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VOLUMEN 33, NÚMERO 3 | JULIO-DICIEMBRE 2021 | PP. 129-142
ISSN: 2250-6101
Definição de corrente elétrica como movimento ordenado de cargas elétricas: análise pragmático-cognitiva
Definition of electric current as ordered movement of electric charges: pragmatic-cognitive analysis
Lizandra Botton Marion Morini1*, Fábio José Rauen2
1Instituto Federal de Santa Catarina, Campus de Tubarão, Rua Deputado Olices Pedro de Caldas, 480, Bairro Dehon, CEP 88704-296, Tubarão, Santa Catarina. Brasil.
2Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, Universidade do Sul de Santa Catarina, Av. José Acácio Moreira, 787, Bairro Dehon, CEP 88704-900, Tubarão, Santa Catarina. Brasil
Recibido el 2 de diciembre de 2020 | Aceptado el 9 de diciembre 2021
Neste ensaio, aplicando a arquitetura descritivo-explanatória da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995), analisamos a pertinência da definição de corrente elétrica enquanto “movimento ordenado de cargas elétricas” apresentada no livro Física: Ciência e Tecnologia de Torres, Ferraro, Soares e Penteado (2016). Argumentamos que o definiens da definição, restringindo a compreensão do fenômeno ao seu efeito, sugere uma interpretação de corrente elétrica como fluxo de fluidos. Essa definição é contraditória com o conceito de corrente elétrica como fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva dos portadores de cargas elétricas internas livres causado por um campo elétrico gerado pela distribuição de cargas elétricas superficiais em um circuito fechado submetido a uma fonte de força eletromotriz.
In this essay, applying Sperber and Wilson’s (1986, 1995) relevance theory descriptive-explanatory architecture, we analyze the perti-nence of the definition of electric current as an “ordered movement of electric charges” presented in Torres, Ferraro, Soares e Penteado (2016) textbook Física: Ciência e Tecnologia (Physics: Science and Technology). We claim the definiens of the definition, restricting the understanding of the phenomenon to its effect, suggests an interpretation of electric current as fluid flow. This definition is contradic-tory to the concept of electric current as an emerging phenomenon of the ordered drift movement of the carriers of free internal electric charges caused by an electric field generated by the distribution of superficial electric charges in a closed circuit submitted to an electromotive force source.
A compreensão adequada de conceitos em eletricidade é essencial para os estudantes descreverem e explicarem fenômenos eletrodinâmicos entre os quais o conceito de corrente elétrica e o comportamento de circuitos elétricos. Conforme a Base Nacional Comum Curricular brasileira (Brasil, 2018), no domínio da unidade temática matéria e
www.revistas.unc.edu.ar/index.php/revistaEF
energia1 da área ciências da natureza, fenômenos, conceitos e definições que envolvem eletricidade emergem em diferentes etapas do Ensino Fundamental2 – cabendo ao 8º ano trabalhar especificamente o conceito de corrente elétrica3 – e devem ser conceitualmente aprofundados e aplicados em diferentes situações no Ensino Médio4.
Para atingir as demandas previstas pela Base Nacional Comum Curricular, é imprescindível lidar com definições apropriadas. Neste estudo, considerando a relevância do livro didático como instrumento de ensino no Brasil e a capilari-dade como a obra Física: Ciência e Tecnologia é distribuída nas escolas brasileiras, estamos particularmente interessados em analisar a pertinência da definição de corrente elétrica enquanto “movimento ordenado de cargas elétricas” de Torres, Ferraro, Soares e Penteado (2016, p. 46), a partir da arquitetura descritivo-explanatória da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995). Nosso argumento é o de que itens e sequências lexicais da definição apresentam reminiscências da noção de corrente elétrica como fluxo de fluidos. Essa noção é contraditória com conceitos mais modernos de corrente elétrica como fenômeno emergente do movimento ordenado de portadores de cargas elétricas internas livres, que é causado por um campo elétrico gerado, segundo Härtel (2012, p. 1019), pela distribuição de cargas elétricas superficiais em dado circuito fechado submetido a uma fonte de força eletromotriz provedora de uma diferença de potencial.
Para dar conta da tarefa, discutiremos o próprio conceito de definição na próxima seção, faremos um breve relato sobre a evolução histórica do conceito de corrente elétrica na terceira seção, analisaremos a definição de Torres et al. (2016) na quarta seção e discutiremos aspectos decorrentes da análise para o ensino de eletricidade na última seção.
Conforme Rauen (2015, p. 56), entende-se por definição uma “proposição que visa explicar com exatidão a extensão e a compreensão de um conceito”. Com o termo ‘proposição’, o autor destaca que a expressão de uma definição consiste em uma declaração logicamente bem-formada, prevalentemente afirmativa, para a qual é possível atribuir valor de verdade. Trata-se, portanto, de uma declaração verdadeira sobre determinado conceito.
Com o termo ‘conceito’, Rauen (2015, p. 76) destaca que os objetos a serem explicados devem ser concebidos como representações mentais de “características ou atributos permanentes, imutáveis e comuns de objetos ou seres de mesma espécie”; ou, conforme Lakatos e Marconi (2003, p. 225), como “termos simbólicos que sintetizam as coisas e os fenômenos perceptíveis na natureza, no mundo psíquico do homem ou na sociedade, de forma direta ou indireta”. Uma definição precisa lidar com duas propriedades essenciais daquilo que se define: a extensão e a compreensão.
Segundo Rauen (2015, p. 76), “a compreensão é o conjunto de propriedades atribuídas ao conceito, e a extensão é o número de indivíduos abrangidos por estas características”. Essas duas propriedades são inversamente proporcionais. Uma definição que atribui mais propriedades a um determinado conceito faz com que esse conceito abrigue menos indivíduos, e uma definição que atribui menos propriedades a um determinado conceito faz com que esse conceito abrigue mais indivíduos, ou seja, conceitos mais compreensivos são menos extensos e vice-versa.
Desse modo, uma definição precisa explicar com exatidão a extensão e a compreensão de um conceito. Conforme Lakatos e Marconi (2003, p. 46), “explicar é apresentar o sentido de um tema, é analisar e compreender, procurando suprimir o ambíguo ou o obscuro” a fim de esclarecê-lo, simplificá-lo ou descomplicá-lo. Para Gerhardt e Silveira (2009,
p. 26), definição “é a manifestação e a apreensão dos elementos contidos no conceito, tratando de decidir em torno do que se dúvida ou do que é ambivalente”. Assim, de modo justo e preciso, uma definição deve expressar a essência do que se define, de modo a “ser aplicada a tudo aquilo a que se refere o termo e a nada mais” (Rauen, 2015, p. 58).
Do ponto de vista da linguagem, usamos prevalentemente em definições sentenças copulativas do tipo 𝑥 é 𝑦, de tal modo que, segundo Rauen (2015, p. 57), 𝑥 corresponde ao termo a ser definido ou definiendum, 𝑦 corresponde a um conjunto de palavras com as quais se define esse termo ou definiens, e o verbo de cópula expressa uma
A unidade temática matéria e energia contempla: “o estudo de materiais e suas transformações, fontes e tipos de energia utilizados na vida em geral, na perspectiva de construir conhecimento sobre a natureza da matéria e os diferentes usos da energia” (Brasil, 2018, p. 325).
Por exemplo, no 2º ano do ensino fundamental, trabalha-se o tema no contexto dos acidentes domésticos (2018, p. 331); no 5º ano, os estudantes
devem explorar propriedades físicas dos materiais como a condutibilidade elétrica e, para isso, compreender como os corpos eletrizados se comportam e mesmo como ocorre a geração de energia elétrica (2018, p. 337).
Muitas das habilidades a serem desenvolvida no 8º ano estão relacionadas a conceitos de eletricidade, como identificar e classificar diferentes fontes e tipos de energia utilizados em residências, comunidades ou cidades; construir circuitos elétricos; classificar equipamentos elétricos residenciais; calcular o consumo de eletrodomésticos e tempo médio de uso; propor ações coletivas para otimizar o uso de energia elétrica; e discutir e avaliar usinas de geração de energia elétrica (Brasil, 2018, p. 349).
Textualmente: “no Ensino Médio, espera-se uma diversificação de situações-problema, incluindo aquelas que permitam aos jovens a aplicação de modelos com maior nível de abstração e de propostas de intervenção em contextos mais amplos e complexos” (Brasil, 2018, p. 538).
equivalência, de tal sorte que o definiendum é equivalente ao definiens: 𝑥 = 𝑦5, 6.
No livro Física: Ciência e Tecnologia, Torres et al. (2016, p. 46) definem corrente elétrica como “movimento ordenado de cargas elétricas”. Textualmente: “Corrente elétrica é o movimento ordenado de cargas elétricas”.
Nessa formulação linguística, a sequência lexical ‘corrente elétrica’ corresponde ao conceito/termo a ser definido ou definiendum, o item lexical ‘é’ corresponde ao verbo de cópula ou de ligação, e ‘movimento ordenado de cargas elétricas’ corresponde à expressão definidora ou definiens.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | é | o movimento ordenado de cargas elétricas |
Além disso, seguindo Rauen (2015, p. 57), estamos lidando com uma definição descritiva, denotativa, referencial ou ostensiva, uma vez que a definição de corrente elétrica como “movimento ordenado de cargas elétricas” de Torres et al. (2016, p. 46) diz respeito ou remete a um ser, coisa, fato ou fenômeno representado pelos signos7; e, sobretudo, com uma definição categórica, uma vez que ela “visa estabelecer limites excludentes para enquadrar a extensão e a compreensão de um ser definido, de modo que este ser definido não pode ser e não ser enquadrado na dita definição”8. Segue desses atributos lógico-epistemológicos que uma definição descritiva e categórica de corrente elétrica deve possuir concordância sintática e semântica9. Ela precisa atender aos princípios aristotélicos de identidade, de não contradição e de terceiro excluído10 e, ao mesmo tempo, denotar os objetos a que se refere.
Todavia, como veremos adiante, definições são expressões simbólicas compostas de unidades e sequências lexicais que contingencialmente subdeterminam seus respectivos significados (Carston, 2002). Consequentemente, por mais explícitas que sejam as propriedades que delimitam a compreensão do definiendum “corrente elétrica”, ele próprio expresso na sequência lexical ‘corrente elétrica’, a definição de corrente elétrica consiste numa aproximação permitida pelos pareamentos entre as unidades ou sequências lexicais do definiens ‘movimento ordenado de cargas elétri-cas’ com seus respectivos significados, pareamentos esses contingencialmente sujeitos a equívocos.
Neste ensaio, argumentamos que uma das fontes principais de equívocos de definição de corrente elétrica decorre da própria emergência histórica dos estudos dos fenômenos elétricos, notadamente a persistência como a noção de fluxo elétrico resiste e se sobrepõe à noção de campo elétrico.
A investigação de fenômenos elétricos no Ocidente surge na Grécia antiga. Relatos sobre o comportamento do âm-bar11 e das pedras de Héracles (ímãs naturais) aparecem, por exemplo, nos escritos de Platão, embora o pioneirismo possa ser atribuído a Tales de Mileto12. É certo que Platão fala sobre o efeito do âmbar em Timeu.
Conforme Rauen (2015, p. 57), o definiens tende a conter gênero ou genus e diferenças ou differentiae. O gênero se refere à classe a que pertence o termo e as diferenças se referem a “tudo aquilo que distingue a coisa representada pelo termo de outras coisas incluídas na classe”.
Além disso, conforme Rauen (2015, p. 57-58) resenha os trabalhos de Garcia (2006, p. 325-326), Fontes (2001) e Lakatos e Marconi (1986, p. 100-102), em uma definição: (a) “o termo definido deve pertencer ao gênero da definição”; (b) “a definição deve expressar a essência do que se define,
de modo a convir integralmente ao que se define e somente ao que se define”; (c) “a definição deve ser convertível para não ser incompleta ou insatisfatória”; (d) “a definição não deve ser circular, ou seja, não deve incluir o termo definido na própria definição”; (e) “o termo (sujeito) e o gênero (predicado) deve pertencer à mesma classe de palavras”; (f) “a definição deve ser suficientemente breve e estar contida num só período ou proposição predicativa afirmativa”; e (g) “a definição deve ser expressa em linguagem suficientemente simples”.
Em oposição à uma definição “estipulativa, lexical, nominal ou metalinguística” que “faz uma remissão a outro signo do sistema linguístico”
(Rauen, 2015, p. 57, itálico no original).
Em oposição a uma definição prototípica, que “visa estabelecer um conjunto de características contra as quais determinados seres são represen-
tantes típicos e outros são qualificados nas margens da definição, de modo que pode haver sombras na classificação” (Rauen, 2015, p. 57).
De acordo com Rauen (2015, p. 48), cabe à lógica estudar a correlação formal entre o pensamento avaliado ou concordância do pensamento com ele mesmo, concordância sintática, e cabe à epistemologia estudar a verdade do pensamento, avaliando a concordância do pensamento com os objetos, concordância semântica.
Em outras palavras, a definição deve ser capaz de estabelecer limites com os quais é possível dizer que o conceito é igual a si mesmo (𝑃 = 𝑃), que o conceito não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo (𝑃𝑃) e que não há um meio termo entre a afirmação e a negação (𝑃𝑃). 11 Sabia-se que o âmbar – “uma resina fóssil, proveniente de uma espécie extinta de pinheiro do período terciário, sólida, amarelo-pálida ou acas-
tanhada, transparente ou opaca” (Assis, 2011, p. 8) – atraía debulhos com cascas de sementes, grãos triturados ou pequenos objetos quando atritado com fibras naturais. Decorre do grego antigo ηλεκτρον os termos ‘eletricidade’, ‘elétrico’ e, mais adiante, ‘elétrons’ (Assis, 2011, p. 17)
Segundo Diógenes Laércio em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, “Aristóteles e Hípias afirmam que Tales atribui uma alma ou vida mesmo aos corpos inanimados, argumentando a partir do ímã e do âmbar” (Laertius, 1991, p. 25). Todavia, Aristóteles em Sobre a alma diz que Tales atribuiu alma apenas ao ímã (ASSIS, 2011, p. 11).
O mesmo [fenômeno] se passa com todos os fluxos de água, a queda de raios, as maravilhas da atração do âmbar e da pedra de Héracles. A atração não intervém de qualquer modo em nenhum de todos estes objetos, mas será evidente para quem os investigar adequadamente que é por causa destes acidentes (em virtude de não existir o vazio e de eles se empurrarem em círculos entre si, por vezes separando-se e por vezes combinando-se, trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes é próprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenómenos admiráveis. (Platão, 2011, p. 189, colchetes nossos).
Titus Carus (séc. I a. C.), apesar de não tratar do âmbar, propõe que fenômenos magnéticos surgem de alguma emanação ou fluxo dos corpos materiais:
Primeiro, deve haver de todos os corpos que nós vemos um perpétuo fluxo, uma emissão, um emanar de elementos que nos impressionam os olhos e os movem à visão. Perpetuamente fluem os cheiros de certos corpos, como o frio sai dos rios, o calor do Sol, e das ondas do mar, a vaga que vai roendo os diques do litoral. (Titus Carus apud Tonidandel, Araújo e Boaventura 2018, p. 2).
Em 1600, William Gilbert observou que, além do âmbar, minerais, vidros e peles de animais também apresentavam a propriedade de atrair corpos leves. Conforme resenha Tonidandel, Araújo e Boaventura (2018, p. 3), ele introduziu o termo ‘elétrico’ e as distinções entre corpos elétricos e não elétricos e fenômenos elétricos e magnéticos13. Embora não tivesse explicado como o fenômeno elétrico funcionava, pois considerava ser uma virtude natural de certos corpos, Gilbert utilizou a hipótese de um eflúvio elétrico14, pois “sem atrito, poucos corpos emitem sua verdadeira emanação e eflúvio elétrico natural” (p. 30, itálico no original).
Segundo Forrester (2016, p. 2), apesar de Gilbert realizar seus experimentos com muito cuidado, foi o alemão Otto von Guericke, ao replicá-los, quem observou a repulsão entre corpos eletrizados. Guericke criou a primeira máquina elétrica, constituída por uma bola coberta de enxofre que, ao rotacionar, roçava em um tecido e atraía vários materiais, liberando faíscas algumas vezes.
No século XVIII, o estudo de fenômenos elétricos dominava as discussões entre filósofos naturais como Stephen Gray (1666-1736), Charles du Fay (1698-1739), Jean-Antoine Nollet (1700-1770) e Benjamin Franklin (1706-1790).
Stephen Gray definiu eletricidade como uma virtude elétrica que pode ou não ser conduzida através de eflúvios –partículas que exalam dos corpos terrestres em forma de vapores invisíveis15. Segundo Whittaker (apud Boss, Assis e Caluzi, 2012, p. 38), depois do trabalho de Gray, o eflúvio passou a ser chamado de fluido elétrico, sendo conhecido “como uma das substâncias das quais o mundo é constituído”.
Charles du Fay realizou experimentos sobre eletrostática e enunciou dois princípios gerais que, segundo ele, re-giam os fenômenos elétricos16. O primeiro princípio geral dizia que “corpos elétricos atraem todos aqueles que não estão desta forma, e os repelem assim que eles se tornam elétricos, pela proximidade ou pelo contato com o corpo elétrico” e o segundo dizia que há duas eletricidades distintas: vítrea17 e resinosa18 (du Fay, 1735, p. 262, apud Boss, Assis e Caluzi, 2007, p. 642), lançando a ideia de fluidos vítreos e resinosos. A eletricidade contida em um corpo era algo que esse corpo possuía em excesso, uma hipótese com grande aceitação durante todo o século XVIII.
Jean-Antoine Nollet, por sua vez, propõe a ideia de fluidos afluentes e efluentes.
Segundo Nollet, quando um corpo elétrico é excitado por fricção, parte deste fluido escapa através de seus poros, causando uma corrente efluente, sendo que essa perda é compensada por uma corrente afluente do mesmo fluido vindo de fora [..]. As correntes efluente e afluente diferiam não apenas em direção, mas também em velocidade e distribuição espacial. Ele explicou a atração e repulsão dos corpos leves nas vizinhanças do corpo eletrizado supondo que eles eram capturados por uma das duas correntes opostas de fluido elétrico. (Silva e Pimentel, 2008, p. 144, grifos nossos).
A teoria de dois fluidos, segundo a qual um corpo é neutro quando contém a mesma quantidade deles, e a eletrização acontece quando o corpo os tem em excesso ou falta, funcionou bem para explicar as experiências de então.
Conforme Tonidandel, “sobre esta substância [o âmbar] precisam ser ditas algumas coisas, para mostrar a natureza [origem] da ligação dos corpos a ela, e para mostrar a grande diferença entre esta [ação] e as ações magnéticas” (apud Assis, 2011, p. 27, colchetes no original).
“Termo utilizado para expressar pequenas partículas que exalam da maioria, senão de todos, dos corpos terrestres, em forma de vapores invisí-
veis” (effluvium1798 apud Boss, Assis e Caluzi, 2012, p. 105).
Em cartas, Gray explica os fenômenos baseados nos eflúvios elétricos emitidos, refletidos e recebidos. “No ano de 1729, comuniquei ao Dr. Desaguliers e a alguns outros senhores uma descoberta que havia feito recentemente, mostrando que a virtude elétrica de um tubo de vidro pode ser transmitida para outros corpos, dando a eles a mesma propriedade de atração e repulsão de corpos leves, tal como o tubo faz quando excitado por atrito. Essa virtude pode ser levada para corpos que estão a muitos pés de distância do tubo” (GRAY apud Boss, Assis e Caluzi, 2012, p. 34).
A atração neste princípio só ocorreria entre um corpo eletrizado e outro não eletrizado. 17 Termo em latim para vidro (vidro, pedra cristal, pedras preciosas, pelo de animais, lã etc.). 18 Própria da seda ou do âmbar (resina copal, goma laca, linha, papel etc.).
Posto que a mecânica newtoniana estava no auge, nada mais razoável que a compreensão da eletricidade estivesse pautada em modelos de mecânica de fluidos19.
Ainda no século XVIII, Benjamin Franklin propõe uma explicação diferente. Ao atritar barras de vidro com seda, Franklin sugere que o vidro recebia fluidos ficando com carga eletricamente positiva, enquanto a seda os perdia ficando com carga eletricamente negativa20, 21. Com isso, ele desenvolve o conceito de um único fluido elétrico22.
A teoria de Franklin baseava-se na ideia de que os corpos seriam formados pela matéria comum e também por um único tipo de matéria elétrica – o “fogo elétrico” – que teria o poder de atrair a matéria ordinária e repelir suas próprias partículas. Franklin explicou que a eletrização de um corpo se daria pelo acúmulo de uma quantidade deste fluido elétrico no corpo às custas da perda da mesma quantidade de fluido elétrico por um outro corpo. (Whittaker apud Silva e Pimentel, 2008, p. 146, grifo no original).
Se a eletricidade era uma espécie de fluido, seria possível armazená-la. Em meados do século XVIII, Pieter van Musschenbroek, em Leyden (Holanda), inventa a garrafa de Leyden23, a rigor um capacitor.
Em paralelo, na virada do século XIX, surgiram controvérsias sobre a natureza do fluido elétrico em animais, levando à aplicação da eletricidade na medicina24. Nesse período, destacam-se Luigi Galvani (1737-1798) e Alessandro Volta (1745-1827).
Segundo Jardim e Guerra (2018, p. 2):
Galvani, investigando contrações musculares em rãs que eram postas em contato com metais, interpretou o fenômeno como sendo causado por um fluido invisível, chamado de “eletricidade animal”. Por outro lado, Volta creditou os fenômenos observáveis à eletricidade ordinária, que seria produzida pelo contato entre diferentes metais, o princípio básico da pilha de Volta.
No início da década de 1790, após replicar os estudos de Galvani, Volta abandonou experiências com animais e passou a testar diferentes combinações de empilhamentos e conexões de placas condutoras metálicas e não metáli-cas25 até encontrar uma combinação ótima de placas de prata e zinco dispostas em série.
Outro arranjo eficiente foi baseado em copos de água com sal intercalados por condutores elétricos. Uma reação química de decomposição chamada eletrólise26 acontecia quando dois metais diferentes ficavam em contato com uma solução salgada, viabilizando gerar e estabelecer pela primeira vez em um circuito o que chamamos hoje de corrente elétrica27.
A invenção da pilha de Volta levou ao desenvolvimento de teorias sobre circuitos elétricos28. Em 1820, Ampère introduz os termos eletrostática e eletrodinâmica para caracterizar fenômenos gerados por cargas em repouso e em movimento. Em 1825, Georg Ohm realizou experimentos com baterias voltaicas conectadas a diferentes fios metáli-cos29. Gustav Kirchhoff, por sua vez, realizou experiências com redes elétricas entre 1845 e 184730.
Na segunda metade do século XIX, a escola inglesa caracterizou-se por um modelo mecânico de eletromagnetismo derivado das propriedades dinâmicas do éter, e muitos dos cientistas buscaram explicar correntes elétricas a partir desse suposto fluido. James Maxwell (1831-1879) e Michael Faraday (1791-1867), lidando com o problema da
Conforme Whittaker, Augustin Coulomb (1736-1806) era favorável à teoria de dois fluidos (apud Silva e Pimentel, 2008, p. 58).
Franklin cunhou os termos eletricidade positiva e negativa, respectivamente, para excesso e deficiência de fluido elétrico. Os termos se aplicam hoje para excessos de prótons e elétrons, respectivamente.
Quando o corpo recebe fluido, ele se acumularia na superfície, formando o que Franklin chamou de atmosfera elétrica. Franklin utilizou uma
analogia com esponjas encharcadas para explicar a interação entre matéria comum e elétrica. “Assim como a água transbordava de uma esponja já cheia, a matéria elétrica excedente ‘transbordava’ ao redor do corpo eletrizado” (Moura, 2018, p. 30).
Segundo Morais (2014, p. 4), “a teoria dos dois fluidos e a teoria de um fluido dividiu o pensamento dos físicos. Olhando em retrospecto, a
natureza da eletricidade foi um problema que só foi resolvido com a descoberta do elétron”.
A garrafa de Leyden, no início do século XIX, era o único meio armazenar e liberar fluxo elétrico ou, como chamamos hoje, capaz de realizar uma descarga elétrica. Conforme Jardim e Guerra (2018, p. 3) em nota de rodapé, trata-se de “um recipiente isolante que possui a superfície interna e externa revestidas por material condutor elétrico que, na época da sua construção, era considerada capaz de armazenar o fluido elétrico”.
Para mais informações, ler Jardim e Guerra (2018).
Daí a origem da palavra ‘pilha’.
Jardim e Guerra (2018, p. 12) define por eletrólise fenômenos de análise ou de decomposição química promovidos por uma corrente elétrica. 27 No sentido de transporte de eletricidade. Máquinas eletrostáticas, garrafas de Leyden e pilhas de Volta foram essenciais para desenvolver a noção de corrente elétrica como fluxo que flui do gerador para os componentes.
Wollaston, a partir de 1803, conseguiu isolar por eletrólise o paládio e o rádio, entre outros elementos químicos. Ele foi o primeiro cientista a observar a produção de corrente elétrica em meios condutores utilizando as baterias eletroquímicas (Ornellas, 2006, p. 29).
O objetivo era o de verificar a quantidade de eletricidade que passava na seção reta de cada condutor em dado tempo de observação – o que ele chamou de corrente elétrica (Ornellas, 2006, p. 29).
Conjunto de malhas planas e mesmo tridimensionais seriadas e em paralelos. Kirchhoff usou a lei de conservação da carga e da conservação da energia para elaborar o que chamou de lei das malhas e lei dos nós. Ele “verificou que em um nó a quantidade de corrente que entra pelos vários
ramos do circuito é igual à quantidade que sai do nó pelos outros ramos associados” (Ornellas, 2006, p. 29).
natureza da condução da corrente elétrica, desenvolveram uma teoria do magnetismo e da eletricidade a partir das propriedades de preenchimento do espaço de troca do éter31.
Nas palavras de Whittaker (1951, p. 98-99): [A eletrificação de um corpo] acontece, quando o éter contido em seus poros se torna mais ou menos elástico do que o que reside nos corpos adjacentes. Isso acontece, quando uma maior quantidade de éter é introduzida nos poros de um corpo ou quando parte do éter que ele contém é forçada para fora. Naquele caso, o éter se torna mais comprimido e, consequentemente, mais elástico; no outro caso, ele se torna rarefeito e perde sua elasti-cidade32 (Morais, 2014, p. 13, colchetes no original).
Veja-se que, mesmo não conhecendo elétrons e íons, já se pensava em partículas gerando uma corrente elétrica ao viajar pelo éter, ou seja, ela decorreria do movimento de partículas internas transitando dentro do corpo. Para Maxwell (1861-1862, p. 471):
Uma corrente elétrica é representada pela transferência de partículas móveis interpostas entre vórtices vizinhos [..]. Supõe-se que as partículas rolem sem deslizar entre os vórtices, [..] e não se tocam, de modo que enquanto permanecerem dentro de uma molécula, não há perda de energia por resistência. Entretanto, quando há uma transferência geral de partículas em uma direção, elas devem passar de uma molécula para outra e, ao fazê-lo, experimentam resistência, de modo a perder energia e gerar calor. (Morais, 2014, p. 21, colchetes no original).
Em 1883, Faraday investigou efeitos eletrolíticos da corrente elétrica em soluções. Para Caruso e Oguri (2006, p. 225-227), Faraday concluiu que a quantidade de massa de substância depositada em cada um dos eletrodos em intervalos de tempo em que a corrente elétrica está circulando é proporcional à carga que percorre o circuito. Esse fator de proporcionalidade 𝑓, 9, 65 × 104𝐶, é denominado de constante de Faraday e representa a carga trocada no eletrodo por um mol da substância de valência unitária.
Com esses estudos, já havia evidências de que a corrente elétrica se estabelecia nas soluções, ou seja, elas perten-ciam ao próprio fluido e não provinham de uma fonte externa. Conforme Faraday, “se aceitarmos a hipótese de que as substâncias elementares são compostas de átomos, não podemos deixar de concluir que também a eletricidade, tanto positiva quanto negativa, se subdivide em porções elementares que se comportam como átomos de eletricidade” (Faraday apud Caruso e Oguri, 2006, p. 226).
Maxwell já havia reconhecido a importância da eletrólise quando afirmou que de “todos os fenômenos elétricos, a eletrólise parece ser a que melhor nos oferece um maior discernimento sobre a verdadeira natureza da corrente elétrica, porque encontramos correntes de matéria ordinária e correntes de eletricidade formando partes essenciais do mesmo fenômeno” (apud Caruso e Oguri, 2006, p. 227). O pesquisador descreve da seguinte maneira o comportamento de um condutor quando uma corrente se estabelece:
Um corpo condutor pode ser comparado a uma membrana porosa que opõe maior ou menor resistência à passagem de um fluido, enquanto um dielétrico é como uma membrana elástica que pode ser impermeável ao fluido, mas transmite a pressão do fluido em um lado ao outro. Quando age em um condutor, a força motriz produz uma corrente que, ao encontrar resistência, ocasiona uma transformação intermitente de energia elétrica em calor, a qual é incapaz de ser armazenada, de novo, como energia elétrica por reversão do processo. (Maxwell, 1861-1862, p. 490-191 apud Morais, 2014, p. 28).
Entre o final do século XIX e início do século XX, abandona-se a concepção de corrente elétrica como o fluxo de um fluido. Conforme Morais (2014, p. 44), a transição da ideia de fluido de eletricidade para a de elétron e, posteriormente, para a de íons carregados, envolveu reflexão teórica sobre o significado de corrente de condução e trabalhos experimentais sobre a condução de eletricidade em líquidos, gases e sólidos.
A existência dos elétrons é evidenciada em tubos de raios catódicos33.
Descargas elétricas em tubos de vidro contendo um gás a baixa pressão eram estudadas desde 1709. Cientistas, na época, descobriram que, quanto mais baixa fosse a pressão no interior do tubo, menos o gás brilhava e, ainda assim, uma corrente elétrica fluía, sendo possível observar uma mancha brilhante que se formava do lado oposto do catodo – eletrodo negativo. (Morais, 2014, p. 62).
Conforme Morais (2014, p. 32), os trabalhos de Maxwell influenciaram uma geração que incluiu George Francis Fitzgerald, Joseph Larmor, Oliver Lodge, Oliver Heaviside, Joseph John Thomson. Fitzgerald e Lodge desenvolveram modelos mecânicos para o éter. Uma hipótese era a de que o éter se comportaria como um sólido elástico capaz de resistir a tentativas de distorcer sua forma, e não como um fluido que não oferece tal resistência. Ele se comportaria como um sólido elástico, no caso de vibrações rápidas como as da luz, mas como um fluido no caso do movimento progressivo e bem mais lento dos planetas (Morais, 2014, p. 11-12).
Em ambos os casos, o éter no corpo não está mais em equilíbrio com aquele que é externo. Os esforços por parte do éter para recuperar seu equilíbrio produzem todos os fenômenos da eletricidade.
Os raios catódicos são elétrons que são arrancados do catodo e atraídos para o anodo por causa da diferença de potencial existente entre eles. O tubo é onde os raios se estabelecem e formam vácuo.
A experiência com tubos de raios catódicos de Joseph John Thomson permitiu concluir irrefutavelmente a existência dos elétrons, pois foi ele quem observar, em vácuo ótimo, que forças elétricas e magnéticas produzem desvios em feixes colimados.
Com o desenvolvimento da mecânica quântica, pôde-se ter uma ideia de como ocorre a condutividade elétrica nos metais. Além disso, pôde-se compreender como a energia elétrica é transmitida nos circuitos elétricos através de um campo elétrico estabelecido no interior dos fios metálicos, forçando o movimento em determinado sentido de alguns dos elétrons pertencentes ao que poderíamos denominar de gás de elétrons livres de Fermi34 disponíveis para a condução nos metais35.
Esses elétrons livres já apresentam espontaneamente mobilidade para fluírem na estrutura da matéria metálica de um átomo para outro de forma caótica. Os estados de energia a que pertencem são denominados de níveis de energia de Fermi, e se encontram dentro da distribuição de elétrons por camadas e subcamadas eletrônicas, numa região que é denominada de banda de condução. Os níveis de energia de elétrons que não conduzem pertencem à banda de valência, onde os elétrons se encontram ligados a seus átomos, não dispondo de mobilidade espontânea na estrutura da matéria atômica. (Ornellas, 2006, p. 49).
Hoje, podemos conceber corrente elétrica como fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva de portadores de cargas elétricas (elétrons em metais, íons em soluções iônicas, elétrons e íons em gases ionizados) contidas no condutor. Conforme Härtel (2012, p. 1019), uma corrente elétrica ocorre como consequência de um campo gerado por uma distribuição de carga elétrica superficial nos condutores. Para o autor, a existência desse campo elétrico está associada a uma diferença de potencial (𝑑𝑑𝑝)entre pelo menos dois pontos ao longo dos condutores. Em outras palavras, “a corrente elétrica se estabelece em um condutor quando nele há um campo elétrico e tem como elemento básico o portador da carga elétrica sobre o qual esse atua” (Gaspar, 2013, p. 91). Pensando nos condutores metálicos, os portadores de cargas elétricas são elétrons livres em movimento caótico com velocidade média muito alta, 106𝑚/𝑠, e velocidade de deriva muito lenta, geralmente 10−4𝑚/𝑠 (Gaspar, 2013, p. 91). O campo elétrico, portanto, forma-se no interior do fio com uma velocidade que se aproximam à da luz, e os elétrons começam a se mover ao longo do fio praticamente ao mesmo tempo. Em síntese, o que define a velocidade com a qual se estabelece a corrente elétrica não é a rapidez do movimento individual dos portadores (elétrons nos metais), pois esses se movem com velocidade de deriva pequena, mas a rapidez enorme com a qual o campo elétrico que se estabelece no condutor. Segue disso que uma definição mais apropriada de corrente elétrica deveria considerá-la como um fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva dos portadores de cargas elétricas internas livres causado por um campo elétrico gerado pela distribuição de cargas elétricas superficiais em um circuito fechado submetido a uma fonte de força eletromotriz. Segundo Härtel (2012, p. 1022) essa fonte é que fornece as cargas que vão se distribuir sobre a superfície dos condutores do circuito fechado até se obter um equilíbrio eletrostático, ou seja, um equilíbrio entre as forças de tensão e as forças de Coulomb. Essas cargas superficiais distribuídas vão gerar o campo elétrico no interior do condutor e a diferença de potencial elétrico funcionalmente relacionada a esse campo entre pelo menos dois pontos do circuito elétrico.
Conhecido como o conceito de eletricidade evoluiu progressivamente, estamos em condições de analisar a definição de Torres et al. (2016, p. 46), aplicando a arquitetura descritivo-explanatória da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995).
A teoria da relevância é uma abordagem pragmático-cognitiva desenvolvida por Sperber e Wilson (1986, 1995) no campo dos estudos da linguagem para lidar com a interpretação de enunciados enquanto sentenças efetivamente usadas numa situação qualquer. A teoria busca descrever e explicar como, dentre as várias interpretações possíveis compatíveis com o significado de uma determinada sentença, o intérprete escolhe como significado do falante36 uma única interpretação ou interpretações semelhantes próximas.
Embora enunciados possam gerar inúmeras interpretações compatíveis com o significado da sentença, nem todas são igualmente acessíveis. Conforme a teoria, os ouvintes estão equipados com um critério on-line suficientemente
O modelo mais simples para os elétrons livres de um metal é considerá-los como um gás de partículas não interagentes confinados em uma caixa. Os estados quânticos de uma partícula são estados de partícula livre.
Nos metais, os elétrons de valência se desligam dos átomos e adquirem mobilidade para percorrer pelo sólido e, por isso, são denominados elétrons de condução.
Por significado da sentença define-se o significado independente de contexto atribuído por uma gramática; por significado do falante define-se o que o falante abertamente pretende transmitir de modo explícito ou implícito ao produzir um enunciado em uma ocasião (Wilson, 2004).
poderoso para avaliar interpretações e eleger uma hipótese interpretativa: o de consistência com a presunção de relevância ótima.
Por relevância, os autores definem uma propriedade dos estímulos direcionados ao processamento cognitivo. Um estímulo é relevante quando os efeitos cognitivos positivos de seu processamento superam os esforços despendidos para obtê-los. Conforme a teoria, estímulos podem gerar efeitos cognitivos positivos quando, cotejados com um contexto de suposições cognitivas prévias, fortalecem suposições prévias, contradizem e eliminam suposições prévias, ou geram implicações contextuais, a saber, conclusões inferenciais derivadas da combinação desses estímulos com o contexto de suposições cognitivas prévias. Desse conceito, seguem dois princípios: o princípio cognitivo de relevância segundo o qual a cognição humana tende a maximizar a relevância; e o princípio comunicativo de relevância segundo o qual enunciados37 geram a presunção de sua própria relevância ótima.
Um enunciado é presumido como otimamente relevante quando o intérprete o considera como pelo menos suficiente para merecer processamento e como o estímulo mais relevante que o falante se dispôs a ou foi capaz de elaborar. É a partir dessa presunção de relevância ótima que a teoria propõe um procedimento de compreensão orientado pela noção teórica de relevância segundo o qual o intérprete segue uma rota de esforços cognitivos mínimos na interpretação dos enunciados, enriquecendo-os até torná-los explícitos, sempre que necessário; gerando conclusões inferenciais, sempre que pertinente; e parando quando a interpretação obtida se revela consistente com sua expectativa de relevância ótima.
Neste ponto, vale destacar que enunciados são formas lógicas38 compostas por conceitos atômicos na forma de endereços ou nós na memória. Esses conceitos são acessados por entradas lógicas, enciclopédicas ou lexicais39. Entradas lógicas são informações computacionais. Trata-se de um conjunto finito de regras dedutivas aplicáveis às formas lógicas que integram. Entradas enciclopédicas são informações representacionais variáveis e incrementais que configuram a memória de longo termo do indivíduo. Entradas lexicais são as informações linguísticas (semióticas) de um conceito.
Em síntese, compreender enunciados consiste em parear entradas lexicais com entradas enciclopédicas em cada entrada lógica que integra uma determinada forma lógica. Na definição de Torres et al., isso implica parear as entradas dos itens e/ou sequências lexicais ‘corrente’, ‘corrente elétrica’, ‘é’, ‘movimento’, ‘movimento ordenado’, ‘cargas’, ‘cargas elétricas’ e ‘movimento ordenado de cargas elétricas’ com suas respectivas entradas enciclopédicas organizadas numa forma lógica contendo definiendum, cópula e definiens, tal que definiendum e definiens se equivalem.
Por exemplo, as entradas lexicais da sequência lexical ‘corrente elétrica’ que compõem o definiendum da definição de Torres et al. (2016, p. 46) precisam ser pareadas com entradas enciclopédicas CORRENTE e ELÉTRICA apropriadas para que a definição seja bem compreendida. Se um conceito pode ser concebido como uma rubrica na memória, o conceito CORRENTE ELÉTRICA, codificado pela sequência lexical ‘corrente elétrica’ na definição, denota uma espécie de fenômeno e ativa determinado conhecimento enciclopédico que pode ser adicionado ao contexto e usado na interpretação de enunciados sobre correntes elétricas.
O problema aqui é que a sequência lexical ‘corrente elétrica’, que codifica o conceito CORRENTE ELÉTRICA1, pode comunicar uma acepção CORRENTE ELÉTRICA2-n diferente. Estudantes processando essa sequência lexical podem estar operando com uma noção mais apropriada de corrente elétrica como algo que se estabelece no circuito – CORRENTE ELÉTRICA1 – que assumiremos como interpretação-alvo; outros podem operar com uma noção menos apropriada, embora justificada historicamente, de corrente elétrica como algo que flui de um ponto para outro – CORRENTE ELÉTRICA2 –que assumiremos como uma interpretação ad hoc alternativa usual do item lexical ‘corrente’.
Para verificar se a definição de Torres et al. (2016, p. 46) favorece esse equívoco, nós analisaremos cada item ou sequência lexical que compõe essa formulação em ordem de acessibilidade, simulando seu processamento on-line. Consequentemente, o primeiro passo consiste em parear a entrada lexical ‘corrente’ com sua a entrada enciclopédica correspondente CORRENTE.
No dicionário Michaelis40, o verbete ‘corrente’41 possui as seguintes acepções:
1 Curso ou movimento das águas; correnteza. 2 Movimento de uma massa de ar.
Estímulos ostensivos intencionais com os quais o falante pretende abertamente ou manifestamente produzir determinados efeitos cognitivos positivos numa determinada audiência.
Enquanto fórmulas bem formadas, ou sejam, conjuntos estruturados de constituintes que passam por “operações lógicas formais determinadas pela sua estrutura” (Sperber e Wilson, 2001, p. 125).
Conforme Sperber e Wilson (2001, p. 144), “um endereço conceitual é um ponto de acesso para as informações lógicas, enciclopédicas e linguís-
ticas que poderão ser necessárias para o processamento das formas lógicas que contêm esse endereço”.
Recuperado de: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/corrente/. A escolha do dicionário Michaelis é arbitrária.
Do latim currens, currentis particípio presente do verbo currĕre ‘correr’.
Série flexível de elos ou anéis interligados, geralmente de metal, para atar fortemente ou para sustentar algo pesado; grilhão.
Cadeia de argolas, geralmente de ouro, prata etc., usada como joia ou insígnia; cordão. 5 FIG Sucessão ou série continuada de pessoas ou coisas.
FIG Grupo de indivíduos que defendem as mesmas ideias ou compartilham algumas afinidades.
FIG Grupo de cientistas ou intelectuais que apresentam as mesmas ideias ou tendências em relação a uma área de conhecimento.
Dança em voga nos séculos XVII e XVIII, executada em compasso ternário, com andamento vivaz.
Segue disso que bem poderia ser o caso de o intérprete acionar suposições como: S1 – Corrente é um curso ou movimento de algo;
S2 – Corrente é algo flexível;
S3 – Corrente é um utensílio com elos, anéis ou argolas interligadas; S4 – Corrente é uma joia com elos, anéis ou argolas interligadas;
S5 – Corrente e uma sucessão ou série continuada de pessoas ou coisas;
S6 – Corrente é um grupo de indivíduos afins ou que defendem as mesmas ideias;
S7 – Corrente é um grupo de cientistas ou intelectuais que defendem mesmas ideias; S8 – Corrente é uma dança antiga com compasso ternário e andamento vivaz.
Dado que a interpretação ocorre no contexto da leitura de um livro de Física, é razoável conjecturar que a suposição S1 associando corrente como curso ou movimento de algo – CORRENTE2 – é mais provável de vir à mente, pois é difícil imaginar que o conceito lida com objetos flexíveis S2, utensílios ou joias com elos S3-4, associações S5-7 ou andamento musical S8, respectivamente: CORRENTE3, CORRENTE4, CORRENTE5 e CORRENTE6.
Admitindo a correção dessa interpretação, apresentamos na tabela II, a seguir, a definição de Torres et al. (2016,
p. 46) em quatro colunas, que são dedicadas, respectivamente, ao nível representacional e aos elementos do definiendum, da cópula e do definiens. Na primeira linha, apresentamos itens e sequências lexicais da forma linguística da definição; na segunda linha, as variáveis lógicas identificadas por pronomes indefinidos da forma lógica da definição; na terceira linha, as entradas enciclopédicas ou conceitos do que em teoria da relevância se denomina de explicatura da definição. Dessa forma, destacamos na tabela II que a entrada lexical ‘corrente’ aciona, respectivamente, a entrada lógica ‘algo’ e a entrada enciclopédica CORRENTE2 como curso ou movimento.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente | ||
Forma Lógica | Algo | ||
Explicatura | CORRENTE2 |
Na sequência, o adjunto adnominal ‘elétrico’ produz efeito de restrição conceptual ao limitar o conceito de cor-
rente a algo que é elétrico. Conforme o dicionário Michaelis42, o verbete ‘elétrico’ possui as seguintes acepções:
FÍS Que se refere a eletricidade.
Que tem eletricidade; que é resultado de eletricidade.
FIG Que tem muito brilho, resplendor; cintilante, fulgurante, luzente. 4 FIG Que se agita sem cessar; agitado, buliçoso, irrequieto.
5 FIG Que acontece ou que se faz com muita rapidez; apressado, breve, rápido.
A essas acepções dicionarizadas, poderíamos acrescentar suposições de senso comum, que conectam ‘elétrico’ com algo que produz luz, desloca-se em fios, gera descarga (choque), consome-se, provém de uma usina hidrelétrica, termelétrica, é distribuído por uma concessionária, entre outros. Assim, suposições de senso comum e algumas das suposições dicionarizadas favorecem a interpretação de corrente como algo que flui – CORRENTE2 – sugerindo que, mesmo antes de processar o definiens y, o intérprete já tem uma hipótese sobre o que o definiendum representa.
Recuperado de: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/el%C3%A9trico/.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | ||
Forma Lógica | Algo | ||
Explicatura | CORRENTE ELÉTRICA2 |
Segue a interpretação da forma verbal de cópula ou de ligação ‘é’. Ao processá-la, o intérprete provavelmente aciona a hipótese sintática antecipatória de que o enunciado se organiza numa forma lógica do tipo ‘x é y’, tal que x é o sujeito (tema ou assunto) e y é o predicado (aquilo que se diz sobre o sujeito, tema ou assunto) e, dado que se trata de uma definição, haverá uma equivalência entre ambos, de modo que o predicado contendo o definiens determina o sujeito contendo o definiendum.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | é | |
Forma Lógica | Algo | ser | |
Explicatura | CORRENTE ELÉTRICA2 | EQUIVALE A |
O próximo passo é processar o item lexical ‘movimento’. Este item possui uma quantidade expressiva de acepções dicionarizadas, dentre as quais nos interessam aquelas que relacionam ‘movimento’ com deslocamento e agitação43. A essas acepções, poderíamos acrescentar definições de ‘movimento’ mais propriamente conectadas à Física enquanto mudança de posição espacial de um objeto no decorrer do tempo e em relação a um dado referencial. Todas essas definições favorecem duas interpretações mais estreitas de movimento44. A primeira delas relaciona movimento como algo que se desloca no espaço de modo ordenado – MOVIMENTO*, a segunda delas relaciona movimento como algo que se desloca no espaço de modo caótico – MOVIMENTO**.
Em comum, essas duas interpretações mais estreitas do item lexical ‘movimento’ reforçam a interpretação de corrente como algo que flui – CORRENTE2 – e, no contexto desse reforço, podem promover estreitamentos lexicais ainda mais radicais que, para efeitos de ênfase, poderiam ser representados por FLUXO* e FLUXO**.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | é | o movimento |
Forma Lógica | Algo | ser | algo |
Explicatura | CORRENTE ELÉTRICA2 | EQUIVALE A | MOVIMENTO* MOVIMENTO** |
O item lexical ‘ordenado’ contradiz e elimina MOVIMENTO** e fortalece MOVIMENTO*, como vimos, dois efeitos cognitivos positivos previstos pela teoria da relevância. Esse estreitamento agora explícito favorece a concepção de que há ordem naquilo que se movimenta e, no contexto de uma interpretação de corrente como fluxo – CORRENTE2, a interpretação de que aquilo que flui numa corrente elétrica flui de maneira ordenada.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | é | o movimento ordenado |
Forma Lógica | Algo | ser | algo |
Explicatura | CORRENTE ELÉTRICA2 | EQUIVALE A | MOVIMENTO ORDENADO |
Em seguida, cabe parear o item lexical ‘cargas’ com sua respectiva entrada enciclopédica. Entre as múltiplas acepções de ‘carga’ apresentadas no dicionário Michaelis45, a mais provável de ser selecionada em uma suposição compatível com a definição é a de que “S1 – Carga é algo que pode ser transportado”, favorecendo a emergência do conceito CARGA. Como o definiendum trata de corrente elétrica, é razoável assumir, mesmo antes de processar o último item
Recuperado de: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/movimento/.
Conceitos ad hoc são tipicamente estreitamentos, quando são mais restritos que o conceito codificado, ou alargamentos, quando são mais amplos que o conceito codificado (Wilson, 2004).
Recuperado de: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/carga/.
lexical da definição, que o intérprete procede a um estreitamento lexical, assumindo que aquilo que pode ser transportado tem natureza elétrica – CARGA*46. No contexto de CORRENTE2, essa interpretação sugere que aquilo que pode ser transportado [de um lugar a outro, reforçamos], é transportado ao modo de um fluxo. Ao interpretar o item lexical ‘elétricas’, por fim, esse estreitamento torna-se apenas explícito sem prejuízo a essa interpretação: trata-se de um fluxo de cargas elétricas.
Definição | Definiendum | Cópula | Definiens |
Forma Linguística | Corrente elétrica | é | o movimento ordenado de cargas elétricas |
Forma Lógica | Algo | ser | algo |
Explicatura | CORRENTE ELÉTRICA2 | EQUIVALE A | MOVIMENTO ORDENADO DE ALGO DE NATUREZA ELÉTRICA |
Lopes (2007, p. 170-171) chama a atenção para a linguagem adotada pelos livros didáticos. Ele diz que:
A atenção para com a linguagem é fundamental, pois tanto ela pode ser instrumento para a discussão racional de conceitos altamente matematizados, como pode veicular metáforas realistas pretensamente didáticas que obstaculizam o conhecimento científico. O descaso para com as rupturas existentes na linguagem científica apenas tende a reter o aluno no conhecimento comum, e fazê-lo desconsiderar que a ciência sofre constantes mudanças e retifica seus erros. A linguagem presente nos livros didáticos é de suma importância para permitir ao aluno o domínio do conhecimento científico.
No que concerne a definições em materiais didáticos, o dilema é identificar até que ponto é possível elaborar aproximações e/ou simplificações adequadas cientificamente, pois dado que, em geral, parte-se dedutivamente de definições para aplicações no ensino, uma definição inadequada reverbera em todas as instâncias de aplicação.
Na seção anterior, verificamos se a definição de corrente elétrica de Torres et al. (2016, p. 46) favorece uma interpretação equivocada de corrente como fluxo – CORRENTE2. Para tanto, aplicamos o procedimento de interpretação orientado pela relevância, processando cada item e sequência lexical em ordem de acessibilidade e parando quando uma interpretação satisfez certa expectativa de relevância ótima. Nossa conclusão é categórica. Um estudante esperando confirmar sua concepção de senso comum de que corrente é algo que flui não encontraria obstáculo para essa interpretação na definição: algo de natureza elétrica flui de um lugar para outro de forma ordenada numa corrente elétrica47.
Além disso, os autores ilustram a definição com a figura 1.41 (figura 1), que “representa esquematicamente, fora de qualquer proporção, um trecho de fio metálico com os elétrons livres movimentando-se caoticamente (fig. 1.41-A) e ordenadamente, constituindo uma corrente elétrica (fig. 1.41-B)” (Torres et al., 2016, p. 46).
(B) movimento ordenado dos elétrons. Fonte: Torres et al. (2016, p. 46, Figura 1.41).
Embora as versões A e B da figura 1 tenham sido elaboradas para representar estados caóticos e ordenados dos elétrons livres em um segmento de um fio metálico, observe que a representação B pode levar a crer que os elétrons livres estão se deslocando progressivamente à direita, reforçando a ideia de fluxo. Se fixarmos a atenção às setas, veremos que sugerem vetores de deslocamento, indicando que os elétrons representados mais à direita seriam sucessivamente substituídos pelos elétrons mais à esquerda até que todos passassem pelo segmento, promovendo o erro conceitual de que cada elétron livre sai de sua posição inicial à esquerda e percorre todo o condutor no sentido indicado.
Tecnicamente, elétrons em condutores metálicos – CARGA** – ou íons em soluções iônicas – CARGA***.
Nosso argumento é o de que, replicando ontologicamente o desenvolvimento histórico do conceito de eletricidade, as pessoas tendem a conceber eletricidade mecanicamente como um fluxo de matéria elétrica.
Admitindo a priori a plausibilidade da intepretação indesejável de corrente como fluxo, restaria investigar se o definiens da definição de Torres et al. (2016, p. 46) está correto sintática e semanticamente48 e, desse modo, essa interpretação indesejável seria um efeito incontornável da interpretação do item lexical ‘corrente’ que compõe o definiendum como fluxo – CORRENTE2 –, algo extensamente justificado pela evolução histórica do conceito de eletricidade como vimos na terceira seção. Para isso, o definiens da definição precisaria explicar com exatidão a extensão e a compreensão do conceito ou definiendum da definição (Rauen, 2015), suprimindo o ambíguo ou o obscuro a fim de esclarecê-lo, simplificá-lo ou descomplicá-lo (Lakatos e Marconi, 2003).
Posto isso, verificamos que embora a definição dos autores passe pelas regras aristotélicas de identidade, não contradição e de terceiro excluído do ponto de vista sintático (lógica formal); e o movimento ordenado de cargas elétricas seja condição sine qua non para haver corrente elétrica do ponto de vista semântico (lógica material), a definição não explica com exatidão a extensão e a compreensão do definiendum. Isso ocorre porque, ao destacar exclusivamente o efeito do fenômeno, o definiens da definição omite as condições necessárias de sua emergência, recortando parcialmente o definiendum da definição.
Há pelo menos três condições necessárias para a emergência de correntes elétricas, uma vez que decorrem de campos elétricos e diferenças de potencial geradas por cargas superficiais fornecidas por fontes com força eletromotriz conectadas aos circuitos fechados contendo portadores de cargas elétricas livres. Para haver corrente elétrica, é necessário que se estabeleça um campo elétrico interno aos condutores, implicando uma diferença de potencial que é mantida por uma fonte de força eletromotriz ou gerador. Para gerar esse campo elétrico, o circuito deve estar fechado, ou seja, o gerador que fornece a diferença de potencial deve estar conectado entre os terminais do circuito. Por fim, o circuito elétrico deve ser composto por condutores elétricos (metálicos, soluções iônicas e gases ionizados), ou seja, o circuito elétrico deve conter portadores de cargas elétricas livres. Assim, somente há “movimento ordenado de cargas elétricas” se, de fato, há cargas elétricas livres em um circuito fechado submetido a uma força eletromotriz. Além disso, até a própria escolha do item lexical ‘movimento’ no definiens da definição de Torres et al. (2016, p.
46) pode ser problematizada, pois o que se estabelece pode ser mais bem descrito como uma espécie de deriva ordenada dos portadores de cargas elétricas de um circuito fechado submetido a uma diferença de potencial. Para se estabelecer uma corrente elétrica o que importa é que todas as cargas sejam ordenadas ao mesmo tempo e não o movimento ordenado de cada uma delas. Trata-se de algo mais próximo de uma orquestra ou coral que, dada a regência de um maestro, salta de sons caóticos próprios do afinamento de instrumentos ou de vozes para a produção harmoniosa de uma melodia.
A propósito e adicionalmente, ao exemplificar corrente elétrica com um segmento de fio metálico na figura 1, os autores produzem um recorte adicional problemático. Uma vez que a definição de corrente elétrica como movimento ordenado de cargas elétricas pode ser aplicada a soluções iônicas e gases ionizados, com portadores em movimento nos dois sentidos, e a ilustração restringe-se a um segmento de um condutor metálico, isso acaba por produzir o efeito indesejável de sugerir que a definição de corrente elétrica compreenderia correntes elétricas eletrônicas, mas não correntes elétricas iônicas.
Mais adiante, os autores afirmam que lhes interessa “apenas a corrente elétrica constituída por elétrons em movimento, que pode ser chamada de corrente elétrica eletrônica” (2016, p. 46). Se nada obsta essa restrição do ponto de vista das escolhas do que destacar no desenvolvimento de um conteúdo didático, é essencial monitorar efeitos dessa restrição sobre a compreensão da própria definição de ‘corrente elétrica’. Ao destacar correntes elétricas constituídas por elétrons em movimento, reiteramos, os autores sugerem que a extensão do conceito se restringe a condutores metálicos. Isso é indevido porque uma definição correta de corrente elétrica em sentido lato não deve distinguir se ela é estabelecida por elétrons ou íons. Ela deve abrigar todos os portadores de carga elétrica.
Postas essas questões, uma definição mais apropriada para o fenômeno em questão poderia ser, entre outras, as seguintes:
Corrente elétrica é o fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva dos portadores de cargas elétricas internas livres causado por um campo elétrico gerado pela distribuição de cargas elétricas superficiais em um circuito fechado submetido a uma fonte de força eletromotriz.
Ou, numa versão mais apropriada para uma primeira abordagem em sala de aula:
Corrente elétrica é o fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva dos portadores de cargas elétricas internas livres causado por um campo elétrico.
Uma definição em termos próximos a esses contornaria o efeito indesejável de interpretar o item lexical ‘corrente’
do definiendum como fluxo de fluidos – CORRENTE2. Nessa versão, corrente elétrica corresponde a um fenômeno
A despeito da subdeterminação semântica intrínseca imposta pela representação simbólica (Carston, 2002).
emergente do movimento ordenado de deriva, um alinhamento das cargas elétricas que já estão presentes ou pertencem aos circuitos fechados que foi causado por um campo, a rigor, por uma força eletromotriz que forneceu uma diferença de potencial aos componentes do circuito49.
Em síntese, a definição de corrente elétrica como movimento ordenado de cargas elétricas de Torres et al. (2016,
p. 46) é inadequada por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, como vimos na quarta seção, favorece a noção de um fluxo mecânico ordenado de cargas elétricas de um ponto a outro que, em aplicações práticas, pode levar a inferir perdas de potência em circuitos ao modo de uma corrente de água perdendo força ou energia diante de obstáculos, ou seja, algo que pode se desgastar ou dissipar no circuito. Em segundo lugar, como vimos na quinta seção, a definição não trata das causas que viabilizam a emergência de uma corrente elétrica, de forma que, pela lógica material, não permite obter um conhecimento semanticamente verdadeiro.
Destaque-se que, assim como ocorreu no desenvolvimento histórico do conceito de eletricidade, as pessoas tendem a conceber eletricidade mecanicamente. Não sem razão, uma noção de corrente elétrica como fluxo de cargas elétricas que se transportam de um local a outro é muito mais atrativa e aceitável do que uma noção de corrente elétrica como fenômeno emergente do movimento ordenado de deriva de elétrons livres em dado circuito fechado submetido a uma diferença de potencial. Cabe ao ensino de Física desenvolver nos estudantes concepções corretas dos fenômenos físicos a despeito de suas complexidades. Nesse esforço, definições mais precisas nos livros didáticos são essenciais.
Agradecemos as inestimáveis contribuições dos avaliadores da Revista de Enseñanza de la Física. Os equívocos remanescentes são de nossa inteira responsabilidade. Lizandra Botton Marion Morini agradece o apoio institucional do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e Fábio José Rauen agradece o apoio institucional da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e do Instituto Ânima.
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