Abordagens de Etnoastronomia
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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 35, n.
o
2 (2023) 2
Abstract
This work seeks to characterize ethnoastronomy themes in science textbooks distributed, in 2020, by the Brazilian's National Program
of Didactic Book (PNLD), taking as a focus the ninth year of Elementary School, the series in which astronomy obtains greater curricular
space. The research, of a qualitative nature, sought a theoretical and historical review of the object, as well as a new enunciation of its
rationality through a reconstructive hermeneutics, using content analysis resources to evaluate the frequency of citations to less valued
cultures. socially and approaches that value multiculturalism in the chosen corpus. As a result, it was found that eleven of the twelve
works analyzed made reference to the sky seen from the perception of non-dominant cultures. However, in most of these works, the
approach still presents a simplistic vision that does not reflect multiculturalism in teaching proposals. It is, therefore, essential that
these materials, which are mandatory for use and reach tens of millions of Brazilian students, value the contributions and perspectives
of different cultures, incorporating them into the teaching-learning processes.
Keywords: Cultural astronomy; Science teaching; Ethnoastronomy; Basic education; PNLD.
I. INTRODUÇÃO
A ciência moderna
em geral, e a física em particular, se constituiu como um processo de obtenção e validação de
conhecimentos que decorreu de seus meios sociais de produção. É, pois, perpassada pela historicidade e pelo devir.
A física clássica, por exemplo, surgida desde Galileu, estabelece como conhecimento físico válido aquele obtido por
experimentação e sujeito a matematização. Estabelece, assim, seus métodos possíveis, bem como seus contextos de
validação. Sua maneira de enunciação se vincula a uma noção particular de verdade (verdade como correspondência),
desenvolvida desde Aristóteles. Além desses condicionantes, a física se desenvolve em uma perspectiva particular
acerca do que devem ser espaço e tempo, haurida após séculos de debates que terminaram por representar o espaço
(p.e., newtoniano) como um vazio. Como nos diz Mircea Eliade (1992), este foi um processo de dessacralização
dessas
estruturas fundamentais do entendimento humano (Kant, 2000), processo que se concretizou na doutrina das quali-
dades primárias e secundárias (Burtt, 1991), como forma de “expurgar”, das considerações físicas, elementos de ca-
ráter subjetivo ou vivencial. Essa é, grosso modo, a metafísica da ciência moderna. Por exemplo, seu critério de
objetividade e, pois, verdade, assenta na exigência de repetitividade experimental. Isso significa que a fala científica
não ocorre de “lugar nenhum”, ou de um lugar de verdade abstrato e universal, mas de perspectivas culturais pré-
estabelecidas. É, por essa razão, importante, até mesmo para uma apreciação adequada do edifício da ciência, que
formas alternativas de construção do conhecimento e dos saberes possam ser consideradas e valorizadas a partir de
suas próprias historicidades.
Desde os primórdios da civilização, o olhar para o céu desperta o fascínio humano. A observação sistemática do
cosmos resultou em múltiplas interpretações relativamente às civilizações que as utilizaram para atender às suas ne-
cessidades cotidianas, tornando, assim, o céu um elemento cultural que singularmente reflete os povos – suas expli-
cações acerca dos fenômenos naturais, suas crenças e místicas e suas relações materiais com a natureza (Oliveira,
2020).
Com essas diversas maneiras de interpretação acerca do céu noturno, o termo "astronomia cultural" foi cunhado
como forma de se referir ao estudo das crenças, tradições e conhecimentos adquiridos pelas culturas ao longo da
história, assim como narrativas míticas, mitologias, lendas e outros relatos que permitem entender como as diferentes
sociedades interpretam e explicam os fenômenos cosmológicos (Araújo, Verdeaux e Cardoso, 2017).
Esta área do conhecimento também investiga como tais sociedades desenvolveram, ou ainda desenvolvem, tec-
nologias baseadas em seus conhecimentos astronômicos (Jafelice, 2015). De modo singular, estudar o céu sob vários
pontos de vista na sala de aula pode ajudar os estudantes a compreenderem as visões de mundo das civilizações e
conhecimentos culturais e científicos que eles oferecem. Isso promove o respeito pela diversidade ao não aderir a
uma visão etnocêntrica e monocultural – naturalizada pelos discursos dominantes – em relação à Astronomia.
De acordo com Jafelice (2002), a globalização impulsionada pela conectividade da internet deu visibilidade aos
povos marginalizados. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Neste texto, sempre que nos referirmos genericamente à “ciência” ou à “ciência moderna”, o fazemos em referência à tipificação da ciência
ocidental, que é o paradigma academicamente dominante, discussão que escapa ao escopo deste texto, mas que merece reflexão dos leitores.
Um exemplo interessante disso é a forma estereotipada com que os filmes de faroeste americano representam indígenas dançando em volta de
uma fogueira com a intenção de curar algum indivíduo. Vistos pelo viés da cientificidade moderna, com espaço e tempo dessacralizados, perde-se
a dimensão soteriológica daquilo que não é uma dança, mas um ritual de retorno ao tempo primordial dos antepassados (illud tempus), conside-
rado, na estrutura mitológica, como mais puro e livre de males. Desse modo, diferentemente da ministração de um medicamento, agora, para
livrar da doença o indivíduo que a tem aqui, trata-se de um ritual do tempo, pelo qual o indivíduo doente é levado ao tempo primordial que o
(re-) purifica e elimina, assim, a doença. Nessa perspectiva, tempo e espaço são, necessariamente, vivenciais.