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VOLUMEN 33, NÚMERO 3 | JULIO-DICIEMBRE 2021 | PP. 75-88

ISSN: 2250-6101



Simuladores digitais no contexto epistemológico de Gagné e Vygotsky: uma proposta de intervenção didática sobre eletricidade e circuitos elétricos

Digital simulators in the epistemological context of Gagné and Vygotsky: a didactic intervention proposal on electricity and electrical circuits

Marcello Ferreira1*, Olavo L. S. Filho1, Alexandre Strapasson2,3, Khalil Oliveira Portugal1, Ane Caroline Maciel1


1Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física, Instituto de Física, Universidade de Brasília.

2Centre for Environmental Policy, Imperial College London.

3Belfer Center for Science and International Affairs, Harvard University.


* E-mail: marcellof@unb.br

Recibido el 1 de mayo de 2021 | Aceptado el 1 de junio de 2021


Resumo


Este artigo apresenta uma proposta de intervenção didática, usando como referenciais teóricos Robert Gagné e Lev Vygotsky, envolvendo a utilização de simuladores experimentais como recurso didático. Tais referenciais são harmonizados entre si e, dessa harmonização, emergem importantes elementos ao processo de ensino e aprendizagem em física. A utilização de simuladores leva em consideração o crescente uso das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação pelos estudantes na cultura digital, bem como sua relevância ao desenvolvimento de habilidades sociointeracionistas, que formam eixo central da perspectiva de Vygotsky. A intervenção didática sugerida trata do tema eletricidade e construção de circuitos elétricos, como exemplo prático de aplicação de simuladores no processo pedagógico. Além disso, condizente com o referencial teórico adotado, é utilizado o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, para avaliação tantos dos estudantes, quanto da didática do professor.


Palavras chave: Ensino de Física; Simuladores; Gagné; Vygotsky; Zona de Desenvolvimento Proximal.


Abstract


This article provides a didactic intervention proposal, using Robert Gagné and Lev Vygotsky as theoretical references, involving experimental simulators as a didactic resource. Such references are harmonized with each other, and, as a result of this merge, important elements for to the teaching and learning process in Physics emerge. The use of simulators considers the increasing usage of Digital Information and Communication Technologies by students immersed in a digital culture and their relevance for the development of social-interactionist skills, which form the basis of Vygotsky’s perspective. The suggested didactic intervention deals with the theme of electricity and the construction of electrical circuits as a practical example of the application of simulators in the pedagogical process. In addition, aligned with this theoretical framework, the concept of Zone of Proximal Development is used to assess both students and the teacher’s didactics.


Keywords: Physics teaching; Simulators; Gagné; Vygotsky; Zone of Proximal Development.


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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 33, no. 1 (2021) 75


  1. INTRODUÇÃO


    No ideário social brasileiro, muitos e variados fatores formam o estereótipo da física como campo disciplinar de difícil compreensão, do que usualmente resultam desinteresse, insucesso e evasão, tanto na escola quanto na universidade. Em âmbito educacional geral, destacam-se: traços determinantes do subdesenvolvimento socioeconômico, com consequente desinvestimento público; precarização da infraestrutura física e tecnológica dos espaços educativos; e de-crepitude da formação, da carreira e das condições de trabalho dos professores. No campo da educação em ciências, são influentes: o anacrônico paradigma racional-técnico do currículo – aqui tomado como documento de mobilização de saberes, poderes e subjetividades e, portanto, de formação de identidades –, cuja concretude se dá na reiteração de perspectivas didáticas elitizadas, positivistas, distópicas e erráticas; o abandono de preocupações formativas com a autonomia intelectual e a crítica como recursos de transformação social, num modelo de dialogia e emancipação; além da flagrante desconexão com um projeto formativo que incorpore valores como democracia, ética e bem-estar social e dos ecossistemas. Particularmente na física, são notados desafios inerentes à natureza científica, às suas epis-temologias e às metodologias que emprega na construção de abstrações, modelos e explicações aos fenômenos naturais (Ferreira, 2015; 2018; Ferreira y Loguercio, 2016; 2017).

    Mesmo considerando que essas preocupações são anteriores àquelas de ordem didática, propriamente relacionadas a processos de ensino e aprendizagem, optamos por problematizar, formular, propor e submeter a juízo uma articulação teórica e um itinerário instrucional potencialmente subversivo. Tal escolha se dá em ressonante consideração da cultura digital, ou cibercultura, que, para Lévy (1999; 2009), se fundamenta em três aspectos mútuos: 1) a interconexão como potência comunicativa e espaço-temporal; 2) comunidades virtuais sustentadas na interação e na cooperação; e 3) a inteligência coletiva como síntese e produto das dimensões epistêmica, pessoal e social da aprendizagem. Nesse sentido, o uso de Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDIC), na perspectiva de diversos autores (Kenski, 2007; Almeida, 2009; Coll, Mauri y Onrubia, 2010; Moran; Masetto y Behrens, 2010; Oliveira, Ferreira y Mill, 2018; Ferreira et al., 2020), pode contribuir para o engajamento e interesse dos estudantes, além da qualificação das formas e das linguagens de mediação do conhecimento. Essa faculdade adviria da conexão que as TIDIC guardam com os modelos de cognição humana, sobretudo os aspectos de representação por hiperlink (Lévy, 1999; 2009) e conexões neurais, bem como por serem parte da realidade concreta da maioria dos estudantes, tanto em sua dimen-

    são funcional, como, principalmente, em sua dimensão expressiva.

    De fato, por inúmeras razões, algumas de caráter estrutural ou de necessidade de rotinização1 de suas tarefas, a maior parte dos professores continua a lecionar de forma convencional, baseada em narrativas expositivas, sem interações dialéticas efetivas e sem o uso qualificado de tecnologias digitais, reproduzindo modelos de uma racionalidade que se revela crescentemente disfuncional. Há algum tempo, se poderiam apresentar razões relativas à infraestrutura computacional para justificar, em particular, o pouco e desqualificado uso das TDIC como fundamento de uma tecnologia da educação. Entretanto, com a grande disseminação de computadores e smartphones, com o desenvolvimento de softwares interativos e o relativo barateamento do acesso à internet de razoável performance, as possibilidades de uso das TDIC em sala de aula se tornaram uma concretude ao alcance de um número cada vez maior de estudantes. O uso das TDIC já está presente, de alguma forma, na maioria das instituições educativas do Brasil2, sobretudo nas instituições privadas, embora também nas públicas, em menor escala (Albino y Souza, 2016).

    Embora o impacto do uso das novas TDIC não seja absoluto e homogêneo em todo o espectro socioeconômico, não se pode negar o seu elevado alcance e potencial como recurso educacional, além de sua rápida expansão. As TDIC devem ser vistas, assim, como um ferramental de apoio ao ensino e à aprendizagem; seu uso pode qualificar não apenas os processos que medeiam a aprendizagem, mas também aqueles que envolvem a interação entre indivíduos, tão caros à perspectiva da abordagem científica, desde a utilização de slides (Bang y Luft, 2014) a softwares de simulação experimental, vídeos demonstrativos e realidade aumentada (Fidan y Tuncel, 2019; Zakaria et al., 2019).

    As possibilidades de se incrementar as trocas científico-sociais entre os estudantes por meio de interações sociais mediadas pelas tecnologias digitais adquirem particular relevância se considerarmos como fundamento teórico as bases do sociointeracionismo de Vygotsky (1991), segundo as quais o desenvolvimento cognitivo não pode ser entendido sem referência ao meio social e às interações que induz via uso de ferramentas, em particular àquelas de natureza linguística.

    A precariedade didática pode dificultar o processo de aprendizagem, em particular quando se verifica uma inadequação entre a forma de lecionar e as características e demandas concretas dos estudantes. Daí a relevância de se


    1. Giddens (1984) define rotinização como um processo de perpetuação de certas práticas com a finalidade de manter uma estrutura segura para o sujeito.

    2. A despeito disso, reconhecem-se aqui as desigualdades sociais presentes nas instituições de ensino brasileiras, sobretudo nos sistemas públicos,

      em que muitos estudantes ainda não têm acesso a tecnologias digitais e conexões à internet, revelando a premência de políticas públicas mais efetivas para ampliação e democratização do acesso.


      considerar ações instrucionais que reflitam sobre os aspectos socioculturais dos estudantes, visando ao aperfeiçoamento de práticas pedagógicas, numa perspectiva pragmática e contextualizada. Nesse sentido, optou-se, nesta investigação, por se adotar um direcionamento similar ao proposto por Gagné (1980) que pontua habilidades intelectuais capazes de gerar aprendizagem de forma hierárquica. Embora os processos de aprendizagem ocorram de forma orgânica e complexa (Kahneman, 2013), a sequência pragmática sugerida por Gagné, em que os conteúdos devem ser apresentados e discutidos de forma gradual, crescente e hierárquica, tem se mostrado útil ao estudo de ciências naturais, como a física, que requerem elevada abstração e uso de linguagem matemática para a organização do pensamento lógico-formal.

      Com referência à concepção de Vygotsky sobre a interação social e a importância da mediação para o desenvolvimento cognitivo, adaptadas aqui ao contexto das TDIC e, ainda, às discussões de Gagné sobre o papel das hierarquias na aprendizagem, assumimos, como intenção, a perspectiva de referenciar e apresentar uma proposta de intervenção didática sobre eletricidade e circuitos elétricos. Fazemo-la na forma de um plano de aula indicativo ao professor de física do Ensino Médio, com base na utilização de TDIC (simuladores digitais) e à luz dos referenciais teóricos de Vygotsky e Gagné. Por fim, agregamos à discussão a possibilidade de aplicar o conceito vygostkiano de Zona de Desenvolvimento Proximal como instrumento de avaliação da proposta.


  2. REFERENCIAL TEÓRICO


    Na perspectiva assumida, as TDIC associam-se a um processo educacional dialético, conceitualmente estruturado de forma gradual e hierárquica. Dois importantes teóricos que tratam dessa perspectiva são Lev Vygotsky e Robert Gagné.


    1. A Perspectiva de desenvolvimento de Vygotsky


      Vygotsky (1991) entende que o desenvolvimento humano se dá a partir da interação social; isto é, o homem se constitui na interação com o meio em que vive. Para ele, o desenvolvimento cognitivo do ser humano não pode ser entendido sem referência ao meio social. Portanto, não é por meio do desenvolvimento cognitivo que o indivíduo se torna capaz de socializar, mas são os processos de socialização que se constituem em condição de possibilidade do desenvolvimento dos processos mentais superiores (Oliveira, 1993; Vygotsky, 2000; Vygotsky et al., 2010).

      Em seus trabalhos, Vygotsky, que era russo e viveu de 1896 a 1934, desenvolve uma teoria psicológica influenciada pelas ideias marxistas. Em sua teoria, discutiu as causas do desenvolvimento histórico desigual, com base nas relações de trabalho e na apropriação dos benefícios gerados pelos processos produtivos pertencentes à burguesia industrial, classe dominante à época. Desse modo, Vygotsky percebeu que as atividades exercidas pelo indivíduo sobre o mundo, mediadas pelo uso de instrumentos e signos, são ferramentas transformadoras da realidade sociocultural.

      Dessa percepção, origina-se o conceito central na psicologia de Vygotsky, o de mediação, compreendido como a conversão de relações sociais em funções mentais superiores (linguagem, comportamento e pensamento). Essa interação social depende, no mínimo, de duas pessoas intercambiando informações. Nas palavras de Vygotsky (1991):


      O educador começa a compreender agora que quando a criança adentra na cultura, não somente toma algo dela, não somente assimila e se enriquece com o que está fora dela, mas que a própria cultura reelabora em profundidade a composição natural de sua conduta e dá uma orientação completamente nova a todo o curso de seu desenvolvimento. (Vygotsky, 1991, p. 305)


      Vygotsky parte da premissa de que esse desenvolvimento não pode ser entendido sem referência ao contexto social e cultural no qual ocorre (Moreira, 1999; 2011). Além disso, sua ocorrência requer um processo de aprendizagem mobilizador das ferramentas intelectuais, por meio da interação social com indivíduos mais experientes em tais recursos (por exemplo, a linguagem), visando à resolução coletiva de um problema socialmente referenciado.

      Nesse contexto, Vygotsky estabelece o que entende por zona de desenvolvimento proximal (ZDP)3, que seria a distância entre o nível de desenvolvimento cognitivo real e o nível de desenvolvimento potencial do aprendiz. Segundo Moreira (2011), ela define as funções que ainda estão em processo de maturação. É uma medida do potencial de desenvolvimento, desde que garantidas determinadas condições de interação e de mediação, ou seja, representa a região na qual o desenvolvimento cognitivo está na iminência de ocorrer. Sendo assim, é naturalmente dinâmica e em processo de constante deslizamento rumo a formas mais complexas do uso e aplicação das ferramentas mediadoras.


      1. O termo Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) é, como consideramos mais apropriado, correspondente a Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI). Esta versão representa uma tradução que consideramos mais acurada aos termos originais escritos em russo por Vygotsky. Neste trabalho, entretanto, preferiu-se utilizar ZDP por se tratar de um termo já relativamente consolidado na literatura pedagógica em língua portuguesa e, portanto, de maior alcance e possibilidade de compreensão.


        Sendo uma instância cognitiva que se configura como potência de desenvolvimento, ou seja, aquele espectro do possível e do desejável face a contextos de aprendizagem, ao ser submetido aos contextos de aprendizagem, é razoável considerar a ZDP como domínio avaliativo.

        Considera-se, assim, que a ZDP pode fornecer aos professores, primeiramente, uma ferramenta para delinear o futuro imediato do sujeito, quando considerada no interior das relações entre o desenvolvimento cognitivo real e o potencial (que se atualizou ou não) no interior dessa relação que a ZDP implica em caráter sincrônico. Em segundo lugar, as ZDP, em sua articulação diacrônica, consideradas na linha do tempo, podem igualmente operar como indica-doras do estado dinâmico de desenvolvimento dos aprendizes.

        Por meio da ZDP, portanto, entende-se possível ao professor analisar o desenvolvimento do estudante, para, assim, ajudá-lo (via mediação) a suplantar dificuldades. Além disso, o professor poderá obter retorno de seu trabalho, definindo possíveis problemas pontuais dos estudantes ou mesmo um problema geral em sua abordagem didática.


    2. As hierarquias de aprendizagem de Gagné


      Robert Gagné (1980; 1985) desenvolveu uma teoria voltada às condições que favorecem a aprendizagem de capacidades específicas, que se apresentam concreta e explicitamente nos comportamentos emitidos. Isto é, a aprendizagem ocorre quando há uma mudança comportamental associada.

      Em uma perspectiva perpassada por elementos da Psicologia Cognitivista e da Análise Comportamental, essa mudança ocorre, mais especificamente, quando se pode verificar um processo de maturação, considerado como decorrente do desenvolvimento de estruturas internas que cumprem o papel de variáveis latentes da aprendizagem (seu elemento cognitivista). Concretamente, a aprendizagem se vê presente quando o indivíduo responde a estímulos que recebe de seu ambiente externo e é capaz de agir sobre ele, sob processo social de comunicação.

      Gagné, que era americano e viveu de 1916 a 2002, teve suas proposições amparadas em suas experiências pedagógicas junto à força aérea americana, durante a segunda guerra mundial. Há, em Gagné, em contraposição às perspectivas behavioristas que o antecederam, uma evidente preocupação com o processo de aprendizagem e com o que ocorre na mente do indivíduo em seu curso, conforme descreveu em uma de suas obras:


      A fim de planejar eventos externos ao aluno que ativarão e manterão a aprendizagem, deve-se adquirir uma concepção do que ocorre ‘dentro da cabeça do aluno’. Isto é o que o conhecimento dos princípios da aprendizagem e da teoria da aprendizagem fornecem. (Gagné, 1980, p. 3)


      Daí a origem do modelo psicológico básico de aprendizagem e memória relacionado a teorias de processamento de informação. Nesse modelo, é proposto que o fluxo de informações (estimulação proveniente do ambiente) afeta os receptores e ingressa o sistema nervoso por intermédio de um registrador sensorial. Após ser nele codificada, a informação sofre nova codificação na – assim definida – memória de curta duração. A permanência nesse estágio, ainda segundo Gagné, é relativamente breve, da ordem de segundos, de modo que, se a informação precisa ser lem-brada, ela deve ser novamente transformada e ingressar na memória de longa duração. A informação proveniente das memórias de curta e de longa duração passa para um gerador de respostas que tem a função de transformar a informação em ação (Gagné, 1980; Moreira, 2011).

      Disso decorrem os eventos de aprendizagem que podem ser internos (inferidos como processos de aprendizagens, de caráter mais abstrato e de difícil mensuração/verificação) e os externos (mais facilmente observáveis, exprimíveis pela fala ou escrita, por exemplo, ou por qualquer outro processo comportamental explícito). Tais eventos podem ocorrer no horizonte de cinco principais classes de capacidades humanas que podem ser aprendidas: informação verbal, habilidades intelectuais, estratégias cognitivas, atitudes e habilidades motoras (Moreira, 2011). No caso das habilidades intelectuais, elas podem ser analisadas em termos de outras mais simples, requeridas como pré-requisito, conforme demonstrado na figura 1.

      Cabe destacar, entretanto, que a abordagem de Gagné refere-se a uma descrição de caráter psicológico e, assim, consideravelmente genérica quanto ao que sejam as discriminações de estímulos ou símbolos, à identificação de classes de objetos, à construção de regras a partir de conceitos hauridos e, finalmente, ao desenvolvimento de regras de ordem superior, relevantes para a solução de um problema. De fato, a descrição da figura 1 pode ser feita para vários outros procedimentos análogos em que um indivíduo se coloca frente a um problema que se mostra recorrente em sua vida, para o qual devem ser desenvolvidas estratégias relativamente constantes (como parte de um atalho cognitivo) para se lidar com o problema.

      Assim, para a concretização das perspectivas de Gagné no contexto da sala de aula e, mais especificamente, da aprendizagem das referidas regras de ordem superior, faz-se necessário fixar, primeiramente, um tema particular a ser tratado, uma vez que tal escolha fundamentará o conjunto de símbolos e discriminações relevantes. Em segundo lugar, requer-se especificar os conceitos que deverão emergir das referidas discriminações. Além disso, no sentido de


      se programar o processo de aprendizagem referido na figura 1, é preciso estabelecer quais regras são esperadas da aplicação do método ao tema escolhido para, finalmente, verificar a emergência de regras de ordem superior, por meio da combinação das regras da instância hierárquica anterior.



      FIGURA 1. Organização hierárquica das habilidades intelectuais segundo Gagné. Fonte: Os autores, adaptado de Moreira (2011, p. 74).


      Na presente abordagem, será especificado o tópico dos circuitos elétricos no âmbito do tema eletricidade, abordado na disciplina de física no Ensino Médio. Nele, estarão envolvidos símbolos particulares, que representam os objetos concretos relevantes para o tópico escolhido, como baterias, capacitores, resistores, dentre outros, aos quais deve-se impor uma discriminação por meio do ensino das características por eles mimetizadas. Depois disso, serão apresentados os conceitos referentes aos símbolos para, só então, estabelecer as regras que colocam em contato (exatamente como circuitos elétricos) todos esses elementos. As regras de ordem superior podem ser referidas a contextos de aplicação, que usualmente exigem a articulação conjunta de várias regras que, no processo de aprendizagem, são estabelecidas em caráter abstrato.


    3. Complementariedade entre as perspectivas de Gagné e Vygotsky


    Enquanto Gagné sugere uma estrutura hierarquizada de ensino e aprendizagem, envolvendo elementos que se seguem em um processo que parece indicar uma trajetória linear, a perspectiva vygotskyana aponta para uma inserção dessa linearidade em um contexto não linear, justamente imposta pelos diferentes caminhos de desenvolvimento (outro conceito basilar na psicologia de Vygotsky) que podem ser tomados por diferentes indivíduos submetidos ao mesmo processo de ensino e aprendizagem.

    Tal elemento de inserção é o que permite considerar as perspectivas de forma complementar, uma vez que os estágios sugeridos por Gagné detêm um caráter abstrato, permitindo não apenas conjuntos diferentes de elementos (relacionados ao mesmo estágio), como diferentes modos pelos quais tais elementos serão efetivamente usados pelos aprendizes no processo de apropriação que as ZDPs implicam.

    Assim, a síntese que se propõe entre os dois autores transformaria a figura 1, relativa às ideias de Gagné, em algo aqui sugerido como o apresentado na figura 2. Tal perspectiva considera que os pontos referenciais dos quais os aprendizes partem não são os mesmos, o que estabelece suas capacidades iniciais de proceder às discriminações de maneiras distintas uns dos outros. Essa diversidade de pontos de partida, ou seja, de conjuntos diversos de discriminações possíveis, também caracteriza percursos de conceituação diversos e chegada a regularidades por caminhos bem distintos, uma vez que os apoios conceituais e simbólicos também o são. Na figura 2, apresenta-se, então, de maneira hipotética e ilustrativa, um caminho particular de desenvolvimento, entre outros caminhos possíveis.

    Nessa figura, fica claro como a perspectiva de Vygotsky remove, em certa medida, a linearidade da abordagem de Gagné. Cada estágio considerado por Gagné como uma unidade é, de fato, constituído por diversos elementos, cada qual apresentando diferentes níveis de dificuldade de apreensão, relativamente a aprendizes diversos. Assim, não é, em princípio, necessário que dois aprendizes diferentes aprendam cada um desses elementos exatamente na mesma


    ordem, pois tal ordem irá depender do próprio estágio de desenvolvimento, assim como de outros elementos contex-tuais de difícil controle. Isso não significa romper completamente com a hierarquia, uma vez que ela assenta em diferentes estágios de abstração e, portanto, de organização cognitiva. Contudo, é possível imaginar que um outro subconjunto das regras de ordem superior possa ser desenvolvido depois de percorrido um determinado percurso, haja vista que o processo de aprendizagem é algo dinâmico e interativo, na perspectiva de Vygotsky.



    FIGURA 2. Organização sistêmica de um processo de aprendizagem hipotético, combinando as perspectivas de Gagné e Vygotsky. Fonte: os autores.


    Ainda na figura 2, expandimos os estágios da perspectiva de Gagné em partes que concretamente os constituem e reconhecemos, com Vygotsky, que sua assimilação pode diferir, na ordem temporal, de aprendiz a aprendiz, cada um construindo um caminho de desenvolvimento particular. Tais apontamentos permitem mostrar a contribuição da perspectiva de Vygotsky para as concepções de Gagné. Enquanto essas últimas poderiam ser caracterizadas por uma perspectiva que tenderia a considerar o tempo de aprendizagem uma variável linear, referida de maneira objetiva ao tempo do relógio, as considerações de Vygotsky mostram que isso seria projetar de maneira abstrata e artificial os processos de desenvolvimento em um único caminho de referência, considerado “normal” ou “esperado” – eventualmente outra fonte de insucesso no processo de ensino e aprendizagem da física.

    A ideia que se coloca não é a da manutenção de uma perspectiva de hierarquia global do conhecimento, como Gagné, mas a desconstrução dessa linearidade, como em Vygotsky, tornando-se algo dinâmico e sistêmico. O que se defende é uma hierarquia local dos conhecimentos: isto é, para certas sequências no interior do aprendizado geral, há uma hierarquia definida pelos temas tratados, mas outras hierarquias se colocam lado a lado com esta, construindo uma não-linearidade global, como buscamos esclarecer nos desenvolvimentos subsequentes da proposta.

    É importante manter em mente que as ZDPs são específicas aos diferentes aprendizes e, portanto, podem apresentar maior ou menor homogeneidade no contexto concreto da sala de aula, em que estudantes de diferentes contextos e realidades convivem. É nesta perspectiva que o elemento sociointeracionista de Vygotsky se torna fundamental: ao colocar diferentes caminhos de desenvolvimento em contato, preservando, entretanto, suas peculiaridades. Esse sociointeracionismo adquire sua relevância no contexto específico desta pesquisa, na medida em que sua realização se dá mediada pelas TDIC, trazendo o processo de ensino e aprendizagem para uma modalidade de interação que já é costumeira entre os aprendizes, ajudando a tornar os temas da física, em geral, e o tema dos circuitos elétricos, em particular, mais acessíveis e interessantes. Essas considerações se revestem de importância quando lembramos de que a física é um campo disciplinar considerado de difícil compreensão por muitos estudantes, o que ensejaria, a princípio, diversidade de percursos de desenvolvimento.


  3. METODOLOGIA


    A metodologia adotada neste trabalho está baseada na análise comparada das perspectivas de Gagné e Vygotsky, por meio de breve revisão de literatura, conforme já apresentada na seção anterior, bem como na utilização de Objetos de Aprendizagem (OA), na forma de simuladores dinâmicos para ensino de circuitos elétricos em física.


    1. Objetos de aprendizagem


      De acordo com Wiley (2002, p. 6, tradução dos autores), os objetos de aprendizagem (OA) integram a categoria de “qualquer recurso digital que possa ser reutilizado para suporte ao ensino”. Essa definição, entretanto, enseja interpretações diversas. Pode-se, por exemplo, considerar, como ideia geral, que OA englobam tanto recursos digitais disponíveis na internet, quanto os não-digitais, porém interativos e reutilizáveis em diferentes espaços de aprendizagem. Ao serem desenvolvidos para suporte ao ensino, podem ser utilizados para modalidades de ensino presencial e a distância.

      Os OA têm uma característica importante: facilitar, didaticamente, a construção do conhecimento com visua-lizações de fenômenos físicos e simulações práticas (Araújo, 2017), que possam ser representadas de maneira mais concreta aos estudantes. Nesse contexto, sugere-se a utilização de simuladores experimentais, encontrados em acesso livre na internet, como recurso didático para um plano de aula focado no ensino de circuitos elétricos.


    2. Simuladores


    Simuladores permitem criar situações experimentais que auxiliam a visualização de um fenômeno. Favorecem a observação de situações temporais de curta ou longa duração, possibilitando a visualização de forma mais concreta dos fenômenos físicos em análise, através de modelos de simulação. Sua utilização não substitui inequivo-camente a situação real, mas facilita a compreensão de conceitos-chave que requerem um alto nível de abstração do estudante. Os modelos são, portanto, uma simplificação da realidade (Voinov, 2008), ao mesmo tempo que incorporam elementos invisíveis à situação real4. É importante que o professor conheça o fenômeno representado pela simulação em profundidade, para que seja capaz de apontar as simplificações que podem confundir o estudante em sua aprendizagem. Nesse sentido,


    [...] uma animação não é, jamais, uma cópia fiel do real. Toda animação, toda simulação está baseada em uma modelagem do real. Se essa modelagem não estiver clara para professores e educandos, se os limites de validade do modelo não forem tornados explícitos, os danos potenciais que podem ser causados por tais simulações são enormes. Tais danos tornar-se-ão ainda maiores se o modelo contiver erros grosseiros . (Medeiros y Medeiros, 2002, p. 81)


    Com relação ao software educacional a ser utilizado, não há especificação preliminar, mas critérios gerais. Por exemplo, a qualidade das informações e dos conteúdos disponibilizados no simulador precisam estar em acordo com os conceitos científicos a serem aprendidos e as eventuais simplificações adotadas pelo software não devem atrapalhar o objetivo de aprendizagem ou passar uma imagem distorcida dos conceitos em específico. Além disso, alinhado à perspectiva teórica utilizada, é necessário observar se eles permitem a adequada discriminação dos elementos relevantes, bem como se eles possibilitam uma adequada conceituação dos fenômenos apresentados, e se induzem o desenvolvimento das regras almejadas no processo de planejamento da ação didática. Soares et al. (2019), por exemplo, propuseram uma sequência didática para ensino de circuitos elétricos em física no Ensino Médio, utilizando o software PhET – Interactive Simulation5, com base no modelo de “sala de aula invertida” e a teoria de Vygotsky como referencial teórico.

    No presente trabalho, recomenda-se a utilização não apenas do PhET, mas também a realização de um experimento concreto em sala de aula, com a utilização de pilhas (9V), resistores, LEDs e placa Protoboard, conforme apresentado na proposta didática a seguir. Esses materiais apresentam baixo custo e podem ser reutilizados em aulas subsequentes com outros estudantes. A ideia é utilizar ferramentas web e experimentos reais de forma complementar e sinérgica.

    A partir do quadro teórico apresentado e das possibilidades proporcionadas por simulações computacionais para o ensino de física, propõe-se, como exemplo ilustrativo concreto à prática docente, uma intervenção didática de apoio ao professor interessado na utilização de TDIC com seus estudantes, incluindo sugestões de avaliação da aprendizagem e da aplicação. Essa intervenção pode ocorrer tanto em aulas presenciais, quanto virtuais. Para execução do experimento real na modalidade de Educação a Distância (EaD) ou por estratégias remotas, sua construção poderia ser realizada, por exemplo, em um polo de ensino ou por meio de kits experimentais.


    1. Simuladores podem apresentar elementos complementares, simultaneamente à situação simulada, como vetores, gráficos, trajetória ou intensidade de grandezas físicas, que em uma situação real não são usualmente observados.

    2. O PhET é um software de acesso livre, desenvolvido pela Universidade do Colorado, disponível em vários idiomas, inclusive em Português: https://phet.colorado.edu/pt_BR. Último acesso em 5 out. 2020.


  4. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO DIDÁTICA SOBRE CIRCUITOS ELÉTRICOS


    A intervenção didática aqui proposta deve ocorrer de forma participativa e estruturada, ou seja, envolvendo tanto a interação social, conforme sugerido por Vygotsky (1991), quanto a estruturação do pensamento lógico -formal por etapas, segundo a perspectiva de Gagné (1985). Ao professor compete, portanto, estimular que os estudantes exponham suas ideias e seus conceitos prévios e interajam entre si, proporcionado um ambiente instigante e colaborativo em que se favoreça a apropriação dos conceitos científicos.

    Nesse sentido, foi considerado o modelo de plano de aula de Ferreira e Silva Filho (2019). Sugere -se começar buscando informações com os estudantes sobre quais seriam suas ideias relacionadas à eletricidade, perguntando, por exemplo: a) como obtemos eletricidade? Como e por onde ela flui? Por onde ela passa até chegar em sua casa? O que acontece em sua casa quando se aciona o interruptor da lâmpada? Com essas questões estruturantes da formulação conceitual do tema e com base nas respostas individuais, busca-se introduzir o assunto a partir do cotidiano do estudante, em uma relação mediadora. O professor é chamado a atuar como ouvinte qualificado e a considerar que o estudante vive em sociedade e que, portanto, já dispõe de algum conhecimento

    – que não pode ser ignorado –, como sugere a teoria de Vygotsky. Além disso, seguindo Gagné, os conhecimentos já existentes e sua estrutura e hierarquia, já perpassada pela perspectiva de Vygotsky, são decisivos para promover o desenvolvimento cognitivo.

    Dessa forma, sugere-se, a partir do conhecimento prévio dos estudantes e respeitando suas concepções anteriores, uma formulação pedagógica como a explicitada na figura 3, que apresenta, para um caso concreto, o que consideramos como hierarquias (linearidades) locais imersas em um esquema globalmente não linear. Assim, o aprendizado de circuitos elétricos pode se iniciar, por exemplo, com o desenvolvimento das discriminações relacionadas aos elementos que os compõem: baterias, resistores etc. Esse aprendizado segue uma hierarquia (local) em que se vai, pouco a pouco, estabelecendo discriminações, identificações de classes de objetos e a construção de circuitos em série, em paralelo e mistos, envolvendo baterias, resistores (R) e, se o contexto permitir, indutores (L) e capacitores (C), discutindo assim os chamados circuitos RLC. Tal aprendizado pode ser não-linearmente perpassado por novas discriminações desses elementos, que enriquecem o conhecimento relativo a circuitos em suas diversas formas e que, finalmente, se compõem para a consecução do aprendizado sobre circuitos RLC e suas aplicações (ver figura 3). Além disso, o simulador usado para o aprendizado permite ainda um conjunto de medidas de corrente e tensão, que pode ser introduzido, tanto no aspecto da discriminação, como em qualquer outra fase de Gagné, em qualquer momento dos desenvolvimentos mencionados. Tal mediação pode ser facilitadora da aprendizagem para alguns estudantes, mas pode também ensejar confusões para outros. Por isso, a abordagem inicial é essencial para o professor identificar os melhores caminhos de desenvolvimento pedagógico. Assim, a síntese dialética entre a proposta altamente linear e hierárquica de Gagné e a abordagem altamente não linear e apenas parcialmente hierárquica de Vygotsky6 gera um modelo de aprendizagem integrada, que apresenta linearidade local, mas não linearidade global, permitindo assim os vários caminhos de desenvolvimento associados intrinsecamente à abordagem de Vygotsky.

    Inicia-se, então, uma breve exposição sobre circuitos elétricos, em não mais que 15 minutos, associando-os ao cotidiano do estudante. Mostra-se, de forma bem simplificada, o que é corrente elétrica e como ela flui pelos circuitos, além da sua relação com os conceitos de tensão e resistência, equacionando esses termos. Esquemati-zam-se exemplos para três circuitos – em série, paralelo e misto – mostrando suas relações, para que, seguindo a hierarquia proposta, o estudante seja capaz de, posteriormente, entender os conceitos de resistores, capacitores e indutores.


    1. É importante notar que Vygotsky não nega a existência de relações hierárquicas no contexto do aprendizado. Apenas insere essas relações em um contexto mais amplo e não linear de desenvolvimento cognitivo.




      FIGURA 3. Hierarquia de Gagné-Vygotsky para o ensino de circuitos elétricos. Fonte: os autores.


      Para a construção dos conceitos, utiliza-se um circuito simples na simulação, com fios ideais sem resistência e lâmpadas como demonstração do efeito da corrente. É sugerido o uso dos simuladores como OA; neste caso específico, indica-se o “Kit para montar Circuito DC – Lab Virtual” do PheT7 que pode ser usado de forma interativa, uma vez que



    2. Acessível em: https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/circuit-construction-kit-dc-virtual-lab. Último acesso em 26 mai. 2020.


      é possível alterar parâmetros e variáveis, ao mesmo tempo que pode ser acessado facilmente pela internet em computadores, smartphones e tablets. Sugere-se que o professor faça, inicialmente, uma pequena demonstração do uso do simulador, mostrando o funcionamento para os estudantes e suas possíveis modificações de variáveis e parâmetros, juntamente com seus efeitos na representação da corrente elétrica (figura 4). Alternativamente, os estudantes podem ter um tempo (cerca de cinco minutos) para manipular livremente a simulação, familiarizando-se com ela para depois uma sistematização por parte do professor.



      FIGURA 4. Circuito elétrico simples. Fonte: os autores, utilizando o simulador PhET.


      Recomenda-se salientar aos estudantes para que salvem as imagens e as informações, para acrescentarem-nas no relatório/roteiro que deverão elaborar, a fim de explicar os procedimentos realizados.

      Por fim, complementarmente à utilização de software, sugere-se a realização de um experimento concreto em sala de aula. Cada grupo deverá criar um circuito RC – como os do simulador, porém utilizando LEDs, resistências, capacitores e uma fonte de 9V (bateria ou Arduino), montados em uma Protoboard. Antes disso, o professor deverá explicar o funcionamento da Protoboard e demonstrar um circuito simples como exemplificado na figura 5. Esta prática tem por objetivo desenvolver a compreensão do conceito de capacitor e sua função em um circuito, para extrapolação de sua utilização em circuitos de equipamentos presentes no dia a dia do estudante. Somente após o desenvolvimento da habilidade intelectual proposta, é que serão apresentados e discutidos novos conceitos físicos, que necessitem dessa habilidade intelectual prévia, reforçando a ideia de Gagné sobre hierarquias de aprendizagem.



      FIGURA 5. Circuito Resistência e LED. Fonte: Autodesk Tinkercad.8


    3. Acessível em: https://www.tinkercad.com/things/bNdSb0jILTz. Acesso em 26 ago. 2019.


    1. Proposta de avaliação do desenvolvimento dos estudantes


      A avaliação deve ocorrer continuamente, isto é, a cada etapa de evolução do conhecimento, como proposto na figura 2 ou, para o exemplo concreto apresentado neste trabalho, na figura 3. Para isso, relatórios/roteiros em grupo tanto da parte virtual quanto da parte concreta devem ser desenvolvidos pelos estudantes e avaliados pelo professor. Adicionalmente, recomenda-se que os estudantes façam, em grupo, uma breve apresentação em seminário em sala de aula, sobre os principais conceitos aprendidos sobre circuitos elétricos. Sugere-se que o professor oriente cada grupo a tratar com maior ênfase um ou outro aspecto apreendido, a fim de se evitar duplicidade nas apresentações. Durante o seminário, o professor deve encorajar debates construtivos em classe.

      Após a entrega dos relatórios/roteiros, sugere-se a aplicação de questionários, com o intuito de avaliar o desenvolvimento de cada estudante, uma vez que as avaliações anteriores se deram de forma coletiva, valorizando a aprendizagem por meio da interação social proposta por Vygotsky. O primeiro questionário, a ser administrado individualmente após a entrega do relatório/roteiro referente à parte virtual, é apresentado no Quadro I. É importante que o professor apresente feedback das respostas dos estudantes, em um processo de avaliação formativa, esclarecendo dúvidas e corrigindo distorções na aprendizagem ao longo do processo e não apenas ao final.


      Quadro I. Sugestão de questionário sobre circuitos elétricos.


      Questão

      Expectativa de resposta

      Justificativa teórica


      1

      Explique o conceito de resistência elétrica, a partir de um exemplo.

      A lâmpada (entre outros possíveis exemplos) é um tipo de resistência elétrica, pois ela tem a capacidade de resistir à passagem da corrente elétrica, emitindo luz visível.

      Para explicar o conceito de resistência, o estudante, seguindo a hierarquia de Gagné, terá que desenvolver a habilidade intelectual sobre o conceito de corrente.


      2


      Explique o que é um circuito elétrico.

      Um circuito elétrico é a ligação de elementos elétricos, tais como resistores, indutores, capacitores, entre outros, com intuito de formar pelo menos um caminho fechado para a corrente elétrica.

      Para explicar o que é um circuito elétrico, o estudante deve entender sobre os elementos elétricos, como resistência, para desenvolver a habilidade intelectual seguindo a hierarquia de Gagné.


      3

      Desenhe um exemplo qualquer de circuito elétrico misto.

      (Não há apenas um único desenho possível como correto, mas vários, desde que o circuito apresente uma parte em série e outra em paralelo)

      Para desenhar um circuito elétrico misto, o estudante deverá desenvolver as duas habilidades intelectuais anteriores, para então conseguir aprender sobre circuitos RLC.


      Após a entrega relatório referente à parte concreta e apresentação do seminário, aplica-se o segundo questionário (Quadro II). Novamente, o professor deverá trazer o feedback (de preferência personalizado) aos estudantes, quanto aos seus relatórios, seminário e questionário.


      Quadro II. Sugestão de questionário sobre circuitos elétricos RC, RL e RLC.


      Questão

      Expectativa de resposta

      Justificativa teórica


      1


      Explique o conceito de capacitor com um exemplo.

      A máquina fotográfica (entre outros possíveis exemplos) utiliza o capacitor para armazenar cargas do flash em forma de campo elétrico.

      Para explicar o conceito de capacitor, o estudante, seguindo a hierarquia de Gagné, terá que desenvolver a habilidade intelectual sobre o con-

      ceito de campo elétrico.


      2


      Explique a diferença entre o capacitor e o indutor.

      Capacitores são elementos capazes de armazenar energia sob a forma de campo elétrico; já os indutores são elementos capazes de armazenar e energia na forma de campo

      magnético.

      Para explicar a diferença de capacitor e indutor, o estudante deverá ter adquirido a habilidade intelectual anterior e adquirir uma nova habilidade intelectual sobre indutor para,

      assim, conseguir diferenciá-los.


      3


      Desenhe um circuito RLC.


      Há vários desenhos possíveis, desde que o aluno inclua ao menos um resistor, um indutor e um capacitor, conectados em série ou em paralelo.

      Para desenhar o circuito elétrico, o estudante deverá ter obtido habilidades intelectuais anteriores sobre: corrente, voltagem, resistência, capacitor e indutor, para, então, fazer

      a associação.


    2. A ZDP como instrumento de avaliação do plano de aula


    Tendo em vista que a ZDP pode fornecer um meio para delinear o desenvolvimento cognitivo e, no limite, a aprendizagem, ela também pode ser utilizada como instrumento de avaliação da mediação realizada pelo professor. Com isso, a partir dos questionários aplicados durante as aulas, pode-se determinar a ZDP dos estudantes, individualmente e em média, de maneira que o professor possa identificar possíveis falhas em seu processo de mediação e corrigi-las em suas aulas subsequentes.

    As ZDP dos estudantes podem ser delineadas por meio das chamadas “Unidades de Registro” (URs), que consistem na explicação/descrição adotada pelos estudantes para abordar os conceitos relacionados a circuitos elétricos, como cita Barbosa y Batista (2018). Tais URs podem ser descritas como:


    UR.1) Explicação espontânea ou não-reprodutora: apresenta uma resposta em que não se utilizam conceitos científicos ou ideias científicas. Trata-se de um estágio não-consciente, em que o estudante não dirige sua atenção para os seus atos de pensamento, mas para o objeto a que se refere. UR.2) Explicação quase-reprodutora: apresenta uma explicação em que se utilizam conceitos físicos, jargão, mas se concentra em outros aspectos que a Física geralmente despreza ao explicar o movimento dos corpos. Durante esse estágio, o estudante está na zona de transição de um pensamento inconsciente para um consciente. UR.3) Explicação reprodutora ou imitação alienante: apresenta uma explicação em que se utilizam conceitos físicos, jargão e se concentra em aspectos considerados pela Física para explicar o movimento dos corpos. Esse é um estágio em que o estudante tem consciência dos seus próprios processos mentais, porém se remete ao pensamento e à linguagem do outro. UR.4) Explicação reprodutora-criativa ou imitação não-alienante: apresenta uma explicação que se utilizam os conceitos e ideias da Física por meio de sua própria linguagem. No decorrer desse estágio, o estudante tem consciência dos seus próprios processos mentais, mas vai além da fala do outro, isto é, ele se volta para o “eu”, o que o leva à ressignificação dos conceitos físicos (Barbosa y Batista, 2018, p. 58).


    O uso das URs se adequa harmonicamente à abordagem aqui proposta. De fato, as URs são uma forma de concretizar a maneira pela qual se poderiam caracterizar momentos de desenvolvimento diversos, como os já apresentados nas figuras 2 e 3, mesmo que referentes a um mesmo nível, segundo a tipologia de Gagné. Alguns estudantes podem estar no estágio UR.2, enquanto outros no estágio UR.4. Portanto, caberá ao professor, como mediador, apoiar aqueles no estágio UR.2, de modo a favorecer seu desenvolvimento até o estágio UR.4, o que mostra, igualmente, que são esperados diferentes caminhos de desenvolvimento (abordagem sistêmica).

    Considerando uma resposta hipotética para classificar uma Unidade de Registro, tomemos, apenas a título de exemplificação, o que seria uma resposta equivocada da primeira pergunta do Questionário 1 por um estudante: “O interruptor da lâmpada é um exemplo de resistência, pois, quando acionado, dificulta a passagem da corrente”. Aqui, podemos considerar que o estudante, no contexto de Barbosa e Batista (2018), apresentaria uma explicação quase-reprodutora, pois apresenta uma explicação em que se utilizam conceitos físicos, mas se concentra em outros aspectos

    – no caso, o interruptor ao invés da lâmpada em si, como elemento que a física geralmente utiliza para explicar o conceito de resistência.

    Apoiado nessas Unidades de Registro, o professor poderá determinar o desenvolvimento de seus estudantes, observando possíveis lacunas. Caso elas sejam pontuais e especificas, pode ser cabível uma intervenção personalizada. Contudo, se recorrentes para a maioria dos estudantes, é possível que seja necessária reflexão e intervenção na maneira de mediação, pois ela é determinante para a viabilização da aprendizagem no espectro da ZDP. A mediação, a despeito de suas naturezas, deverá considerar as primeiras discriminações conceituais realizadas pelos estudantes em suas respostas.


  5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Este estudo apresentou, por meio da mediação e interação social, uma sugestão para o desenvolvimento da estrutura cognitiva de estudantes acerca do conteúdo de eletricidade e circuitos elétricos. Para tanto, foi adotada uma fundamentação teórica que, dialeticamente, articulou uma teoria altamente linear e hierárquica, a teoria de aprendizagem de Gagné, com aquela fortemente não linear e apenas parcialmente hierárquica, relativa ao sociointeracionismo de Vygotsky. Mostramos como a síntese dialética desses dois referenciais teóricos permite revelar o caráter idealizado da perspectiva linear e produzir diferentes possibilidades de desenvolvimento, que se ajustariam, eventualmente, a diferentes caminhos de desenvolvimento relativos a diferentes estudantes.

Para efetivar esta articulação, foi adotada uma estratégia baseada no uso de TDIC, em particular na adoção de simuladores como recurso metodológico, em conjunto de aparatos experimentais tradicionais. Como perspectiva avaliativa do desenvolvimento, sugeriu-se a elaboração de roteiros/relatórios, a apresentação de seminários e a utilização de questionários. Além disso, estabeleceu-se a Zona de Desenvolvimento Proximal e as Unidades de Registro como


indicadores para análise qualitativa da abordagem didática adotada pelo professor. Dessa forma, a integração das perspectivas de Gagné e Vygotsky, amparadas no uso de TDIC para uma proposta de aula sobre circuitos elétricos em física para estudantes do Ensino Médio, mostrou-se possível e viável de ser implementada.

Destaca-se que o sucesso da implementação da proposta de aula aqui apresentada depende também de conceitos prévios construídos em aulas anteriores. Além disso, essa proposta se apoia em referenciais teóricos que foram desenvolvidos em diferentes contextos, sendo mais atinentes aos estudos psicológicos do desenvolvimento e não propriamente para a prática de ensino em sala de aula. Portanto, a proposta de intervenção didática sugerida não deve ser vista como um corolário, mas como uma sugestão que pode ser analisada criticamente pelo professor e a ajustada ao contexto escolar e à realidade de seus estudantes, haja vista possíveis incongruências das diferentes perspectivas metodológicas adotadas, que o processo de síntese dialética, eventualmente, não tenha sido capaz de resolver. Cabe ao professor interessado na aplicação dessa proposta verificar se os estudantes estão acompanhando o conteúdo como esperado, em face das preocupações vygotskianas com o desenvolvimento formal dos indivíduos em seus aspectos individuais e socioculturais.

As contribuições teóricas, tanto de Gagné quanto de Vygotsky, oferecem um amparo epistemológico importante ao professor de física, inclusive em tempos de novos paradigmas educacionais, que incluem a adoção de novas tecnologias e possibilidades experimentais. Buscou-se, aqui, oferecer uma abordagem que propiciasse o aprendizado de forma coletiva, gradual e crescente, rompendo estereótipos de uma disciplina difícil e distante da realidade dos estudantes e a partir de uma perspectiva coletiva da inteligência.


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