Intersecções entre gênero e raça
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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 36, n.
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II. GÊNERO E RAÇA: DISCUSSÕES URGENTES NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE MULHERES CIENTISTAS
A baixa participação de mulheres em carreiras científicas, especialmente na Física, fez com que as questões de gênero
se tornassem campo de investigação nos últimos anos. Por conseguinte, a desigualdade de gênero no Ensino de Ciên-
cias passou a se tornar uma preocupação para cientistas e educadores (Vidor et al., 2020, Blazquez e Flores, 2005,
Blazquez e Romero, 2011). Do mesmo modo que destacamos a falta de representatividade de mulheres na área da
Física, podemos cogitar quando tratamos de uma identidade mais específica: mulheres negras cientistas. As relações
étnico-raciais na área do ensino de Física são questões muito pouco exploradas até o momento, tendo um baixo vo-
lume de materiais a serem consultados acerca deste tema.
Apesar de antiquado, a concepção de que a Ciência é uma área de atuação masculina e branca ainda prevalece.
Esse pensamento se traduz, mesmo que de maneira não intencional, por meio de discursos, imagens e formas de
lidarmos com os/as estudantes. Essa organização social imposta, em especial no ambiente familiar e acadêmico, acaba
por desestimular jovens estudantes a seguir carreira na área científica, especialmente jovens negras (Rezende; Oster-
mann, 2007, Miller; Nolla; Eagly; Uttal, 2018, Reuben; Sapienza; Zingales, 2014, Subramaniam et al., 2016).
As concepções de gênero na ciência estão permeadas por imagens que trazem, de maneira geral, sempre um
homem, despenteado, antissocial, genial, de jaleco branco e em seu laboratório realizando grandes descobertas, que
são absolutas e não sujeitas a erro. Esta visão estereotipada da Ciência e do/a cientista é performada, por exemplo,
em desenhos de grande circulação entre as crianças (Siqueira, 2005). Outro ponto relevante é a representação étnica
dos cientistas nos desenhos animados, onde a maioria é retratada como homens brancos, o que perpetua preconcei-
tos e limita a percepção das crianças sobre quem pode seguir carreira científica (Tomazi et al., 2009).
As tecnologias digitais de comunicação estão presentes desde muito cedo, acompanhando as crianças ao longo de
seu desenvolvimento; na programação infantil, os desenhos animados mantém padrões, preservando estereótipos, e
contribuindo para visões distorcidas sobre os/as cientistas, reforçando a ideia de que esse é um trabalho solitário e
perpetuando preconceitos, reafirmando a concepção de que a mulher, especialmente a mulher negra, não faz ciência
(Tomazi et al., 2009.). Francisco (2006, p. 295), ressalta que “os meios de comunicação social parecem assumir um
papel de destaque na veiculação de diversas imagens estereotipadas sobre as características pessoais ou a atividade
profissional do cientista”.
A linguagem influencia diretamente a construção do conhecimento no ambiente escolar, e a maneira como nos
comunicamos molda os significados científicos durante as interações em sala de aula (Junior; Ostermann; Rezende,
2010, 2011); além disso, a criação marcada por direcionamentos distintos para meninos e meninas influencia suas
escolhas e interesses, acadêmicos e profissionais (Junior; Ostermann; Rezende, 2010). Os estereótipos de gênero en-
raizados historicamente na Ciência revelam um desequilíbrio na estrutura educacional e nas percepções sociais, o que
se reflete na preferência (ou não) por disciplinas científicas.
No âmbito escolar, vemos que os livros didáticos de Física são compostos, em sua maior parte, de imagens mas-
culinizadas, atribuindo às meninas apenas representações em contexto doméstico/familiar ou de cunho estético. Por
outro lado, os meninos têm representações de atividades de lazer ou científicas. Além de contribuir para o afasta-
mento das meninas da área científica, tais imagens reforçam os papéis impostos socialmente sobre os afazeres que
cabem a mulheres e homens (Rosa; Silva, 2015). Nesse sentido, o ambiente escolar está “social e institucionalmente
organizado para favorecer o sucesso masculino na Ciência” (Junior; Rezende; Ostermann, 2011, p. 122).
Outrossim, “a história da Ciência muitas vezes passa despercebida, ou é esquecida” especialmente no que diz res-
peito à mulher negra, que “os relatos dentro desse material parece ser algo inexistente” (Pereira; Elias, 2021, p. 494).
A ausência de representações de pessoas negras nesse contexto marginaliza identidades e perspectivas, o que reforça
a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e diversificada nos materiais educacionais (Rosa; Silva, 2015).
Até aqui, foi possível destacar que no ambiente de desenvolvimento das crianças e adolescentes, isto é, ambiente
familiar e escolar, bem como nas mídias sociais, é continuamente reforçado o pseudo papel do homem e da mulher
na sociedade, onde constantemente o estereótipo de gênero na Ciência é erroneamente reforçado, acarretando uma
“preferência” das meninas por carreiras nas áreas humanas e sociais, onde elas têm uma maior representação, con-
forme apontado por Junior, Rezende e Ostermann (2011). Contudo, ainda há meninas que optam pelas áreas científi-
cas, ingressando na graduação e, ao que parece serem grandes os obstáculos vencidos, passam a ser apenas o início.
Corroborando esta ideia de conformação com imposições sociais/culturais em relação à participação do gênero
feminino, vemos uma análise das construções de liderança em um debate entre alunos da graduação em Física e as
relações com as diferenças de gênero, constatando que, em um grupo de maioria masculina, meninos ocuparam a
posição de liderança, enquanto as meninas presentes buscaram encontrar diferentes maneiras de expor suas opini-
ões, sendo uma delas exercer uma participação ativa para expor suas opiniões ao longo do debate, e outra de vincular
“seu ponto de vista à autoridade da ciência”, buscando a visibilidade de sua opinião. De mesmo modo, os/as auto-
res/as repetiram sua análise em uma turma de maioria feminina, contudo, ainda foi constatado que a posição de
liderança foi mantida pelos meninos (Junior; Rezende; Ostermann, 2011).