https://doi.org/10.53971/2718.658x.v12.n20.35974

Salón de belleza versus “dispositivo de pessoa”: corpo, doença e sexualidade

Ana Carolina Macena Francini

Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil anafrancini@msn.com.

ORCID: 0000-0002-5548-6373 Recibido 17/06/2021 Aceptado 12/09/2021

Resumo

Em Viajes virales (2012), Lina Meruane elabora uma leitura crítica acerca do corpus literário sobre a Aids produzido no auge da epidemia na América Latina. Neste livro, a autora destaca a novela Salón de belleza (1994), de Mario Bellatin, como uma das obras fundamentais sobre este tema, na qual a doença posta em discurso delata o extermínio da comunidade homossexual latino-americana, que compreenderia o gay pobre afeminado. A novela gira em torno de um cabeleireiro travesti que, na ausência de políticas públicas, converte o seu salão de beleza em um ‘moridero’ para acolher os corpos abandonados de homens doentes que, acometidos por uma doença contagiosa associada indiretamente à homossexualidade e à aids, não mais se adequam à categoria de pessoa humana, digna de direitos básicos. Por seu turno, pressupondo um indivíduo “universal” e “descorporificado”, a categoria de pessoa, conforme teorizou Roberto Esposito (2009, 2011), tornou-se o conceito- chave que sustenta as reivindicações dos direitos humanos, contraditoriamente, tão em voga na contemporaneidade. À luz dessas ideias, o objetivo deste trabalho é analisar de que modo Salón de belleza, ao pôr em foco o corpo doente e sexualmente dissidente, problematiza a eficácia da categoria de pessoa como garantidora de direitos, revelando-se, em realidade, um dispositivo biopolítico de exclusão e controle dos corpos: separando biologicamente -a partir da doença, do gênero e da sexualidade- quem merece viver e quem deve morrer.

Palavras-chave: Salón de belleza, corpo, doença, dispositivo de pessoa

Salón de belleza versus ‘dispositivo de la persona’: cuerpo, enfermedad y sexualidad

Resumen

En Viajes virales (2012), la escritora Lina Meruane elabora una lectura crítica acerca del corpus literario sobre el SIDA producido en el auge de la epidemia en Latinoamérica. En este libro, Meruane destaca como una de las obras fundamentales sobre este tema la novela Salón de belleza (1994), de Mario Bellatin, que —al poner la enfermedad en discurso— delata el exterminio de la comunidad homosexual latinoamericana, que

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comprendería el gay pobre afeminado. Narrada en primera persona por el protagonista, un peluquero travesti, la novela gira en torno de este personaje que, en la ausencia de políticas de Estado, convierte a su salón de belleza en un ‘moridero’ para acoger a los cuerpos de hombres enfermos y abandonados que, acometidos por una enfermedad contagiosa asociada de forma latente a la homosexualidad y al SIDA, ya no se adecuan a la categoría de persona humana, digna de derechos básicos. Suponiendo un “sujeto de la consciencia” apartado de su cuerpo, conforme ha teorizado Esposito (2009, 2011), la categoría de la persona es valorada en discursos jurídicos, filosóficos y políticos y —sobre todo— sustenta las reivindicaciones de los derechos humanos, contradictoriamente, tan en boga en la contemporaneidad. A la luz de esas ideas, el objetivo de este trabajo es analizar cómo la novela Salón de belleza, al enfocar el cuerpo enfermo y sexualmente disidente, problematiza la eficacia de la categoría de la persona como garantía de derechos, así se revela un dispositivo de exclusión de los cuerpos a servicio de la biopolítica que regula la muerte y separa biológicamente —a partir de la enfermedad, del género y de la sexualidad— a los que merecen vivir de los que merecen morir.

Palabras clave: Salón de belleza, cuerpo, enfermedad, dispositivo de la persona

Salón de belleza versus “the dispositif of the person”: body, disease and sexuality Abstract

In Viajes virales (2012), Lina Meruane provides a critical reading of the literary corpus on AIDS, produced at the height of the epidemic in Latin America. In this book, the author highlights the novel Salón de belleza (1994), by Mario Bellatin, as one of the fundamental works on this theme, in which the writing of the disease denounces the extermination of the Latin American homosexual community, which would include the poor effeminate gay. The novel revolves around a cross-dresser hairdresser who, in the absence of public policies, converts his beauty salon into a ‘moridero’ to shelter the abandoned bodies of sick men who, affected by a contagious disease indirectly associated with homosexuality and AIDS, no longer fit into the category of human person, worthy of basic rights. In turn, assuming a “universal” and “disembodied” individual, the dispositif of the person, as theorized by Roberto Esposito (2009, 2011), has become the key concept that sustains human rights claims, contradictorily, so popular in contemporaneity. In light of these ideas, the aim of this paper is to analyze how Salón de belleza, by focusing on the sick and sexually dissident body, problematizes the effectiveness of the dispositif of the person to guarantee rights, revealing itself, in reality, as a biopolitical apparatus of exclusion and control of bodies: separating biologically-based on health condition, gender and sexuality- who deserves to live and who must die.

Keywords: Salón de belleza, body, disease, dispositif of the person

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Hablo por mi diferencia

Defiendo lo que soy

Y no soy tan raro

Me apesta la injusticia

Y sospecho de esta cueca democrática

Pero no me hable del proletariado

Porque ser pobre y maricón es peor

Hay que ser ácido para soportarlo

Manifiesto, Pedro Lemebel

Em uma entrevista, publicada no periódico brasileiro Suplemento Pernambuco, com a pesquisadora Daniela Lima em que esta discorre sobre a ‘desumanização’ dos corpos em meia

àpandemia do novo coronavírus, o entrevistador Nuno Figueirôa alerta que, “no Brasil, a gestão bolsonarista tornou o vírus de SARS-COV-2 em um dispositivo de extermínio de corpos indesejáveis” (Junho, 2020). Por “corpos indesejáveis”, leia-se corpos pretos, indígenas, idosos, improdutivos cuja vida menos importa a um Estado de caráter totalitário. De forma correspondente, pode-se afirmar que a novela Salón de belleza (1994), de Mario Bellatin, ao colocar a doença em discurso, delata o vírus da AIDS também como um dispositivo biopolítico de extermínio, neste caso, de outro corpo “indesejável”: o da comunidade homossexual latino-americana, que compreenderia o gay pobre afeminado, de acordo com o que explicitou a escritora Lina Meruane, em seu livro ensaístico Viajes Virales (2012). Nesta obra, em que a autora elabora uma leitura crítica acerca do corpus literário sobre a Aids produzido no auge da epidemia, Meruane destaca Salón de belleza como um dos textos fundamentais sobre este tema na América Latina. Narrada em primeira pessoa pelo próprio protagonista, um cabeleireiro travesti, a novela gira em torno desta personagem anônima que, na ausência de políticas do Estado, converte o seu salão de beleza em um ‘Moridero’ para acolher os corpos abandonados de homens doentes, acometidos por uma doença contagiosa associada à homossexualidade e à AIDS, termos estes nunca diretamente nomeados na narrativa- que assim se inicia:

Hace algunos años mi interés por los acuarios me llevó a decorar mi salón de belleza con peces de distintos colores. Ahora que el salón se ha transformado en un Moridero, donde van a terminar sus días quienes no tienen donde hacerlo, me cuesta trabajo ver cómo poco a poco los peces han ido desapareciendo. (Bellatin, 2009, p. 11).

Conforme explicitam estas primeiras linhas da novela, o fascínio pela criação de peixes em aquários parece ser o que norteia o relato do protagonista que, ao longo da narrativa, intenta marcar esta relação entre a criação de peixes e os tempos de esplendor e decadência de seu salão de beleza. Mesmo assim, chama a atenção a maneira quase trivial na qual o protagonista menciona pela primeira vez o Moridero, justamente, para evidenciar o desaparecimento dos peixes. Por sua vez, será por meio dessa perspectiva da personagem central, através do reflexo de seus aquários, que se terá acesso ao que se passa no Moridero e ao seu redor:

Podía pasarme varias horas admirando los reflejos de las escamas y las colas. Alguien me contó después que aquel pasatiempo era una diversión extranjera.

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Lo que no tiene nada de divertido es la cantidad cada vez mayor de personas que han venido a morir al salón de belleza. Ya no solamente amigos en cuyos cuerpos el mal está avanzado, sino que la mayoría son extraños que no tienen dónde morir. Además del Moridero, la única alternativa sería perecer en la calle. Pero volviendo a los peces, en cierto momento llegué a tener decenas adornando el salón. (Bellatin, 2009, p. 14).

Ainda que o cabeleireiro queira voltar o foco à narrativa sobre os peixes, é praticamente impossível não se atentar à situação nada trivial que enreda o surgimento do Moridero: a quantidade cada vez maior de corpos desamparados os quais infectados por um “mal” não tinham onde ‘poder’ morrer. Somente mais à frente, o protagonista permite aclarar que este “mal” ao qual se refere está relacionado a corpos já sexualmente marginalizados, nos quais ele se inclui. Novamente estabelecendo um paralelo com os peixes, o narrador personagem afirma que contemplar as carpas de seus aquários o animava a buscar algo dourado “para salir vestido de mujer” (Bellatin, 2009, p. 15), o que ademais poderia trazer-lhe sorte ou alguma forma de proteção às violências a que seu corpo estaria exposto:

Tal vez salvarme de un encuentro con la Banda de Matacabros, que rondaba por las zonas centrales de la ciudad. Muchos terminaban muertos después de los ataques de esos malhechores, pero creo que si después de un enfrentamiento alguno salía con vida era peor. En los hospitales siempre los trataban con desprecio y muchas veces no querían recibirlos por temor a que estuviesen enfermos. Desde entonces y por las tristes historias que me contaban, nació en mí la compasión de recoger a alguno que otro compañero herido que no tenía dónde recurrir. Tal vez de esa manera fui formando este Moridero que tengo la desgracia de regentar. (Bellatin, 2009, p. 15).

Além de revelar a presença de grupos ‘fora da lei’, a exemplo da “Banda de Matacabros”, cujo intuito era espancar ou, melhor, aniquilar os incômodos corpos travestis, o protagonista denuncia uma condição de vulnerabilidade ainda mais desumana, já que institucionalizada. Se na atual pandemia da Covid-19, há uma crise sanitária e humanitária que obriga a criação de protocolos ditos ‘técnicos’ para decidir quem teria direito à respiração artificial; quando do início da pandemia da AIDS na América Latina, não se vislumbrava um colapso no sistema de saúde, mas sim a antecipada rejeição dos gays ao ambiente hospitalar ao mesmo tempo em que pairava uma certa negação da própria existência da pandemia, um ‘mal’ sem nome, ignorado pela sociedade e pelo Estado, tal como a narrativa Salón de belleza afigura delatar. É neste viés, portanto, que a novela de Bellatin permite pensar a doença -e a sua negação- como um dispositivo biopolítico de extermínio de um corpo indesejável específico da sociedade tal qual o era o corpo do homossexual -sobretudo do travesti- latino-americano.

Entretanto: o que torna esse corpo do homossexual afeminado tão indesejável ao ponto de estar complemente exposto às mais diversas formas de violência como descreve a novela Salón de belleza? Em consonância com as ideias do filósofo italiano Roberto Esposito, em suas obras Tercera persona (2009) e Dispositivo de la persona (2011), haveria um dispositivo preponderante, precedente à doença, que produziria não apenas o ‘desagradável’ corpo homossexual, mas sim toda uma categoria de corpos indesejáveis, destituídos de direitos básicos universais, à semelhança dos corpos já mencionados anteriormente. Este dispositivo preeminente compreenderia a categoria de pessoa, para Esposito: um conceito paradoxal que experimentou um período de significativo desenvolvimento e de valorização no final da Segunda Guerra Mundial até se tornar o conceito-base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (Esposito, 2011, p. 13). Idealizada, portanto, para recobrar direitos

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violados sobretudo nos regimes totalitários do século XX (Esposito, 2011, p. 58), a função de tal categoria pretensamente universal seria aparentemente unificar homem e cidadão, corpo e alma, vida e direito. Deste modo, a categoria de pessoa se transformaria no dispositivo jurídico que aderido à vida humana a tornaria ‘sagrada’: intangível, inviolável e munida de direitos.

Não obstante, assim como esta atual pandemia escancara e a narrativa Salón de belleza convida a pensar, Esposito igualmente indaga: mas será mesmo assim? (Esposito, 2009, p. 14). Pois, tão inegável quanto a importância da categoria de pessoa para a reivindicação dos direitos humanos é o fato de que “ningún derecho está hoy menos garantizado que el derecho a la vida” (Esposito, 2009, p. 14). Na contramão dos discursos vigentes, a hipótese que Esposito aventa é a de que o fracasso dos direitos humanos ocorre não apesar da categoria de pessoa, mas em razão dela. Em linhas gerais, a falha residiria na própria limitação do conceito de pessoa que concebe um ser humano cindido e pressupõe que este deveria submeter a sua dimensão animal, relacionada ao corpo, à dimensão racional correspondente à consciência. Isto é, a pessoa humana seria o ser vivente que “senhor de si” deteria o controle absoluto sobre o seu corpo. Deste modo, a categoria de pessoa -diretamente relacionada à tradição dualista cristã e aristotélica- jamais coincide com o corpo, é algo para além do corpo e isto seria o seu valor: a pessoa ou personalidade seria como uma “máscara” aderida ao corpo do ser humano, à qual estaria reservada somente a sua parte espiritual, portanto, apartada do corpo (Esposito, 2009, p. 112).

Por conseguinte, uma vez que apenas o ser vivente que anula/objetifica o seu corpo é qualificado a possuir direitos, em contrapartida, aquele que não sujeita o seu corpo não tem acesso ao exclusivo rol dos sujeitos de direito. Os animais -como se sabe- já estão excluídos, entretanto, este conceito permite inferir que há seres humanos que simplesmente não são pessoas. É por essa razão que Esposito se vale do termo ‘dispositivo’ para se referir à noção de pessoa, porque mais que um ‘mero’ conceito, o dispositivo produz efeitos na materialidade dos corpos. O propósito do dispositivo de pessoa seria, na prática, controlar e confinar os corpos nesta identidade para torná-los inteligíveis, estáveis e controláveis. A ‘pessoa’ seria, portanto, um dispositivo de subjetivação a serviço da biopolítica que, quando hierarquiza mente e corpo e os separa, legitima atrocidades cometidas aos corpos que não se delimitam à noção de pessoa, forjando, portanto, os corpos ‘indesejáveis’, os quais desprotegidos somente remeteriam a si mesmos, a suas questões biológicas não ‘controladas’ pelo sujeito da consciência, como o gênero, a sexualidade e a doença.

Por seu turno, ao afirmar que o conceito de pessoa tal como foi formulado compreenderia, de fato, somente “los hombres adultos saludables” (Esposito, 2009, p. 141), o filósofo italiano oferece alguns indícios para analisar expulsão dos enfermos homossexuais de Salón de belleza do status de pessoa jurídica, digna de direitos básicos -como a vida. Pois, afinal, apesar de adultos, tal como já foi exposto anteriormente, os corpos destas personagens não estão saudáveis e -sobretudo- não estão delimitados precisamente ao conceito de “homem” enquanto indivíduo do gênero e sexo masculino. Em realidade, problematizando essa noção de “homem” atrelada à ideia de masculinidade, ao longo de toda narrativa, o cabeleireiro travesti faz questão de rememorar, em tom saudosista e sem indícios de culpa, certos hábitos de uma sexualidade dissidente, clandestina, que - associada à homossexualidade e ao gênero feminino- somente podia realizar-se às escondidas, em lugares específicos -como nos “Baños de Vapor” (Bellatin, 2009, p. 19) e cinemas pornôs- ou nas perigosas ruas da cidade, por meio da prostituição:

Para lo que tampoco tengo fuerza es para salir a buscar hombres en las noches. Ni siquiera en verano, cuando no es tan malo tener que vestirse y desvestirse en los jardines de las casas cercanas a los puntos de contacto que se establecen

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en las grandes avenidas. Porque toda la transformación se tiene que hacer en ese lugar y furtivamente. Era una locura regresar de madrugada en un autobús de servicio nocturno vestido con las mismas ropas con las que se trabajaba de noche. (Bellatin, 2009, p. 20).

Tais práticas de uma sexualidade dissidente se estendiam aos companheiros falecidos do cabeleireiro que outrora trabalharam no salão e aos “hóspedes” do Moridero que -tal como descreve o protagonista- apesar de gravemente enfermos, não abandonavam jamais suas “conductas escandalosas” (Bellatin, 2009, p. 68). A respeito disso, é significativo que o narrador notabilize precisamente estes traços destas personagens que ademais de homossexuais: eram femininas e de conduta “escandalosa”. Isso porque se à época da pandemia da AIDS a homossexualidade já era considerada uma dissidência por si só, como bem salientou Meruane: esta dissidência se acentuava para o homossexual feminino e travesti pobre latino-americano que -como estereótipo local do “escandaloso” ou da “loca” - contrastava com o estereótipo ‘global’ do gay masculinizado, discreto e economicamente privilegiado norte-americano (Meruane, 2012, p. 56).

No que se refere à homossexualidade, previamente a Esposito, Foucault já observava o funcionamento da sexualidade como um dispositivo de captura e controle dos corpos que escapavam dos limites da também forjada heteronormatividade. Em História da sexualidade (2011), para explicar o funcionamento deste dispositivo, Foucault traz a lume a sodomia, um ato considerado interdito, mas que, no entanto, era praticado por um “sujeito jurídico”, ou seja, uma pessoa. Porém, no século XIX, quando se cria a noção de homossexual, surge um novo ser cuja identidade é inteiramente constituída por sua sexualidade, a qual não se submete

ànorma heterossexual. Deste modo, quando Foucault salienta que o sodomita era um reincidente enquanto o homossexual, uma espécie (Foucault, 2011, p. 51) ou quando narrador de Salón de belleza afirma que seu intuito era evitar que os homens enfermos “perecieran como perros en medio de la calle o abandonados por los hospitales del Estado” (Bellatin, 2009, p. 51): essas duas asserções, de alguma forma, asseveram um processo de desumanização e de expulsão do homossexual da categoria de pessoa jurídica que, com efeito, não compreenderia este ser outro.

Neste mesmo sentido, em sua obra Problemas de gênero (2019), a filósofa Judith Butler sustenta que ser ‘pessoa’ corresponde, necessariamente, a adequar-se a uma identidade de gênero que esteja em conformidade com as normas binárias culturalmente instituídas. Em sua compreensão, uma pessoa só é concebida como tal quando o seu gênero logra ser

“inteligível”, isto é, quando estabelece uma relação de “coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler, 2019, p. 43). Sendo assim, a “noção de pessoa se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas” (Butler, 2019, p. 43). Por conseguinte, se a “incoerência” de gênero é inconcebível à noção de pessoa, colocando-a em xeque, tais ideias de Butler permitem novamente pensar a restrição das personagens de Salón de belleza à categoria de pessoa, uma vez que os homossexuais travestis engendram uma “descontinuidade” do sexo dito ‘masculino’, não apenas em relação ao gênero -que se performa no feminino- mas também em relação à prática sexual e ao desejo, que fogem aos padrões culturais aceitos pela heteronormatividade.

Outrossim, é fulcral destacar que, para Butler, o gênero feminino se encontraria de antemão excluído da categoria de pessoa, independentemente da “inteligibilidade” de gênero. Bem como Esposito pontua brevemente que a mulher nunca foi considerada pessoa jurídica desde o surgimento desse dispositivo no antigo direito romano (Esposito, 2011, pp. 21-22), Butler corrobora esta ideia ao recobrar a perspectiva de Simone de Beauvoir de que o

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masculino já estaria desde sempre fundido ao universal, “diferenciando-se de um “Outro” feminino que está fora das normas universalizantes que constituem a condição de pessoa” (Butler, 2019, p. 34). De acordo com Butler, esta perspectiva de Beauvoir implicaria

uma crítica fundamental à própria descorporificação do sujeito epistemológico masculino abstrato. Esse sujeito é abstrato na medida em que repudia sua corporificação socialmente marcada e em que, além disso, projeta essa corporificação renegada e desacreditada na esfera feminina, renomeando efetivamente o corpo como feminino. (Butler, 2019, p. 34).

Butler, por sua vez, aprofunda a análise ao notar, à semelhança de Esposito, que o problema se encontraria precisamente no dualismo mente/corpo, que não sustenta apenas a teoria de que a mente pode subjugar o corpo, mas também nutre a idealização de que seria possível fugir complemente à corporificação- como de certa forma propõe a perspectiva personalista dos direitos humanos e o feminismo de Beauvoir, que não contesta, mas reivindica tal perspectiva universalizante às mulheres. No entanto, para Butler, seria necessário contestar a hierarquia mesma entre mente/corpo, pois ela conservaria a desigualdade entre os gêneros, uma vez que o feminino estaria sempre relacionado ao corpo, ao ‘Outro’ marcado em contraste com o universal; já o masculino seria sempre associado à mente, em fusão com o universal, que descorporificado não necessitaria ser marcado. Por seu turno, essas noções possibilitam compreender ainda mais profundamente a especificidade das personagens de Salón de belleza, que corporificadas pela homossexualidade e pela feminilidade evidenciam a brecha da categoria de pessoa que se converte num dispositivo que exclui os corpos ‘indesejáveis’ que ela mesma produz por não se delimitarem ao seu conceito pretensamente universal.

Na emblemática cena em que o cabeleireiro descobre que também está infectado pela doença e por isso decide queimar todas as suas roupas de mulher no pátio do Moridero, esta grande fogueira afigura um ato sinalizador para esse extermínio da comunidade homossexual latino-americana. Isso pois, conforme evidência Meruane, ademais da pandemia viral, a América Latina sofria uma pandemia “de gênero”, na qual o masculino eliminaria o feminino ao impor o estereótipo universal do gay do norte -mais coerente ao gênero masculino- sobre o gay local do sul (Meruane, 2012, p. 56), que por sua feminilidade estava ainda mais distanciado da categoria de pessoa e, por isso, mais exposto à violência:

Al descubrir las heridas en mi mejilla las cosas acabaron de golpe. Llevé los vestidos, las plumas y las lentejuelas al patio donde está el excusado e hice una gran pira. Olió horrible. Parece que había muchas prendas de material sintético, porque se levantó un humo bastante denso… Al encender la pira me había puesto uno de los trajes y estaba totalmente mareado. Recuerdo que bailaba alrededor del fuego mientras cantaba una canción que ahora no recuerdo. Me imaginaba a mí mismo bailando en la discoteca con esas ropas femeninas y con la cara y cuello totalmente cubiertos de llagas. Mi intención era caer también en el fuego. Ser envuelto por las llamas y desaparecer antes de que la lenta agonía fuera apoderándose de mi cuerpo. (Bellatin, 2009, p. 54).

Assim, nesta espécie de ritual em que o protagonista dança vestido de mulher em volta da fogueira e pondera ele próprio “ser envuelto por llamas y desaperecer”, à luz das ideias de Meruane, é possível desvelar outra limitação da categoria pessoa na defesa ‘universal’ da dignidade humana, notabilizando mais uma faceta deste dispositivo de exclusão: o seu caráter

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eurocêntrico e neocolonial, em consonância com as ideias das autoras Thula Rafaela Pires, em seu texto “Por uma concepção americana dos direitos humanos” (2020), e María Lugones, em seu artigo “Gênero e colonialidade” (2020)1. Segundo Thula Rafaela Pires, a pretensa universalidade dos direitos humanos, em realidade, pressupõe apenas uma forma de conceber a natureza humana, “ancorada na experiência europeia” (Pires, 2020, p. 302) do modelo racionalista, sendo incapaz de compreender e alcançar a multiplicidade de existências possíveis do ser. Complementando as críticas de Esposito e Butler ao conceito de pessoa humana, Pires afirma que a condição humana eleita como padrão digna dos direitos inalienáveis “relaciona-se ao modelo de sujeito de origem europeia, masculino, branco, cristão, heteronormativo, detentor dos meios de produção e sem deficiência” (Pires, 2020, p. 301). Dessa maneira, se em tese a pretensão dos direitos humanos, desde uma perspectiva eurocêntrica e neocolonialista, era ‘resgatar’ aqueles indivíduos os quais na periferia do Terceiro Mundo estariam apartados do padrão europeu e fadados ao ‘primitivismo’ e ao subdesenvolvimento, na prática, este mesmo discurso humanista perpetuaria uma relação de poder e dominação de matriz colonial e escravagista que acima de tudo legitimaria todo tipo de violação desses corpos cujas vidas são consideradas inferiores por não se adequarem ao modelo racionalista de pessoa jurídica do centro europeu.

Por conseguinte, assim como em seu ensaio Meruane adverte sobre uma “eliminación del travesti en el devenir neocolonial de la cultura capitalista, al fines del siglo XX”, num processo em que o padrão homogeneizante do gay global submete a ‘loca’ local de “conducta escandalosa” à adaptação ou à extinção (Meruane, 2012, p. 110); na narrativa de Bellatin, à sua maneira, é possível entrever essa dimensão neocolonial dos direitos humanos que, ao invés de garantir a vida dos travestis latino-americanos, abarcando seu modo de existência outro, ao contrário, coloca-os numa posição inferior ao gay do norte -única forma de homossexualidade possível. Deste modo, só lhes resta queimar as roupas femininas para adaptar-se ao padrão global ou melhor desvanecer-se com elas, como ocorre com os hóspedes do Moridero.

Ainda nesta perspectiva de Pires, a autora María Lugones destaca sobretudo a questão de gênero, em intersecção com as noções de raça, classe e sexualidade, para apreender o processo de violência e exploração que sofrem as mulheres não brancas, vítimas da colonialidade do poder. Deste modo, a autora salienta que nesta forjada classificação dos seres humanos em que os homens brancos burgueses de origem europeia ocupam o topo da hierarquia, na outra extremidade, são as mulheres pobres de origem não europeia da periferia do Terceiro Mundo que mais distantes estão do ideal masculinizado e descorporificado da categoria de pessoa e, por isso, são as que mais sofrem com a violência desse processo de dominação e exploração neocolonial. Tendo isso em vista, é pertinente pensar o lugar que ocupam as personagens femininas em meio à epidemia da AIDS no terceiro no mundo, narrada em Salón de belleza, pois embora o Moridero tenha sido concebido para acolher os homens homossexuais enfermos, esse estabelecimento -conduzido por regras inflexíveis estipuladas pelo cabeleireiro travesti- jamais aceitava mulheres enfermas que pediam abrigo:

Uno de los momentos de crisis por los que pasó el Moridero fue cuando tuve que vérmelas con mujeres que pedían alojamiento. Venían a la puerta en pésimas condiciones. Algunas traían en sus brazos a sus pequeños hijos también atacados por el mal. Pero yo desde el primer momento me mostré inflexible. El salón en algún tiempo había embellecido hasta la saciedad a las mujeres, no iba pues a echar por la borda tantos años de trabajo sacrificado. Nunca acepté a nadie que no fuera de sexo masculino. Aunque me ofrecieron dinero nunca dije que sí. En un principio, cuando estaba a solas, me ponía a

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pensar en aquellas mujeres que tendrían que morir en la calle con sus hijos a cuestas. (Bellatin, 2009, p. 34).

Este trecho em que o protagonista narra um dos momentos de crise do Moridero permite entrever essa condição de maior exclusão das mulheres a que se refere Lugones, pois -mesmo em “pésimas condiciones” e com seus filhos pequenos e enfermos nos braços- elas não podiam ser hospedadas no Moridero tal qual os homens. Assim, tendo em vista que aos homossexuais do sexo masculino lhes era concedido ao menos um abrigo para que não morressem como “perros en la calle”, em contrapartida, às mulheres lhes restava justamente este fim: “morir en la calle con sus hijos a cuestas”. Por seu turno, quando o protagonista enuncia não aceitar mulheres porque não iria “echar por la borda”, isto é, desperdiçar ou ‘pôr a perder’ o seu trabalho de tantos anos como cabeleireiro embelezando as mulheres em seu salão, tal afirmação, de certa maneira, também delata a pandemia de “gênero” de que trata Meruane, que acaba por eliminar na narrativa qualquer indício do feminino: não apenas os travestis e seus adornos, mas as mulheres e o próprio salão de beleza. Desse modo, se outrora o salão era um espaço de exaltação da beleza feminina, no qual “era muy reducido el número de hombres que cruzaba el umbral”, uma vez que “sólo a la mujeres parecía no importarles la atención de unos estilistas vestidos casi siempre con ropas femininas” (Bellatin, 2009, pp. 23- 24), quando da pandemia da AIDS na América Latina, este espaço de beleza e de aliança entre mulheres e travestis torna-se inviável e deixa de existir. O salão, então, altera o seu objetivo: fecha as portas para as mulheres e torna-se um local fúnebre restrito aos homens homossexuais enfermos que, por fim, também desaparecerão (Meruane, 2012, pp. 110-111).

Neste contexto, o vírus da AIDS torna-se, portanto, mais um dispositivo de exclusão sobreposto a estes corpos, que já estavam expostos à violência do dispositivo de pessoa. Entretanto, de acordo com Esposito, a doença por si só -tal qual a sexualidade e o gênero- já configuraria um traço biológico que expulsa o ser humano da categoria de pessoa (Esposito, 2009, p. 142), dado que o enfermo também seria aquele que de alguma forma fracassou no controle de seu corpo que, por essa razão, se encontra doente e à mercê dos desígnios da medicina, que -ao lado do dispositivo de pessoa- se converte em uma “estratégia biopolítica” (Esposito, 2017, p. 37) decisiva de controle dos corpos. Tendo em vista que, de maneira geral, a “biopolítica” se refere a uma política da vida e sobre a vida cujas práticas se voltam para o gerenciamento da vida biológica dos indivíduos, é oportuno destacar que tais procedimentos biopolíticos somente se tornam viáveis mediante o saber médico, que possibilita a intersecção entre biologia e proteção jurídica, num processo em que -tal como fica evidente no contexto de crise sanitária- somente a figura do médico detém “a definição de vida válida, provida de valor” e, por isso, possui o poder de “fixar os limites além dos quais ela pode ser legitimamente apagada” (Esposito, 2017, p. 144), ou melhor, exterminada.

Na narrativa de Bellatin, esta medicina é representada pelos Hospitais do Estado, os quais enquanto instituições governamentais a serviço da biopolítica têm o poder de decidir quem merece viver e quem merece morrer. É neste ponto que a biopolítica deriva de seu propósito essencialmente afirmativo de regulação e incrementação da vida para uma prática tanatopolítica: uma política negativa que, com o pretexto de “proteger a vida”, produz na prática a morte em massa. Essa inflexão política decorre porque, tal como explicita Esposito, na obra Bios: biopolítica e filosofia (2017), em relação à vida, a biopolítica encerra basicamente dois efeitos que estão sempre em tensão: “ou a biopolítica produz subjetividade ou produz morte” (Esposito, 2017, p. 43). Por seu turno, para compreender mais claramente a relação entre esses dois efeitos biopolíticos, já investigados brevemente neste estudo, é necessário atentar-se à contradição presente no processo de subjetivação do biopoder que, ao tornar os indivíduos sujeitos jurídicos e conscientes de suas identidades por meio do dispositivo de pessoa, acaba por outorgar a eles uma certa autonomia e bem-estar ao mesmo

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tempo em que se empenha para subjugar a potência vital e inovadora de seus corpos para que se mantenham estáveis, controláveis, já que aderidos à subjetividade inteligível da categoria de pessoa. Não obstante, Esposito adverte que, nesta política positiva de incrementação da vida, sempre há uma parte desta força vital cuja potência transborda os limites do biopoder e se volta contra ele, opondo-se justamente à sua política de controle sobre a vida. Eis, então, a brecha que constitui o cerne da concepção biopolítica:

Ao mesmo tempo interna e externa ao poder, a vida parece preencher o cenário inteiro da existência: mesmo quando exposta à pressão do poder, e especialmente nesse caso, a vida parece capaz de retomar aquilo que a toma e de absorvê-los em suas infinitas dobras. (Esposito, 2017, p. 51)

Por conseguinte, essas ideias de Esposito permitem pensar a comunidade gay latino- americana como essa vida que transborda num impulso inovador que resiste ao processo de subjetivação do dispositivo de pessoa a serviço da biopolítica para o controle dos corpos. Porém, em contrapartida a essa força vital, a fim de não perder o controle da vida biológica e proteger a si mesma, a biopolítica se faz valer de mecanismos mais violentos de opressão ou, preferencialmente, de supressão daqueles que não se adequam à subjetividade do dispositivo de pessoa por ela imposta. À vista disso, à semelhança do que ocorria no regime nazista que, num viés substancialmente racista, arbitrariamente qualificava os judeus como uma “raça inferior” ao povo alemão, na biopolítica que segue em curso na contemporaneidade, todos aqueles que não se ajustam ao dispositivo de pessoa são estigmatizados como seres “degenerados” -que padecem de algum “mal” físico ou moral- por se desviarem da (única) norma de vida válida instituída pelo biopoder:

A degeneração é o elemento animal que ressurge no homem na forma de uma existência que não é propriamente nem animal nem humana, mas exatamente seu ponto de cruzamento: a copresença contraditória de dois gêneros, dois tempos, dois organismos incapazes de alcançar a unidade de pessoa e, por isso mesmo, de configurar alguma forma de subjetividade jurídica. A adstrição ao tipo do degenerado de um número sempre mais de categorias sociais - alcoólatras, sifilíticos, homossexuais, prostitutas, obesos, até o próprio proletariado urbano- restitui o sinal dessa troca descontrolada entre norma biológica e norma jurídica-política (...). (Esposito, 2017, p. 151).

Desse modo, a degeneração torna-se uma condição de declínio patológico que inviabiliza o status de pessoa a essas vidas consideradas inferiores, sem valor jurídico. Contudo, para além de uma mera patologia, o biopoder compreende a degeneração como uma doença também infecciosa, de maneira que, tal como ocorria outrora no nazismo, o que se busca a todo custo evitar é o contágio entre seres inferiores e seres superiores (Esposito, 2017, p. 147). Sendo assim, por meio do artifício da degeneração, que engloba os mais variados traços biológicos que não cabem na categoria de pessoa jurídica, a biopolítica provoca uma divisão no interior do continuum biológico de uma comunidade. Divisão esta que não apenas assevera quem deve ficar vivo e quem pode morrer, mas que sobretudo estabelece que é necessária a morte dos seres inferiores para a sobrevivência e proteção da vida dos seres superiores (Esposito, 2017, p. 140). É nesta lógica mortífera que a biopolítica desvela, então, sua dimensão tanatopolítica na qual o saber médico detém a função estratégica de legitimar a morte dos seres considerados inferiores para assegurar a imunidade dos seres superiores, garantindo

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ademais a imunização do próprio biopoder contra a potência inovadora dos corpos que ameaça o seu domínio.

Assim, tendo em vista que a medicina se faz presente em todas as etapas de produção da morte em massa dos judeus no campo de concentração, desde a preparação da câmara de gás à supervisão do processo de cremação, mediante a paradoxal alegação de estar “protegendo a vida” e a saúde (tão somente) do povo alemão, (Esposito, 2017, p. 143); no contexto pandêmico da AIDS, isto é, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é significativo notar o modo como Salón de belleza narra uma estratégia outra do dispositivo médico a serviço da biopolítica que- mais perspicaz e diligente- não participa diretamente de todo processo de extermínio da comunidade gay latino-americana. Desse modo, tal como o protagonista delata que “en los hospitales siempre los trataban [a los travestis] con desprecio y muchas veces no querían recibirlos por temor a que estuviesen enfermos” (Bellatin, 2009, p. 9), neste viés homofóbico, a medicina -representada pelos hospitais do Estado- não controla a produção de morte em série, mas para efetivá-la propositalmente negligencia a vida do homossexual enfermo que, corporificada pela feminilidade e pela sexualidade dissidente, se encontra aquém da categoria de pessoa digna de direitos ‘universais’ e pela imunidade da comunidade -da qual nunca fez parte- deve morrer. O excludente dispositivo de pessoa torna, então, o corpo do homossexual latino-americano indesejável e sua vida sem valor jurídico para ser salva pela medicina.

Àvista disso, se, por um lado, o Moridero surge para acolher estes corpos enfermos indesejáveis em virtude da ausência de uma política sanitária adequada; por outro, este “recinto terminal”, ironicamente, acaba tomando para si a função de executar as etapas do processo de morte de algum modo não efetivadas pelos hospitais do Estado. É por essa razão que Meruane sugere que, no decorrer da narrativa, o Moridero parece transfigurar-se numa espécie de campo de concentração (Meruane, 2012, pp. 217-218): esse espaço de exclusão onde o Estado de Direito está suspenso e o protagonista -tal qual um médico- é quem tem o controle sobre os corpos abandonados. Desse modo, considerando-se que espaço do Moridero

éregido por regras inflexíveis, em que o cabeleireiro travesti não apenas proíbe a presença de mulheres, mas também “los médicos”, “las medicinas”, “las yerbas medicinales, los curanderos y el apoyo moral de los amigos o familiares” (Bellatin, 2009, p. 31), é interessante notar como tais regras convergem tão somente para o único propósito do Moridero de promover “una muerte rápida en las condiciones más adecuadas que era posible brindársele al enfermo” (Bellatin, 2009, p. 50). Sendo assim, sob os desígnios do protagonista, os hóspedes não tinham autonomia alguma para decidir sobre sua própria morte ao passo que, à semelhança de um campo de concentração, não podiam escolher sair do Moridero. Eis o que revela a violenta cena em que o protagonista “propina una paliza”, isto é, agride fisicamente um jovem enfermo que, deixado no Moridero pela avó, tenta em vão fugir:

El nieto era un muchacho de unos veinte años que ya había comenzado a perder peso y a mostrar los ganglios inflamados. Cierta noche lo encontré tratando de huir del Moridero. Fue tal la paliza que le propiné que muy pronto se le quitaran los deseos de escapar. Se mantuvo echado en la cama esperando pacíficamente que su cuerpo desapareciera después de las torturas de rigor. (Bellatin, 2009, p. 33).

Por sua vez, para além de todas as agressões a que os homossexuais eram submetidos em vida para que se mantivessem “pacíficos” até que “seus corpos desaparecessem”, após a morte, eles seguiam igualmente violentados, pois seus corpos indesejáveis de fato desapareciam, já que não eram passíveis de luto. Por conseguinte, assim como no genocídio em massa dos judeus estes não eram enlutados e, na atualidade, as vítimas pela COVID-19

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não podem ser veladas e, muitas vezes, são enterradas em valas comuns, em Salón belleza ele se passava aos homossexuais que terminavam os seus dias no Moridero cujo fim era uma “fosa común”, nas palavras do narrador:

Sus cuerpos son envueltos en unos sudarios que yo mismo confecciono con telas de sábanas que nos donaron. No hay velatorio. Se quedan en cama hasta que unos hombres contratados los trasladan en carretillas. No los acompaño y cuando vienen los familiares a preguntar me limito a informarles que ya no están más en este mundo. (Bellatin, 2009, pp. 44-45).

Para Butler, que em seu livro Vida precária (2019) analisa a condição de vulnerabilidade dos humanos que não são considerados humanos, estas vidas não poderiam ser enlutadas justamente porque já foram negadas de antemão. De alguma forma, estes seres já estariam mortos e necessitariam ser expostos à violência continuamente porque insistem em existir de um modo espectral (Butler, 2019, p. 54): eis as personagens de Salón de belleza e os corpos indesejáveis da pandemia atual.

Por fim, tendo em vista que o fracasso do dispositivo de pessoa está na sua tentativa de negar o corpo, confinando-o numa categoria descorporificada; tanto Esposito quanto Butler sugerem condições que, com efeito, parecem primordiais para começar a pensar a preservação da vida de forma menos excludente e mais digna. Para Esposito, é necessária uma política da vida que não tente encerrar a potência vital em uma norma exclusiva, mas que compreenda que a “norma da vida” é justamente este impulso criativo, que franqueia a vida para suas mais variadas formas (Esposito, 2017, p. 240). Já para Butler é essencial atentar-se para o fato de que “somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade dos nossos corpos - como um local de desejo e de vulnerabilidade física, como um local de exposição pública ao mesmo tempo assertivo e desprotegido” (Butler, 2020, p. 40). E nesta fragilidade compartilhada dos nossos corpos-fora exposto ao mundo, aos seus contágios pandêmicos e às suas intempéries: todos os corpos deveriam ser desejáveis, reconhecidos por sua multiplicidade, e protegidos de forma igualitária.

Referências bibliográficas

Bellatin, M. (2009). Salón de Belleza. Barcelona: Tusquets.

Butler, J. (2015). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Esposito, R. (2009). Tercera persona: política de vida y filosofia de lo impersonal. Buenos Aires: Amorrortu.

Esposito, R. (2011). El dispositivo de la persona. Buenos Aires: Amorrortu.

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Meruane, L. (2012). Viajes virales: la crisis del contagio global en la escritura del sida. Santiago: Fondo de Cultura Económica.

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Sontag, S. (2007). A doença como metáfora, Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras.

Pires, T. R. (2020). Por uma concepção amefricana dos direitos humanos [Hollanda, Heloísa Buarque de (org.)]. Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

Lugones, M. (2020). Gênero e colonialidade. [Hollanda, Heloísa Buarque de (org.)]. Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

Notas

1Estes dois textos compõem o livro Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (2020), organizado por Heloísa Buarque de Hollanda. A proposta desta obra, que reúne 22 artigos de autoras de origem não europeia, é apresentar um panorama do pensamento decolonial feminista, cujo objetivo é questionar a colonialidade do saber, ao elaborar “uma revisão epistemológica radical das teorias feministas eurocentradas” (HOLLANDA,

2020, p. 13), e propor novas teorias para pensar os problemas de gênero, raça e classe, para além dos discursos hegemônicos de países historicamente dominantes.

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