Peri em Brocéliande: o deserto-floresta n´O guarani, de José de Alencar [1]
Marcos Flamínio Peres* [1]
Resumo
Este artigo procura articular a representação da paisagem e sua vinculação com o caráter do herói em O guarani, de José de Alencar, obra capital do Romantismo brasileiro; em outras palavras, busca articular espaço e normatividade como componentes essencias da narrativa.
Desde Gaston Bachelard, o espaço vem se configurando como instância importante para a ficção, mas será a partir das análises de Iuri Lotman e Henri Mitterand que ele deixará de ser acessório para se tornar decisivo para a organização do enredo. Lotman cunha a noção de fronteira, enquanto Mitterand propõe o conceito de ultrapassagem de fronteiras. Uma e outra definições são fundamentais para compreender o processo de constituição do herói no romance de Alencar, posto que Peri será o único personagem a transitar livremente pelos espaços da “casa” e da “floresta”, incorporando valores de um e outro.
Dialogando com as narrativas medievais de Chrétien de Troyes, particularmente “Le chevalier au lion” et “Le conte du Graal”, o herói de O guarani rompe, entretanto, com o código de honra cavaleiresco ao adotar a traição como expediente regular. Será a floresta, como topos central do imaginário medieval (Le Goff), que irá propiciar tal estatura híbrida e ambivalente do herói.
Palavras-chave
Romantismo – Chrétien de Troyes – romance – espaço - normatividade
Peri en Brocéliande: el desierto-bosque en O guarani (1857), de José de Alencar
Resumen
Este artículo busca articular la representación del paisaje y su conexión con el carácter del héroe en O guarani, de José de Alencar, la obra maestra del Romanticismo brasileño; o, en otras palabras, articular espacio y normatividad como componentes esenciales de la narrativa.
Desde Gastón Bachelard, el espacio se configuró como una instancia importante para la ficción, pero será a partir del análisis de Iuri Lotman y Henri Mitterand que dejará de ser accesorio para tornarse decisivo para la organización de la trama. Lotman acuñó la noción de frontera, mientras que Mitterand propuso el concepto de superación de las fronteras.
Ambas definiciones son fundamentales para comprender el proceso de constitución del héroe en la novela de Alencar, ya que Peri será la única personaje a moverse libremente por los espacios de la “casa” y del “bosque”, incorporando valores de uno y otro.
Dialogando con las narrativas medievales de Chrétien de Troyes, particularmente “Le chevalier au lion” y “Le conte du Graal”, el héroe de O guarani rompe, sin embargo, con el código de honor caballeresco al adoptar la traición como procedimiento regular. Será el bosque, como topos central de lo imaginário medieval (Le Goff), que proporcionará una estatura tan híbrida y ambivalente del héroe.
Palabras clave
Romanticismo – Chrétien de Troyes – novela – espacio - normatividad
Peri in Brocéliande: the desert-forest in José de Alencar´s O guarani (1857)
Abstract
This article seeks to articulate the representation of the landscape and its connection with the character of the hero in O guarani, by José de Alencar, the masterpiece of Brazilian Romanticism; in other words, it sseks to articulate space and normativity as essential components of narrative.
Since Gaston Bachelard, space has been configured as an important instance for fiction, but only from the analysis of Iuri Lotman and Henri Mitterand it will cease to be accessory, in order to become decisive for the organization of the plot. Lotman coined the notion of frontier, while Mitterand proposed the concept of overcoming frontiers. Both definitions are fundamental to understand the process of constitution of the hero in Alencar´s novel, since Peri will be the only character to move freely through the spaces of the “house” and the “forest”, incorporating values of one and the other. Dialoging with the medieval narratives of Chrétien de Troyes, particularly “Le chevalier au lion” and “Le conte du Graal”, the hero of O guarani breaks, however, with the chivalrous code of honour by adopting treason as a regular procedure. It will be the forest, as the central topos of the medieval imagery (Le Goff), which will provide such a hybrid and ambivalent stature of the hero.
Keywords
Romanticism – Chrétien de Troyes – Novel – Space - Normativity
Construído em forma de ampla descrição, o capítulo inicial de O guarani é instância decisiva para articular a representação da paisagem e sua vinculação com o caráter do herói – em outras palavras, para articular espaço e normatividade. A primeira menção à morada de Peri, quando ele ainda não fora nomeado, coloca-o no centro da representação espacial de todo o capítulo, que parte da paisagem natural mais selvagem incrustada na floresta – a Serra dos Órgãos, o rio Paraíba, o Paquequer – e ruma em direção ao espaço da cultura, que é o da grande casa de dom Antônio de Mariz: “[...] via-se à margem do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique” (Alencar, 1958: 32).
Dentro da casa, após conhecer seus diversos aposentos, o leitor conclui a leitura do capítulo em meio à descrição do mais remoto deles, uma “alcova”, que “revelava a presença de uma mulher” (Alencar, 1958: 34), que saberemos tratar-se da heroína, Ceci; ali, a representação da natureza, pujante e selvagem até então, faz-se natureza-morta. [2] A cabana de Peri situa-se, espacialmente, a meio caminho da ambos os pólos, casa e floresta, razão porque é chamada de “habitação selvagem”:
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem. (Alencar, 1958: 33)
O aspecto híbrido do singelo espaço em que vive o herói terá sérias implicações sobre sua constituição e sua ação ao longo da narrativa.
1. Espaço e fronteira
Em A poética do espaço, livro clássico de Gaston Bachelard sobre a relação entre espaço e sentido, encontramos a definição de cabana como a antítese da casa urbana, como lugar de refúgio, ninho ou “solidão centrada”. [3] Ela evocaria “comparações com os animais em seus refúgios” (Bachelard, 1988: 168), o que nos remete de imediato às abundantes aproximações de Peri com o reino animal, como entre o herói e a onça, “estes dois selvagens das matas do Brasil” (Alencar, 1958: 50).
A cabana de Peri, porém, é de extração mais complexa, pois se é elemento da cultura, concebida pela mão do homem para um determinado fim, ela ainda assim mantém suas raízes -simbólicas e textuais- fincadas profundamente na natureza: ampara-se sobre duas palmeiras nascidas “entre as fendas das pedras”. Isso nos diz muito sobre o herói enquanto personagem oriundo da floresta, a qual abandona para viver junto no espaço da civilização, ainda que às suas margens (“na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício”). A rigor, ele é o único personagem em todo o romance que faz isso de maneira deliberada, cruzando a fronteira entre natureza e civilização e tornando tal ultrapassagem espacial sua característica distintiva.
A fronteira, não por acaso, é a instância fundamental para a teorização sobre o espaço na narrativa proposta pelo russo Iuri Lotman. Em A estrutura do texto artístico, ele sugere que o espaço consegue “dar conta do real” (Lotman, 1978: 360) através da articulação de sintagmas como alto-baixo, direito-esquerdo, próximo-longínquo, aberto-baixo, delimitado-não delimitado, discreto-contínuo. Tais polarizações promovem modelos culturais que extrapolam as categorias topográficas originais, ainda que construídas a partir delas, e levam a oposições de outro tipo que não as estritamente espaciais, tais como válido-não válido, bom-mau, os seus-os estranhos, acessível-inacessível, mortal-imortal, etc. Assim,
os modelos dos mundos sociais, religiosos, políticos, morais os mais variados, com a ajuda dos quais o homem, nas diferentes etapas da sua história espiritual, confere sentido à vida que o rodeia, se encontram invariavelmente providos de características espaciais, quer sob a forma da oposição “céu-terra” ou “terra-reino subterrâneos”. (Lotman, 1978: 361)
Lotman insiste que a maneira como se organiza o espaço passa pelo traço topológico da fronteira, pois uma narrativa nasce apenas quando um dado personagem “cruza o limite entre esses espaços simbolicamente carregados”; a rigor, um enredo pode ser reduzido ao episódio fundamental da ultrapassagem de tal fronteira.
Em nível textual, a ênfase no espaço encontra paralelo na revalorização do descritivo enquanto estratégia narrativa ou, antes, como “esforço para resistir à linearidade constrangedora do texto”, conforme propõe Philippe Hamon. [4] No entanto, em The poetics of description, Janice Koelb critica a ideia de descrição por trás tanto das proposições de Hamon quanto das de Roland Barthes, para quem a descrição nada mais faria do que “aumentar o custo da informação narrativa. [5] Ambos ignoram, diz Koelb, o papel essencial e persistente que a descrição, “especialmente a descrição dos lugares”, exerce na literatura ocidental seja para a “caracterização humana”, seja para o “desenho da obra toda” [6] . Ao resgatar o espaço, ou a “descrição do espaço”, do papel secundário que Barthes lhe atribui, Koelb torna-a elemento central não somente para o aspecto narrativo quanto para o aspecto normativo de uma dada obra.
Será a partir de Balzac que o espaço irá se tornar princípio diretor da produção ficcional, justificando “as longas descrições de cidades, de meio ambiente, de vestuários, de meio social” que organizam toda a Comédie Humaine (Bourneuf e Ouellet, 1976: 151).
Para Henri Mitterand, que se debruça sobre Ferragus, Balzac também estará no centro da revalorização do espaço, despontando como “componente essencial da narrativa” [7] e sem o qual o enredo da novela falharia em seu objetivo de produzir sentido. Ao propor que a novela de Balzac “narrativiza o espaço”, [8] Mitterand, assim como Koelb, propõe um alargamento do papel historicamente limitado atribuído ao espaço pela teoria da descrição e, a partir daí, desenvolve uma “semântica literária do espaço” com fins de demonstrar “a narratividade do lugar”. [9]
2. O leitor potencial
Se Mitterand desenvolve sua análise em Ferragus a partir do binômio “rue”/“maison”, [10] Alencar o fará a partir do binômio casa/floresta, que acaba por se constituir em um poderoso sintagma cuja transposição contínua pelo herói, Peri, estrutura a lógica narrativa do romance e sua virtualidade normativa. E, assim como ocorre na novela de Balzac, também em Alencar a transposição de cada um desses pólos é vedada às personagens do pólo oposto e permitida apenas ao herói. [11]
É importante observar, contudo, que a percepção desse binômio por parte do leitor de 1857, ano em que O guarani foi publicado, se dá a partir de um terceiro vértice, que é o da corte no Rio de Janeiro. Embora apenas referido, o espaço da corte passa a compor um triângulo topológico, juntamente com o eixo da casa e o da floresta. Ele é citado ora como origem da trama, no capítulo 2 -quando dom Antônio decide abandonar o Rio de Janeiro depois que a Colônia, em razão da sucessão do trono português, passou às mãos da Espanha-, ora como destino para onde Peri e Ceci podem ir após a grande inundação:
Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá (Alencar, 1958: 36).
Antes que a lua, que vai nascer, tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai (Alencar, 1958: 384).
No primeiro exemplo, trata-se de de origem em um tempo passado; no segundo caso, trata-se de destino em um tempo futuro. A corte surge assim como uma fronteira espacial e temporal -não representada, mas claramente referida- que acaba por delimitar o sentido de “casa”, de um lado, e “floresta”, de outro. Esse vértice do triângulo topológico é significativo porque é na corte onde efetivamente se encontra, em 1857, o leitor potencial de Alencar, o qual configura o que Marie-Laure Ryan chamou de “o princípio do ponto de partida mínimo”. Segundo esse princípio, construímos o mundo da ficção como sendo o mais próximo possível da realidade que conhecemos. Isso significa que “projetamos sobre esse mundo tudo aquilo que sabemos sobre o mundo real e que faremos apenas os ajustes que não pudermos evitar”. [12]
O que proponho a seguir é considerar como Alencar retrabalhou em termos narrativos e normativos a imagem ancestral da floresta a partir do espaço onde se encontra seu leitor potencial.
3. O deserto-floresta
Em dois ensaios capitais -“Le désert-forêt dans l´Occident médiéval” e, sobretudo, “Lévi-Strauss en Brocéliande”-, Jacques Le Goff explica como, nas religiões euroasiáticas, a floresta herdou o imaginário em torno do deserto e incorporou sua característica principal de lugar onde as instituições e o ordenamento da civilização ocidental não vigoram. [13] É povoada por “servos fugitivos, assassinos, aventureiros, salteadores [14] e onde imperam o culto pagão, a ausência da lei e seres sobrenaturais. [15]
Mas será através da ficção -objeto maior dos ensaios de Le Goff- que a floresta irá se apropriar do imaginário do Ocidente, transformando-se em topos central dos romances corteses, em particular de Chrétien de Troyes. Em seu ciclo arturiano, ela é elevada a espaço de desagregação e regeneração a que irão ser submetidos os cavaleiros, especialmente em “Le chevalier au lion” (ou Yvain) e “Le conte du Graal ou le roman de Perceval”.
Em “Le Chevalier au lion”, Yvain ouve da boca de Calogrenant a narrativa sobre a fonte encantada oculta no meio da floresta de Brocéliande, defendida pelo temível cavaleiro Esclados le Roux, que o derrotou e humilhou. Yvain então deixa a corte do rei Arthur para refazer a aventura: “Encontrei um caminho à minha direita, em meio a uma floresta espessa [...] Era Brocéliande”. [16] Por lá perambula até encontrar o caminho que conduz à fonte encantada, “caminho estreito pleno de espinhos e trevas”. [17] Após derrotar Le Roux, apaixona-se pela viúva, a rainha Laudine, com quem se casa. Mas decide partir novamente em busca de aventura, após prometer a sua esposa retornar em um ano. Envolvido em combates e torneios, esquece-se de promessa e recebe na corte a visita da mensageira da rainha, que, diante de seus companheiros, o chama de “desleal” por não haver honrado sua palavra: “ele nos traiu”. [18]
Arrependido, Yvain é vítima de um gradual processo de desagregação, perde a memória e vagueia a esmo quando penetra novamente em Brocéliande, onde por fim regride ao estado de selvageria: nu, “persegue os animais nos bosques, mata-os e depois come a carne de caça inteiramente crua”. [19] O encontro com um eremita, porém, irá marcar o início de sua regeneração. Imerso na floresta, mas não inteiramente desligado do mundo dos homens, o eremita pertence, como lembra Le Goff, a “uma ordem intermediária entre as ordens constituídas da sociedade e o universo bárbaro”; [20] e, por essa razão, será capaz de fazer com que Yvain se reintegre ao universo cavaleiresco. Mas, como marca da selvageria ou da vida dominada pelos instintos, Yvain será acompanhado a partir daí por um leão que salvara na floresta, como o seu lado visível do mundo da floresta: “E o leão se coloca a seu lado, e jamais o abandonará. Estará sempre com ele, pois quer servi-lo e protegê-lo”. [21] A partir desse momento, Yvain ganha uma nova identidade, apresentando-se apenas como O Cavaleiro do Leão (Troyes, 2002: 502).
Em “Le conte du Graal”, Perceval, embora oriundo de uma nobre estirpe de cavaleiros, é criado isolado pela mãe em meio a um solar localizado na Floresta Deserto, [22] de modo a evitar para o filho o mesmo destino do pai - a ruína financeira e a morte.
O jovem Perceval, no entanto, encanta-se com os primeiros cavaleiros que vê passar pela floresta: “Mas vós sois mais belos que Deus”. [23] Decidido a adubar-se, abandona a mãe em prantos, que, saberemos mais tarde, morrerá de tristeza:
Que triste sorte é a minha! Ah, meu filho querido, essa cavalaria, sempre acreditei que pudesse protegê-lo dela: você jamais teria ouvido falar dela se não a tivesse visto [...] Você era a única consolação, o único bem que me restava” [...] Ele se afasta de sua mãe, e ela chora. [...] O jovem se volta e vê sua mãe caída, atrás dele, no extremo da ponte levadiça, ali jazendo, desmaiada, como se estivesse morta. [24]
Esporeando seu cavalo que parte em meio à “grande floresta obscura”, Perceval passará a ser conhecido como O Filho da Viúva Dama do Deserto Floresta, [25] já que sua origem nobre será reconhecida somente ao final da narrativa. Trata-se de alguém bruto, que não compreende o sentido das convenções da sociedade cortês, apenas os valores da floresta: “Ele é muito ignorante, um verdadeiro animal. [26] Em sua jornada em direção a Carduel para fazer-se cavaleiro, Perceval ainda se serve da arma típica de quem vive na floresta, o dardo, indigna de um cavaleiro.
Apesar de sua selvageria, Perceval é um cavaleiro “por natureza”, [27] e seu processo de aprendizagem se dará pelas mãos de Gornemont de Goort, de cujos ensinamentos se lembrará em várias ocasiões: “Recordou-se do nobre que lhe havia ensinado a não matar deliberadamente um cavaleiro, após tê-lo derrotado”; [28] “a ordem da cavalaria [...] não sofre nenhuma baixeza”. [29]
Porém, o remorso por haver abandonado a mãe o perseguirá: “Acredita que eu vá poder rever minha mãe, que permanece só no fundo desse bosque a que chamam de o Deserto Floresta?”. [30] Perceval carrega consigo o grave pecado de haver abandonado a mãe, que, como saberá mais tarde, “morreu de dor por ti”. [31]
Outro aspecto essencial intimamente ligado ao espaço da floresta é o da ruptura com os códigos cavaleirescos, que, tanto no romance cortês quanto na canção de gesta, significa traição (Le Goff chama-a de “floresta-traidora”). [32]
Em “Le chevalier au lion”, a possibilidade de ser visto como traidor é uma ameaça que assombra Yvain, o qual se esforça para provar a todos que não matou Esclados le Roux pelas costas. [33] Em “Le conte du Graal”, Gauvain, cavaleiro de muito valor por quem Perceval nutre grande afeto, também é seguidamente acusado de traição.
A brutal ruptura do código cavaleiresco representada pela traição também percorre com insistência a canção de gesta, em particular A canção de Rolando. Ambos os gêneros, apesar de nascidos em momentos distintos da Idade Média, conviveram estreitamente e disputaram público ao longo do século XII. [34] Essa ruptura é nomeada e condenada de forma severa como “traição”, pecado capital que irá levar o execrável Ganelon, que traiu Rolando e Carlos Magno, a figurar em um dos círculos do Inferno na Commedia de Dante Alighieri.
Aos traços de honra, valentia e coragem que identificam Calos Magno e Rolando, opõe-se a “infame traição” (20) que comete Ganelon ao aliar-se ao rei mouro Marsílio. A insistência nesse traço percorre toda essa obra, ainda mais do que em Chrétien de Troyes: “«Jurai-me que traireis Rolando [diz o rei Marsílio]». Ganelon responde: «Seja feita vossa vontade!». Sobre as relíquias de sua espada Murgleis ele jura trair e assim se torna um traidor” (A canção de Rolando, 2006: 24) Ao longo da narrativa, vão se avolumando-se as referências ao pecado da traição a ponto de tornar-se questão central, para além da bravura de Rolando. [35]
4. O deserto-floresta em O guarani
Como se pode ver a seguir, a floresta em O guarani apresenta funções estruturalmente muito similares às descritas acima, como o espaço do instinto mas também do renascimento, do abandono da mãe, da busca da aventura, da idealização da amada e da traição.
O espaço do instinto
Assim como se dá nas narrativas medievais, conforme apontado por Le Goff, a floresta é o espaço da barbárie. É lá que habitam os aimorés, “ferozes tigres” (Alencar, 1958: 291), a tal ponto donos de “braveza” e “instintos carniceiros” que “tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana” (Alencar, 1958: 298):
Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos. A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem, reduzida à brutalidade das feras (Alencar, 1958: 269).
Se a floresta é também o lugar da barbárie em Chrétien de Troyes, Alencar parece ter ido buscar a inspiração para seus aimorés em A canção de Rolando, na descrição dos soldados do emir que comprara a fidelidade de Ganelon: “É uma gente que sempre praticou o mal [...], que não está a serviço de Deus Nosso Senhor. Nunca ouvireis falar de traidores piores. [...] No combate são traiçoeiros e encarniçados” ( A canção de Rolando, 2006: 112-113).
Sob pano de fundo tão sinistro, Peri é visto como “um homem superior” (Alencar, 1958: 305) aos aimorés e, quando está prestes a ser executado por eles, é descrito como um “dos mártires da religião” (Alencar, 1958: 321). Porém, em mais um exemplo de sua constituição híbrida entre natureza e civilização, Peri é ainda aquele que se serve de armas bárbaras, que são o arco e a flecha; o arco é o “companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra” (Alencar, 1958: 85). Ele é também a arma principal dos aimorés, e o dardo que Perceval porta logo após deixar a floresta, e antes de ser adubado cavaleiro, pode ser considerado uma sua variante.
Le Goff lembra como o arco na Idade Média é uma arma habitualmente ligada ao caçador, e não ao guerreiro, visto que está mais próximo do estado de natureza. Assim, configura-se uma oposição entre o “guerreiro equipado” e “o arqueiro isolado”. [36]
O renascimento na floresta
Se é na floresta que Yvain se desagrega, é lá também onde inicia sua regeneração. À beira da morte após o envenenamento, será também na “floresta espessa” que Peri irá obter o antídoto para salvar-se:
Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor revelara o que aí se passou.
Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte, as folhas se abriram, e Peri, exausto de forças, vacilante, emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade, saiu do seu retiro.
Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um tanto as forças.
Chegando à beira do rio, Peri já sentiu o vigor que voltava e o calor que começava a animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à água e mergulhou. Quando voltou à margem, era outro homem; uma reação se havia operado; seus membros tinham adquirido a elasticidade natural; o sangue girava livremente nas veias. (Alencar, 1958: 347-348)
Despedida da mãe e fascínio pelo Outro
O notável e longo diálogo em que Peri abandona a mãe na floresta parece agregar pathos à passagem-irmã de “Le conte du Graal” em que Perceval deixa a floresta apesar dos apelos da mãe. Embora longa, cabe citá-la:
-Mãe!... exclamou ele.
-Vem! disse a índia seguindo pela mata.
-Não!
-Nós partimos.
-Peri fica.
A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração.
-Teus irmãos partem!
O selvagem não respondeu.
-Tua mãe parte!
O mesmo silêncio.
-Teu campo te espera!
-Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.
-Por quê?
-A senhora mandou.
A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável; sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.
Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre.
-Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai, e queima a cabana de Ararê.
-Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.
Peri abanou a cabeça com tristeza:
-Peri não voltará!
Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero.
-O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela; a folha que se despega do ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri não voltará ao teu seio.
-A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água; queima e mata tudo que se chega a ela. [...]
-Tua mãe fica! disse a índia com um acento de resolução.
-E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?
Peri preferiu estas palavras com a exaltação, que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem; a índia ficou pensativa, e respondeu:
-Tua mãe volta; [...]
Depois ela afastou-se lentamente; Peri seguiu-a com os olhos ate que desapareceu na floresta; esteve a correr, chamá-la e partir com ela. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai; ficou. (Alencar, 1958: 151-153)
O parentesco com “Le conte du Graal” é evidente. Em ambos os casos, a floresta irrompe como o lugar do lamento e da tristeza porque o herói -ora Perceval, ora Peri- rompe com seu espaço original para lançar-se para fora dele, em busca de aventura e amor, binômio definidor do modo romanesco (Frye, 2006: 22). É a visão do Outro que move ambos para a frente: Perceval é movido pela visão dos cavaleiros (“sois mais belo que Deus”), Peri pela visão de Ceci, a quem dedica “uma espécie de culto” (Alencar, 1958: 324).
O espaço da traição
A floresta, porém, é espaço para outro tipo de ação, condenável segundo as regras da cavalaria, como exemplificado acima: a traição.
Peri, contudo, em mais de uma oportunidade, trai; isso o distancia enormemente de Álvaro e dom Antônio de Mariz, personagens calcados inteiramente nos códigos de honra dos romances de cavalaria e das canções de gesta. Traição, para ambos, é o mais deplorável dos crimes. Álvaro descrê inteiramente da possibilidade de que Loredano e sua gente possam atraiçoá-los e sequestrar Ceci, conforme lhe conta Peri: “Não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal! [...] -Assassinar?... Nunca, Peri! Nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!” (Alencar, 1958: 218).
A que o índio lhe responde de modo perspicaz: “Tu e ele [dom Antônio] servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote” (Alencar, 1958: 218).
Em sua obediência cega a um código que perdeu validade nas circunstâncias em que se encontravam, Álvaro soa ingênuo, como o índio percebe muito bem: “[...] tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus” (Alencar, 1958: 217). Assim como Álvaro, também é dom Antônio: “Os aventureiros iam ser vítimas de envenenamento; e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio” (Alencar, 1958: 334).
Loredano, obviamente, constitui-se no personagem antitético, que, dominado pelos instintos, reúne em si traços reiterados de apostasia, concupiscência, cobiça e, claro, traição em seu grau mais elevado: seus capangas “esperavam um sinal para matarem seus companheiros adormecidos, e deitarem fogo à casa” (Alencar, 1958: 255). O fim típico de um anti-herói de tal quilate é a expiação:
Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.
O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício (Alencar, 1958: 360-361).
A essas duas espécies de personagens que se localizam em pólos opostos, vem se juntar Peri, que combina elementos de ambos, como a descrição da cabana, no capítulo inicial, tão fortemente prefigura. Assim, são várias as referências ao processo de nobilitação de que o índio é objeto ao longo da narrativa, um processo ritualístico em muito semelhante ao adubamento medieval: recebe de dom Antônio “o abraço fraternal, consagrado pelo estilo da antiga cavalaria”, o qual lhe diz: “Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro português” (Alencar, 1958: 192). Por fim, torna-se cristão e, o mais importante, uma nova identidade lhe é atribuída, assim como ocorrera com Yvain e Perceval: “[...] teu pai disse: ‘Peri, tu és cristão; dou-te o meu nome!” (Alencar, 1958: 373).
No entanto Peri é também um ser oriundo da floresta. Sua força sobre-humana e sua proximidade com o reino animal são acentuadas seguidas vezes: “[...] o guerreiro invencível, ele, o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais valente nação dos guaranis” (Alencar, 1958: 303); “era o rei do deserto, o senhor das florestas” (Alencar, 1958: 378).
Convenções como honra ou traição, tão determinantes aos heróis da canção de gesta e dos romances de cavalaria, operam de maneira diferente no seio desta outra floresta. Pois, em nome da amada, Peri trai a convenção cavaleiresca quando, em meio à escuridão e pelas costas, mata por estrangulamento e degola dois dos capangas de Loredano:
Não hesitou pois; e quando o aventureiro que falava erguia-se, sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o estrangulavam como uma golilha de ferro, antes que pudesse soltar um grito. O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor, e consumou a sua obra” (Alencar, 1958: 256); e
Peri tinha o ouvido sutil e delicado, e o faro do selvagem que dispensa a vista; o som da respiração servia-lhe de alvo; escutou um momento, ergueu o braço, e a faca enterrando-se na boca da vítima cortou-lhe a garganta. (Alencar, 1958: 256)
Mas não é só.
Peri trai o código de honra cortês ao envenenar a água que Loredano iria beber. Trai os temíveis aimorés quando se envenena, de modo que seu corpo fosse devorado ritualisticamente no meio da floresta pelos membros da tribo inimiga, que, assim, morreriam. Como se sabe, a antropofagia nas sociedades primitivas representa uma deferência a um inimigo capturado que se mostrou corajoso e honrado em combate: “-Peri envenenou a água que os brancos bebem, e o seu corpo, que devia servir de banquete aos Aimorés” (Alencar, 1958: 332).
Por fim, na forte cena em que Peri não cede aos apelos da mãe, a traição irrompe não por meio de cenas materialmente terríveis, mas através do abandono de sua tribo. Filho de Ararê, ele abdica da tarefa de liderar seu povo e a delega à velha mãe:
-E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos? (Alencar, 1958: 152)
Ao romper com seu papel de líder e de correia de transmissão da tradição de sua gente (“Quem contará?”, “quem dirá?”, “Quem há de preparar?”, quem há de “ensinar”?), Peri rompe com seus antepassados. Por contraste, conseguiríamos imaginar Rolando opondo-se a Carlos Magno, Yvain e Perceval rompendo com o rei Arthur ou, mesmo, Álvaro desobedendo Dom Antônio?
5. O espaço e o herói
Explorada a representação do espaço como móvel da narrativa em O guarani, devemos nos perguntar que tipo de herói ela engendrou neste romance. Em outras palavras, que tipo de herói é Peri?
Arrisco uma resposta.
Ao ultrapassar fronteiras espaciais claramente determinadas e vedadas a todos os demais personagens, ao cruzar o limite entre espaços simbolicamente carregados a que se referem Lotman e Mitterand, Peri também o faz não somente em relações aos códigos de honra previstos na canção de gesta e nos romances de cavalaria mas também o faz em relações às marcações temporais, pois renega a tradição de seus antepassados.
O amor, para além da honra, é o que move suas ações. É sintomático disso a passagem em que o índio rebate Álvaro, que recusara a hipótese de desonrar-se com um assassinato. Peri lhe diz: “Tu não amas Ceci!” (Alencar, 1958: 218).
Convivendo em uma socidade ficcional constituída de valores coletivos solidamente atrelados a personagens ou comunidades (dom Antônio, Álvaro, Ceci, a sua própria tribo e a dos aimorés), Peri transita com autonomia pelas normas, pois leal apenas a seu amor por Ceci.
Ao final de O guarani, não ocorre mais ultrapassagem de fronteiras, mas simplesmente a destruição do espaço ficcional da floresta pelas águas do rio Paraíba: “[...] estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nasce com o mundo” (Alencar, 1958: 395). E, após a extinção do espaço proteiforme e ambíguo da floresta, Peri passa a se nos afigurar -a nós, leitores-, como um legítimo cavaleiro medieval, como habitualmente tem sido visto pela crítica. Destruída a floresta de O guarani, essa Brocéliande tropical, Peri sai do romance mais “puro” aos nossos olhos (referendando, de maneira irônica, a função das águas como meio de renovação, como propõe Bachelard).
Entretanto, uma interpretação idealizante como essa, me parece, diz mais sobre o nosso olhar -o de civilizados da corte- do que sobre os termos em que a narrativa se constrói ao longo de suas centenas de páginas.
BIBLIOGRAFIA
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[1] * Professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Brasil), com ênfase em teoria literária e literatura comparada. E-mail: marcosflaminio@usp.br. Recibido el 22/4/2019. Aceptado el 17/5/2019.
[1] A pesquisa que resultou neste artigo contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo no. 17/22998-4).
[2] Esse aspecto foi desenvolvido em Peres, 2019.
[3] (Bachelard, 1988: 130). “A cabana [...] aparece como a raiz que sustenta a função do habitar. Ela é a planta humana mais simples, aquela que não precisa de ramificações para subsistir. É tão simples que não pertence mais às lembranças, às vezes demasiadamente cheias de imagens. Pertence às lendas. É um centro de lendas” (Bachelard, 1988: 129).
[4] “L´essence du descriptif [...] serait dans un effort: un effort pour résister à la linéarité contraignante du texte” (Hamon, 1993: 5).
[5] “increasing the cost of narrative information” (Koelb, 2006: 8).
[6] “especially place description”; “human characterization”; “the design of the entire work” (Koelb, 2006: 8). Ver também Marie-Laure Ryan: “Though description is often regarded by text typologists as the antithesis of narration, it is also the major discourse strategy for the disclosure of spatial information. In description, the report of narrative action is temporarily suspended to afford the reader a more or less detailed glimpse at the current spatial frame” (Ryan, “Space”).
[7] “composante essentielle de la machine narrative” (Mitterand, 1986: 212).
[8] “narrativise l´espace” (Mitterand, 1986: 212).
[9] “semantique littéraire de l´espace”; “la narraticité du lieu” (Mitterand, 1986: 190).
[10] “Chaque rue, chaque demeure est lieu d´un être et d´un fait spécifiques. Malheur à celui ou à celle qui franchira les frontiéres imposées par cette semiologie urbaine” (Mitterand, 1986: 197).
[11] Em Balzac, “le drama se joue entre les lieux qui lui sont prescrits, permits ou interdits” (Mitterand, 1986: 203).
[12] “This principle states that whenever we interpret a message concerning an alternate world, we reconstrue this world as being the closest possible to the reality we know […]; we will project upon the world of the statement everything we know about the real world, and that we will make only those adjustments which we cannot avoid” (Ryan, 1980: p. 403 e 406, respectivamente). No mesmo sentido, Thomas Pavel afirma que “we have thus to assess which world is more similar to the one we inhabit” (Pavel, 1986: 87).
[13] “[La forêt dans l'univers de l'Occident medieval] est l'équivalent de ce que représente en Orient le désert, lieu de refuge, de la chasse, de l'aventure, horizon opaque du monde des villes, des villages, des champs” (Le Goff, 1985: 156).
[14] “serfs fugitifs, meurtriers, aventuriers, brigands”; a floresta é o “desert institutionnel” (Le Goff, 1985: 66 e 69, respectivamente).
[15] Robert Pogue Harrison, em seu abrangente estudo, afirma que “as florestas foram as primeiras e as últimas vítimas da expansão cívica”: “The governing institutions of the West religion, law, family, city-originally established themselves in opposition to the forests, which in this respect have been, from the beginning, the first and last victims of civic expansion” (Harrison, 1992: IX).
[16] “Je trouvai um chemin à ma droite, au milieu d´une forêt épaisse. [...] C´était en Brocéliande” (Troyes, 2002: 420).
[17] “le sentier étroit plein des ronces et de tenèbres” (Troyes, 2002: 433).
[18] “déloyal”; “il nous a trahi” (Troyes, 2002: 471-2).
[19] “il guette les bêtes dans les bois, il les tue, et puis il mange la venaison toute crue” (Troyes, 2002: 473).
[20] “Yvain trouve un homme menant une existence éotechnique [...]. Il appartient à un ordre intermédiaire entre les ordres constitués de la société et l'univers barbare: c'est un ermite [...] Tous deux sont des solitaires et ont un genre de vie frugale, mais l'ermite sort occasionnellement de la forêt pour rencontrer des hommes ‘civilisés’ (pour vendre le cuir, acheter le pain)” (Le Goff, 1985: 161-2).
[21] “Et le lion prend place à côté de lui, et jamais plus il ne quittera. Il sera toujours avec lui, car il veut le servir et le proteger” (Troyes, 2002: 485).
[22] “Votre père possedait ce manoir, ici, dans la Forêt Déserte” (Troyes, 2002: 568).
[23] “Mais vous, vous êtes plus beau que Dieu” (Troyes, 2002: 562).
[24] “Hélas! Quel triste sort est le mien! Ah, mon doux enfant, cette chevalerie, j'avais bien cru vous en garder: vous n'en auriez jamais entendu parler, ni vous n'en auriez vu aucun”; “vous étiez la seule consolation, le seul bien qui me restait”; “Le jeune homme ne prête guère attention à ce que lui dit sa mère [...]; “sa mère fait tout son possible pour le retenir et le faire rester”; “Il prend congé de sa mère et elle pleure”; “une fois qu'il se fut éloigné à distance de jet d'une petite pierre, le jeune homme se retourne et voit sa mère tombée, derrière lui, au bout du pont-levis, gisant là, évanouie, comme si elle était tombée morte. Lui, d'un coup de baguette, cingle la croupe de son cheval, qui s'en va d'un bond et l'emporte à vive allure à travers la grande forêt obscure” (Troyes, 2002: 567, 568, 568, 570, 571, respectivamente).
[25] “Le fils de la Veuve Dame de la Désert Forêt” (Troyes, 2002: 560).
[26] “il est trop ignorant, une vraie bete” (Troyes, 2002: 584).
[27] “de sa nature” (Troyes, 2002: 588).
[28] “Il s´est pourtant souvenu du gentilhomme qui lui avait appris à ne pas tuer sciemment un chevalier, après l´avoir vaincu et avoir eu le dessus” (Troyes, 2002: 602).
[29] “l´ordre de chavalerie, qui ne souffre aucune baissesse” (Troyes, 2002: 591).
[30] “Et ne croyez-vous pas que ce soit bien que j´aille revoir ma mère, qui reste seule au fond de ce bois qu´on appelle la Déserte Forêt?” (Troyes, 2002: 615).
[31] “Sache maintenant que le malheur va s’abattre sur toi et sur les autres. C’est à cause du péché qui touche à ta mère, apprends-le, que cela t’est arrivé, quand elle est morte de chagrin pour toi” (Troyes, 2002: 628).
[32] “[...] forêt-traîtresse, car elle est, em termes de morale féodale, le lieu des hallucinations” (Le Goff, 1985: 73).
[33] “Mais comment est-il possible que tu aies tué mon seigneur, si tu ne le fis pas par trahison?” (Troyes, 2002: 442).
[34] Le Goff: “Certes, les chansons de geste ont fait leur apparition un peu avant les ‘romans courtois’, mais, au XIIe siècle, les deux genres littéraires interfèrent et se font tout à la fois concurrence” (Le Goff, 1985: 179).
[35] Seguem mais alguns exemplos: “Ganelon aproxima-se, o traidor, o perjuro”; “o pérfido Ganelon atraiçoou-o”; “Ganelon sabia disso, o covarde, o traidor que nos designou perante o imperador” ( A canção de Rolando, 2006: 26, 33, 38, respectivamente).
[36] “Un arc, c'est-à-dire une arme qui est celle du chasseur, non du chevalier guerroyant et tournoyant. Arrêtons-nous ici un moment. Il est un temps, très éloigné du XIIe siècle, qui connut lui aussi une opposition entre le guerrier équipé et l'archer isolé, voire sauvage” (Le Goff, 1985: 157).
Peri em Brocéliande: o deserto-floresta n´O guarani, de José de Alencar [1]
Marcos Flamínio Peres* [1]
Resumo
Este artigo procura articular a representação da paisagem e sua vinculação com o caráter do herói em O guarani, de José de Alencar, obra capital do Romantismo brasileiro; em outras palavras, busca articular espaço e normatividade como componentes essencias da narrativa.
Desde Gaston Bachelard, o espaço vem se configurando como instância importante para a ficção, mas será a partir das análises de Iuri Lotman e Henri Mitterand que ele deixará de ser acessório para se tornar decisivo para a organização do enredo. Lotman cunha a noção de fronteira, enquanto Mitterand propõe o conceito de ultrapassagem de fronteiras. Uma e outra definições são fundamentais para compreender o processo de constituição do herói no romance de Alencar, posto que Peri será o único personagem a transitar livremente pelos espaços da “casa” e da “floresta”, incorporando valores de um e outro.
Dialogando com as narrativas medievais de Chrétien de Troyes, particularmente “Le chevalier au lion” et “Le conte du Graal”, o herói de O guarani rompe, entretanto, com o código de honra cavaleiresco ao adotar a traição como expediente regular. Será a floresta, como topos central do imaginário medieval (Le Goff), que irá propiciar tal estatura híbrida e ambivalente do herói.
Palavras-chave
Romantismo – Chrétien de Troyes – romance – espaço - normatividade
Peri en Brocéliande: el desierto-bosque en O guarani (1857), de José de Alencar
Resumen
Este artículo busca articular la representación del paisaje y su conexión con el carácter del héroe en O guarani, de José de Alencar, la obra maestra del Romanticismo brasileño; o, en otras palabras, articular espacio y normatividad como componentes esenciales de la narrativa.
Desde Gastón Bachelard, el espacio se configuró como una instancia importante para la ficción, pero será a partir del análisis de Iuri Lotman y Henri Mitterand que dejará de ser accesorio para tornarse decisivo para la organización de la trama. Lotman acuñó la noción de frontera, mientras que Mitterand propuso el concepto de superación de las fronteras.
Ambas definiciones son fundamentales para comprender el proceso de constitución del héroe en la novela de Alencar, ya que Peri será la única personaje a moverse libremente por los espacios de la “casa” y del “bosque”, incorporando valores de uno y otro.
Dialogando con las narrativas medievales de Chrétien de Troyes, particularmente “Le chevalier au lion” y “Le conte du Graal”, el héroe de O guarani rompe, sin embargo, con el código de honor caballeresco al adoptar la traición como procedimiento regular. Será el bosque, como topos central de lo imaginário medieval (Le Goff), que proporcionará una estatura tan híbrida y ambivalente del héroe.
Palabras clave
Romanticismo – Chrétien de Troyes – novela – espacio - normatividad
Peri in Brocéliande: the desert-forest in José de Alencar´s O guarani (1857)
Abstract
This article seeks to articulate the representation of the landscape and its connection with the character of the hero in O guarani, by José de Alencar, the masterpiece of Brazilian Romanticism; in other words, it sseks to articulate space and normativity as essential components of narrative.
Since Gaston Bachelard, space has been configured as an important instance for fiction, but only from the analysis of Iuri Lotman and Henri Mitterand it will cease to be accessory, in order to become decisive for the organization of the plot. Lotman coined the notion of frontier, while Mitterand proposed the concept of overcoming frontiers. Both definitions are fundamental to understand the process of constitution of the hero in Alencar´s novel, since Peri will be the only character to move freely through the spaces of the “house” and the “forest”, incorporating values of one and the other. Dialoging with the medieval narratives of Chrétien de Troyes, particularly “Le chevalier au lion” and “Le conte du Graal”, the hero of O guarani breaks, however, with the chivalrous code of honour by adopting treason as a regular procedure. It will be the forest, as the central topos of the medieval imagery (Le Goff), which will provide such a hybrid and ambivalent stature of the hero.
Keywords
Romanticism – Chrétien de Troyes – Novel – Space - Normativity
Construído em forma de ampla descrição, o capítulo inicial de O guarani é instância decisiva para articular a representação da paisagem e sua vinculação com o caráter do herói – em outras palavras, para articular espaço e normatividade. A primeira menção à morada de Peri, quando ele ainda não fora nomeado, coloca-o no centro da representação espacial de todo o capítulo, que parte da paisagem natural mais selvagem incrustada na floresta – a Serra dos Órgãos, o rio Paraíba, o Paquequer – e ruma em direção ao espaço da cultura, que é o da grande casa de dom Antônio de Mariz: “[...] via-se à margem do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique” (Alencar, 1958: 32).
Dentro da casa, após conhecer seus diversos aposentos, o leitor conclui a leitura do capítulo em meio à descrição do mais remoto deles, uma “alcova”, que “revelava a presença de uma mulher” (Alencar, 1958: 34), que saberemos tratar-se da heroína, Ceci; ali, a representação da natureza, pujante e selvagem até então, faz-se natureza-morta. [2] A cabana de Peri situa-se, espacialmente, a meio caminho da ambos os pólos, casa e floresta, razão porque é chamada de “habitação selvagem”:
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem. (Alencar, 1958: 33)
O aspecto híbrido do singelo espaço em que vive o herói terá sérias implicações sobre sua constituição e sua ação ao longo da narrativa.
1. Espaço e fronteira
Em A poética do espaço, livro clássico de Gaston Bachelard sobre a relação entre espaço e sentido, encontramos a definição de cabana como a antítese da casa urbana, como lugar de refúgio, ninho ou “solidão centrada”. [3] Ela evocaria “comparações com os animais em seus refúgios” (Bachelard, 1988: 168), o que nos remete de imediato às abundantes aproximações de Peri com o reino animal, como entre o herói e a onça, “estes dois selvagens das matas do Brasil” (Alencar, 1958: 50).
A cabana de Peri, porém, é de extração mais complexa, pois se é elemento da cultura, concebida pela mão do homem para um determinado fim, ela ainda assim mantém suas raízes -simbólicas e textuais- fincadas profundamente na natureza: ampara-se sobre duas palmeiras nascidas “entre as fendas das pedras”. Isso nos diz muito sobre o herói enquanto personagem oriundo da floresta, a qual abandona para viver junto no espaço da civilização, ainda que às suas margens (“na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício”). A rigor, ele é o único personagem em todo o romance que faz isso de maneira deliberada, cruzando a fronteira entre natureza e civilização e tornando tal ultrapassagem espacial sua característica distintiva.
A fronteira, não por acaso, é a instância fundamental para a teorização sobre o espaço na narrativa proposta pelo russo Iuri Lotman. Em A estrutura do texto artístico, ele sugere que o espaço consegue “dar conta do real” (Lotman, 1978: 360) através da articulação de sintagmas como alto-baixo, direito-esquerdo, próximo-longínquo, aberto-baixo, delimitado-não delimitado, discreto-contínuo. Tais polarizações promovem modelos culturais que extrapolam as categorias topográficas originais, ainda que construídas a partir delas, e levam a oposições de outro tipo que não as estritamente espaciais, tais como válido-não válido, bom-mau, os seus-os estranhos, acessível-inacessível, mortal-imortal, etc. Assim,
os modelos dos mundos sociais, religiosos, políticos, morais os mais variados, com a ajuda dos quais o homem, nas diferentes etapas da sua história espiritual, confere sentido à vida que o rodeia, se encontram invariavelmente providos de características espaciais, quer sob a forma da oposição “céu-terra” ou “terra-reino subterrâneos”. (Lotman, 1978: 361)
Lotman insiste que a maneira como se organiza o espaço passa pelo traço topológico da fronteira, pois uma narrativa nasce apenas quando um dado personagem “cruza o limite entre esses espaços simbolicamente carregados”; a rigor, um enredo pode ser reduzido ao episódio fundamental da ultrapassagem de tal fronteira.
Em nível textual, a ênfase no espaço encontra paralelo na revalorização do descritivo enquanto estratégia narrativa ou, antes, como “esforço para resistir à linearidade constrangedora do texto”, conforme propõe Philippe Hamon. [4] No entanto, em The poetics of description, Janice Koelb critica a ideia de descrição por trás tanto das proposições de Hamon quanto das de Roland Barthes, para quem a descrição nada mais faria do que “aumentar o custo da informação narrativa. [5] Ambos ignoram, diz Koelb, o papel essencial e persistente que a descrição, “especialmente a descrição dos lugares”, exerce na literatura ocidental seja para a “caracterização humana”, seja para o “desenho da obra toda” [6] . Ao resgatar o espaço, ou a “descrição do espaço”, do papel secundário que Barthes lhe atribui, Koelb torna-a elemento central não somente para o aspecto narrativo quanto para o aspecto normativo de uma dada obra.
Será a partir de Balzac que o espaço irá se tornar princípio diretor da produção ficcional, justificando “as longas descrições de cidades, de meio ambiente, de vestuários, de meio social” que organizam toda a Comédie Humaine (Bourneuf e Ouellet, 1976: 151).
Para Henri Mitterand, que se debruça sobre Ferragus, Balzac também estará no centro da revalorização do espaço, despontando como “componente essencial da narrativa” [7] e sem o qual o enredo da novela falharia em seu objetivo de produzir sentido. Ao propor que a novela de Balzac “narrativiza o espaço”, [8] Mitterand, assim como Koelb, propõe um alargamento do papel historicamente limitado atribuído ao espaço pela teoria da descrição e, a partir daí, desenvolve uma “semântica literária do espaço” com fins de demonstrar “a narratividade do lugar”. [9]
2. O leitor potencial
Se Mitterand desenvolve sua análise em Ferragus a partir do binômio “rue”/“maison”, [10] Alencar o fará a partir do binômio casa/floresta, que acaba por se constituir em um poderoso sintagma cuja transposição contínua pelo herói, Peri, estrutura a lógica narrativa do romance e sua virtualidade normativa. E, assim como ocorre na novela de Balzac, também em Alencar a transposição de cada um desses pólos é vedada às personagens do pólo oposto e permitida apenas ao herói. [11]
É importante observar, contudo, que a percepção desse binômio por parte do leitor de 1857, ano em que O guarani foi publicado, se dá a partir de um terceiro vértice, que é o da corte no Rio de Janeiro. Embora apenas referido, o espaço da corte passa a compor um triângulo topológico, juntamente com o eixo da casa e o da floresta. Ele é citado ora como origem da trama, no capítulo 2 -quando dom Antônio decide abandonar o Rio de Janeiro depois que a Colônia, em razão da sucessão do trono português, passou às mãos da Espanha-, ora como destino para onde Peri e Ceci podem ir após a grande inundação:
Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá (Alencar, 1958: 36).
Antes que a lua, que vai nascer, tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai (Alencar, 1958: 384).
No primeiro exemplo, trata-se de de origem em um tempo passado; no segundo caso, trata-se de destino em um tempo futuro. A corte surge assim como uma fronteira espacial e temporal -não representada, mas claramente referida- que acaba por delimitar o sentido de “casa”, de um lado, e “floresta”, de outro. Esse vértice do triângulo topológico é significativo porque é na corte onde efetivamente se encontra, em 1857, o leitor potencial de Alencar, o qual configura o que Marie-Laure Ryan chamou de “o princípio do ponto de partida mínimo”. Segundo esse princípio, construímos o mundo da ficção como sendo o mais próximo possível da realidade que conhecemos. Isso significa que “projetamos sobre esse mundo tudo aquilo que sabemos sobre o mundo real e que faremos apenas os ajustes que não pudermos evitar”. [12]
O que proponho a seguir é considerar como Alencar retrabalhou em termos narrativos e normativos a imagem ancestral da floresta a partir do espaço onde se encontra seu leitor potencial.
3. O deserto-floresta
Em dois ensaios capitais -“Le désert-forêt dans l´Occident médiéval” e, sobretudo, “Lévi-Strauss en Brocéliande”-, Jacques Le Goff explica como, nas religiões euroasiáticas, a floresta herdou o imaginário em torno do deserto e incorporou sua característica principal de lugar onde as instituições e o ordenamento da civilização ocidental não vigoram. [13] É povoada por “servos fugitivos, assassinos, aventureiros, salteadores [14] e onde imperam o culto pagão, a ausência da lei e seres sobrenaturais. [15]
Mas será através da ficção -objeto maior dos ensaios de Le Goff- que a floresta irá se apropriar do imaginário do Ocidente, transformando-se em topos central dos romances corteses, em particular de Chrétien de Troyes. Em seu ciclo arturiano, ela é elevada a espaço de desagregação e regeneração a que irão ser submetidos os cavaleiros, especialmente em “Le chevalier au lion” (ou Yvain) e “Le conte du Graal ou le roman de Perceval”.
Em “Le Chevalier au lion”, Yvain ouve da boca de Calogrenant a narrativa sobre a fonte encantada oculta no meio da floresta de Brocéliande, defendida pelo temível cavaleiro Esclados le Roux, que o derrotou e humilhou. Yvain então deixa a corte do rei Arthur para refazer a aventura: “Encontrei um caminho à minha direita, em meio a uma floresta espessa [...] Era Brocéliande”. [16] Por lá perambula até encontrar o caminho que conduz à fonte encantada, “caminho estreito pleno de espinhos e trevas”. [17] Após derrotar Le Roux, apaixona-se pela viúva, a rainha Laudine, com quem se casa. Mas decide partir novamente em busca de aventura, após prometer a sua esposa retornar em um ano. Envolvido em combates e torneios, esquece-se de promessa e recebe na corte a visita da mensageira da rainha, que, diante de seus companheiros, o chama de “desleal” por não haver honrado sua palavra: “ele nos traiu”. [18]
Arrependido, Yvain é vítima de um gradual processo de desagregação, perde a memória e vagueia a esmo quando penetra novamente em Brocéliande, onde por fim regride ao estado de selvageria: nu, “persegue os animais nos bosques, mata-os e depois come a carne de caça inteiramente crua”. [19] O encontro com um eremita, porém, irá marcar o início de sua regeneração. Imerso na floresta, mas não inteiramente desligado do mundo dos homens, o eremita pertence, como lembra Le Goff, a “uma ordem intermediária entre as ordens constituídas da sociedade e o universo bárbaro”; [20] e, por essa razão, será capaz de fazer com que Yvain se reintegre ao universo cavaleiresco. Mas, como marca da selvageria ou da vida dominada pelos instintos, Yvain será acompanhado a partir daí por um leão que salvara na floresta, como o seu lado visível do mundo da floresta: “E o leão se coloca a seu lado, e jamais o abandonará. Estará sempre com ele, pois quer servi-lo e protegê-lo”. [21] A partir desse momento, Yvain ganha uma nova identidade, apresentando-se apenas como O Cavaleiro do Leão (Troyes, 2002: 502).
Em “Le conte du Graal”, Perceval, embora oriundo de uma nobre estirpe de cavaleiros, é criado isolado pela mãe em meio a um solar localizado na Floresta Deserto, [22] de modo a evitar para o filho o mesmo destino do pai - a ruína financeira e a morte.
O jovem Perceval, no entanto, encanta-se com os primeiros cavaleiros que vê passar pela floresta: “Mas vós sois mais belos que Deus”. [23] Decidido a adubar-se, abandona a mãe em prantos, que, saberemos mais tarde, morrerá de tristeza:
Que triste sorte é a minha! Ah, meu filho querido, essa cavalaria, sempre acreditei que pudesse protegê-lo dela: você jamais teria ouvido falar dela se não a tivesse visto [...] Você era a única consolação, o único bem que me restava” [...] Ele se afasta de sua mãe, e ela chora. [...] O jovem se volta e vê sua mãe caída, atrás dele, no extremo da ponte levadiça, ali jazendo, desmaiada, como se estivesse morta. [24]
Esporeando seu cavalo que parte em meio à “grande floresta obscura”, Perceval passará a ser conhecido como O Filho da Viúva Dama do Deserto Floresta, [25] já que sua origem nobre será reconhecida somente ao final da narrativa. Trata-se de alguém bruto, que não compreende o sentido das convenções da sociedade cortês, apenas os valores da floresta: “Ele é muito ignorante, um verdadeiro animal. [26] Em sua jornada em direção a Carduel para fazer-se cavaleiro, Perceval ainda se serve da arma típica de quem vive na floresta, o dardo, indigna de um cavaleiro.
Apesar de sua selvageria, Perceval é um cavaleiro “por natureza”, [27] e seu processo de aprendizagem se dará pelas mãos de Gornemont de Goort, de cujos ensinamentos se lembrará em várias ocasiões: “Recordou-se do nobre que lhe havia ensinado a não matar deliberadamente um cavaleiro, após tê-lo derrotado”; [28] “a ordem da cavalaria [...] não sofre nenhuma baixeza”. [29]
Porém, o remorso por haver abandonado a mãe o perseguirá: “Acredita que eu vá poder rever minha mãe, que permanece só no fundo desse bosque a que chamam de o Deserto Floresta?”. [30] Perceval carrega consigo o grave pecado de haver abandonado a mãe, que, como saberá mais tarde, “morreu de dor por ti”. [31]
Outro aspecto essencial intimamente ligado ao espaço da floresta é o da ruptura com os códigos cavaleirescos, que, tanto no romance cortês quanto na canção de gesta, significa traição (Le Goff chama-a de “floresta-traidora”). [32]
Em “Le chevalier au lion”, a possibilidade de ser visto como traidor é uma ameaça que assombra Yvain, o qual se esforça para provar a todos que não matou Esclados le Roux pelas costas. [33] Em “Le conte du Graal”, Gauvain, cavaleiro de muito valor por quem Perceval nutre grande afeto, também é seguidamente acusado de traição.
A brutal ruptura do código cavaleiresco representada pela traição também percorre com insistência a canção de gesta, em particular A canção de Rolando. Ambos os gêneros, apesar de nascidos em momentos distintos da Idade Média, conviveram estreitamente e disputaram público ao longo do século XII. [34] Essa ruptura é nomeada e condenada de forma severa como “traição”, pecado capital que irá levar o execrável Ganelon, que traiu Rolando e Carlos Magno, a figurar em um dos círculos do Inferno na Commedia de Dante Alighieri.
Aos traços de honra, valentia e coragem que identificam Calos Magno e Rolando, opõe-se a “infame traição” (20) que comete Ganelon ao aliar-se ao rei mouro Marsílio. A insistência nesse traço percorre toda essa obra, ainda mais do que em Chrétien de Troyes: “«Jurai-me que traireis Rolando [diz o rei Marsílio]». Ganelon responde: «Seja feita vossa vontade!». Sobre as relíquias de sua espada Murgleis ele jura trair e assim se torna um traidor” (A canção de Rolando, 2006: 24) Ao longo da narrativa, vão se avolumando-se as referências ao pecado da traição a ponto de tornar-se questão central, para além da bravura de Rolando. [35]
4. O deserto-floresta em O guarani
Como se pode ver a seguir, a floresta em O guarani apresenta funções estruturalmente muito similares às descritas acima, como o espaço do instinto mas também do renascimento, do abandono da mãe, da busca da aventura, da idealização da amada e da traição.
O espaço do instinto
Assim como se dá nas narrativas medievais, conforme apontado por Le Goff, a floresta é o espaço da barbárie. É lá que habitam os aimorés, “ferozes tigres” (Alencar, 1958: 291), a tal ponto donos de “braveza” e “instintos carniceiros” que “tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana” (Alencar, 1958: 298):
Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos. A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem, reduzida à brutalidade das feras (Alencar, 1958: 269).
Se a floresta é também o lugar da barbárie em Chrétien de Troyes, Alencar parece ter ido buscar a inspiração para seus aimorés em A canção de Rolando, na descrição dos soldados do emir que comprara a fidelidade de Ganelon: “É uma gente que sempre praticou o mal [...], que não está a serviço de Deus Nosso Senhor. Nunca ouvireis falar de traidores piores. [...] No combate são traiçoeiros e encarniçados” ( A canção de Rolando, 2006: 112-113).
Sob pano de fundo tão sinistro, Peri é visto como “um homem superior” (Alencar, 1958: 305) aos aimorés e, quando está prestes a ser executado por eles, é descrito como um “dos mártires da religião” (Alencar, 1958: 321). Porém, em mais um exemplo de sua constituição híbrida entre natureza e civilização, Peri é ainda aquele que se serve de armas bárbaras, que são o arco e a flecha; o arco é o “companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra” (Alencar, 1958: 85). Ele é também a arma principal dos aimorés, e o dardo que Perceval porta logo após deixar a floresta, e antes de ser adubado cavaleiro, pode ser considerado uma sua variante.
Le Goff lembra como o arco na Idade Média é uma arma habitualmente ligada ao caçador, e não ao guerreiro, visto que está mais próximo do estado de natureza. Assim, configura-se uma oposição entre o “guerreiro equipado” e “o arqueiro isolado”. [36]
O renascimento na floresta
Se é na floresta que Yvain se desagrega, é lá também onde inicia sua regeneração. À beira da morte após o envenenamento, será também na “floresta espessa” que Peri irá obter o antídoto para salvar-se:
Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor revelara o que aí se passou.
Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte, as folhas se abriram, e Peri, exausto de forças, vacilante, emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade, saiu do seu retiro.
Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um tanto as forças.
Chegando à beira do rio, Peri já sentiu o vigor que voltava e o calor que começava a animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à água e mergulhou. Quando voltou à margem, era outro homem; uma reação se havia operado; seus membros tinham adquirido a elasticidade natural; o sangue girava livremente nas veias. (Alencar, 1958: 347-348)
Despedida da mãe e fascínio pelo Outro
O notável e longo diálogo em que Peri abandona a mãe na floresta parece agregar pathos à passagem-irmã de “Le conte du Graal” em que Perceval deixa a floresta apesar dos apelos da mãe. Embora longa, cabe citá-la:
-Mãe!... exclamou ele.
-Vem! disse a índia seguindo pela mata.
-Não!
-Nós partimos.
-Peri fica.
A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração.
-Teus irmãos partem!
O selvagem não respondeu.
-Tua mãe parte!
O mesmo silêncio.
-Teu campo te espera!
-Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.
-Por quê?
-A senhora mandou.
A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável; sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.
Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre.
-Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai, e queima a cabana de Ararê.
-Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.
Peri abanou a cabeça com tristeza:
-Peri não voltará!
Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero.
-O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela; a folha que se despega do ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri não voltará ao teu seio.
-A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água; queima e mata tudo que se chega a ela. [...]
-Tua mãe fica! disse a índia com um acento de resolução.
-E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?
Peri preferiu estas palavras com a exaltação, que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem; a índia ficou pensativa, e respondeu:
-Tua mãe volta; [...]
Depois ela afastou-se lentamente; Peri seguiu-a com os olhos ate que desapareceu na floresta; esteve a correr, chamá-la e partir com ela. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai; ficou. (Alencar, 1958: 151-153)
O parentesco com “Le conte du Graal” é evidente. Em ambos os casos, a floresta irrompe como o lugar do lamento e da tristeza porque o herói -ora Perceval, ora Peri- rompe com seu espaço original para lançar-se para fora dele, em busca de aventura e amor, binômio definidor do modo romanesco (Frye, 2006: 22). É a visão do Outro que move ambos para a frente: Perceval é movido pela visão dos cavaleiros (“sois mais belo que Deus”), Peri pela visão de Ceci, a quem dedica “uma espécie de culto” (Alencar, 1958: 324).
O espaço da traição
A floresta, porém, é espaço para outro tipo de ação, condenável segundo as regras da cavalaria, como exemplificado acima: a traição.
Peri, contudo, em mais de uma oportunidade, trai; isso o distancia enormemente de Álvaro e dom Antônio de Mariz, personagens calcados inteiramente nos códigos de honra dos romances de cavalaria e das canções de gesta. Traição, para ambos, é o mais deplorável dos crimes. Álvaro descrê inteiramente da possibilidade de que Loredano e sua gente possam atraiçoá-los e sequestrar Ceci, conforme lhe conta Peri: “Não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal! [...] -Assassinar?... Nunca, Peri! Nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!” (Alencar, 1958: 218).
A que o índio lhe responde de modo perspicaz: “Tu e ele [dom Antônio] servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote” (Alencar, 1958: 218).
Em sua obediência cega a um código que perdeu validade nas circunstâncias em que se encontravam, Álvaro soa ingênuo, como o índio percebe muito bem: “[...] tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus” (Alencar, 1958: 217). Assim como Álvaro, também é dom Antônio: “Os aventureiros iam ser vítimas de envenenamento; e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio” (Alencar, 1958: 334).
Loredano, obviamente, constitui-se no personagem antitético, que, dominado pelos instintos, reúne em si traços reiterados de apostasia, concupiscência, cobiça e, claro, traição em seu grau mais elevado: seus capangas “esperavam um sinal para matarem seus companheiros adormecidos, e deitarem fogo à casa” (Alencar, 1958: 255). O fim típico de um anti-herói de tal quilate é a expiação:
Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.
O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício (Alencar, 1958: 360-361).
A essas duas espécies de personagens que se localizam em pólos opostos, vem se juntar Peri, que combina elementos de ambos, como a descrição da cabana, no capítulo inicial, tão fortemente prefigura. Assim, são várias as referências ao processo de nobilitação de que o índio é objeto ao longo da narrativa, um processo ritualístico em muito semelhante ao adubamento medieval: recebe de dom Antônio “o abraço fraternal, consagrado pelo estilo da antiga cavalaria”, o qual lhe diz: “Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro português” (Alencar, 1958: 192). Por fim, torna-se cristão e, o mais importante, uma nova identidade lhe é atribuída, assim como ocorrera com Yvain e Perceval: “[...] teu pai disse: ‘Peri, tu és cristão; dou-te o meu nome!” (Alencar, 1958: 373).
No entanto Peri é também um ser oriundo da floresta. Sua força sobre-humana e sua proximidade com o reino animal são acentuadas seguidas vezes: “[...] o guerreiro invencível, ele, o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais valente nação dos guaranis” (Alencar, 1958: 303); “era o rei do deserto, o senhor das florestas” (Alencar, 1958: 378).
Convenções como honra ou traição, tão determinantes aos heróis da canção de gesta e dos romances de cavalaria, operam de maneira diferente no seio desta outra floresta. Pois, em nome da amada, Peri trai a convenção cavaleiresca quando, em meio à escuridão e pelas costas, mata por estrangulamento e degola dois dos capangas de Loredano:
Não hesitou pois; e quando o aventureiro que falava erguia-se, sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o estrangulavam como uma golilha de ferro, antes que pudesse soltar um grito. O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor, e consumou a sua obra” (Alencar, 1958: 256); e
Peri tinha o ouvido sutil e delicado, e o faro do selvagem que dispensa a vista; o som da respiração servia-lhe de alvo; escutou um momento, ergueu o braço, e a faca enterrando-se na boca da vítima cortou-lhe a garganta. (Alencar, 1958: 256)
Mas não é só.
Peri trai o código de honra cortês ao envenenar a água que Loredano iria beber. Trai os temíveis aimorés quando se envenena, de modo que seu corpo fosse devorado ritualisticamente no meio da floresta pelos membros da tribo inimiga, que, assim, morreriam. Como se sabe, a antropofagia nas sociedades primitivas representa uma deferência a um inimigo capturado que se mostrou corajoso e honrado em combate: “-Peri envenenou a água que os brancos bebem, e o seu corpo, que devia servir de banquete aos Aimorés” (Alencar, 1958: 332).
Por fim, na forte cena em que Peri não cede aos apelos da mãe, a traição irrompe não por meio de cenas materialmente terríveis, mas através do abandono de sua tribo. Filho de Ararê, ele abdica da tarefa de liderar seu povo e a delega à velha mãe:
-E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos? (Alencar, 1958: 152)
Ao romper com seu papel de líder e de correia de transmissão da tradição de sua gente (“Quem contará?”, “quem dirá?”, “Quem há de preparar?”, quem há de “ensinar”?), Peri rompe com seus antepassados. Por contraste, conseguiríamos imaginar Rolando opondo-se a Carlos Magno, Yvain e Perceval rompendo com o rei Arthur ou, mesmo, Álvaro desobedendo Dom Antônio?
5. O espaço e o herói
Explorada a representação do espaço como móvel da narrativa em O guarani, devemos nos perguntar que tipo de herói ela engendrou neste romance. Em outras palavras, que tipo de herói é Peri?
Arrisco uma resposta.
Ao ultrapassar fronteiras espaciais claramente determinadas e vedadas a todos os demais personagens, ao cruzar o limite entre espaços simbolicamente carregados a que se referem Lotman e Mitterand, Peri também o faz não somente em relações aos códigos de honra previstos na canção de gesta e nos romances de cavalaria mas também o faz em relações às marcações temporais, pois renega a tradição de seus antepassados.
O amor, para além da honra, é o que move suas ações. É sintomático disso a passagem em que o índio rebate Álvaro, que recusara a hipótese de desonrar-se com um assassinato. Peri lhe diz: “Tu não amas Ceci!” (Alencar, 1958: 218).
Convivendo em uma socidade ficcional constituída de valores coletivos solidamente atrelados a personagens ou comunidades (dom Antônio, Álvaro, Ceci, a sua própria tribo e a dos aimorés), Peri transita com autonomia pelas normas, pois leal apenas a seu amor por Ceci.
Ao final de O guarani, não ocorre mais ultrapassagem de fronteiras, mas simplesmente a destruição do espaço ficcional da floresta pelas águas do rio Paraíba: “[...] estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nasce com o mundo” (Alencar, 1958: 395). E, após a extinção do espaço proteiforme e ambíguo da floresta, Peri passa a se nos afigurar -a nós, leitores-, como um legítimo cavaleiro medieval, como habitualmente tem sido visto pela crítica. Destruída a floresta de O guarani, essa Brocéliande tropical, Peri sai do romance mais “puro” aos nossos olhos (referendando, de maneira irônica, a função das águas como meio de renovação, como propõe Bachelard).
Entretanto, uma interpretação idealizante como essa, me parece, diz mais sobre o nosso olhar -o de civilizados da corte- do que sobre os termos em que a narrativa se constrói ao longo de suas centenas de páginas.
BIBLIOGRAFIA
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[1] * Professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Brasil), com ênfase em teoria literária e literatura comparada. E-mail: marcosflaminio@usp.br. Recibido el 22/4/2019. Aceptado el 17/5/2019.
[1] A pesquisa que resultou neste artigo contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo no. 17/22998-4).
[2] Esse aspecto foi desenvolvido em Peres, 2019.
[3] (Bachelard, 1988: 130). “A cabana [...] aparece como a raiz que sustenta a função do habitar. Ela é a planta humana mais simples, aquela que não precisa de ramificações para subsistir. É tão simples que não pertence mais às lembranças, às vezes demasiadamente cheias de imagens. Pertence às lendas. É um centro de lendas” (Bachelard, 1988: 129).
[4] “L´essence du descriptif [...] serait dans un effort: un effort pour résister à la linéarité contraignante du texte” (Hamon, 1993: 5).
[5] “increasing the cost of narrative information” (Koelb, 2006: 8).
[6] “especially place description”; “human characterization”; “the design of the entire work” (Koelb, 2006: 8). Ver também Marie-Laure Ryan: “Though description is often regarded by text typologists as the antithesis of narration, it is also the major discourse strategy for the disclosure of spatial information. In description, the report of narrative action is temporarily suspended to afford the reader a more or less detailed glimpse at the current spatial frame” (Ryan, “Space”).
[7] “composante essentielle de la machine narrative” (Mitterand, 1986: 212).
[8] “narrativise l´espace” (Mitterand, 1986: 212).
[9] “semantique littéraire de l´espace”; “la narraticité du lieu” (Mitterand, 1986: 190).
[10] “Chaque rue, chaque demeure est lieu d´un être et d´un fait spécifiques. Malheur à celui ou à celle qui franchira les frontiéres imposées par cette semiologie urbaine” (Mitterand, 1986: 197).
[11] Em Balzac, “le drama se joue entre les lieux qui lui sont prescrits, permits ou interdits” (Mitterand, 1986: 203).
[12] “This principle states that whenever we interpret a message concerning an alternate world, we reconstrue this world as being the closest possible to the reality we know […]; we will project upon the world of the statement everything we know about the real world, and that we will make only those adjustments which we cannot avoid” (Ryan, 1980: p. 403 e 406, respectivamente). No mesmo sentido, Thomas Pavel afirma que “we have thus to assess which world is more similar to the one we inhabit” (Pavel, 1986: 87).
[13] “[La forêt dans l'univers de l'Occident medieval] est l'équivalent de ce que représente en Orient le désert, lieu de refuge, de la chasse, de l'aventure, horizon opaque du monde des villes, des villages, des champs” (Le Goff, 1985: 156).
[14] “serfs fugitifs, meurtriers, aventuriers, brigands”; a floresta é o “desert institutionnel” (Le Goff, 1985: 66 e 69, respectivamente).
[15] Robert Pogue Harrison, em seu abrangente estudo, afirma que “as florestas foram as primeiras e as últimas vítimas da expansão cívica”: “The governing institutions of the West religion, law, family, city-originally established themselves in opposition to the forests, which in this respect have been, from the beginning, the first and last victims of civic expansion” (Harrison, 1992: IX).
[16] “Je trouvai um chemin à ma droite, au milieu d´une forêt épaisse. [...] C´était en Brocéliande” (Troyes, 2002: 420).
[17] “le sentier étroit plein des ronces et de tenèbres” (Troyes, 2002: 433).
[18] “déloyal”; “il nous a trahi” (Troyes, 2002: 471-2).
[19] “il guette les bêtes dans les bois, il les tue, et puis il mange la venaison toute crue” (Troyes, 2002: 473).
[20] “Yvain trouve un homme menant une existence éotechnique [...]. Il appartient à un ordre intermédiaire entre les ordres constitués de la société et l'univers barbare: c'est un ermite [...] Tous deux sont des solitaires et ont un genre de vie frugale, mais l'ermite sort occasionnellement de la forêt pour rencontrer des hommes ‘civilisés’ (pour vendre le cuir, acheter le pain)” (Le Goff, 1985: 161-2).
[21] “Et le lion prend place à côté de lui, et jamais plus il ne quittera. Il sera toujours avec lui, car il veut le servir et le proteger” (Troyes, 2002: 485).
[22] “Votre père possedait ce manoir, ici, dans la Forêt Déserte” (Troyes, 2002: 568).
[23] “Mais vous, vous êtes plus beau que Dieu” (Troyes, 2002: 562).
[24] “Hélas! Quel triste sort est le mien! Ah, mon doux enfant, cette chevalerie, j'avais bien cru vous en garder: vous n'en auriez jamais entendu parler, ni vous n'en auriez vu aucun”; “vous étiez la seule consolation, le seul bien qui me restait”; “Le jeune homme ne prête guère attention à ce que lui dit sa mère [...]; “sa mère fait tout son possible pour le retenir et le faire rester”; “Il prend congé de sa mère et elle pleure”; “une fois qu'il se fut éloigné à distance de jet d'une petite pierre, le jeune homme se retourne et voit sa mère tombée, derrière lui, au bout du pont-levis, gisant là, évanouie, comme si elle était tombée morte. Lui, d'un coup de baguette, cingle la croupe de son cheval, qui s'en va d'un bond et l'emporte à vive allure à travers la grande forêt obscure” (Troyes, 2002: 567, 568, 568, 570, 571, respectivamente).
[25] “Le fils de la Veuve Dame de la Désert Forêt” (Troyes, 2002: 560).
[26] “il est trop ignorant, une vraie bete” (Troyes, 2002: 584).
[27] “de sa nature” (Troyes, 2002: 588).
[28] “Il s´est pourtant souvenu du gentilhomme qui lui avait appris à ne pas tuer sciemment un chevalier, après l´avoir vaincu et avoir eu le dessus” (Troyes, 2002: 602).
[29] “l´ordre de chavalerie, qui ne souffre aucune baissesse” (Troyes, 2002: 591).
[30] “Et ne croyez-vous pas que ce soit bien que j´aille revoir ma mère, qui reste seule au fond de ce bois qu´on appelle la Déserte Forêt?” (Troyes, 2002: 615).
[31] “Sache maintenant que le malheur va s’abattre sur toi et sur les autres. C’est à cause du péché qui touche à ta mère, apprends-le, que cela t’est arrivé, quand elle est morte de chagrin pour toi” (Troyes, 2002: 628).
[32] “[...] forêt-traîtresse, car elle est, em termes de morale féodale, le lieu des hallucinations” (Le Goff, 1985: 73).
[33] “Mais comment est-il possible que tu aies tué mon seigneur, si tu ne le fis pas par trahison?” (Troyes, 2002: 442).
[34] Le Goff: “Certes, les chansons de geste ont fait leur apparition un peu avant les ‘romans courtois’, mais, au XIIe siècle, les deux genres littéraires interfèrent et se font tout à la fois concurrence” (Le Goff, 1985: 179).
[35] Seguem mais alguns exemplos: “Ganelon aproxima-se, o traidor, o perjuro”; “o pérfido Ganelon atraiçoou-o”; “Ganelon sabia disso, o covarde, o traidor que nos designou perante o imperador” ( A canção de Rolando, 2006: 26, 33, 38, respectivamente).
[36] “Un arc, c'est-à-dire une arme qui est celle du chasseur, non du chevalier guerroyant et tournoyant. Arrêtons-nous ici un moment. Il est un temps, très éloigné du XIIe siècle, qui connut lui aussi une opposition entre le guerrier équipé et l'archer isolé, voire sauvage” (Le Goff, 1985: 157).