VOLUMEN 33, NÚMERO 2 | Número especial | PP. 245-252
ISSN: 2250-6101
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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 33, no. 2 (2021) 245
La evaluación del presente artículo estuvo a cargo de la organización de la XIV Conferencia Interamericana de Educación en Física
Histórias em quadrinhos produzidas
por alunos de ensino médio:
identificando sentidos e indicadores
de alfabetização científica
Comic books produced by high school students:
identifying meanings and indicators of scientific
literacy
Maria Bethânia de Siqueira Leite Fochi dos Santos
1*
, Adriana Bortoletto
2
,
Isabel Cristina de Castro Kondarzewsky
3
1 Colégio Técnico, Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
2
Programa de Pós-Graduação “Educação para a Ciência”, Campus de Bauru; Departamento de Física, Campus de Ilha
Solteira, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
3
Programa de Pós-Graduação “Educação para a Ciência”, Campus de Bauru; Departamento de Física, Campus de Gua-
ratinguetá, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
*E-mail: bethania.fochi@unesp.br
Recibido el 15 de junio de 2021 | Aceptado el 1 de septiembre de 2021
Resumo
Pesquisa realizada em uma escola rural do Vale do Paraíba, Estado de São Paulo (Brasil), avaliou como as histórias em quadrinhos
produzidas por alunos podem ser analisadas por meio da análise de discurso e indicadores de alfabetização científica. Como resultado,
constatou-se que os alunos não reconhecem os conteúdos da Física como importantes para a explicação dos fatos do cotidiano, além
das questões de gênero relacionadas às ciências. Ficaram evidentes também os poucos indicadores de letramento científico que pu-
deram ser encontrados nos textos produzidos pelos alunos, o que sugere graves lacunas de aprendizagem em ciências.
Palavras chave: História em quadrinhos; Análise do discurso; Indicadores de alfabetização científica.
Abstract
Research carried out in a rural school in Vale do Paraiba, in the State of São Paulo (Brazil), evaluated how comic books produced by
students can be analyzed through the analysis of discourse and scientific literacy indicators. As a result, it was found that students do
not recognize the contents of Physics as important for the explanation of everyday facts, in addition to gender issues related to Science.
It was also clear the few indicators of scientific literacy that could be found in the texts produced by the students, which suggests
serious learning gaps in science.
Keywords: Comics; Speech analysis; Scientific literacy.
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I. INTRODUÇÃO
A fala dos alunos revela muito sobre a realidade educacional das escolas públicas estaduais paulistas. Indo um pouco
mais além, são falas que revelam muito sobre os conhecimentos oferecidos e construídos em sala de aula, o que se
torna ainda mais significativo se são avaliadas questões contextuais como as da atualidade, em que se exige uma série
de conhecimentos enquanto possibilidades para a compreensão e para a atuação na sociedade de forma autônoma e
consciente.
O desenvolvimento de uma dissertação de mestrado em Educação em Ciências foi articulado a uma atividade cur-
ricular de Língua Portuguesa a produção de Histórias em Quadrinhos (HQs) por alunos do terceiro ano do Ensino
Médio com uma atividade experimental de Física uma feira itinerante para, através da Análise do Discurso
(Pechêux) e dos indicadores de alfabetização científica verificar quais sentidos emergiam dos discursos dos alunos e
quais indicadores poderiam ser identificados nessas HQs produzidas a partir da feira.
Sendo assim, este trabalho recupera algumas pesquisas desenvolvidas em torno do uso de gêneros textuais do tipo
HQ na educação em Ciências. Na sequência, retoma obras que promovem a apropriação da linguagem quadrinhística,
exemplifica com dois dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos e os analisa, usando como referencial analítico da Aná-
lise do Discurso (AD) e os indicadores da Alfabetização Científica (AC).
II. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
Diversas têm sido as pesquisas que envolvem as HQs e o Ensino de Ciências. Uma dessas pesquisas é a desenvolvida
por Franco & Oliveira (2014), em que os autores discutem como a leitura de HQ pode contribuir, na área das Ciências
Biológicas, para o letramento científico de alunos do 9° ano do Ensino Fundamental, para aquisição de conhecimentos
relacionados à Genética e ao DNA. Os autores pontuam que esse gênero textual possui ampla aceitação entre jovens
e crianças no cotidiano privado. Além disso, citam dados de 2014 sobre o Índice de Letramento Científico dos brasilei-
ros, os quais revelam grande deficiência para compreender e aplicar conceitos na vida cotidiana, sendo necessário,
portanto, elaborar materiais didáticos que proporcionem a construção do conhecimento científico. Pizarro (2009)
pontua que a inserção das HQs nos livros didáticos é um marco que evidencia a aceitação desse recurso por parte de
educadores. A partir do olhar de alguns autores sobre o uso de HQs, vinculado ao ensino de Ciências, compreende-se
que, embora a linguagem quadrinhística tenha uma grande aceitação pelo público infantil e adolescente, trata-se de
um recurso didático, que como outro qualquer, demanda ação docente em trabalho colaborativo junto aos alunos para
construção do conhecimento científico.
III. HQ EM SALA DE AULA: REFERENCIAIS TEÓRICOS E ANALÍTICOS
Para Rama & Vergueiro (2016) embora trabalhar com as HQs em sala de aula seja uma necessidade premente, é
essencial desenvolver o que se chama de alfabetização para a compreensão da linguagem dos quadrinhos. Como
alguns autores colocam, boa parte do motivo da linguagem quadrinhística ser subutilizada em sala de aula, esna
falta de conhecimento sobre essa linguagem, que como qualquer outra, exige conhecimentos específicos.
Ramos (2010) esclarece sobre a “linguagem autônoma” que caracteriza os quadrinhos, cujos mecanismos narrati-
vos lhes são próprios. Embora possuam semelhanças com outras formas de linguagem, tais como o cinema e a foto-
grafia, os quadrinhos possuem características próprias de linguagem. Charges, cartuns, tirinhas, histórias em
quadrinhos: todos eles estariam sob um mesmo rótulo, o do hipergênero quadrinhos. Ramos comenta a diferença
entre charge e cartum e afirma que o gênero ainda é pouco explorado, que são necessários estudos linguísticos que
ampliem discussões a respeito e que “ler quadrinhos é ler sua linguagem”, ou seja, reconhecer os seus conceitos e
recursos mais básicos. Na sequência, o autor desenvolve um estudo a respeito dos recursos utilizados na HQ, como o
uso de balões e vinhetas, elaboração de personagens, uso de cores, de onomatopeias etc.
McCloud (2005) comenta a respeito do formato do quadrinho. Reconhecendo que palavras e figuras têm um
grande poder para contar histórias quando completamente exploradas, McCloud classifica os tipos de quadrinhos com
relação à combinação de palavras e figuras. Segundo ele, atualmente as HQs são uma das poucas formas de comuni-
cação em massa em que ainda se podem verificar vozes individuais. É onde elas ainda podem ser ouvidas.
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IV. CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS E DOS DADOS COLETADOS
A pesquisa foi desenvolvida em uma escola rural de um município do Estado de São Paulo, Brasil. Atende a uma
clientela de classe baixa, constituída por filhos de agricultores que tomam conta de suas próprias terras ou de propri-
edades de outras pessoas. Muitos alunos não permanecem por longos períodos na escola, visto que os pais dependem
da disponibilidade de emprego e, por isso, acabam se mudando para outras partes do município.
A atividade de produção de texto desenvolvida no terceiro ano do Ensino Médio, com alunos na faixa etária apro-
ximada de 17 anos, faz parte da proposta curricular de Língua Portuguesa e é um dos conteúdos previstos para o
primeiro semestre.
Para o desenvolvimento da atividade, a primeira ação foi uma roda de leitura. Várias obras do acervo escolar em
quadrinhos foram levadas para a sala de aula e dispostas de modo que cada aluno pudesse se levantar, pegar o que
lhe interessasse, ler e, ao final, compartilhar com os colegas o que mais lhe chamou a atenção. Nas aulas seguintes,
seguindo o que Ramos (2010) e Rama & Vergueiro (2016) apontam como sendo os recursos essenciais da HQ, os
alunos continuaram usando o material selecionado para a aula de leitura para identificar aspectos como calhas, figuras
cinéticas, títulos, metáforas visuais, legendas, além dos tipos de planos, de balões, de vinhetas e de personagens. Foi
construído coletivamente um “roteiro de observação”, a partir do qual os alunos deveriam identificar características
do gênero nas próprias HQs, isto é, nos textos produzidos por eles mesmos. Essas atividades, que duraram dois dias
de trabalho (ou seja, cinco aulas), levaram os alunos a construírem uma HQ de tema livre, preparatória para a atividade
seguinte.
Na semana seguinte a essas atividades, os alunos assistiram a uma feira itinerante de demonstração experimental
de Física que ocorreu dentro da própria sala de aula. Essa feira itinerante foi conduzida por dois alunos bolsistas uni-
versitários (ambos do sexo masculino) do curso de Física da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), supervisionados por uma professora também da UNESP. Foram usadas três aulas para que os alunos pudes-
sem interagir com os experimentos sobre movimento e equilíbrio, óptica e eletricidade.
A partir da participação na exposição, foi colocada a seguinte proposta para que os alunos desenvolvessem: “Pro-
duzam uma HQ a partir do que foi visto durante as demonstrações de Física”. Foram cedidas cinco aulas para que eles
planejassem e executassem a atividade, realizada em quatro duplas e um trio, sem nenhuma interferência da profes-
sora de Língua Portuguesa, que esteve presente o tempo todo na sala de aula. Assim, foram produzidas cinco HQs a
respeito da feira itinerante da qual os alunos participaram: “Zequinha e Julinho... Aplicando a Física”, “Os Tombos da
Física”, “Experimento de Física”, “Renam em... A Física da Química” e “Nem tudo o que se vê é real”, dos quais vamos
analisar, como exemplo neste trabalho, apenas o texto I (Figura 1) e o texto V (Figura 2), mostrados a seguir:
FIGURA 1. Texto I
1
, a HQ “Zequinha e Julinho... Aplicando a Física”.
1
Diálogos do texto I: “UHUU! VAMOS FAZER O LOOPING!”(1º quadrinho) “BEM QUE A PROFª DISSE”(3º quadrinho), “SE A DESCIDA QUE ANTECIPA
O LOOPING, NÃO FOR MAIOR QUE A CURVA NÃO ENERGIA POTENCIAL QUE EMBALE O CARRINHO AÍ...” (4º quadrinho) “SÓ BALÃO DE
QUADRINHO PARA SALVAR!” (5º quadrinho).
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FIGURA 2. Texto V
2
, a HQ “Nem tudo o que se vê é real”.
V. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Todas as HQs coletadas possuem um título colocado em destaque, quadrinhos delimitados por vinhetas e sarjetas e
também fazem uso de balões: é possível identificar os balões de fala, de pensamento, de grito e de cochicho. Uma
questão colocada por Ramos (2010) é a observação dos níveis de fala que aparecem nos balões: é possível identificar
aspectos socioculturais nas falas de personagens que representam alunos e o uso do português padrão pelas perso-
nagens que representam monitores.
Passando dessa primeira observação para a análise do discurso (AD), prioritariamente é preciso definir que a AD
tem como objeto a materialidade das falas dos sujeitos. Mas quando se trata de histórias em quadrinhos, além dos
significados produzidos pelas falas das personagens, há outro elemento que também “significa”, que são os desenhos
produzidos pelos autores. Como já visto anteriormente, há diversos modos de se combinar desenho e texto. McCloud
identifica sete tipos de quadrinhos com relação à combinação entre texto e figuras e há quadrinhos em que a imagem,
por si só, realiza todo o processo comunicativo.
Além disso, com base no que Bakhtin (2011) define sobre a natureza da criação da personagem, é imprescindível
separar o autor da personagem. Assim, será analisado o contexto de produção das HQs, pensando em seus autores,
e o contexto de produção e os discursos que aparecem nas HQs (BAKHTIN, 2011). Entretanto, para a análise dos textos
segundo os critérios da Alfabetização Científica, não se realiza a diferenciação entre autor e personagem que se fez
para a análise do discurso. Considera-se que as informações que estão nas falas das personagens refletem o vocabu-
lário e visão de mundo dos autores e, para que não se passe uma ideia reducionista e simplista dos critérios, eles serão
abordados se aparecerem de forma explícita nos discursos.
O início do dispositivo de análise, com base na AD, se com a identificação da textualidade o que significa no
que foi produzido pelos alunos , das condições de produção, das relações de força e das formações imaginárias. Os
cinco textos produzidos tiveram uma mesma condição de produção, elaborados em sala de aula, após o desenvolvi-
mento de uma série de atividades em que todos os alunos estiveram presentes e cujas etapas foram descritas. O
referente ou contexto de produção (escola ou sala de aula) aparece nos textos, exceto no Texto I. O contexto é o da
sala de aula ou de um espaço escolarizado, de uma aula ou de exposição de Física. Entretanto, quando se trata da
2
Diálogos do Texto V: “QUE LEGAL! VOU ENTRAR PARA VER” (1º quadrinho), “NOSSA MANO! QUE DA HORA” (2º quadrinho), “QUE PORCO
FOFINHO! QUERO PEGAR!” (3º quadrinho), “PORQUE EU NÃO CONSIGO PEGAR O PORCO?” (5º quadrinho), “ISSO QUE VOVIU É UMA ILUSÃO
DE ÓTICA, NA VERDADE O PORCO ESTÁ DENTRO DESSE POTE, POTE QUE É ARREDONDADO E DE VIDRO POR ISSO O PORCO PARECE QUE ESTÁ EM
CIMA.” “AH, SIM” (6º quadrinho).
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questão das condições de produção, outra questão que se impõe à análise, que é a produção dos discursos das
personagens da HQ. O texto I tem como condição de produção um parque de diversões, em que estão dois adoles-
centes.
Segundo Orlandi (2015), identificar as condições de produção dos discursos pode oferecer um bom indicador a
respeito da ideologia dos falantes. Primeiramente, com relação ao discurso dos próprios alunos, há que se observar
que, com exceção dos autores do primeiro texto, o conhecimento das ciências está atrelado a um espaço que é o
escolar ou escolarizado.
Secundariamente, é possível desenvolver outra compreensão das HQs em relação à condição de produção, que é
compreender o que se estabelece na narrativa. Entretanto, que se fazer um esclarecimento com relação a esse
aspecto. Segundo Orlandi (2015, p.37), em uma condição de produção estão inúmeros discursos e o discurso elabo-
rado sempre aparece como uma resposta a outros que coexistem; desta forma, os sentidos resultam de relações, em
que um discurso aponta para outros discursos e para os que o sustentam. Partindo dessa definição, a autora também
coloca que os sujeitos fazem uso do mecanismo da antecipação em que, colocando-se no lugar de seu interlocutor,
verificam a validade de suas palavras, regulando a argumentação que ocorre no discurso.
Assim, é possível compreender que o Texto I, o único que inseriu a narrativa e as personagens em uma condição
de produção fora do ambiente escolar, o fez de forma a criar uma continuação dos discursos que foram ouvidos du-
rante a exposição de Física. Nessa exposição, os monitores e a professora que os acompanhava, ao apresentar os
experimentos, indicavam quais eram as aplicações dos conceitos em fatos cotidianos, relacionados à vivência dos
alunos. Dessa forma, ao colocar o experimento do looping no parque de diversões, os alunos fizeram essa transposição
do discurso vivenciado para a realidade imediata, ou seja, a memória de um discurso realizado que se concretiza no
discurso dos alunos. É interessante ainda observar que o título “Zequinha e Julinho... Aplicando a Física” indica a per-
cepção de que o conceito, tal como é apresentado em sala de aula, cumpre um objetivo maior ao ser aplicado na
compreensão dos fenômenos cotidianos.
Pensando nas personagens como uma projeção da imagem que os alunos fazem de si mesmos e no modo como
isso foi representado nos quadrinhos, no Texto I tem-se que as duas personagens se comportam de formas antagôni-
cas. Trata-se de uma tensão que se estabelece no texto, ainda que imperceptível: a personagem que está na parte da
frente do carrinho tem a sua atenção voltada totalmente para o que está vivenciando, enquanto o colega, indisposto,
parece estar voltado somente para o mal-estar físico. Quando o carrinho se desprende da montanha russa e as per-
sonagens estão em queda livre, é a personagem “dona da situação” que segura o rabicho (ou apêndice) do balão de
fala do quadrinho e reflete (através de uma paráfrase) sobre o discurso da professora: se o ponto de partida do carri-
nho (que indica a energia potencial) não for mais alto do que o looping, a energia não é suficiente para que o carrinho
complete a volta. Por fim, ele salva a si e ao colega, mantendo-se pendurado no rabicho do balão (estabelecendo
claramente uma metalinguagem no texto).
Conforme Orlandi (2015, pp.37-38), também faz parte das condições de produção a relação de forças: segundo
essa noção, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz (p.37). Desta forma,
cada falante ocupa a sua posição no discurso de acordo com a posição que ocupa na sociedade hierarquizada. E, além
da relação de forças, Orlandi também considera as chamadas formações imaginárias, que são a representações ou
imagens dessas posições que aparecem nos discursos; assim, cria-se a distinção entre os lugares dos sujeitos (situações
empíricas) e as posições dos sujeitos nos discursos. As formações imaginárias no discurso são bastante complexas,
que pressupõem as imagens que os sujeitos fazem de si mesmos, dos seus interlocutores e do objeto do discurso.
Assim, com base no que é definido por Orlandi, é possível identificar que no Texto I os autores se representam
como dois adolescentes que vivem uma situação típica da idade, em um parque de diversões. Entretanto, duas
relações de força que se colocam na narrativa. Primeiramente, com relação à fala da professora, observa-se o recurso
da paráfrase. Segundo Orlandi (2015) não sentido sem repetição. Entretanto, não é qualquer discurso que está
sendo retomado e parafraseado: é o discurso da professora de Física, enquanto uma autoridade para explicar aquilo
que está acontecendo na história. Como o experimento do looping foi realizado em sala de aula, há duas falas sendo
retomadas: a empírica (que ocorreu de fato) e a simbólica (transformada em ficção dentro da HQ). Uma outra relação
de força é a que se estabelece entre as próprias personagens, já que somente uma personagem “fala”.
Além desses aspectos que formam a enunciação, é possível também identificar a formação discursiva da persona-
gem que fala. A partir da fala do terceiro quadrinho “Bem que a prof.ª disse” , que é um subentendido, é possível
identificar que se trata de um estudante que reconhece as leis da Física, consegue transpô-las para a realidade e usa
recursos da linguagem quadrinhística (como a metalinguagem) com uma certa habilidade. Ao se pontuar a paráfrase
e o uso da metalinguagem, já se delineiam alguns aspectos a respeito da formação discursiva da personagem.
Outro aspecto que merece ser observado é com relação ao silêncio de uma das personagens que compõe esse
texto. Embora a segunda personagem não fale, é possível verificar que ela nos comunica algumas informações. No
primeiro quadrinho, ela indica que a ação vinha transcorrendo algum tempo, que, com a mão na boca e os
olhos arregalados, a entender que algo não está bem. No segundo quadrinho, com a queda, o grito que indica
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o medo do impacto iminente. No terceiro quadrinho, a personagem continua em silêncio e passando mal. Por fim,
terminam os quadrinhos sem fala da personagem. É interessante destacar que o discurso colocado no texto I traz
algumas relações com o que Orlandi trata sobre “diferentes modos de funcionamento do discurso”, ou seja, sobre os
discursos autoritário, polêmico e lúdico. Assim, é possível verificar que embora o discurso da personagem que fala no
Texto I não seja especificamente autoritário, foram feitas escolhas discursivas que o inserem, sob alguns aspectos, na
definição do que Orlandi define como sendo esse tipo de discurso. A postura da personagem é de definir o aconteci-
mento de acordo com o que foi ensinado pela professora; não ocorre uma relação muito clara com o interlocutor, que
seria o colega. Este, na verdade, parece mais voltado para o seu mal-estar físico do que com a queda do carrinho da
montanha-russa. Ainda com relação à formação discursiva presente no Texto I, é possível verificar que algumas pala-
vras remetem diretamente ao vocabulário adolescente, como a exclamação “uhuu!”. Entretanto, quando retoma a
fala da professora, o personagem se configura claramente enquanto um aluno que entende a figura do professor
como uma autoridade.
Outro aspecto que pode ser observado é com relação ao título “Zequinha e Julinho... Aplicando a Física”. Segundo
a análise do discurso, é necessário “desnaturalizar” o discurso, deixar de considerá-lo como a única forma de ter sido
realizado tal como foi feito. Outra palavra que caberia no título seria o verbo vivenciando”. Todavia, verificar por que
ele não foi utilizado leva a algumas conclusões a respeito das escolhas dos alunos. Acaso os alunos estivessem “viven-
ciando” a Física, o desfecho poderia não ter sido positivo: o carrinho poderia se soltar e as personagens se chocarem
contra o chão. Escolhendo o “aplicando”, tem-se uma escolha semântica que pressupõe que, depois do acidente, as
personagens poderiam explicar o fenômeno, usando as leis da Física. Além disso, o emprego de alguns recursos da
linguagem quadrinhística esdiretamente relacionado com o fato das personagens “aplicarem” a física. O primeiro
deles é o uso de linhas cinéticas no primeiro quadrinho, que permite a percepção de um movimento que vinha se
desenvolvendo. O segundo recurso é o uso dos planos. O uso do “plano geral” no segundo quadrinho foi essencial: o
uso do enquadramento amplo, de forma a abranger tanto as figuras humanas quanto o cenário, evidencia para o leitor
como o ponto que antecede o looping é bem mais baixo, com relação à altura. Dessa forma, -se a preocupação do
autor em criar um discurso visual coerente com o discurso verbal.
É possível observar que o Texto I apresenta alguns indícios de AC relacionados à seguinte habilidade: conhece os
principais conceitos, hipóteses e teorias científicas e é capaz de aplicá-los. Segundo Sasseron & Carvalho (2011), esta
proposição visa a atender necessidades em dois sentidos: um instrumental e outro cultural (op. cit., p. 68). O primeiro
possibilita a uma pessoa falar sobre ciência e/ou sobre ideias científicas; o segundo, proporcionar conhecimentos que
levem esta pessoa a perceber quais as implicações de uma teoria. Deste modo, pensando no caráter cultural, o autor
do texto mostrou-se capaz de utilizar ideias científicas; quanto ao caráter instrumental, que leva uma pessoa a
perceber as implicações de uma teoria, observa-se que no quadrinho a personagem conseguiu transpor um discurso
elaborado pela professora para uma situação extraescolar. Além desse indicador, identifica-se também nesse texto a
habilidade extrair da formação científica uma visão de mundo mais rica e interessante, que prevê além de perceber
as ciências e seus constructos como elaborações humanas, o apreço e o prazer na compreensão dos fenômenos e
elementos naturais que fazem parte de nosso dia-a-dia (SASSERON & CARVALHO, 2011, p.70). Essa habilidade, relaci-
onada a uma dimensão multidimensional, fica evidente quando a personagem retoma a fala da professora para expli-
car um fenômeno do cotidiano. Nesse sentido, a própria montanha-russa seria, na percepção do aluno, uma
construção que usa em seu planejamento e execução conhecimentos científicos e o aluno reconhece que as teorias
científicas têm uma relação com a sociedade.
No Texto V, as ações se iniciam com a personagem chegando a uma “Exposição de Física”. Esse ambiente exerce
uma atração sobre a personagem, através da curiosidade, tanto que ela diz “QUE LEGAL! VOU ENTRAR PARA VER!”. A
HQ é composta por seis quadrinhos e, a maioria deles, de alguma forma, focaliza sentimentos da personagem: no
primeiro, tem-se a curiosidade; no segundo, a surpresa diante de experimentos de eletricidade e óptica; no terceiro,
a admiração e o desejo de tocar algo classificado como “fofinho”; no quarto, o espanto mesclado à dúvida; no quinto,
o sentimento de espanto cede lugar à elaboração da dúvida: “PORQUE EU / NÃO CONSIGO / PEGAR O PORCO?” e, por
último, a satisfação diante da explicação e da resolução da dúvida. Assim podem ser resumidos os sentidos que for-
mam a textualidade.
Observando a questão da enunciação, percebe-se uma personagem feminina e há alguns aspectos do seu discurso
que merecem ser destacados. A respeito das condições de produção,-se que há algumas relações de poder que se
inserem no texto. uma relação que pode ser definida como sendo de igualdade entre as personagens que com-
põem o segundo quadrinho e uma relação em que uma personagem se coloca como autoridade no último quadrinho,
que é quando o monitor oferece uma explicação lógica para o fato do porco não poder ser tocado: trata-se de uma
imagem projetada por um objeto que faz uma combinação entre espelhos; é uma “ilusão de ótica”.
Com relação à formação discursiva, vê-se que foram feitas algumas escolhas que inserem a protagonista no “lugar”
a partir do qual fala. No primeiro quadrinho, foi usada a palavra “legal”. No segundo quadrinho, há um “colega” que
também observa os experimentos e expressa a sua admiração com uma interjeição típica dos adolescentes (“NOSSA
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/ MANO!”) e os qualifica como sendo “da hora”. No terceiro quadrinho, a personagem vê o experimento de formação
de imagem real e diz “QUE PORCO / FOFINHO! / QUERO PEGAR!”. O adjetivo “fofinho” parece diretamente relacio-
nado ao universo feminino, denotando a delicadeza das adolescentes para qualificar o que estão vendo. Outras pala-
vras poderiam ser usadas nesse contexto, mas não teriam o mesmo significado.
Recursos imagéticos e quadrinhísticos também devem ser observados: o uso de corações que compõem a estampa
da camiseta usada pela protagonista, remetendo à feminilidade e ao romantismo, confirma imagens ideologicamente
construídas e que circulam na sociedade confirmando um conceito de feminilidade. A escolha dessa estampa se rela-
ciona exatamente com o adjetivo “fofinho” usado anteriormente.
Outro aspecto relacionado ao texto que merece ser destacado é o título. Através da estrutura “Nem tudo o que se
vê é real”, ele retoma através da memória, um ditado popular: “Nem tudo o que reluz é ouro”. Retomando o adágio
através da paráfrase, os autores elaboraram um título em que se percebe a oposição: ver X real. Na concepção dos
alunos, provavelmente tudo aquilo que se vê é real. Mas o que acontece na experiência de formação de imagem real,
aquilo que se projeta é uma imagem do objeto, não o objeto em si. Ao elaborar o título, os alunos fizeram o que
Orlandi (2015) chama de produtividade, já que se assenta no processo parafrástico (ORLANDI, 2015).
Até o Texto V é possível perceber uma questão que se coloca à análise, que é a relativa ao gênero. No Texto I,
somente personagens masculinas. O texto V tem como protagonista uma adolescente, mas quem desempenha o
papel de esclarecer as suas dúvidas e restituir-lhe a paz é também um monitor. Isso é significativo quando se pensa
em uma sociedade em que ainda circulam diversos discursos (que também se concretizam através de situações) em
que a mulher é desvalorizada.
Com relação aos indicadores de AC, o que é possível identificar no texto V? Ao chegar à exposição de Física, a
personagem exclama “QUE LEGAL! VOU ENTRAR PRA VER”, o que nos permite avaliar que ela também aprecia as
ciências e as tecnologias pela estimulação intelectual que elas suscitam. Sasseron & Carvalho (2011) comentam que,
a respeito desse critério pode-se relacionar tanto o sentido instrumental quanto o cultural. Quanto ao aspecto instru-
mental, percebe-se o prazer intelectual frente a um desafio; no caso, o fato de não conseguir pegar o objeto real, o
porquinho, pois o que pode ser visto nesta apresentação é apenas uma imagem deste objeto, ainda que uma imagem
real, o que certamente estimula a curiosidade e o interesse do aluno pela explicação científica do fenômeno. com
relação ao aspecto cultural, percebe-se o emprego de termos próprios das ciências, ao buscar e aceitar o discurso do
monitor, que lhe explicou o fenômeno e, assim, permitiu desenvolver a habilidade extrair da formação científica uma
visão de mundo mais rica e mais interessante. Segundo Sasseron & Carvalho (2011) essa visão não se aplica somente
à percepção da ciência enquanto uma construção humana, mas também à concepção de que pode explicar situações
cotidianas.
VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho com HQs em sala de aula pode ser um recurso interessante na área de Ciências, entretanto exige apropri-
ação da linguagem própria desse tipo de gênero textual e objetivos muito claros por parte de docentes. A retomada
de alguns referenciais teóricos específicos sobre a linguagem quadrinhística evidencia quantas possibilidades existem
nesse tipo de linguagem, e como elas podem agregar significados aos textos.
Assim, a pesquisa realizada, além concretizar uma abordagem interdisciplinar, possibilitou uma análise do discurso
tendo como base esses textos produzidos pelos alunos, a partir dos quais foi possível verificar que, para os alunos, a
Ciência (ou a Física) não traz explicações sobre o mundo imediato; por último, nos textos se concretiza a concepção
das Ciências como um espaço de produção intelectual eminentemente masculino. Essas são questões cruciais para a
educação e, principalmente, para o Ensino Médio. É importante lembrar que no Brasil essa é a etapa em que se apre-
sentam os maiores índices de evasão escolar.
Com relação aos indicadores de Alfabetização Científica, dos indicadores listados por Carvalho & Sasseron (2011),
apenas dois foram identificados. Dos cinco textos produzidos por alunos, dois textos não apresentaram nenhum indi-
cador explícito, seja na linguagem verbal, seja na linguagem não-verbal, o que mostra uma realidade bastante preo-
cupante em relação ao que é oferecido aos alunos em termos de educação em ciências.
Ainda que tenhamos optado, neste trabalho, por apresentar as análises de apenas dois textos, o uso das HQs esse
parece ser um recurso bastante interessante para avaliação das interpretações dos alunos. A partir da coleta e da
análise dos dados fica evidente que o trabalho com textos seja a partir da sua leitura ou da sua produção pode
tanto auxiliar no processo de alfabetização científica, levantando reflexões e questionamentos, quanto permitir a
identificação de sentidos e ideologias que emergem dos discursos. Essas ideologias evidenciam o que precisa ser de-
senvolvido, aprimorado ou mesmo mudado no processo de ensino-aprendizagem.
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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 33, no. 2 (2021) 252
AGRADECIMENTOS
CAPES/PROAP - Brasil
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