professora que eu aprendi bastante com ela, Física, e todo mundo dizia que Física era uma coisa difícil. […] E
como eu aprendi muito assim, com essa professora, eu gostei da Física. E aí foi o que me chamou atenção assim, o fato de
eu ter tido essa professora que me ensinou tão bem a Física. [...] Então, foi essa a inspiração que eu tive pra escolher a área
da Física.
Relata que durante a graduação, ao conciliar os estudos e o trabalho “foi bem puxado porque, a questão dos
estágios, então eu fiz 2 estágios, na parte da manhã e o outro na parte da tarde, só que pra mim conseguir esse horário
pra ir fazer o estágio, eu tinha que pagar esse horário no serviço, então eu comecei a trabalhar todos os sábados”.
Atualmente, se encontra com a matrícula trancada, pois ficou muito difícil conciliar trabalho e estudo no contexto da
pandemia da COVID-19. Ademais, mora sozinha e arca com todas as despesas da casa, e o deslocamento diário até a
universidade era muito cansativo pois tinha de sair do serviço para a faculdade e da faculdade tinha de contar com
dois ônibus até chegar em casa.
B. Desafios: a experiência de mulheres negras na educação e nas ciências exatas
Entrevistada A - No decorrer de seu processo formativo, a estudante relembrou algumas situações que enfrentou por
ser uma mulher negra. Ainda no ensino básico relembra de uma professora de português, que deu um texto para
interpretação, cujo o título era “Será que a minha cor vai sujar a água?”, e ela conta sobre a professora a indagando
e aí ela me perguntou (eu tinha 10 anos, eu nunca vou me esquecer disso) ela disse assim, “..., como é que tu te sente
sendo assim no meio dos teus colegas” e aí aquele dia, eu entendi o que que era o racismo”.
Na sua primeira graduação, por exemplo, em uma turma predominantemente branca e masculina, ela teve de lidar
com algumas falas que a incomodaram bastante, como o fato de julgarem seu tom de pele no curso da matemática
(…) eles diziam assim: “Não, mas tu não é negra. Tu é morena. Tu nem sabe o que que é negra”. Também relatou como
o ingresso nesses cursos é um caminho solitário, principalmente no que tange essa interface de ser mulher e ser negra.
Em sua fala ela destaca: No período da graduação, eu vi assim, que as pessoas te olham, mas não te falam né, as
pessoas te medema capacidade... tudo, tudo, tudo…”. Outrossim, também sublinha sobre as relações de gênero
dentro curso,
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... E outra coisa que eu acho ruim na nossa formação, na Física… na verdade eu acho Maribel que a Física é um caminho
solitário, se tu não fizer parte do grupo dos guris (porque tu também tem que ser aceita no grupo dos guris né) se não faz
parte desse bolinho, é um caminho solitário. Não é porque eu sou negra, mas seria talvez pra mim, seria pra ti (…) pra
todas que estão né. É um caminho bem solitário, porque às vezes tu quer tirar dúvida com alguém e o teu colega não te dá
abertura nem pra te dizer alguma coisa. É muito difícil (...)
Entrevistada B - A estudante relembra algumas questões às quais chamaram a sua atenção ao longo do seu pro-
cesso formativo, como quando cursou eletrotécnica, um curso majoritariamente masculino. Ela relatou que o que
mais chamou sua atenção era as relações de gênero:
No CEFET, o que sentia, era que a fala de alguns professores (não era a maioria), mas a fala deles era mais voltada pros
homens né, como se as mulheres não seriam capazes de fazer aquilo ali ou estavam ali e não iam seguir adiante. Então eu
senti um pouco essa questão na fala.
Já na sua graduação, a estudante relata que as questões que mais chamaram sua atenção eram a pouca presença
de estudantes e professores/as negros/as:
No CaVG o, não senti esse preconceito assim. Eu senti mais era essa questão de… da falta de tu ver mais alunos negros
(…) aí tu entra pra sala de aula tu vê dois… um, dependendo da turma tu não vê nenhum. Dependendo do curso também tu
não vê nenhum. Lá no CaVG também, uma coisa que me chamou bastante atenção foi a questão dos professores também.
Tu não vê professores negros. Tu vê um ou dois né.
C. A necessidade urgente da representatividade
A partir deste breve perfil traçado das entrevistadas, percebemos em seus relatos algumas lembranças em comum,
dentre estas, destacamos a discriminação de gênero na área das Ciências Exatas. Santos (2020) afirma que esse é um
dos fatores o qual acaba por afastar mulheres destas áreas. O ambiente acadêmico branco acaba por reforçar estes
estereótipos, oprimindo estudantes negros, principalmente, mulheres negras.
Quando questionadas sobre quantas professoras negras de Ciências/Física elas recordam ter tido durante todo o
período educativo, as entrevistadas responderam:
Entrevistada A - Nunca tive. Só a minha mãe por acidente (risos) (…) eu tinha uma professora, mas ela não era de ciências,
era de história ou de geografia.
Entrevistada B - No primeiro grau não. tive uma professora negra de história (…) depois no Pelotense eu tive uma pro-
fessora negra também, mas olha… pensando assim… no Pelotense era uma professora, de física (…) era a única professora
negra que tive, de física.
Em relação a falta de professoras negras e, também, a falta de representatividade dentro da área da Física e da
História da Física, quando questionadas se promovia uma sensação de exclusão, ou até um afastamento das meninas
dessa área, as entrevistadas destacaram que:
Entrevistada A - Com certeza, porque eu preciso me enxergar em alguma coisa né, e se eu não tenho essa identificação
(…) porque que eu vou ficar aqui? Ou seja, é mais um espaço que não cabe pra mim.
Entrevistada B - Eu acredito que sim né, porque é uma coisa que quando tu descobre… eu agora até não me recordo assim,
o nome da cientista, mas eu cheguei a ver… eu me deparei com uma cientista, que era uma cientista negra, e parece assim,
que não é normal, que não existe. Que cientistas são as pessoas brancas. Então, realmente, é um referencial que faz falta
e é importante.
Os relatos dessas estudantes estão em consonância com Pereira e Elias (2021), que se referem a invisibilidade das
mulheres negras na construção do conhecimento científico a partir da construção histórica acerca do papel das mu-
lheres negras no período da escravidão. Silva e Pinheiro (2019) ressaltam, igualmente, o fato de permanecer oculta a
produção científica de mulheres, principalmente mulheres negras. Nesse sentido, os autores destacam a necessidade
destas biografias no meio educacional. Ademais, sublinham que, ao inserir estas histórias na Educação em Ciências,
estaremos não só propiciando uma verdadeira representatividade, mas também incentivando esses/as jovens a ansiar
carreiras tão promissoras, tal como estas protagonistas.
Barboza, Schittini e Nascimento (2018) destacam que esse estereótipo de cientistas como homens brancos é uma
percepção que reflete a atual conjuntura da ciência, que é marcada pela pouca presença de mulheres negras. Essa
percepção vai ao encontro da fala da entrevistada B, quando reflete sobre a estranheza ao se deparar com uma cien-
tista negra.
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D. O silenciamento de identidades no ensino de física
Quanto a abordagem destas temáticas (gênero/raça) no ensino de Física, ao questionar se haviam presenciado
durante sua formação:
Entrevistada A Não, nunca. Na graduação, assim, de gênero muito pouca, pouquíssima. Eu não sei o porquê as pessoas
tem medo de falar sobre diversidade, etnia, eu não sei porque as pessoas tem medo de falar sobre isso.
Entrevistada B Não. Eu me lembro assim... não me recordo direito se foi na recepção do início das aulas né, que teve uma
palestra, que foi uma advogada indígena e ela foi falar sobre a cultura indígena pra nós. E o que eu me recordo assim, a
nível disso, foi o que teve de diferente.
A partir do exposto, vemos que essas questões não estão inseridas no espaço escolar e acadêmico. Conforme
exposto por Pereira e Elias (2021), as instituições de ensino deveriam prover um ambiente que estimule uma maior
visibilidade para essas mulheres, pois a educação se torna uma ferramenta essencial para desconstrução do racismo
e machismo(Ibid. p. 497). Ainda segundo os autores, os livros didáticos acabam se tornando mais uma ferramenta
de exclusão, uma vez que ocultam a presença dessas mulheres no meio científico (Ibid.). O relato abaixo evidencia tais
pontos.
Entrevistada B O que tu aprende nos livros de história? Tu aprende da época da escravidão e as pessoas não te contam a
contribuição que os negros tiveram. Tu abre o livro ali e tu vê a figura do negro escravo, né! Ninguém te conta o outro lado
da história. Então tu se cria sem essa referência.
E. Representatividade das mulheres negras no campo da pesquisa/ensino de física
Deste modo, se torna evidente que se faz necessário trazer essa visibilidade para o contexto do ensino de Ciências, de
modo a promover a representatividade destas estudantes (Pereira; Elias, 2021). Nesse sentido, a Entrevistada B co-
mentou Eu acho que deveria sim né, ser pensado de se trazer essa questão pra Licenciatura porque o professor vai
lidar com o aluno né, e assim como tu tem que saber abordar tantas outras coisas, tantos outros assuntos, então essa
questão do gênero e a questão da discriminação racial, são dois temas que são importantes”.
Quando questionadas sobre a importância para as estudantes sobre essas questões, as entrevistadas responderam
que:
Entrevistada A Claro que sim! Tinha que ter alguma política pública, um plano de governo que dissesse queridos, venham
pra cá que vocês também são aceitos. Porque a questão é de pele e machismo, esse é o principal problema, é a cor da tua
pele, e sempre acharem que mulher não sabe fazer cálculo. É a maneira da gente ser um agente transformador.
Entrevistada B Acredito que sim, porque uma coisa que eu cheguei à conclusão né, que claro, tem essa questão de tu te
agradar mais da área das exatas, mas eu vejo assim, que existe um estereótipo que a disciplina da física ou da matemática,
porque tem cálculo é mais difícil. E realmente, se tivesse mais referência, isso incentivaria sim, incentivaria bem mais, as
pessoas a despertar aquela vontade de Ah não, eu quero ser uma cientista também existe um cientista negro, existe
cientista mulher... então com certeza sim. E isso faz falta né, para as nossas crianças, pros nossos adolescentes. E até pra
nós enquanto adultos assim, porque, como eu disse, muitas pessoas não tiveram a oportunidade que eu tive de ter esse
esclarecimento né. Então, realmente, é importante, e a gente não ouve muito se discutir sobre isso né, se pensar nisso,
então.
De acordo com Chassot (2004) a desvalorização das contribuições femininas para a Ciência reforça que estas o
“congenitamente incapazes de aprender Matemática(Ibid. p. 22), e quando aprendem é por serem esforçadas, ao
contrário do que acontece com os meninos, que aprendem por serem inteligentes, condição esta que ainda prevalece,
conforme identificado na fala das participantes.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das narrativas destas estudantes, vemos a importância de implementar ações para diminuir as discriminações
de gênero e raciais no contexto da educação científica. Ao contarem suas histórias, podemos perceber que estas es-
tudantes tiveram de enfrentar diversos desafios ao longo de suas trajetórias, e, ainda dentro da graduação esse
distanciamento por questões raciais e de gênero.
O espaço escolar é um ambiente de integração e a educação deve ser inclusiva em todas as suas formas. Promover
atividades científicas que visam esse mesmo objetivo é fundamental para estabelecer uma relação das estudantes
com a ciência, longe de quaisquer estereótipos ou segregação. Para isso, também é essencial que essa modificação
ocorra também nos cursos de graduação, pois ao ingressarem no curso, estas estudantes devem continuar a sentir-se
parte desta construção.
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No âmbito da formação de professores/as, abordar as histórias e contribuições destas cientistas pode permitir a
aplicação desse conhecimento no contexto da Educação Básica. Divulgar as contribuições de mulheres cientistas, prin-
cipalmente mulheres negras cientistas, na construção da ciência, é dar visibilidade, reconhecimento e apresentar a
Física com diversidade, sem reforçar estereótipos, sem reproduzir práticas discriminatórias e sem promover exclusão
dessas estudantes.
Enquanto professores/as, devemos ser sensíveis a questões raciais e de gênero, estimulando o respeito à diversi-
dade e a autonomia dos/as nossos/as alunos/as para se sentirem seguros/as ao escolherem sua área profissional e se
sentirem parte desta. O modo como a história da Física permanece invisibilizando as mulheres, principalmente mu-
lheres negras, fomenta a persistência do racismo e do sexismo. É preciso fortalecer a identidade dessas mulheres,
empoderá-las para seguirem carreira, incentivando cada vez mais meninas. É um processo de reconstrução, de lançar
um novo olhar sobre estas cientistas, de proporcionar uma verdadeira representatividade, de começar a mostrar uma
ciência verdadeiramente diversa.
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