A VIOLÊNCIA, OS AFETOS, A SODORORIDADE EM NOCHE DE FUEGO, DE TATIANA HUEZO

 

Violence, Affections, Sodororidade in Prayers for the Stolen,

by Tatiana Huezo

 

Rosilene Caramalac*

Flávio Adriano Nantes**

 

Resumo

O presente trabalho trata de uma leitura, dentre as tantas possíveis, da produção cinematográfica Noche de fuego (2021), de Tatiana Huezo, produção mexicana, com o intuito de refletir sobre a violência extrema a qual as meninas e as mulheres personagens estão submetidas por uma série de questões, a saber: a inanição do Estado-nação que não combate o crime organizado que empreende sequestros, estupros, assassinatos contra essas mulheres; a corrupção e o envolvimento de policiais com o narcotráfico; a desproteção e o abandono absolutos em que vivem num pequeno vilarejo no interior do México. A proposta, então, é pensar dois aspectos importantes acerca dos engendramentos da violência contínua contra esses corpos. Há, por um lado, o modo como as mulheres do povoado tentam, ainda que com parcos recursos, num gesto de irmandade entre elas, preservar a vida das meninas e das jovens. Por outro lado, analisaremos outra face da violência: a pior delas, a que está na perspectiva da violência objetiva e sistêmica que trazem, muitas vezes, o apagamento, a inércia, das mulheres personagens em questão. Para pensar a produção fílmica, utilizar-se-ão as proposições teórico-críticas de Judith Butler, Vilma Piedade, Julieta Paredes, Slavoj Žižek, entre outros.

 

Palavras-chave:  Noche de fuego - feminicídio - patriarcado - sodororidade - violência.

 

 

Abstract

This article aims at presenting a reading, among many possible ones, of the Mexican movie production Prayers for the Stolen (Noche de fuego, 2021), directed by Tatiana Huezo. Our intention is to reflect upon the extreme violence to which the girl and woman characters are subjected, more specifically: the inaction of the Nation-state, which does not fight organized crime which is responsible for kidnaps, rapes and murders of such female characters; the corruption and involvement of police forces with drug trafficking schemes; the unprotected situation and absolute abandonment in which these women live in a small Mexican countryside village. The purpose, then, is to think about the two major aspects related to the engendering of continuous violence against these bodies. There is, on the one hand, the way the women from the village try, yet tentatively, in a sisterhood gesture among them, to preserve the lives of the girls and young women. On the other hand, we are going to analyze the other face of violence: the worst of them, the one which brings into perspective the systemic and objective violence, many times translated as the erasure, the passivity, of the women characters in question. To consider the filmic production, we are going to resort to the critical-theoretical positions of Judith Butler, Vilma Piedade, Julieta Paredes, Slavoj Žižek, among others.

 

Keywords: Prayers for the Stolen; femicide; patriarchy; sodororidade; violence.

 

En México, lo mejor que te puede pasar es ser una niña fea.

Jennifer Clement.

 

Sororidade, Dororidade, Sodororidade: a irmandade entre mulheres

 

À escritora Cristina Peri Rossi, de nacionalidade uruguaia, radicada na Espanha por mais de quatro décadas pelos efeitos da ditadura que assolou seu país, foi concedido o Prêmio Miguel de Cervantes, o mais importante prêmio de literatura em língua espanhola, pelo conjunto da obra. Em seu discurso – lido, como numa atuação apoteótica, pela atriz argentina Cecilia Roth, em Alcalá de Henares, por ocasião da cerimônia do prêmio – a poeta coloca em evidência o que constitui o seu projeto est(ético) em mais de cinquenta anos de carreira literária. Peri Rossi demonstra por intermédio de sua produção artística como percebe e se constitui o modus operandi das sociedades ao redor do mundo. Desde a mais tenra idade, a artista uruguaia entendeu que as pessoas, ou melhor o mundo, sempre estiveram sob a égide da violência extrema perpetrada por homens que buscam incansavelmente a riqueza e o desejo de poder, com um claro intuito de dominação.

O texto de Cristina Peri Rossi para a cerimônia de premiação faz menção à violência como prática cotidiana, sobretudo contra as mulheres, desde os tempos mais remotos, que ainda vige em sociedades patriarcais. Se a violência contra mulheres remonta desde a fundação dos tempos e permanece na agoridade, queremos lançar mão às palavras de Peri Rossi para começarmos a pensar acerca do feminicídio sistemático perpetrado contra meninas e mulheres no México desde a década de 1990.

Em 1976, num evento em Bruxelas, a professora-pesquisadora-ativista Diana Russell (1938-2020) cunhou o termo feminicídio por ocasião do Primeiro Tribunal Internacional de Crimes Contra as Mulheres (Feminicídio, 2021). Este termo pode ser entendido como o fenômeno letal contra o corpo da mulher e/ou a destruição, por ódio, à mulheridade[*] empreendido por um homem, o que evidencia as relações de gênero e/ou hierarquização corpórea entre homem e mulher; aquele, por inúmeras questões sociais, considera-se detentor de uma supremacia em relação a esta, i.e., o patriarcado: fenômeno onde o homem, em quase todas as sociedades ao redor do mundo, produz para si próprio uma estrutura de privilégio/poderio, impondo às mulheres um lugar de segunda categoria na estratificação social.

Na América Latina, a terminologia é condição essencial para que pensemos, nas diferentes áreas do saber, acerca da questão de assassinatos cotidianos de mulheres no interior do continente. No caso específico do Brasil, o país ocupa desgraçadamente o 5º lugar no ranking mundial em feminicídio, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Em 2020, houve 3913 homicídios, dos quais 1350 por feminicídio, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2021 (Rosa, 2021). Um dado que também precisa ser pensado no contexto da América Latina refere-se ao caso do México, mais especificamente em Ciudad Juárez, quando meninas e mulheres começam a ser sistematicamente assassinadas.

A violência extrema perpetrada contra meninas e mulheres desta cidade mexicana é transportada para a literatura, por Jennifer Clement, no livro Ladydi (traduzido no Brasil pela Editora Rocco, como Reze pelas mulheres roubadas), e do romance para o cinema cujo resultado pode ser considerado um épico do cinema mexicano: Noche de fuego. Embora as coisas das artes não tenham um compromisso efetivo com as questões sociais, elas podem, por uma perspectiva política, tratar de questões sociais (a sociologia das artes) e provocar reflexões no espectador/leitor. É o caso da narrativa fílmica Noche de fuego, da diretora mexicana Tatiana Huezo, 2021, que esteve entre os finalistas do Oscar na categoria melhor filme estrangeiro. Nesta produção, o espectador é arrojado para um vilarejo no interior do México, onde uma série de sequestros, estupros, assassinatos seguidos de mutilação do corpo, desaparecimentos, acontecem sem que haja explicação plausível; o que há entre os moradores, sobretudo as mulheres, é um silêncio propagado pelo medo, incertezas, falta de proteção estatal, ameaças constantes, iminência da morte sempre à espreita.

Diante dos terríveis e assombrosos acontecimentos, a pequena população se une na tentativa de se proteger, mas os intentos são precários frente aos agentes que perpetuam a violência contra uma comunidade empobrecida e com parcos ou nenhum recurso bélico. É possível observar ao longo da produção cinematográfica a polícia mexicana e o narcotráfico, agenciando a violência contra a população, leia-se meninas e mulheres, i.e., as sujeitas sem as menores condições de defesa.

O filme nos dá a conhecer três garotas: Ana, Maria e Paula, personagens centrais que estão juntas desde a infância e buscam em meio à violência e ao caos enfrentar a realidade marcada pela perversão do feminicídio, do sequestro, do estupro. Elas criam para si um mundo à parte com brincadeiras e jogos que as alijam daquela atmosfera de horror. Mas a tensão no vilarejo aumenta quando Juana, também uma garota e conhecida das outras três, é sequestrada. As mães, sobretudo a de Ana, silenciam o fato, tratando deste sequestro como uma simples mudança para outro lugar para não aumentar o desespero entre as garotas.

Em meio ao horror e à solidão extrema destas mulheres, elas criam políticas de sobrevivência, aqui entendidas como sororidade, ou ainda dororidade (termo cunhado por Vilma Piedade (2017), intelectual e militante do feminismo negro). As personagens mulheres articulam silenciosamente maneiras de proteger suas filhas do massacre contra os corpos femininos. Rita, a mãe de Ana, faz uma cova no quintal de casa para que a filha possa se esconder caso seja necessário; e de fato o é, pois quase ao final da narrativa, Rita é abordada por um homem que, segundo se observa está envolvido com o narcotráfico (um dos grupos de sequestradores que atuam na região), pergunta se há na casa uma garota e para o bem de todas exige que seja entregue para que a leve. Ainda que sob ameaças de morte e estupro, mãe e filha conseguem escapar às investidas dos agressores.

Uma atmosfera de proteção envolve, ademais das mulheres, outras personagens, como é o caso do professor do vilarejo que tenta buscar informações sobre o desaparecimento de Juana, e durante uma reunião de pais e mestres pergunta às mães presentes se alguém sabe ou tem alguma informação sobre o que estaria acontecendo na montanha, a resposta de todas é o mais absoluto silêncio. É a sociedade do silêncio, onde as pessoas não podem falar o que pensam e acreditam estar acontecendo; este silêncio entre elas é, portanto, forma de proteção e defesa das meninas.

Vilma Piedade, sobre mulheres que estão mais vulneráveis à violência e ao feminicídio, afirma que mulheres, jovens, meninas negras, são as mais suscetíveis. “Se o feminicídio de forma geral avança, as Pretas são as que mais morrem” (Piedade, 2017:14). A autora acredita estar na racialização o entendimento acerca da violência exacerbada contra os corpos femininos pretos.

A partir do pensamento de Piedade mais a afirmação categórica de Angela Davis, de que “raça, classe e gênero entrelaçados, juntos, criam diferentes tipos de opressão. Classe informa a raça; raça informa a classe” (Davis, 2016:68). Seccionando essas duas mulheres pretas, podemos desterritorializar as ideias contextualizadas no feminismo preto e reterritorializá-las em relação às mulheres mexicanas, mais especificamente às mulheres-personagens de Noche de fuego.

É possível afirmar, na esteira dessas duas pensadoras, que há mulheres, por questões de raça e classe, mais vulneráveis à violência que outras. Na produção fílmica em questão, as mulheres sequestradas, estupradas, assassinadas, são sujeitas cuja classe social as impele para um lugar de violência.[†] São protagonistas do abandono, da inanição estatal, da falta de escolarização e de possibilidades para se movimentar e/ou empreender estratégias adequadas de defesa. Em outras palavras, que mulheres são essas abandonadas pelos homens e pelo Estado-nação? São mulheres pobres. “É nesse ponto que a Dororidade se instaura e percorre a trajetória vivenciada por nós, População Preta, e, aqui, em especial, Nós – Mulheres – Mulheres Pretas. Brancas, de Axé, Indígenas, Ciganas, Quilombolas, Lésbicas, Trans, Caiçaras, Ribeirinhas, Faveladas ou não, somos mulheres” (Piedade, 2017:19).

O termo-conceito de Vilma Piedade indica a dor (as dores pluralizadas e hiperbolizadas) sofrida por determinados grupos específicos de mulheres, conforme se observa no fragmento. O machismo agenciado e regido pelo patriarcado promove violências “categóricas” sobre corpos específicos, i.e., violências específicas que se “ajustam” a determinadas mulheres. Mulheres pretas, consideradas mais sensuais e mais quentes, segundo a cultura do estupro ancorada às estereotipias machistas, são as maiores vítimas de violência sexual; essas mesmas mulheres, também consideradas mais fortes e mais resistentes (herança da escravatura), recebem menos anestesia local durante o parto em comparação às mulheres brancas (Grávidas, 2014). Mulheres faveladas (pretas ou não) geralmente desescolarizadas são vítimas de exploração laboral por não ter os direitos trabalhistas reconhecidos, assim, não podem adoecer, cuidar dos filhos caso haja necessidade ou se ausentar do trabalho por quaisquer outras necessidades.[‡] Mulheres trans sofrem cotidianamente com a ameaça iminente do transfeminicídio pelo fato de o Brasil há anos ocupar o 1º lugar no ranking mundial em assassinatos a mulheres trans (Benevides e Nogueira, 2021).

Unindo as potentes percepções dessas duas mulheres negras – Piedade e Davis –, é possível pensar o termo-conceito – dororidade – em relação às meninas-mulheres-personagens de Huezo. As mulheres do vilarejo estão sozinhas, há um abandono generalizado – seus maridos se deslocaram por melhores condições de existência, como é o caso do pai de Ana, que cruzou a fronteira para trabalhar nos Estados Unidos, em busca de trabalhos mais rentáveis, deixando a mulher e a filha sem qualquer apoio. Tampouco há notícia de quaisquer outros homens na vida delas, como irmãos, pai, ou qualquer outro parente; ao que parece os homens ou migraram para o estrangeiro, ou estão envolvidos com o narcotráfico, ou ainda foram exterminados por algum grupo criminoso. Essas mulheres, então, se unem na dor causada pela solidão e desamparo, pela iminente ameaça de violência contra seus corpos. “A Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo” (Piedade, 2017:17). É a união pela dor, uma dor compartilhada e sofrida por mulheres-iguais. Parece-nos óbvio que cada uma dessas mulheres seja sujeita autônoma pelas diferentes subjetividades e que sentem também  de modo distinto, no entanto, há um laço que as une – a dor.

As personagens – meninas e mulheres – enlaçadas a esta estrutura do horror, buscam, ainda que de modo precário, mecanismos de autoproteção contra o sequestro, o estupro, o assassinato. Não há para essas mulheres apoio do Estado; a polícia tampouco oferece proteção por estar envolvida com grupos criminosos. Se o Estado não as protege, de acordo com o pensamento de Achille Mbembe (2018), elas são eliminadas pelo próprio poder público – são vidas que não merecem viver, não têm direito ao luto/choro social e “não podem ser amadas”.

A irmandade entre as mulheres de A noite do fogo torna-se tão efetivo-afetiva que há, entre outros, um pacto de “feiura”, ou desmantelamento da beleza, ou ainda de masculinização das meninas, i.e., tentar ocultar os traços de feminilidade, i.e., fazer com que as garotas não se pareçam garotas, senão garotos, com o intuito de protegê-las dos sequestros, estupros, assassinatos. Nosso objetivo aqui não é discorrer sobre beleza hegemônica, masculinidades e feminilidades dos corpos, mas tratar de refletir sobre a intervenção corpórea perpetrada pelas mães das meninas e por Ruth, a cabeleireira da montanha e amiga dessas mães. Em última instância, a beleza é algo da ordem do indesejável, e ser “feia” é a garantia de sobrevivência, conforme se observa na epígrafe que abre este trabalho, de Jennifer Clement.

 

Imagem 1. Noche de fuego (Huezo, 2021, captura de tela). Da esquerda para a direita as personagens, ainda crianças, Paula, Ana e Maria.

 

A imagem 1 demonstra o que convencionamos denominar de processo de masculinização perpetrado nas meninas, sobretudo nas duas primeiras, da esquerda para a direita (Paula e Ana). Ruth é uma das responsáveis por este processo que corta os longos cabelos das meninas, extraindo delas qualquer vestígio de feminilidade. Nessa imagem, as garotas têm aproximadamente 7 anos e desde este período, para passar desapercebidas pelos algozes, são desfeminilizadas. Maria, a garota da esquerda, se mantém com o cabelo comprido porque, embora ninguém mencione durante a narrativa fílmica, ela têm o lábio leporino, assim, não seria uma vítima em potencial para os grupos do crime organizado.

 

Imagem 2. Noche de fuego (Huezo, 2021, captura de tela). Em primeiro plano, da esquerda para a direita, as mesmas personagens já adolescentes, Maria, Ana e Paula.

 

 

Na imagem 2, as amigas, transcorridos mais de 50 minutos do filme, aparecem na fase adolescente, mas o modo como se vestem e o corte de cabelo continuam o mesmo. Agora o perigo entre as adolescentes é ainda maior, pois seus corpos ganham, pela passagem do tempo, maturidade, i.e., corpo de mulher. Neste aspecto, a tensão entre as personagens mulheres aumenta; a chegada da menstruação para as garotas, por exemplo, torna-se um transtorno grave, pois amadurecer e tornar-se mulher significa bordear o abismo da violência extrema, do estupro, da eliminação letal do corpo.

Um dado interessante a ser observado entre as duas imagens tem a ver com a personagem Maria que na imagem 1 tem o lábio leporino, na imagem 2 está restaurado; a adolescente passou por um processo cirúrgico e o que deveria ser uma alegria para Maria converte-se em desgraça, pois ela é raptada pelo crime organizado, e com este evento trágico Huezo cria o desfecho de sua produção. A diretora adia ao máximo aquilo que o espectador infere que possa acontecer: o sequestro de uma delas e o grupo de amigas inseparáveis de infância fica desfalcado pela perda de Maria.

Se Vilma Piedade articula o termo-conceito dororidade, queremos a partir dela cunhar outro termo sodororidade, aglutinando os termos sororidade mais dororidade, com o intuito de (co)mover o olhar social para grupos de mulheres que sofrem qualquer tipo de violência perpetrada pelo machismo patriarcal que enxerga erroneamente na mulher um gênero de segunda categoria. É sabido, conforme já mencionamos, que não se pode mensurar a dor de ninguém, mas nos é possível perscrutar os engendramentos da dor, os meandros da fabricação da violência que causa a dor, o modus operandi dos algozes em relação às vítimas. Dor, repetimos, não se mede, mas é urgente analisá-la; é urgente que a dor e as políticas para mitigá-la estejam na pauta da agenda de todas as sociedades cujas mulheres ainda são vítimas de qualquer tipo de violência.

O termo sororidade provém do latim soror de valor semântico irmã, irmandade; mais o sufixo também latino -dade que significa qualidade ou estado. No foço do dicionário esta palavra significa muito pouco ou quase nada para as mulheres, mas, por intermédio do feminismo ou dos Gender Studies, o termo é levado à qualidade de irmandade, apoio, ajuda mútua, entre as mulheres, solapando estereotipias ancoradas ao machismo patriarcal de que as mulheres rivalizam, são inimigas e ameaça constante uma para as outras. Em outras palavras, sororidade é a união de mulheres cujo propósito é lutar por direitos sonegados historicamente, reivindicar pelo bem estar social oferecido apenas ao homem, reclamar por participação na vida pública, entre outros. Já dororidade, termo-conceito empreendido por Vilma Piedade, conforme se observa é derivado da palavra dor, do latim dolor que significa sofrimento corporal, aflição, inquietação. A dororidade, então, como um produto do machismo, atinge a todas, mas de maneira diferente para cada grupo de mulheres. A partir da junção entre os dois termos, sugerimos sodororidade: união de todo o mulherio atingido pela dor de ser/existir e que reivindica por uma existência plena (e tudo o que isso possa significar para todas as mulheres).

Ainda ancorando nosso pensamento ao de Vilma Piedade, há no racismo, conforme já mencionamos, imobilização, i.e., a vítima não consegue se mover no sentido de sair da trama opressora. As meninas-mulheres-personagens do povoado mexicano tampouco conseguem se movimentar para fora do sistema opressor que destrói suas vidas. Se Piedade tem razão em alocar o racismo no centro da violência contra mulheres pretas, não seria inapropriado pensar que estratificação de classe produz o sofrimento das mulheres mexicanas. Neste sentido, não é mais possível, nos aproximando de Angela Davis, aceitar um feminismo que não leve em consideração, de modo interseccional, o gênero, a classe, a raça. Assim, as mulheres camponesas (Precisamos falar sobre o Feminismo Camponês Popular!), iletradas, abandonadas, pobres, sem recursos, de um vilarejo nas montanhas mexicanas, que estão sob o signo de toda sorte de violência, precisam ser pensadas pela ótica de um feminismo mais abrangente, mais plural.

 

E por falar em feminismo Camponês Popular…

 

A boliviana Julieta Paredes, em seu livro Hilando fino desde el feminismo comunitário (2014),[§] abre espaço para reflexão acerca da existência de mulheres que vivem no campo, sobretudo camponesas e indígenas, e demonstra o quanto o Estado-nação, de forma deliberada, em conjunto com a política neoliberal e capitalista, mantém essas mulheres sob o jugo da extrema exploração do trabalho, do espaço (lar/terra), da memória. Em outras palavras, as mulheres do campesinato estão completamente solitárias na luta pelo direito à existência (leia-se bem estar social) e para que haja êxito na luta, Paredes aposta no que comumente vem se firmando como feminismo comunitário.

A escritora boliviana publicou Hilando fino, num primeiro momento, para pensar especificamente as mulheres camponesas e indígenas da Bolívia, mas o livro alça voos e foi editado também no México,[**] onde encontrou recepção para pensar nas mulheres mexicanas em condições semelhantes de exploração. No que concerne a este trabalho, as proposições de Paredes podem jogar luz à produção fílmica de Tatiana Huezo. Julieta Paredes aposta na construção de um espaço (feminismo) para que vozes silenciadas desde os tempos pré-hispânicos possam ter direito à fala; esta deve ser impetrada pelas próprias mulheres do campo – camponesas e indígenas –, pois quando elas não podem falar de si e de suas iguais um processo de recolonização é instaurado.

 

La nefasta herencia de la invasión colonial, que comprende, entre otras lacras, exclusión, desprecio, machismo y racismo hacia los y las indígenas, ha tenido por resultado la creación de un colonialismo interno que no necesita al blanco invasor como virrey, sino que se ejecuta a través de sus herederos blancos, los neocolonizadores (Paredes, 2014:52).[††]

 

São os tentáculos da colonização que ainda operam na América Latina, explorando o trabalho e sacrificando a vida de muitos. No caso dessas mulheres em questão, a exploração é levada à última consequência, pois há um genocídio cultural, social, religioso, da memória, da própria população em si, que ainda vige. Um dado interessante no texto de Julieta Paredes, tem a ver com os agentes da recolonização que legitimam e dão continuidade ao processo colonial; esses agentes não são mais homens brancos europeus, senão os próprios compatriotas bolivianos e mexicanos.

As meninas-mulheres-personagens de Noche de fuego não são sequestradas, estupradas, assassinadas, mutiladas, por homens estrangeiros, ou de fora da comunidade, mas por seus “irmãos” mexicanos pertencentes a grupos criminosos que apoiados numa estrutura patriarcal perversa empreendem um novo genocídio: somente contra mulheres que não podem se defender. É o ressurgir da maquinaria da morte dos tempos da colônia. E não devemos deixar de mencionar que essa maquinaria é, em parte, operacionalizada pelo Estado-nação mexicano; este, ao simular democracia, não empreender políticas de proteção, não desmontar o crime organizado, torna-se cúmplice dos grupos de extermínio.

No filme, a sequência em que Rita e Ana enfrentam dois criminosos que têm o claro objetivo de sequestrar a adolescente, observa-se que o sequestrador, ao perguntar se havia uma menina em casa, o faz no mesmo idioma que Rita e com o mesmo acento do castelhano, endossando as palavras de Paredes acerca de a recolonização ser empreendida por herdeiros da colonização.

 

El colonialismo interno ha generado, además, un imaginario estético racista, prejuicioso y discriminador, que ha lastimado cotidianamente los cuerpos especialmente de las mujeres indígenas o de origen indígena. Este imaginario ético y estético de los cuerpos asigna criterios de belleza, educación y bien vestir. Califica por un lado como bonitas, educadas, limpias y bien vestidas a mujeres blancas o blanconas con rasgos occidentales. Califica por otro como feas, maleducadas, sucias y mal vestidas a las mujeres morenas con rasgos indígenas (Paredes, 2014:53).[‡‡]

 

É interessante notar que mais uma vez a autora refere-se a uma nova forma de colonialidade – o modo como o corpo é visto/ entendido dentro da própria comunidade. Se o corpo da mulher, num sistema machista-sexista, é qualificado como um elemento de segunda categoria em relação ao corpo do homem, o corpo da mulher indígena e/ou com traços indígenas é alocado numa categoria ainda maior de abjeção. As mulheres indígenas e, acrescentemos, as camponesas estão numa esfera ainda mais alijada de reconhecimento de direitos, da democracia, do combate à violência contra seus corpos, de acesso à saúde, à alimentação adequada e ao trabalho sem exploração, etc.

É importante salientar, ainda em relação ao colonialismo interno, que, em casos específicos, as próprias mulheres são agentes de exploração de cunho machista-colonial, quando: reafirmam que a beleza da mulher branca é a mais adequada ou a única; exploram a força de trabalho de indígenas ou camponesas com salário mal remunerado, condições insalubres de trabalho ou ainda sem qualquer direito trabalhista.

 

El sistema patriarcal implementó una variante en el neoliberalismo: trata de igualar a los hombres ciudadanos de primera clase con “sus mujeres” que ocupan la segunda clase de ciudadanía, por eso el “éxito” de ciertas mejoras que estas políticas neoliberales traen, especialmente para las mujeres de clases altas y medias del primer mundo, y por extensión a las mujeres de clases altas latinoamericanas y bolivianas.

El peso pesado de las reformas económicas neoliberales cayeron fuertemente sobre las mujeres de clases bajas e indígenas empobrecidas, en el llamado tercer mundo, del cual es parte nuestro país (Paredes, 2014: 60).[§§]

 

Não é possível, mas, sob muitos aspectos, pensar em mulher como um signo universal. Parece-nos que está provado (expressão muito cara às ciências humanas) que pensar a existência de mulheres sem levar em consideração as distintas demandas de cada grupo é algo que está fadado ao fracasso. Não há, por assim dizer, a mulher mexicana, mas grupos de mulheres mexicanas com especificidades e demandas diferentes. As mexicanas de classe média ou alta, as mexicanas brancas (pobres ou de classes abastadas), as mexicanas indígenas (empobrecidas ou não), as mexicanas com traços indígenas (empobrecidas ou não), as mexicanas camponesas, entre outras, são todas mulheres que pertencem a grupos sociais distintos e, por conseguinte, distintas também são suas reivindicações. Todas elas, num contexto sexista-machista-misógino-patriarcal, estão submetidas à violência e para eliminá-la de forma efetiva é preciso que nós, a academia, os pesquisadores, os movimentos sociais, o Estado, etc., as percebamos em suas peculiaridades e, sobretudo, que as escutemos e que elas (nos) digam com sua própria voz acerca de suas demandas.

Ainda sobre o excerto acima, Julieta Paredes não acredita em equidade de gênero entre homens e mulheres – o que há é uma abstração, uma formulação discursiva, pois a hierarquização corpórea sempre existiu, mesmo antes da chegada dos europeus[***]. Em outras palavras, mesmo as mulheres de classes mais abastadas, aquelas beneficiadas pelo patriarcado capitalista neoliberal, estão submetidas a diversas formas de violência, seja pela invisibilização frente ao homem, seja pela condição de ser concebida socialmente como sujeitas de segunda categoría (“los hombres ciudadanos de primera clase con ‘sus mujeres’ que ocupan la segunda clase de ciudadanía”).

Neste contexto, onde nenhuma mulher se sente segura, o que dizer daquelas que vivem nas montanhas mexicanas esquecidas do poder público, da sociedade, invisibilizadas e silenciadas no interior do empobrecimento e da escassez generalizada? Que resposta a sociedade, como um todo, poderia empreender às famílias que tiveram suas meninas sequestradas, estupradas, assassinadas, mutiladas, por grupos criminosos? Onde alocaremos as dores dessas mulheres? O que poderia ser feito para reparar os danos cometidos contra essas vidas arruinadas pela violência misógina? Desgraçadamente não temos respostas concretas/efetivas, mas queremos produzir uma centelha para iluminar essas questões; criar um luto outro, um luto à memória dessas mulheres que ainda não receberam a comoção, a tristeza, a dor, por parte da sociedade.

 

A política do medo: um vilarejo no México como hospedaria para “vidas não vivíveis”[†††]

A perda de algumas vidas ocasiona o luto; de outras, não; a distribuição desigual do luto decide quais tipos de sujeitos são e devem ser enlutados, e quais tipos não devem; opera para produzir e manter certas concepções excludentes de quem é normativamente humano: o que conta como uma vida vivível e como uma morte passível de ser enlutada?

Judith Butler

 

Há no impactante filme da diretora Tatiana Huezo, Noche de fuego, apesar de toda sororidade, dororidade, sodororidade e todos os laços entre aquelas mulheres, um grito, uma voz que não aparece no filme, trazendo claramente a ideia de uma inércia, apatia e silenciamento diante dos horrores que as personagens do filme estão submetidas, pois estranhamente elas permanecem no vilarejo, não vendo saídas para se libertar. Há uma pergunta que se mantém durante todo o filme: Por que não partiram para um outro lugar? Por que na trajetória histórica do filme – que compreende um tempo de quase uma década – aquelas mulheres não viam uma forma de escapar daquele lugar? Por que aquela apatia, aquele silêncio que sufoca a existência de todo aquele vilarejo?

Há um ponto sempre presente no filme – o silêncio, a paralisia – que nos instiga a buscar uma possibilidade de compreensão de tais questões. Antes de darmos a partida, é necessário grifarmos dois pontos fundamentais. O primeiro é não desimplicar o Estado que nada faz para proteger a vida daquelas mulheres – e de milhares de outras (mulheres ou não) que sofrem todo tipo de violência, silenciamento e apagamento todos os dias.[‡‡‡] Noche de fuego representa isso de modo explícito na complacência e participação do Estado nos sequestros, no desaparecimento das mulheres que acontece naquele lugar. Esse aspecto relaciona-se, conforme trataremos mais adiante, à face da violência objetiva e sistêmica.

Um segundo ponto evidente que essa inércia, esse silenciamento, que as próprias mulheres do filme perpetuam, reafirmando o silêncio e a violência que sofrem, não pode ser lido por desconsideração, julgando que elas passivamente apenas esperam a morte. Este tipo de leitura, fere e silencia novamente a memória daquelas que foram sequestradas, assassinadas e/ou desaparecidas; elas têm seus corpos insepultos, pois lhes roubaram também o direito ao rito mortuário.

Eis talvez um ponto de partida para as perguntas acima: a violência não tão ruidosa, o misterioso fim dos corpos (violados/violentados) das meninas seriam um dos motivos que geram a dificuldade em sair da paralisia? Quando pensamos em violência, o que aparece em nossas mentes, talvez sejam os corpos estendidos no chão, as bombas, confrontos civis, conflitos internacionais, mas o que existe no filme é uma violência silenciosa, camuflada em uma aparente normalidade, uma violência pouco visível que não identifica de forma clara os agentes; estes, conforme notamos, aparecem somente em carros pretos com vidros escuros, sem que se possa ver os rostos. A aparente normalidade pode ser pensada a partir do momento em que há uma ordem imposta, fazendo com que se perpetue a ideia de que é esse o sentido da vida, como se não houvesse outro caminho, outro lugar. Para Žižek (2014), há um sentido capitalista que legitima determinados tipos de violência e sustenta a ideia de naturalização da morte e de uma forma de viver que beira constantemente o apagamento.

O autor ainda adverte que a violência objetiva precisa ser compreendida historicamente, já que a mesma recebe uma nova roupagem no capitalismo. Assim, a partir da análise que faz de Marx, assinala que a violência do capitalismo não é mais atribuível aos indivíduos concretos, mas ao contrário, a violência passou a ser objetiva, sistêmica, anônima. Não estamos submetidos apenas a uma prática diária de violência, senão a uma violência de como nossas vidas são geridas.

Žižek está chamando a atenção no seu texto para que não fiquemos apenas problematizando e restringindo a violência ao engano do que seria a “violência subjetiva”, e que há dois outros patamares para a análise da violência que são essenciais para a reflexão, a saber: violência objetiva e sistêmica. Ainda acompanhando o pensamento do autor, ele vai marcar a visibilidade que há na violência subjetiva, pois nesta, há nitidamente um agente identificável, revelando-se na vida cotidiana e nas relações sociais a partir do binômio opressores e oprimidos, logo, é preferencialmente na perspectiva da violência subjetiva que são pensadas as políticas de segurança pública e são realizadas as maiores discussões, recalcando a verdadeira discussão que precisaria ser feita sobre as outras formas de violência.

Assim, a violência de “todos os dias” – as guerras constantes, massacres, chacinas, o medo e a precariedade que vivem as mulheres do vilarejo mexicano – nos impede de refletir acerca do que Žižek acredita ser fundamental: a violência em seu Real, i.e., seu caráter objetivo e sistêmico. O que Žižek nos traz é que há uma velha perspectiva vigente cuja visibilidade de algumas guerras e “crises humanitárias” tem rosto e nação: “[...] as considerações propriamente humanitárias desempenham aqui, de maneira geral, uma função menos importante do que as considerações de ordem cultural, ideológico-política e econômica” (Žižek, 2014:18. Grifo nosso). E é com essa perspectiva que o autor comenta como a matéria de capa da revista Time, de 05 de junho de 2006, trazendo como manchete “a guerra mais mortal do mundo”, não trouxe nem mesmo os habituais  protestos humanitários: não houve mais do que duas cartas de leitores, protestando sobre o verdadeiro massacre. Qual era essa guerra destacada pela revista? Era na República Democrática do Congo, que na última década, haviam morrido mais de 4 milhões de pessoas. O autor nos diz: “como se algum tipo de mecanismo de filtro impedisse a notícia de produzir o efeito mais forte em nosso espaço simbólico. Ou, dito em termos mais cínicos, a Time escolheu a vítima errada na disputa da hegemonia em matéria de sofrimento” (Žižek, 2014:18).

Deste modo, o autor trata de um Congo que reemergiu como um “coração das trevas”, mas que ninguém se atreve ou deseja olhá-lo de frente. “A morte de uma criança palestina da Cisjordânia, para não falarmos em uma norte-americana ou israelita, vale para os grandes veículos de imprensa milhares de vezes mais do que a morte de um congolês desconhecido” (Žižek, 2014:18).

Claramente podemos transferir tais ideias para o que acontece com as mulheres do vilarejo no México: nem o romance de Jennifer Clement, Ladydi,  nem o filme da diretora mexicana Tatiana Huezo, Noche de fuego, foram capazes de despertar a grande mídia, a ONU, os governos, para a guerra contra os assassinatos das meninas de Ciudad Juárez, lugar factual de cujos eventos originaram as duas produções artísticas. Não podemos deixar de marcar que na premiação do Oscar de 2022, a Academia escolheu, para melhor filme estrangeiro, um filme mais palatável, Drive my car, que trouxe um drama interessante, mas debatendo questões subjetivas, não mostrava de forma crua e nua uma face da violência, legitimada pelo poder público e humanitário.

O que muitas vezes se busca negar é que a violência não seria um “abalo de um cotidiano mais ou menos calmo, ou seja, que ela pudesse ser a principal mancha no quadro de uma vida social supostamente pacata” (Neves; Santos; Mariz, 2017: 47), mas sim que a violência está enraizada na sociedade, sendo que ela expõe, de forma assustadora, o desamparo primordial do humano a outros seres humanos, como aponta Judith Butler, “somos entregues, sem controle, à vontade do outro, um modo em que a própria vida pode ser expurgada pela ação intencional do outro” (2020: 49), ou seja, há invariavelmente em nossas vidas, uma constante vulnerabilidade ao outro, no entanto esse desamparo, pode ser ampliado a partir de certas condições sociais e políticas, “especialmente aquelas em que a violência é um modo de vida e os meios para garantir a autodefesa são limitados” (Butler, 2020: 49).

Então, se por um lado a sororidade, a dororidade, a sodororidade entre as mulheres do filme Noche de fuego são uma forma de suportar a vida precária, o medo e as ameaças constantes; por outro, pode ser exatamente neste aspecto do laço social “solidário” que podemos situar a violência sistêmica do capital, já que no filme esses laços estão sempre sob o domínio do medo e do silêncio. Na produção fílmica, suportar o medo é fato evidente de alimentar o próprio medo. Essa é, na perspectiva de Žižek, a lógica do sistema capitalista, onde a violência sistêmica opera o tempo todo:

 

Quando se renuncia às grandes causas ideológicas, tudo o que resta é a administração eficaz da vida... ou quase apenas isso. O que significa que, com a administração especializada, despolitizada e socialmente objetiva e com a coordenação dos interesses como grau zero da política, a única maneira de introduzir paixão neste campo, de mobilizar ativamente as pessoas, é através do medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de hoje. Por isso a biopolítica é em última instância uma política do medo que se centra na defesa contra o assédio ou a vitimização potenciais (Žižek, 2014: 45).

 

Deste modo, as reflexões sobre a violência, tendo como luz o filme Noche de fuego, apontam para uma violência legitimada, já que acontece contra um sujeito excluído de uma ordem social. Žižek cita o texto Homo Sacer de Giorgio Agamben (2010), que faz uma interessante ponderação sobre esse tipo de indivíduo que é discutido no livro: todo atributo do cidadão foi aniquilado, como escreve o autor

 

a redução dos humanos à “vida nua”, ao Homo sacer, aquele ser chamado de sagrado que é o objeto de um conhecimento tutelar especializado, mas que é excluído de todos os direitos (como os prisioneiros de Guantánamo ou as vítimas do Holocausto) (Žižek, 2014: 46).

 

Tal como sucede com as vidas não vivíveis sejam as meninas/mulheres do México, sejam tantas outras no mesmo patamar. Assim, nas palavras do texto A violência e o seu real: Zizek e a psicanálise:

 

Esse sujeito é privado da humanidade completa por ser sustentado pelo desprezo e pela indiferença, ao mesmo tempo em que se torna uma ameaça por aquilo que pode representar fora da ordem política, já que ocupa esse lugar justamente pela expressão de uma política e uma ética próprias. Os Homo Sacer são violentos. Eles são as pessoas que descem o morro, os jovens da periferia assassinados pela polícia, são os corpos em sua vida nua, que podem ser mortos sem um julgamento legítimo dentro das próprias leis de nosso Estado de Direito (Neves, Santos e Mariz, 2017: 52).

 

Ponto esse trazido por Butler  em Vida precária: os poderes do luto e da violência (2020),. No texto, a autora trabalha a noção perturbadora, porém ancorada na mais crua realidade, de que a perda de algumas vidas ocasiona o luto, porém outras, não. Butler indaga acerca da violência global: “quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (2020: 40). O que existe é uma categórica distribuição desigual do luto, ordenando assim, quais sujeitos são e devem ser enlutados e quais não são passíveis de luto. Em particular, Butler marca que existe, ademais, o fato de que mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, estão mais sujeitas à violência, mais expostas aos crimes do Estado e mais silenciadas: “Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social dos nossos corpos” (Butler, 2020: 40). Mas se por um lado, todos nós, na perspectiva de Butler, temos uma vulnerabilidade primária; há, por outro, sem dúvida nenhuma, corpos humanos que sofrem com a opressão, não sabendo como tal condição é explorada e explorável, suprimida e negada:

 

Vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas, e a anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como passíveis de ser enlutadas (Butler, 2020: 52).

 

Assim, volto ao filme Noche de fuego para refletir acerca da vida de milhares de mulheres mexicanas desaparecidas, onde não há um corpo para reclamar e mostrar as marcas da violência, para ser lamentado, para ser velado e enterrado, como parte fundamental de elaborar o luto, bem como de combate à violência.

Não é precisamente o conceito de necropolítica trabalhada por Mbembe? A necropolítica constitui parâmetros em que a submissão da vida pela morte estaria legitimada. A necropolítica não se dá apenas por uma instrumentalização da vida, mas, principalmente, pela destruição e apagamento dos corpos. Temos assim, no texto de Achille Mbembe (2018), a clareza de como o Estado exerce a soberania com determinação de nomear quem deve morrer e quem deve viver na sociedade.

Almeida (2022) analisa como estamos à mercê de assassinos respaldados pelo Estado, onde na necropolítica não basta apenas produzir a morte física, mas é preciso retirar qualquer possibilidade de existência, o que poderíamos refletir sobre o silenciamento existente no filme, pois além da ameaça de tirar a vida biológica é preciso eliminar a memória dos mortos. Pelo fato de não haver corpos, também não é possível fazer as homenagens e, por conseguinte, não se enlutar por essas vidas. Há, aqui, um duplo apagamento: a morte em si, mas também a impossibilidade de chorar e proceder aos ritos funerários.

 

Aterrorizar parentes, amigos, vizinhos dos mortos é parte crucial desse processo que visa não só garantir a impunidade, mas também extirpar toda esperança de uma vida decente. A necropolítica é, afinal, esta mistura macabra de biopolítica, estado de exceção e estado de sítio que leva para as favelas e periferias as técnicas de controle criadas nas plantations e nos campos de extermínio (Almeida, 2022).

 

Embora haja irmandade entre as mulheres de Noche de fuego, ao colocarem a impossibilidade de falar e chorar pelas desaparecidas, fazem com que aconteça também uma inércia, uma paralisia frente ao horror e ao terror. É significativo que o filme se abra com a mãe Rita e a filha Ana, cavando uma cova; uma cova para que Ana se esconda em caso de perigo. A cova é a expressão mais contundente da morte. Assim, aquelas mulheres vulneráveis e silenciadas pelo medo estão como mortas-vivas, o que difere do final do filme, em que toda a comunidade se une para incendiar tudo, mostrando que o ódio pode nos levar a lutar por libertação, “ou estabelecer formas ativas de solidariedade para com aqueles que sofrem” (Almeida, 2022).

Perguntamo-nos se o silenciamento não intensifica a necropolítica, se não perpetua a ideia de normalidade e apagamento de sujeitos, de vidas que não são passíveis de ser enlutadas, que são qualificadas pelo Estado como vidas que não importam. É preciso não legitimar o silêncio, não se silenciar diante de posicionamentos estatais necropolíticos para que assim as sociedades ao redor do mundo, por um viés político-democrático, comecem a elaborar, com urgência, um plano de estratégia para a proteção, sem exceção, de todas as vidas.

 

Recibido: 16 de junho de 2022.

Aceptado: 5 de agosto de 2022.

 

 

Corpus

Huezo, Tatiana [diretora] (2021). Noche de fuego. [Película]. Pimienta Films, Match Factory Productions, Bord Cadre Films, Desvia Produções, Cactus Film & Video, Jaque Content, Louverture Films.

 


 

Referências

Almeida, Silvio (2022, 26 de maio). Ódio e nojo. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2022/05/odio-e-nojo.shtml

Benevides, Bruna G. e Nogueira, Sayonara N. B. (orgs.) (2021). Dossiê. Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Expressão Popular, ANTRA, IBTE. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf

Butler, Judith (2020). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica.

Clement, Jennifer (2015). Reze pelas mulheres roubadas. Rocco.

Davis, Angela (2016). Mulheres, raça e classe. Boitempo.

Feminicídio: a história do termo que mudou a legislação brasileira (2021, 12  de agosto). Hypeness. https://www.hypeness.com.br/2021/08/feminicidio-a-historia-do-termo-que-mudou-a-legislacao-brasileira/

Grávidas negras e pardas recebem menos anestesia no parto (2014, 21 de março). Portal Geledés. https://www.geledes.org.br/gravidas-pardas-e-negras-recebem-menos-anestesia-no-parto/

Mbembe, Achille (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. N-1 Edições.

Neves, Tiago Iwasawa; Santos, Andreza Silva e Mariz, Inácio Antônio Silva de (2017). A violência e o seu real: Zizek e a psicanálise. Revista Subjetividades, 17 (1), pp. 45-54.

Paredes, Julieta (2014). Hilando fino desde el feminismo comunitario. El Rebozo; Palapa Editorial.

Piedade, Vilma (2017). Dororidade. Nós Editora.

Rosa, Patrícia (2021, 12 de dezembro). Luta contra a Violência à Mulher: Brasil ocupa o 5º lugar no Ranking mundial do Feminicídio. Afirmativahttps://revistaafirmativa.com.br/luta-contra-a-violencia-a-mulher-brasil-ocupa-o-5o-lugar-no-ranking-mundial-do-feminicidio/

Žižek, Slavoj (2014). Violência. Boitempo.

 

 

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* Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Faculdade de Ciências Humanas. Departamento de Psicologia. Campo Grande/MS, Brasil.

** Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Faculdade de Artes, Letras e Comunicação. Departamento de Letras. Campo Grande/MS, Brasil.

[*] O termo diz respeito à performance de papel de gênero feminino, independentemente da morfologia/biologia do corpo, i.e., a mulheridade pode estar perfeitamente alocada num corpo de mulher cis ou trans. Não podemos, então, falar em mulheridade universal, mas nas diferentes formas em que ela se materializa em distintos corpos.

[†] Afirmar que mulheres de determinada classe social estão mais propensas à violência não significa que mulheres pertencentes a classes mais abastadas não sofram violência. O que queremos pensar é que a pobreza e a raça (racialização) afastam ainda mais as mulheres de políticas protetivas. No dizer de Piedade (2017), a raça imobiliza as vítimas de violência em buscar ajuda, e, acrescentamos, a classe (pobreza) também.

[‡] Um exemplo a ser pensado é o caso da criança Miguel que caiu do 9º andar de um prédio na cidade do Recife, PE, Brasil, que não resistiu à queda e morreu. A criança foi deixada aos cuidados da patroa, Sari Corte Real, enquanto a mãe da vítima passeava com o cachorro de Corte Real. Aqui, há uma mulher negra, trabalhadora doméstica, sendo explorada por ter que deixar o filho, também negro, sem cuidados adequados para executar uma de suas funções.

[§] A expressão “hilar fino” em língua espanhola denota um fazer sutil, com muito cuidado e exatidão.

[**] Em 2013, foi publicado a primeira edição no México e em 2014, a segunda.

[††] “A nefasta herança da invasão colonial que compreende, entre outras sequelas, exclusão, desprezo, machismo e racismo em relação aos/às indígenas, teve como resultado a criação de um colonialismo interno que não precisa do branco invasor como vice-rei, mas que se executa através de seus herdeiros brancos, os neocolonizadores”. (Tradução nossa).

[‡‡] “O colonialismo internou gerou, ademais, um imaginário estético racista, preconceituoso e discriminador que causou sofrimentos cotidianos aos corpos, especialmente de mulheres indígenas ou de origem indígena. Este imaginário ético e estético dos corpos assinala critérios de beleza, educação e modos de se vestir. Qualifica, por um lado, como bonitas, educadas, limpas e bem vestidas, as mulheres brancas ou branquelas com características ocidentais. Qualifica, por outro lado, como feias mal educadas, sujas e mal vestidas, as mulheres morenas com características indígenas”. (Tradução e grifo nossos).

[§§] “O sistema patriarcal implementou uma variante no neoliberalismo: trata de igualar os homens, cidadãos de primeira classe, a suas mulheres que ocupam a segunda classe de cidadania, por isso, o êxito de certas melhoras que essas políticas trazem, especialmente para mulheres de classes altas e médias do primeiro mundo e por extensão para mulheres de classes altas latino-americanas e bolivianas.

O peso pesado das reformas econômicas neoliberais caíram fortemente sobre as mulheres de classes baixas e indígenas empobrecidas, no chamado terceiro mundo, do qual faz parte nosso país”. (Tradução nossa).

[***] “Para Juliana Paredes, “Eso significa reconocer que las relaciones injustas entre hombres y mujeres aquí en nuestro país, también se dieron antes de la colonia y que no sólo son una herencia colonial. Hay también un patriarcado y un machismo boliviano, indígena y popular. Descolonizar el género, en este sentido, significa recuperar la memoria de las luchas de nuestras tatarabuelas contra un patriarcado que se instauró antes de la invasión colonial. Descolonizar el género significa decir que la opresión de género no sólo vino con los colonizadores españoles, sino que había una propia versión de la opresión de género en las culturas y sociedades precoloniales, y que cuando llegaron los españoles se juntaron ambas visiones para desgracia de las mujeres […]” (Paredes, 2014: 72).

“Isso significa reconhecer que as relações injustas entre homens e mulheres aqui no nosso pais também aconteceram antes da colônia e que não é somente uma herança colonial. Existem também um patriarcado e um machismo boliviano, indígena e popular. Descolonizar o gênero, neste sentido, significa recuperar a memória das lutas das nossas tataravós contra um patriarcado que se instaurou antes da invasão colonial. Descolonizar o gênero significa dizer que a opressão de gênero não veio somente com os colonizadores espanhóis, mas que já existia uma versão própria de opressão de gênero nas culturas e sociedades pré-coloniais, e quando chegaram os espanhóis ambas as visões se juntaram para desgraça das mulheres”. (Tradução nossa).

[†††] Parte do título foi estruturado a partir de Judith Butler (2020), no capítulo “Detenção indefinida”.

[‡‡‡] Enquanto escrevemos esse texto, são noticiados dois atos de violência e tortura no Brasil. A vila cruzeiro – uma favela do Rio de Janeiro – recebe a “visita” dos agentes do Estado, que matam 25 pessoas, uma verdadeira chacina, que pouco destaque trouxe na mídia hegemônica porque a ideia é de extermínio dos corpos pretos e pobres. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/05/25/numero-mortos-vila-cruzeiro-operacao-policial.htm.

Um dia após o massacre no Rio de Janeiro, na pequena cidade sergipana de Umbaúba, um homem é abordado por outro agente público que o imobiliza, mas não foi suficiente e, na sequência, coloca-o no camburão e joga uma bomba de gás, matando-o por asfixia. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/homem-morre-asfixiado-em-viatura-da-policia-rodoviaria-federal-em-se.shtml