VOZES INSURGENTES:

A ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA E CONCEIÇÃO COMO UM CAMINHO DE RESISTÊNCIA DA MULHER AFRO-BRASILEIRA E PERIFÉRICA

 

INSURGENT VOICES: THE WRITING OF CAROLINA AND CONCEIÇÃO AS AFRO-BRAZILIAN AND PERIPHERAL WOMEN’S PATH OF RESISTANCE


Débora Nunes Palomo*

 

Resumo

Quarto de despejo: diário de uma favelada (2001), de Carolina de Jesus, e Becos da memória (2017), de Conceição Evaristo, são obras literárias que nos convidam a um passeio tanto pela ficção quanto pela própria história pessoal das autoras. Neste artigo, propõe-se, através dessas obras, uma análise comparativa das memórias presentes nas escrevivências das autoras, buscando compreender se elas funcionam como mecanismo de resistência ao silenciamento da mulher afro-brasileira e periférica. Para isso, como fundamentação teórica, farão parte das análises as considerações de Martín Lienhard (2008) sobre a resistência negra na América Latina, já que o autor nos coloca diante dos movimentos negros insurgentes, desmistificando a ideia de passividade dos escravizados neste território. Apresentamos discussões sobre o termo “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo (2020), bem como aquelas de Aleida Assmann (2011) e Seligmann-Silva (2003) sobre os estabilizadores da memória, pois as obras aqui em estudo fazem parte de relatos memorialísticos das autoras que vivenciaram na pele as narrativas contadas.

 

Palavras-chave: escrita - memórias - trauma - resistência

 

Abstract

Quarto de despejo: diário de uma favelada (2001), by Carolina de Jesus, and Becos da memória (2017), by Conceição Evaristo, are literary works that invite us to a walk through both fiction and the authors' own personal history. In this article, we propose, through these works, a comparative analysis of the memories present in the authors' lives, seeking to understand if they work as a mechanism of resistance to the silencing of Afro-Brazilian and peripheral women. For this, Martín Lienhard’s (2008) considerations about black resistance in Latin America will be part of the analysis as a theoretical foundation, since the author puts us before the insurgent black movements, demystifying the idea of passivity of the enslaved in this territory. We present discussions on the term “escrevivência”, coined by Conceição Evaristo (2020), as well as those of Aleida Assmann (2011) and Seligmann-Silva (2003) on the stabilizers of memory, because the works under study here are part of memorialistic accounts of the authors who experienced in the skin the narratives told.

 

Keywords: Writing - Memories - Trauma - Resistance

 

 

Introdução

Historicamente, a escrita literária de grupos marginalizados, assim como seus autores, sofreu com a rejeição e ficou por séculos distanciados do grande público. Contudo, nos últimos tempos, dadas as diferentes lutas e resistências, que buscam por espaços e por direito à voz, as literaturas ditas “marginais” têm alcançado importantes lugares no campo investigativo no mundo acadêmico, como também visibilidade no campo editorial e a atenção de leitores. A mudança de tal trajetória, bem como a importante representatividade que tais obras apresentam, pode ser observada nas palavras da feminista e escritora chicana Gloria Anzaldúa:

 

En los años sesenta, leí mi primera novela chicana. Se titulaba City of Night, de John Rechy, un homosexual tejano, hijo de padre escocés y madre mexicana. Durante días anduve por ahí en un asombro alucinado porque un chicano pudiera escribir y pudiera ser publicado. (Anzaldúa, 2016, p. 112)

 

Tais transformações no campo literário permitiram aos grupos subalternizados falarem por si, apresentar à sociedade suas próprias narrativas e percepções das realidades vivenciadas, muitas vezes representadas de maneira estereotipada e distante da perspectiva dos sujeitos nelas implicados. Escrever nesse contexto, hoje, para alguns grupos, é (re)escrever, (re)desenhar e ressignificar os sentidos de suas próprias vidas, partindo de uma subjetividade antes apagada e silenciada, sem lugar de expressão – palavras agora expressas que resistiram por anos a silenciamentos, imposições do olhar do outro e ataques. Nas palavras de Carolina Maria de Jesus, escritora afro-brasileira, “Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura”  (2001, p. 171, grifos meus). Como podemos observar, Anzaldúa e Carolina reconhecem que o espaço da escrita pertencia a uma não representatividade e, portanto, ao adentrar o mundo das letras, estariam adentrando em um campo não habitado por pessoas como elas, um espaço social ordenado, formatado e cristalizado, no qual os dominantes do campo não lhes permitiam o acesso.

Sobre tal contexto, Gayatri Spivak (2010) questiona, no título e ao longo de sua obra, se “Pode o subalterno falar?”. Falar para quem vive na marginalidade é externar os silêncios, as dores e as vivências. Primordialmente, é questionar a ordem imposta; e da necessidade de se posicionar e de contestar a ordem social, econômica e culturalmente imposta que a voz das denominadas minorias vêm lutando pelo direito de configurar e expressar a própria identidade, pelo direito a um lugar de fala não hierarquizado pelo poder econômico e pela hierarquia social assimétrica, pela não mensuração do valor da palavra dita pelo capital social e/ou econômico do indivíduo que a profere, pela cor da pele ou pela classe social do enunciador.

Conceição Evaristo, escritora e autora do termo “escrevivência”, nos coloca também, através de sua escrita, diante dessas realidades até então apagadas, da realidade daqueles que são inferiorizados e classificados como não possuidores de valor social. A partir dessa perspectiva, a autora recorre à escritura para se colocar no mundo, mas não sozinha, pois simboliza intencional e performaticamente uma coletividade que, nela, também, se reconhece e está representada. No entanto, para ela, fica igualmente claro que esse caminho escolhido para se colocar diante dos outros não é o mais fácil e, muito menos, o de aceitação – “Tenho dito e gosto de afirmar que a minha história é uma história perigosa, como é a história de quem sai das classes populares, de uma subalternidade, e consegue galgar outros espaços” (Evaristo, cit. em Oliveira, 2018, http).

Vale pensar por quais razões algumas histórias são perigosas e sobre quais fronteiras e espaços sociais alguns grupos não podem galgar. Qual é o lugar de cada um em nossa sociedade? Quais fronteiras não podem ser ultrapassadas e por quê? O subalterno não pode falar, escrever ou externar sua voz por quais motivos? São perguntas que devem ser insistentemente feitas por todos nós para podermos cada vez mais desmistificar “os lugares” dados a cada um. E nessa distribuição assimétrica da vez, é na Literatura, muitas vezes, que encontramos terreno para visualizar e pensar criticamente sobre estes lugares de não acesso, ocupados por alguns grupos e negados a outros, relegados a espaços de subalternidade e de silêncio.

Assim, ao falar de novos olhares e perspectivas no mundo da escrita, duas escritoras, aqui já citadas, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, são vozes afro-brasileiras que ganharam notoriedade nos últimos anos. Por meio de suas narrativas, essas mulheres elaboram uma arma de denúncia e resistência, mostrando o outro lado da moeda. Ambas as autoras, nas obras Quarto de despejo: diário de uma favelada (2001) e Becos da memória (2017)[*], revelam as condições precárias em que vivem os grupos periféricos, e nos mostram como a escrita de mulheres negras é insurgente e importante para transformações tão necessárias no campo literário, social, cultural e econômico brasileiro. 

Aqui, ao longo deste estudo, propõe-se analisar as memórias presentes nas escrevivências dessas autoras, buscando compreender seus mecanismos de resistência ao silenciamento da mulher afro-brasileira e periférica. Para isso, como fundamentação teórica, fará parte das análises as considerações de Martín Lienhard (2008) sobre a resistência negra na América Latina, autor que nos coloca diante dos movimentos negros insurgentes e desmistifica a ideia da passividade dos escravizados. Discussões sobre o termo Escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo (2020), bem como, aquelas de Aleida Assmann (2011) e Seligmann-Silva (2003) sobre os estabilizadores da memória, pois as obras aqui em estudo fazem parte de relatos memorialísticos das autoras que vivenciaram na pele as narrativas contadas.

 

Carolina e Conceição: Vozes insurgentes

Carolina Maria de Jesus e Maria da Conceição Evaristo são potências necessárias na literatura brasileira, pois são representantes de um povo tradicionalmente subjugado e distanciado do âmbito da escrita. Além disso, enfrentam e retratam temas sociais espinhosos e que não nos causam orgulho algum, mas que nos levam a importantes reflexões sobre as assimetrias sociais que constituem o Brasil e demais países da América Latina desde a época da colonização. Assim, a escrita, e, sobretudo, a escrevivência, tornam-se significativos meios para a denúncia do descaso com aqueles que foram colocados nos quartos de despejos ou jogados nos becos, relegados aos espaços periféricos, subalternos, invisíveis e indesejáveis da sociedade.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento-MG, no ano de 1914, onde viveu até 1924. A família mudou-se para Lajeado em busca de novas oportunidades e retornou depois em 1927. Na infância, Carolina recebeu incentivo de Maria Monteiro de Barros, que era patroa de sua mãe, para estudar. Foi assim que conseguiu cursar a primeira e a segunda série primária. Nesse período, já demonstrara grande apreço pela leitura e pela escrita. Contudo, não conseguiu manter-se por muito tempo na escola. No ano de 1930, mudou-se para Franca-SP onde trabalhou inicialmente como lavadeira e, depois, como empregada doméstica. Quando perde sua mãe, aos 23 anos, muda-se para a Capital – São Paulo – e passa a trabalhar novamente como empregada doméstica. Como apresentava uma personalidade forte, Carolina não se adaptava aos trabalhos domésticos, passando assim pela casa de diferentes famílias. Quando engravidou pela primeira vez, foi abandonada pelo pai da criança e, logo em seguida, parou nas ruas, já que mulheres solteiras e com filhos não eram bem aceitas em algumas casas. Assim, sem emprego e abrigo, foi parar na favela do Canindé-SP. 

Vivendo no Canindé, Carolina passou a catar papel nas ruas para sustentar seus filhos. Durante o trabalho, guardava cadernos que encontrava e que serviam de instrumento para registrar suas memórias, como diários. No ano de 1958, o jornalista Audálio Dantas foi até a comunidade angariar conteúdo para uma reportagem sobre aquele local que, por sinal, crescia exponencialmente, quando a ouviu falar sobre o seu livro, ou seja, seu diário que, posteriormente, foi publicado com o título Quarto de despejo: diário de uma favelada. Nesse texto, que seria então publicado em 1960, Carolina Maria de Jesus apresenta um contundente retrato da vida da mulher negra periférica que, em seu cotidiano, convive diariamente com a luta para vencer as dificuldades encontradas para ser mulher, trabalhadora e mãe.

Conceição Evaristo, também mineira, nasceu em Belo Horizonte no ano de 1946 e é a segunda filha de nove filhos. De origem humilde, cresceu na extinta favela do Pindura Saia. Foi criada inicialmente por sua mãe, lavadeira, e teve pouco contato com o pai. Como não tinha tanto espaço em casa, aos sete anos, acabou indo morar com a tia em um barraco muito próximo ao de sua mãe e irmãos. Com oito anos já trabalhava como empregada doméstica e mesclava o trabalho com os estudos. Desde muito cedo apresentou gosto pela leitura e pela escrita, inclusive, ganhou um concurso de redação quando estava terminando o primário. A escritora cursou o normal superior ainda em Minas Gerais, mas não conseguiu emprego na área. Logo, mudou-se para o Rio de Janeiro na década de setenta e iniciou graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de formada, passou a lecionar na rede pública de ensino até o ano de 2006. Cursou também Mestrado em Literatura Brasileira pela Pontífica Universidade Católica (PUC-Rio de Janeiro), em 1996, e Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com conclusão em 2011.

A estreia no mundo da literatura acontece com a publicação de seis poemas em Cadernos Negros no ano de 1990 e sua primeira obra em prosa publicada foi a narrativa Ponciá Vicêncio (2003). Contudo, segundo a própria autora, a primeira obra escrita por ela foi Becos da Memória, produzida em 1986, mas publicada somente no ano de 2006. Em Becos da memória, Evaristo apresenta a favela do Pindura Saia, onde viveu com sua família na infância e teve experiências muito parecidas com as descritas aqui sobre Carolina de Jesus. Ao longo da narrativa, a personagem Maria-Nova passeia pelos becos, ouvindo histórias de familiares e amigos, com a intenção de um dia recontá-las. Aliás, ouve e testemunha muitas delas. A menina vivencia junto aos demais moradores o medo do desfavelamento, o desespero pela perda dos lares, as despedidas de pessoas queridas, a falta de perspectiva de alguns e os diversos tipos de violências que sofrem.

As duas narrativas, acima apresentadas, são obras muito próximas, semelhantes, que mesclam o lirismo à biografia das autoras, a realidade à ficção. Trata-se de uma escrita de si, na qual as escritoras, também personagens, colocam-se como protagonistas, em um contexto em que familiares, vizinhos e amigos são, do mesmo modo, parte do enredo. Além disso, ao longo das histórias, somos colocados diante de uma comunidade cercada de solidariedade, amizades, amor, trabalho, infância, festividades, assim como, de alcoolismo, de intrigas, de muita miséria, de violência e de medo.

 

A escrita de si: uma forma de resistir

O ato de escrever é um ato de criar alma, é alquimia. É a busca de um eu, do centro do eu, o qual nós mulheres de cor somos levadas a pensar como “outro” — o escuro, o feminino. Não começamos a escrever para reconciliar este outro dentro de nós?

Gloria Anzaldúa[†]

 

Iniciar este texto partindo das reflexões da escritora Gloria Anzaldúa (1980), no ensaio “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, é partir de um sentimento comum de abandono entre as mulheres afrodescendentes na América Latina. Mulheres que buscam uma identidade, que resistem e querem encontrar seu espaço de escrita no mundo para ressignificar suas próprias narrativas, mostrando potencialidades, maneiras de produzir a arte, a música, a culinária, a relação com a religiosidade e tantas outras coisas que enriquecem a humanidade dentro da sua diversidade. Para Conceição Evaristo: “Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-representação.” (Evaristo, 2005, p. 6).

Durante décadas ficou terceirizada a representação dos negros na literatura e, por tal razão, há um sentimento comum entre os afro-brasileiros de não representação, de falta de identificação com as narrativas, cenários e personagens apresentados, onde estão sempre colocados na condição de subalternidade, gerando, assim, um quadro de estranheza e descontentamento com a ordem imposta. A história revelou-nos, por exemplo, que Úrsula (1859), da escritora Maria Firmina dos Reis, foi o primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil, e que só foi redescoberto pelo historiador Inácio de Almeida, em um sebo na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1962. Sobre essa história, o fato que mais chama a atenção é que tanto narrativa quanto autora só ganham notoriedade no país a partir da tese de doutorado de Régia Agostinho, professora da Federal do Maranhão (UFMA), cujo trabalho foi publicado no ano de 2013.

O ato de escrever, frente ao silenciamento outrora imposto, relaciona-se contemporaneamente a um ato de liberdade democrática, de inclusão social e de exercício de cidadania. Para os povos afro-brasileiros, a privação da liberdade, a negação da dignidade e as tentativas de desumanização, ações relacionadas ao processo de colonização da América Latina constituído a partir da escravização dos povos africanos para o trabalho forçado nas plantações e exploração de minérios, também incidiram na proibição da prática da escrita. Segundo Lilia Schwarcz, no livro Word by Word: emancipation, o estudioso Christopher Hager “demonstra como um dos maiores abusos da escravidão na América foi ter proibido os cativos de ler e escrever. Como consequência, são muito raros os textos deixados por escravizados, libertandos, libertos, ex-escravizados e pessoas negras livres” (Hager, 2013 apud Schwarcz, 2019, p. 137).

Martín Lienhard, na obra Disidentes, rebeldes, insurgentes: Resistencia indígena y negra en América Latina. Ensayos de historia testimonial (2008), apresenta um panorama dos movimentos de resistências indígenas e negros na América Latina no qual se evidencia a desmistificação da ideia de passividade dos cativos ante os abusos dos escravocratas.

 

En la América española y portuguesa, el poder colonial/esclavista buscó imponer, desde el siglo XVI, sus propios valores y pautas ideológico-culturales. No desaparecieron, en este proceso, los sistemas culturales de los indios ni los que los africanos deportados – y sus descendientes – habían logrado recrear en América, pero quedaron relegados a la clandestinidad. (Lienhard, 2008, p. 130)

 

            O autor incorpora, ao campo da cultura, o conceito de diglossia. Segundo ele, “[l]a relación entre el sistema ideológico-cultural impuesto por los colonizadores y los sistemas que regían la vida comunitaria de los colonizados/esclavizados se fue organizando, básicamente, según un principio que hemos bautizado, en otra parte, como de diglosia cultural.” (Lienhard, 2008, p. 130). Referente às políticas linguísticas, a ideia de diglossia aborda espaços em que coexistem duas línguas em níveis hierárquicos diferentes: uma, de maior prestígio por conta do processo colonizador, que se manifesta na escrita e nos ambientes de poder institucional; e outra relegada à marginalidade, expressa pelas classes populares subalternizadas, sobretudo, por meio da oralidade.

 

Una forma particularmente “dura” de la diglosia es la que rige las políticas lingüísticas coloniales [...]la lengua del colonizador es la que ocupa, despóticamente, el puesto de la “variedad alta”, mientras que las lenguas de los colonizados esclavizados, apenas toleradas o enérgicamente reprimidas, se ven relegadas a la periferia social o a la clandestinidad. (Lienhard, 2008, p. 131)

 

Em outros termos, a imposição do discurso (da palavra) e dos modos de vida no processo de colonização da América Latina impôs aos povos indígenas e negros o apagamento de suas línguas, assim como de outras manifestações culturais, em detrimento de uma língua e uma cultura dita superior. Não obstante, conforme o autor, as populações negras insurgentes também utilizaram a estrutura diglóssica, o conhecimento que possuíam sobre os dois códigos linguístico-culturais, para resistir e encontrar formas de lutar contra a escravidão. Os escravizados eram capazes de transitar por duas culturas e duas linguagens, escondendo, por exemplo, seus orixás nas figuras de santos católicos, combinando estratégias de guerra ocidentais às de matriz africana, etc.

Partindo disso, pode-se pensar também a escrita dos afrodescendentes como ferramenta diglóssica, que vem sendo utilizada como mecanismo de insurgência, protesto e denúncia frente à exploração e às mazelas enfrentadas pelo povo afro-brasileiro. A exemplo disso, podemos citar escritoras, como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves, Lia Vieira, Conceição Evaristo, Vina di Abreu, Esmeralda Ribeiro, dentre tantas outras autoras que não reconhecidas, não registradas ou aceitas pela história oficial, foram impedidas de exercer o direito à fala. 

Resgato, nesse sentido, uma passagem presente na obra Cachorro Velho (2010), da escritora cubana Teresa Cárdenas, em que há um exemplo de como a diglossia permitiu aos escravizados travar uma longa e dura batalha contra o opressor. Em determinado momento da narrativa, o narrador nos conta que o personagem central, um velho escravo, escuta um padre enquanto profere o sermão, entretanto, a atenção que aparentemente cede à fala do sacerdote volta-se, em realidade, à rememoração das histórias que lhe foram contadas sobre sua terra de origem.

 

Felizmente para o velho escravo, o vigário não podia ler pensamentos. Se o fizesse, teria descoberto que, em vez de prestar atenção aos sermões, Cachorro Velho recuava no tempo e se via em criança, com as pernas encolhidas, sentado no chão do barracão, escutando comovido a cerimoniosa voz da negra Aroni contando-lhe fabulosas histórias da África. (Cárdenas, 2010, p. 16)

 

            Assim, Cachorro Velho resiste à imposição da religião pela recordação de uma cultura e de uma sociedade que lhe são de fato significativas, pela rememoração de narrativas transmitidas pela palavra oral e conservadas pela memória. Logo, a memória funciona como forma de luta contra a imposição cultural exercida ao longo dos séculos, resistência que os povos escravizados e subalternizados manifestaram também através da construção de histórias sobre si, histórias que para adquirir a forma escrita também precisaram vencer as barreiras linguísticas e culturais do colonizador, igualmente utilizadas como mecanismos de exclusão social. Desse modo, aprenderam a usar não apenas as armas ocidentais (juntando o chumbo, a pólvora e encantamento ancestral, como observa Lienhard), mas também a escrita, adquirindo o direito à voz, também, através desse meio pelo qual o colonizador viabilizou os processos de exploração colonial. 

            Tal percurso histórico de luta e resistência nos ensina que olhar para a escrita literária negra, para esse espaço de libertação de tantas vozes, é ouvir outras versões dos acontecimentos e sentidos históricos, outros modos de ser no mundo. E para enriquecer esse campo e as discussões em relação à escrita dessas mulheres, Conceição Evaristo cunha o termo “escrevivência” que ilustra e resume muito bem a importância desse processo de escritura para as mulheres afro-brasileiras na reconstrução de suas identidades. O termo está ligado à figura da mãe preta, aquela que deixava seus filhos para cuidar, ninar e contar estórias aos filhos dos brancos durante o período de escravidão. No livro Escrevivência: a escrita de nós, lançado em 2020, Conceição apresenta o termo dizendo o seguinte:

 

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. (Evaristo, 2020, p. 30)

 

Escrevivência, desse modo, é o ato de construção da escrita de mulheres negras, que colhem da sua vida diária e das suas experiências individuais e comunitárias, materiais para construírem suas narrativas, diásporas nas quais se configuram novas formas de se relacionar com a sociedade. Nas palavras de Conceição, “[d]o tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras. A nossa casa vazia de móveis, de coisas e muitas vezes de alimento e agasalhos, era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos amigos contavam.” (Evaristo, 2005, p. 219), e ela, inserida nesse contexto, diz ainda que “[e]u, menina repetia, inventava. Cresci possuída pela oralidade, pela palavra.” (Evaristo, 2005, p. 219). Assim, pode-se dizer que esse processo também está extremamente ligado ao universo da oralidade.

Vencendo a falta de reconhecimento do seu fazer literário e as dificuldades  para a publicação das obras, algumas mulheres negras conseguem romper a exclusão do mundo escrito, entretanto, como ainda denuncia Conceição Evaristo sobre sua condição de escritora, que [a] exceção só serve para confirmar a regra. E que regras são essas, sociais e raciais, dentro da sociedade brasileira que, para alguns vencerem determinadas barreiras, é muito fácil? Aliás, alguns nem barreiras têm” (Evaristo, cit. em Oliveira, 2018, http).  Contemporaneamente, a escrita literária das mulheres negras e periféricas vem crescendo, apesar das diferentes barreiras e dificuldades que as atravessam durante a caminhada para se tornarem escritoras e serem reconhecidas como tal. É luta e resistência.

 

Narrativas de resistência: Quarto de despejo e Becos da memória

 

Quarto de despejo e Becos da memória são obras com muito em comum. Insurgentes, resistem e florescem como a fênix mitológica que ressurge das cinzas mesmo após ser dada como morta, contrariando todo o ideal social de um escritor e de uma escrita adequada, como protagonistas figuras femininas negras em um contexto periférico, em textos em que as narradoras recorrem às memórias para nos contar suas vivências. É um verdadeiro passeio pelo cotidiano delas, mostrando como viviam nas comunidades, relatando coisas boas e ruins, tudo pela ótica de uma eu que se coloca na narrativa como parte integrante.

Na primeira obra, temos Carolina já adulta vivendo com seus filhos em um barraco, onde passam por diferentes privações. Acompanhamos as lutas para trazer o pão ao lar, para resistir às dificuldades, educar aos filhos sendo mãe e pai, encontrar momentos de lazer e espaço para exercer a escrita a partir de um ambiente carente e que nem sempre lhe oferece tranquilidade e paz para desenvolver a arte da palavra. Na obra, estamos então diante de uma mulher fortaleza, uma afro-brasileira bem diferente daquelas retratadas pelas literaturas consagradas canonicamente. Protagonista, ela enfrenta as injustiças diárias, sem medo, denunciando-as e representando muitas outras mulheres brasileiras. Carolina se coloca diante da vida como agente real, desmistificando a ideia de passividade e submissão, lugar que a sociedade brasileira impõe às mulheres afro-brasileiras em condição de subalternidade e incapacidade de ir além das barreiras impostas.

Na segunda obra, somos guiados pelo olhar de Maria-Nova, uma garota que vive com a família em uma comunidade precária e que está prestes a ser extinta, a mesma comunidade em que a autora viveu. Ela vai guiando-nos e mostrando o dia a dia na comunidade. Além disso, exibe o gosto pela contação de histórias, ouvindo e dando lugar a outras vozes que se colocam diante dela para revelar anedotas das quais as personagens se orgulham ou que lhes marcaram de forma traumática. A escolha de Conceição, como escritora, de dar abertura para outras vozes, revela-nos ainda a forma como as mulheres negras vêm resistindo e construindo suas narrativas, abrindo espaço de fala para uma comunidade historicamente negligenciada, da qual elas também fazem parte. Fato que demonstra um falar com e não por.

A garotinha expõe um forte desejo de guardar essas memórias, que não são somente suas, mas de todos que ali residiam. Durante a narrativa, ela se questiona e reflete de que maneira poderia reproduzir as narrativas de seu povo e se dá conta de que isso será feito através da escrita, como ela o fez de fato mais tarde:

Um dia, agora ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo ” (Conceição, 2017, p. 132).

Sobre a relação entre ficção e memória, Conceição Evaristo, na apresentação da obra, observa que “[...] nada que está narrado em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da memória é mentira. Ali busquei escrever a ficção como se estivesse escrevendo a realidade vivida, a verdade” (2017, p. 18).

Nessa mistura de ficção e realidade, a autora constrói personagens e histórias cheias de lirismos, através da representação/figuração de um povo que batalha para conviver com tantas desigualdades, espaços em que crianças convivem com a fome e as privações de direitos, mas que procuram resistir e vencer as diferentes imposições que os desumanizam. Nesse sentido, nas duas obras, cada autora trava, a seu modo, uma batalha para se colocar como escritora e mulher negra, rompendo com o privilégio dos espaços de escrita, tradicionalmente reservados aos poucos. Ao romper com tal paradigma, ambas abrem espaço para que outras mulheres e gerações também possam se ver como potencialidades, possíveis escritoras e protagonistas de suas narrativas. Trata-se de nova perspectiva e, principalmente, novas formas de construção de subjetividades – “[a]qui na favela quase todos lutam com dificuldade para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros” (Jesus, 2001, p. 32).

            Essa escrita de si, como chamou Michel Foucault (2004), além de contribuir para novos horizontes, mostra ainda uma forma de resistir através do testemunho e seguir lutando apesar dos traumas vividos. Sob tal perspectiva, os traumas que envolvem a escrita das mulheres afro-brasileiras, ligados ao passado escravista, colonial, patriarcal e, muitas vezes, esquecido ou apagado pela sociedade brasileira, são trazidos para o campo literário. Nesse contexto, as narrativas de Carolina e Conceição propõem um resgate de histórias experienciadas como forma de denúncia e de registro histórico de um povo subjugado que vem lutando para romper com as amarras do homem branco, colonizador e opressor. A importância da palavra como canal de tal comunicação se destaca; pois, conforme Aleida Assmann (2011, pp. 268-269)

 

A língua é o estabilizador mais poderoso das recordações. É muito mais fácil lembrar-se de algo que tenha sido verbalizado do que de algo que nunca tenha sido formulado na linguagem natural. Quando ocorre a verbalização, não nos lembramos mais dos acontecimentos em si, mas da nossa verbalização deles. ... Pela língua, recordações individuais são estabelecidas e socializadas (Assmann, 2011, pp. 268-269).

 

Para Assmann, a língua é um estabilizador da memória, e, como um dos mais antigos componentes da mnemotécnica humana, confere confiabilidade às recordações, assim como afeto, símbolo e trauma; já que, para ela, as recordações estão “entre as coisas mais voláteis que há” (Assmann, 2011, p. 267). Nisso, encontramos a grande importância de obras como Quarto de despejo e Becos da memória; pois, enquanto narrativas memorialísticas estão intimamente ligadas, através do afeto, do símbolo e do trauma, à história de um grupo por um longo tempo desconsiderado nas narrativas hegemônicas, funcionam também como um mecanismo de gravar o vivido na história da humanidade e seguir firme pela igualdade, justiça e construção de uma sociedade democrática de fato.

Em Quarto de despejo, Carolina vai anotando as memórias diárias e nos revelando experiências, muitas vezes, traumáticas. Dentre as vivências relatadas, está a fome dos filhos, e a palavra como refúgio à realidade desoladora. A escritura opera como locus amoenus, mas também espaço em que a memória poderá ser transformada em denúncia futura com a publicação da obra. A compreensão da escritura como arquivo de memórias e experiências, instrumento de resistência e denúncia futura, pode ser observada na passagem do dia 22 de maio: “Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macarrão, eu vou esquentar” (Jesus, 2001, p. 35).

O caráter denunciativo na escrita dela revela-se através da exposição de situações do cotidiano pessoais, familiares e comunitárias. Tais descrições atravessam injustiças sociais já presentes no conhecimento de mundo dos leitores, como a fome (todos conhecemos em perspectiva geral a dimensão do problema no Brasil), através de uma exposição emotiva, pessoal e circunstancial de como a miséria afeta o cotidiano das pessoas, assim comovendo e contribuindo para a conscientização dos dramas vivenciados. Por exemplo, a falta de sapatos, retomada constantemente pela escritora e pontuada como algo marcante, algo que precisava ser escrito e que a incomodava muito. Isso fica evidente mais uma vez nesta passagem do diário, no dia 20 de junho, quando a autora relata que: “[n]ão tinha papeis nas ruas. E eu queria comprar um par de sapatos para a Vera. Segui catando papel. Ganhei 41 cruzeiros. Fiquei pensando na Vera, que ia bradar e chorar” (Jesus, 2001, p. 59).

Assim, a literatura de Carolina também é um testemunho da sua condição de mulher negra e periférica nos anos 60, vivendo na favela do Canindé-SP, espaço construído para enviar os mendigos retirados das ruas, como também a forma encontrada para a denúncia das condições ali vivenciadas – Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo” (Jesus, 2001, p. 19). O título da obra, Quarto de Despejo, associa-se diretamente à política pública excludente por meio da qual o Estado procurou livrar-se de pessoas como ela, marginalizá-las, desprovê-las de direitos básicos à saúde, à educação, ao lazer, à segurança etc. Sob a precariedade a que foi submetida, através da representação literária a autora procura verter em linguagem um testemunho por vezes indizível. Conforme Selligman-Silva, “[a]quele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta”, logo, para ele, “[a] linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência” (Selligmann-Silva, 2003, pp. 47-8).

Quando traz o testemunho dos sobreviventes da Shoá durante a Segunda Guerra Mundial para pensarmos a rememoração do trauma vivido, Selligman-Silva chama a atenção para o modo como essa comunidade se relaciona com o trauma, procurando verbalizar a inexprimível, impensável e indizível catástrofe do holocausto. Salvas as diferenças situacionais, também a escrita de Carolina atua como o resgate e o registro de uma sobrevivente de um trauma impensável, da fome extrema, da miséria, do preconceito e da exploração humana pós-abolição.  No relato do dia 03 de agosto, por exemplo, Carolina conta que foi à casa de uma vizinha, sentiu o cheiro da comida e emocionou-se quando recordou dos filhos, que raramente poderiam ter condições semelhantes à mesa: “Fui na dona Nenê. Ela estava na cosinha. … Ela deu-me polenta com frango. … Na casa de dona Nenê o cheiro de comida era tão agradável que as lágrimas emanava-se dos meus olhos, que eu fiquei com dó dos meus filhos” (Jesus, 2001, p. 94).

O testemunho da ausência de uma vida digna é aporte de conhecimento oferecida ao leitor para a compreensão da realidade da autora e de tantas outras mulheres negras e periféricas, moradoras da comunidade que, do mesmo modo, enfrentam diferentes formas de violências (política, institucional, simbólica, física, policial etc.), como, por exemplo, o relato da violência praticada por Anselmo contra a companheira: “Quando a mulher deu à luz, um menino, ele começou a maltratá-la. Ela estava de dieta e ele lhe espancava e lhe expulsava de casa. Ela chorava tanto que o leite secou” (Jesus, 2001, p. 97).  O ato mostra-nos mais uma das dificuldades enfrentadas por estas mulheres, a violência.

Tal caráter testemunhal também está em Becos da memória de Conceição Evaristo, já evocando pelo título o processo memorialístico de construção que permeia a narrativa. Maria-Nova recorda que Fuizinha, uma das personagens apresentada, moradora também da comunidade, por exemplo, presencia a mãe ser espancada pelo pai, de quem também é vítima das agressões. Posteriormente, a mãe é, por fim, assassinada pelo marido, ocorre o feminicídio: “Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a pancadaria na noite anterior. A mulher gritara, gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a voz do Fuinha: – Agora silêncio” (Evaristo, 2017, p. 63); e Fuizinha passa a ser violentada sexualmente pelo pai: “Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha” (Evaristo, 2017, p. 64). 

 Ao trazer estes contextos de violência, especificamente, aquelas cometidas contra mulheres no interior de seus lares, muitas vezes velados e tratados apenas no âmbito do privado, ambas as autoras tocam em uma temática importante e que precisa ser refletida, debatida e confrontada a partir de políticas públicas que resultem em mudanças sociais, para caminharmos no desenlace das amarras em relação às construções identitárias e dicotômicas que se constituem o imaginário da sociedade em torno da questão de gênero; focando, a partir da interseccionalidade, na situação das mulheres negras, já que seus corpos, por muito tempo, estiveram ligados à servidão, à sexualidade, à sujeição e à propriedade do homem branco. 

Em Borderlands/La frontera, no capítulo “Tiranía Cultural”, Gloria Anzaldúa faz a seguinte reflexão sobre esse tema: “La cultura espera que las mujeres muestren mayor aceptación del sistema de valores que los hombres y mayor compromiso con él. La cultura y la Iglesia católica insisten en que las mujeres deben estar al servicio de los hombres.” (Anzaldúa, 1987, p. 57). Rebelar-se é entender que querem impor domínio, superioridade e uma visão de mundo patriarcal. Tais imposições estão presentes nas obras aqui discutidas, onde a narração da violência doméstica contra mulheres assusta, em particular, porque nela há silêncio em meio aos gritos, há indícios de poder sendo exercido sobre alguém que não tem voz. O dito popular “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” se faz, assustadoramente, presente nas descrições.

Carolina revela em diferentes passagens de sua obra que ser homem neste país tem muito mais vantagens e, ela, inclusive, deseja ter nascido homem, pois estes têm mais valor social frente às figuras femininas. Em um dos relatos, a escritora diz que pediu à mãe quando criança para que a transformasse em homem: “Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil, porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra, só lia os nomes masculinos como defensores da pátria” (Jesus, 2001, p. 48). Aqui fica evidente a falta de representatividade feminina e a relevância que isso tem na vida de muitas mulheres.

A autora alega em outro momento que é “pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (Jesus, 2001, p. 19). Percebemos nessa e, em outras falas, que a falta da figura masculina em casa é motivo de lamento e que repetidas vezes foi relacionada a sua vida precarizada. O filho mais velho também questiona a mãe pela ausência de um marido, dizendo que se ela o tivesse, a família poderia ter uma vida diferente. Observa-se, desse modo, que há uma idealização romantizada e equivocada da figura masculina, haja vista que parte da responsabilidade pela miserabilidade em que vivem seria exatamente dos homens que a abandonaram com os filhos e não assumiram o papel de pais e responsáveis pelas crianças.

As crenças da necessidade de um homem no lar foram construídas socialmente e estão implícitas nas falas, nas construções e nas relações familiares, por isso é muito comum acreditar no tão sonhado “felizes para sempre”. E, muitas mulheres, embebidas por esse ideal de relacionamento utópico, não conseguem se livrar facilmente de relações abusivas e tóxicas. Em Quarto de despejo, as narrações demonstram-nós os constantes casos de violência doméstica contra mulheres e crianças, revelando as péssimas condições matrimoniais enfrentadas por algumas mulheres, aliás, para bell hooks: “O termo ‘violência patriarcal’ é útil porque, diferentemente da expressão ‘violência doméstica’, mais comum, ele constantemente lembra o ouvinte que violência no lar está ligada ao sexismo e ao pensamento sexista, à dominação masculina” (hooks, 2018, p. 74).

E essa violência patriarcal e sexista fica perceptível quando Carolina mostra como são tratadas as suas vizinhas, conforme passagem a seguir: “Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, têm que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor” (Jesus, 2001, p. 14). A expressão “parece tambor” revela as constantes agressões sofridas por estas mulheres, pois o instrumento musical, aqui usado para estabelecer a comparação, quando tocado, recebe constantes e intensas batidas para a produção de sons, logo, a analogia feita pela autora sugere a frequência e a intensidade com que essas mulheres apanham de seus companheiros.

De acordo com bell hooks, a dominação masculina está tão imbricada na sociedade que “[e]m uma cultura de dominação, todo mundo é socializado para enxergar violência como meio aceitável de controle social” (hooks, 2018, p. 76). Nesse sentido, Carolina explicita as dificuldades que enfrenta na criação dos filhos longe da violência sendo mãe solo, pois dentro de um contexto hostil, em que as crianças sofrem com as privações e a falta de espaço para o lazer, assim que chega do trabalho é bombardeada de reclamações dos vizinhos em relação aos filhos. Sem saber o que fazer, acaba os agredindo fisicamente e os deixando trancados enquanto sai para trabalhar.

Muitas mulheres e mães encontram-se sozinhas e desesperadas, sem alternativas para criarem seus filhos. Na obra Quem tem medo do feminismo negro? (2018), Djamila Ribeiro relata o caso de uma mãe que, por desespero, abandonou o filho recém nascido em Higienópolis na cidade de São Paulo. Após ser flagrada por câmeras e presa, a mulher foi exposta pela mídia e bombardeada de xingamentos na internet, que desconsiderou a figura paterna. Sobre isso, a autora reflete que “o fato de não se mencionar a responsabilidade do pai demonstra o quanto essa sociedade é machista, impondo a obrigação à mulher como se engravidássemos por vírus. É uma demonstração do quanto as construções sociais privilegiam os homens” (Ribeiro, 2018, p. 86).  Esse abandono masculino é naturalizado em nossa sociedade e poucos percebem que isso é, também, uma forma de violência contra as mulheres, as crianças e adolescentes.

Em mais um relato, a narradora Carolina conta-nos sobre a surra que o vizinho Alexandre deu em sua companheira, e quando outro homem se aproximou para interferir, o mesmo profere as seguintes palavras: “-Leva a minha mulher para você! Mulher depois que casa é para suportar o marido. ... Você está interessado na minha mulher?” (Jesus, 2001, p. 86). Através dessa passagem, fica visível na fala que existe a ideia de que o homem tem autorização social para questionar quem o repreende pelo que faz com uma mulher, como se ela fosse sua propriedade e o silêncio devesse imperar sobre isso. hooks afirma que “[a] violência patriarcal em casa é baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva” (hooks, 2018, p. 74).

A violência e o poder dos homens sobre os corpos das mulheres estão, como também disse Pierre Bourdieu (1987), atravessados no simbólico e nas construções sociais que legitimam o ato praticado pela figura masculina. Nem sempre conseguimos perceber essa normatização do poder masculino sobre as nossas vidas; pois, desde os primeiros anos de nossa existência, já somos colocados diante de habitus incorporados ao mundo social que nos parece “natural” no cotidiano entre meninas e meninos aspectos, como: Meninos vestem azul e meninas vestem rosa, meninas brincam com bonecas e meninos com carrinho, meninas são chorosas e meninos não, etc.

E nesse cenário da estereotipação, pensando ainda a questão da mulher negra, Lélia Gonzalez afirma que “[n]esse contexto, as experiências das mulheres negras são bastante significativas: não é raro que uma dona de casa negra de classe média, quando atende a porta, seja surpreendida por um vendedor que insiste em falar com sua patroa” (Gonzalez, 2019, p. 170), porque essas mulheres não são enxergadas socialmente como alguém que tem status e, sobre isso, Gonzalez segue dizendo que “[o] ditado ‘Branca para casar, mulata para fornicar e negra para trabalhar’ é exatamente como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha e é super explorado economicamente, ela é a faxineira, arrumadeira e cozinheira” (2019, p. 170).

Tanto nas páginas da obra de Conceição quanto nas de Carolina, encontramos exatamente essa incorporação e naturalização da condição e posição das mulheres negras e periféricas, em seu contexto e época, que não sofriam apenas com a fome, o preconceito e a miséria; mas, também, com o sexismo e a violência doméstica sem medida. E um ponto forte, que não deixa de chamar a atenção nos relatos, é a falta de que algo efetivo seja feito, pois há casos em que não existe nem mesmo a tentativa de intervenção ou defesa das vítimas. Em seu diário, no dia 15 de agosto de 1958, a autora registra o seguinte: “Eu disse que eu queria ser homem, porque assim eu podia quebrar e bater” (Jesus, 2001, p. 99). Percebe-se aqui, mais uma vez, a ideia de que o homem tem autorização social para agir como age, mas não as mulheres. Estas, algumas vezes, apanham violentamente e a polícia nem mesmo é chamada, não há prisões e qualquer tipo de consequências, pelo contrário, a impunidade impera.

Em Becos, outra personagem que também lida com a violência doméstica em silêncio e sem ajuda é a Custódia. A mulher apanha do marido e da sogra, que vive revoltada porque o filho é alcoólatra, razão pela qual ela toma as rédeas da casa e se acha no direito de espancar a nora. As surras são tão violentas que um dia Custódia perde o filho. A narradora Maria-Nova lembra-se de que quando a família foi embora da favela em razão do desfavelamento “Custódia custou a subir no caminhão. Sua barriga doía. Alisou o ventre sentindo saudade da criança que estava ali até uns dias antes. Havia sido uma violência, mas tinha medo de falar alguma coisa. As lágrimas caíam” (Evaristo, 2017, p. 64). Como vemos, há dor pela perda do lar, do filho, pela solidão e, principalmente, pela violência sofrida.

O pesquisador Sérgio Flávio Barbosa - coordenador do projeto “Tempos de despertar” destinado à recuperação e conscientização de homens agressores- fala no II Fórum sobre Violência contra a Mulher - mesa “Direitos da Mulher: O Homem Possível” (2014) que é preciso, além das punições, um trabalho educativo e de formação social, redefinindo as nossas relações e ideários de papéis sociais masculinos, para que os homens não cresçam ambientados ou acreditando nessa identidade da masculinidade tóxica. Sobre isso, bell hooks disse que “[e]nquanto o pensamento sexista socializar garotos para serem matadores, seja no imaginário do bom garoto, nas brigas dos ´’bad boys’ ou como soldados no imperialismo mantendo o poder coercitivo sobre nações, a violência patriarcal contra mulheres e crianças vai continuar” (hooks, 2018, p. 77).

E a autora Chimamanda Ngozi Adichie, ao ser questionada por uma amiga sobre como criar sua filha como uma feminista, passou a refletir sobre o assunto e, em resposta, escreveu-lhe uma carta. Esse material, posteriormente, transformou-se na obra Como educar crianças feministas, na qual a escritora faz quinze sugestões. Na introdução, Chimamanda faz um importante apontamento ao dizer que “é moralmente urgente termos conversas honestas sobre outras maneiras de criar nossos filhos, na tentativa de preparar um mundo mais justo para mulheres e homens” (2017, p. 8). Portanto, se a educação e a construção das relações sociais entre meninos e meninas não forem questionadas e mudadas, do mesmo modo, se as práticas sexistas e tóxicas continuarem a ser empregadas e disseminadas como naturais, da maneira como vem ocorrendo ao longo dos anos, lamentavelmente, vamos seguir presenciando continuamente – no real e no ficcional – divisões, opressões, agressões e brutais casos de feminicídio. Não podemos deixar de debater, de levar para o espaço público as questões de racismo, preconceito, violência e opressão contra as mulheres e qualquer outro grupo social; pois o silenciamento não é, e nunca será, o caminho de uma nação democrática e justa.

 

Considerações finais

 

Ao analisar estas obras, do ponto de vista da escrita, da vivência e da memória, buscamos pensar as obras como narrativas de resistência que, na tentativa de transformar em linguagem tais experiências, revivem o trauma, que “estabiliza uma experiência que não está acessível à consciência e se firma nas sombras dessa consciência como presença latente” (Assmann, 2011, p. 277). Assim, Conceição Evaristo e Carolina de Jesus, igualmente, recorrem à escrita literária para denunciar e dizer o “indizível”, o inominável. Relegar tais memórias ao esquecimento poderia ser um paliativo a dor de quem as vivenciou ou presenciou, entretanto, “[a] memória – assim como a linguagem, com seus atos falhos, torneios de estilos, silêncios, etc. – não existe sem a sua resistência” (Seligmann-Silva, 2003, p. 52).

Narrar o inenarrável e transformar em material literário os traumas de uma vida precarizada como ato de resistência, protesto e luta frente às injustiças marcadas no corpo e na história dos afro-brasileiros são as características centrais das duas autoras. Também um ato de solidariedade com os iguais, que padecem do mesmo destino, das mesmas mazelas, da mesma luta pela sobrevivência, e resistem diariamente à submissão. Resistir é a palavra que melhor caracteriza o povo afro-brasileiro; e as duas autoras ainda ocupam um espaço a mais de precarização, o gênero, e também através dele (re)constroem suas identidades, em um processo de subjetivação que, mediado pela escrita, é tanto individual quanto coletivo.

Consideramos que a arte da escrita é negada a alguns grupos sociais exatamente porque é instrumento de denúncia, porque é insurgente. A escrita volta-se contra o seu senhor revelando o descaso e o abandono, denunciando a falta de espaço e as péssimas condições em que vivem os oprimidos para que os privilégios dos grupos dominantes possam ser mantidos. A escrita desestabiliza normas sociais que legitimam o poder desproporcional de alguns; logo, voltar um olhar atento e cuidadoso para a escrita de grupos marginalizados é, também, abrir espaços para o debate e para as mudanças necessárias, reivindicar a transformação através de políticas públicas no mundo político e econômico, de modo que as agendas de quem muito pouco usou a voz repercutam e encontrem lugares de manifestação. Além disso, através da voz do subalterno alcançamos outros valores literários, estruturas estéticas particulares e diversidade nas formas de representação anteriormente obliteradas. 

 

Recebido: 07/03/2022

Aceito: 27/06/2022


 

Referências

 

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* Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Mestrado em Literatura Comparada. Área “Poéticas e narrativas latino-americanas”, Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil.

[*] Todo o trabalho de análise aqui será baseado nestas duas edições.

[†] Anzaldúa, 2000, p. 232.