bELL hOOKS
DESCOLONIZANDO A EDUCAÇÃO
bELL hOOKS: DECOLONIZING EDUCATION
Halina
Macedo Leal*
Amanda Motta Castro**
bell hooks (fotografía de Karjean Levine; collage: Irene Bebop) (Bebop, 2021)
Resumen
O presente homenagem tem como objetivo analisar a abordagem educacional de bell hooks, tendo em vista suas propostas de interação dialética entre conhecimento teórico e experiências no âmbito educacional. O texto traz como metodologia uma abordagem teórica, com reflexões a partir dos pensamentos da autora acerca da descolonização na educação e, além disso, a influência de Paulo Freire em seus pensamentos. A partir das análises realizadas, compreendemos que manter o legado de bell hooks para alcançar uma educação transgressora é fundamental. Seus pensamentos fazem parte do caminho para a educação como prática da liberdade.
Palavras-chave: bell hooks - descolonização - educação - liberdade
Abstract
This tribute aims to analyze bell hooks’ educational approach, in view of her proposals for dialectical interaction between theoretical knowledge and experiences in the educational field. The text brings as methodology a theoretical approach, with her reflections on decolonization in education and, in addition, Paulo Freire’s influence on her thoughts. From the analyzes carried out, we understand that maintaining the legacy of bell hooks to achieve a transgressive education is fundamental. Her thoughts are part of the path to education as practice of freedom.
Keywords: bell hooks - Decolonization - Education - Freedom
Introdução
O feminismo é para todo mundo
bell hooks
bell hooks é um pseudônimo escrito em letras minúsculas por preferência da autora, com o propósito de que o foco seja no conteúdo de seus escritos e ideias e não em sua identidade. hooks nos deixou prematuramente no dia 15 de dezembro de 2021, mas seu legado é presente e sua contribuição para diversos campos do conhecimento é profunda. Escrever em um dossiê em homenagem a essa grande mulher é fazer reverência a quem muito nos ensinou cujo legado, certamente, seguirá vivo.
No presente homenagem, temos como objetivo analisar a abordagem educacional de bell hooks, tendo em vista suas propostas de interação dialética entre conhecimento teórico e experiências, de estímulo ao pensamento crítico e conscientização e de pedagogia engajada, as quais conduzem a uma perspectiva de liberdade e de descolonização de pensamentos e ações.
Por meio das reflexões trazidas por hooks, é possível que pensemos em todas as esferas da sociedade e que consigamos desnaturalizar as relações estabelecidas por essa sociedade ao longo dos anos. Os diálogos trazidos por ela enfatizam a importância da luta coletiva. Com amorosidade, mas de forma instigante, ela nos permite compreender e construir pensamentos de que nossas decisões ou escritos não são neutros. Por menores que sejam, escolhemos o que lemos, escolhemos o que ouvimos e como e para quem escrevemos. Por esse motivo, não há neutralidade em nossas práticas educativas ou em qualquer âmbito de nossas vidas, o que as falas e reflexões trazidas pela autora nos permitem compreender.
As opressões de gênero, de raça e de classe, presentes em todos os momentos ao longo das discussões trazidas por hooks, distribuem-se em, pelo menos, quatro eixos de análise: o feminismo negro, a crítica cultural, o amor e a educação. No que se refere à educação, bell hooks escreveu uma trilogia, cujos livros são: Teaching to Transgress: education as the practice of freedom (1994) [Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade, 2017], Teaching Community: a pedagogy of hope (2003) [Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança, 2021], Teaching Critical Thinking: practical wisdom (2013) [Ensinando Pensamento Crítico: sabedoria prática, 2020].
A educação é compreendida por ela (2013) como teoria-prática libertadora. Essa concepção reafirma a perspectiva da pensadora em teorizar as experiências e experienciar as teorias num caminho que visa à conscientização e à libertação não somente individuais, mas de forma coletiva. A partir de reflexões sobre grupos socialmente subalternizados, ela volta seu olhar para como as pessoas interagem e se desenvolvem em sociedades patriarcais, racistas e classistas. Embora os desafios sejam grandes, hooks enxerga, na educação, meios de emancipação dessas opressões, na medida em que a consciência seja um caminho para conduzir as pessoas à ação em direção à coletividade.
Em suma, buscamos, ao longo do texto, compreender os pensamentos e alcançar o objetivo principal deste texto a partir das teorias, experiências e pensamento crítico, vislumbrando, por meio do que foi proposto pela autora, uma educação libertadora para todas as pessoas.
Teorias, experiências e pensamento crítico
Ao tratarmos da abordagem educacional de bell hooks, considerando que um de seus elementos fundamentais é a interação dialética entre teorias e experiências, torna-se impossível não entrar em contato com as obras do educador popular brasileiro Paulo Freire.
Sendo a escola e o espaço acadêmico os lugares que possuem o papel fundamental para que consigamos construir uma transformação social, pensar na perspectiva decolonial contribui para a criticidade. E, além disso, é possível observar o chamamento da autora para que possamos ser educadores comprometidos com as práticas progressistas. E, quando assumimos essa posição, assumimos também o compromisso de lutar contra as diferentes formas de opressão.
Defendendo a ideia de “liberdade e justiça para todos” (hooks, 2017), a autora, enquanto narra sua trajetória também como estudante, possibilita-nos a percepção de como a prática das professoras e professores é fundamental para construirmos uma sociedade crítica, como a presença de professoras e professores comprometidas e comprometidos com a construção de uma sociedade justa e igualitária é fundamental para que consigamos modificar a sociedade desde a sua estrutura.
A descentralização do ensino, trazida por hooks, principalmente na obra Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade (2017), permite que a importância desse movimento seja compreendida, fazendo, dessa forma, com que também pensemos em uma reorganização do ensino. Importante destacar que, de acordo com hooks, “certas pessoas acham que todos que apoiam a diversidade cultural querem substituir uma ditadura do conhecimento por outra, trocar um bloco de pensamento por outro” (2017: 49). Para a autora, a sala de aula é o espaço dos diferentes saberes e diferentes perspectivas, sem imposições.
A partir da leitura de seus escritos, podemos compreender que o que hooks enfatiza é que o espaço que se propõe ao contexto educacional, como o espaço da escola, por exemplo, é um espaço de diversidade. Para tanto, é necessário pensar nesse lugar como o lugar para transgredir as questões de gênero, de raça e de classe. Assim, pensando no educar para transgredir, hooks vai ao encontro do pensamento de Paulo Freire.
Freire influenciou diretamente hooks e essa influência no seu pensar crítico vai muito além de uma compreensão teórica da obra do educador. Ela sinaliza a importância de, no processo educacional, nos enxergarmos, enxergarmos nossas experiências e nos projetarmos através e para além dessas experiências. Nesses termos, ela assume Freire não somente como um pensador que apresenta uma teoria a ser seguida na reflexão do processo educacional, mas como o teórico que lhe permitiu compreender suas vivências enquanto mulher negra de família da classe trabalhadora estadunidense. Essa compreensão significou a identificação dos processos de opressão de gênero, de raça e de classe pelos quais ela havia passado e que são constituintes da sociedade da qual fazemos parte.
A identificação dos processos de opressão é um dos passos para a tomada de decisão de resistir às dominações. hooks defende, juntamente com Freire (1983), que essa identificação deve estar presente na prática educacional. Em outras palavras, segundo ela, a teoria freiriana não faz sentido se desvinculada de uma prática. Em suas palavras:
Muitas vezes, quando os estudantes e professores universitários leem Freire, eles abordam a sua obra a partir de um ponto de vista voyeurístico. Quando leem, veem duas posições na obra: a posição subjetiva do educador Freire (em quem, muitas vezes, estão mais interessados do que nas ideias e temas de que ele fala) e a posição dos grupos oprimidos/marginalizados de que ele fala. Em relação a essas duas posições, eles próprios se posicionam como observadores, como quem está de fora. Quando encontrei a obra de Paulo Freire, bem num momento da minha vida em que estava começando a questionar profundamente a política da dominação, o impacto do racismo, do sexismo, da exploração de classe e da colonização que ocorre dentro dos próprios Estados Unidos, me senti fortemente identificada com os camponeses marginalizados de que ele fala e com meus irmãos e irmãs negros, meus camaradas da Guiné-Bissau. (hooks, 2017: 66).
Na sequência, ela complementa:
Repetidamente, Freire tem de lembrar os leitores de que ele nunca falou da conscientização como fim em si, mas sempre na medida em que se soma a uma práxis significativa. Gosto quando ele fala da necessidade de tornar real na prática o que já sabemos na consciência. (hooks, 2017: 68)
A partir do que é abordado por Freire, suas falas e metodologias, é possível sonhar e reviver a vida em profundidade crítica. Ou seja, a partir do que é vivido, construímos consciência e assim também aprendemos a problematizá-la. Freire (1998) nos permite fazer reflexões acerca da desumanização e nos leva direto para a contradição opressores-oprimidos e sua superação. Por quê? Porque a superação é, de fato, sair do lugar de oprimido e não se tornar o opressor do opressor, mas, restauradoras e restauradores do processo de humanização.
Freire foi, portanto, o pensador que forneceu para ela uma linguagem que a fez refletir “profundamente” sobre a construção de uma identidade de resistência (hooks, 2017: 66). Foi a obra de Freire que a desafiou a lutar contra o processo de colonização e a mentalidade colonizadora que emergem a partir daí.
As reflexões educacionais de hooks envolvem uma preocupação permanente com o processo de descolonização daqueles que vivem dentro de culturas patriarcais e da “supremacia branca” resultantes de processos coloniais. Nesses termos, hooks enxerga e salienta o elo existente entre o processo de descolonização e a “conscientização” proposta por Freire (1983).
Ao adotar Freire como fonte de inspiração e fundamento para sua incursão no campo da educação, hooks (2013) reforça a ideia de que a educação deve envolver a interação entre teorias e práticas, produzindo conscientização e efetivas modificações na vida dos indivíduos. Segundo ela, considerar a conscientização pode trazer a educação para um lugar que contribui para o enfrentamento e a superação de diferentes formas de opressão e de dominações sociais.
Com e para além de Freire, hooks delineia sua perspectiva educacional que envolve a defesa de que teorizar é um processo crítico que pode conduzir a uma mudança em um contexto prático, a um processo de “cura” individual e coletiva. Refletir e desenvolver um pensamento crítico acerca de nossas experiências vividas é, segundo hooks, essencial para a compreensão do que nos atravessa, nos machuca, situando o lugar a partir do qual podemos iniciar processos de “resgate” de nós mesmas, nós mesmos. Ela diz que
quando nossa experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada a processos de autorrecuperação, de liberação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática. Com efeito, o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas – um processo que, em última análise, é recíproco, onde uma capacita a outra. (hooks, 2017: 86).
E, ao encontro desse pensamento, ainda afirma que “as pedagogias críticas da libertação atendem a essas preocupações e necessariamente te abraçam a experiência, as confissões e o testemunho como modos de conhecimento válido, como dimensões importantes e vitais de qualquer processo de aprendizado” (hooks, 2013: 120).
Na educação, considerar essa interação é fundamental. As teorias, por si sós, não libertam e só cumprem essa função quando dirigidas para experiências e atuação do indivíduo no seu contexto de interações. Segundo hooks, o modo como as teorias são apresentadas em ambientes como o acadêmico provoca um abismo entre teorias e práticas. Nesses ambientes, ela vê a produção de teorias que não possuem relevância para a maioria das pessoas, reforçando a falsa dicotomia entre teorias e práticas.
Ela aponta ainda para o fato de que “a posse de um termo não fornece existência a um processo ou prática” (hooks, 2017: 86). Uma pessoa pode praticar a teorização sem jamais conhecer o termo. Por exemplo, uma pessoa pode “praticar” a resistência ao sexismo e ao racismo, sem utilizar os termos “sexismo” e “racismo”. Por outro lado, uma pessoa pode empregar determinados termos, mas não os incorporar enquanto práticas. Há pessoas que conhecem teoricamente os termos “sexismo” e “racismo” sem necessariamente serem feministas ou antirracistas, não se engajando efetivamente nas lutas feministas ou antirracistas.
É nesse sentido que surge a noção de “radicalidade da teoria e da prática” nos escritos de hooks. Essa “radicalidade” desafia essas teorias e práticas que se constituem separadamente, ou seja, desafia a produção de saberes que mantêm o status quo da classe intelectual dominante e que produzem conhecimentos compreendidos por um círculo restrito de pessoas, sem pretensão de intervenção prática na realidade social, não servindo, assim, para acessar e educar um público mais amplo.
Nessa perspectiva, hooks (2013) nos atenta para o fato de que, para a construção de uma pedagogia engajada, uma educação comprometida em lutar contra a injustiça patriarcal, não existe a possibilidade de considerá-la como um campo neutro. Não há neutralidade na educação.
A autora critica os formatos acadêmicos tradicionais, defendendo, inclusive, que teorias não acadêmicas, como a tradição oral, por exemplo, sejam valorizadas, concordando que existe a prática sem a “teoria formal”. Todavia, não descarta, em hipótese alguma, a importância das teorias nas práticas, através do pensamento crítico.
O pensamento crítico, segundo ela, requer discernimento: “É uma forma de abordar ideias que tem por objetivo entender as verdades centrais, subjacentes, e não simplesmente a verdade superficial que talvez seja a mais óbvia” (hooks, 2020a, p. 34). Uma das condições do pensamento crítico é “manter a mente aberta” (hooks, 2020a: 35). Isso significa manter uma atitude de abertura radical que faz com que não nos apeguemos nem protejamos o nosso ponto de vista, descartando outras perspectivas.
Para hooks, as teorias não fazem sentido se não produzirem um pensamento crítico sobre experiências e práticas. Ao mesmo tempo, movimentos de atuação numa realidade social perdem inteligibilidade, força e direcionamento se não houver uma perspectiva teórica resultante de um pensamento crítico. A partir dessa perspectiva, saberes práticos são produzidos:
A conexão essencial entre pensamento crítico e sabedoria prática é a insistência na natureza interdependente de teoria e fato, associada à consciência de que o conhecimento não pode ser dissociado da experiência. Em última análise, há a consciência de que o conhecimento enraizado em experiência molda o que valorizamos e, consequentemente, como sabemos o que sabemos – e, da mesma forma, como usamos o que sabemos. (hooks, 2020a: 277).
Nesses termos, o despertar do conhecimento e do reconhecimento de experiências, produzindo sabedoria prática, resulta numa educação libertadora.
Educação libertadora
Para bell hooks, uma educação libertadora tem como fundamentos a democracia e o engajamento.
Numa educação que se desenvolve em um ambiente democrático, os educadores devem se desafiar a ensinar para além do espaço da sala de aula e aprender com a diversidade de estilos de comunicação. hooks assume que a conversa é o lugar central da pedagogia para o educador democrático. Assim, embora o educador conheça o “valor da norma culta da língua”, ele sabe dar importância à diversidade na linguagem e no ambiente em que ocorre o ensino-aprendizagem. Isso é o que hooks expressa como “honrar a diversidade”, vivenciando-a. Citando Park Palmer, ela afirma que o educador democrático deve trilhar o caminho que cria “intimidade que não aniquila a diferença” (hooks, 2021: 99).
Corroborando com os apontamentos feitos por hooks, vemos ainda que Freire (1983) descreve a libertação com um parto doloroso, mas que a superação dessa contradição traz um novo ser, fazendo-nos transcender. Porém, é preciso que nos entreguemos à práxis libertadora. hooks enche nosso coração de esperança quando nos aponta:
Nesse campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos fronteiras para cruzar esquemas, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade. (hooks, 2013: 273).
Sobre a superação da contradição e práxis, podemos compreender que essa é a reflexão e a ação dos seres humanos sobre o mundo e que não há possibilidade de superar a relação opressor-oprimido sem ela. Não é possível pensar em uma pedagogia libertadora se essa não se aproxima dos oprimidos. Corrobora com isso a fala de hooks, quando nos afirma que “podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora” (hooks, 2013: 63).
bell hooks aponta para o fato de que a diversidade em escolas e universidades não deve ser somente em termos de discursos e narrativas de inclusão, mas, sim, de convivência efetiva com o diverso, ressaltando que “muitos educadores abraçam a noção de diversidade enquanto resistem ao pluralismo ou a qualquer modo de pensar que sugira que eles não podem encorajar a cultura do dominador” (hooks, 2021: 97). Segundo a pensadora, as ações afirmativas [aqui ela fala do contexto estadunidense, mas podemos pensar para além deste], apesar de suas muitas fraquezas, e foram efetivas em “romper barreiras à inclusão racial e de gênero” (hooks, 2021: 97). Isso porque, “à medida que nossas escolas se tornaram mais diversas, professores passaram a ser profundamente questionados. Velhas ideias sobre estudar o trabalho de outras pessoas a fim de encontrar nossas próprias teorias e defendê-las foram e estão sendo constantemente desafiadas” (hooks, 2021: 97).
Nesse sentido, a educação plural e democrática contribui para a educação libertadora, na medida em que reconhece a legitimidade do diverso, instiga a consciência crítica e a reflexão de modos de estruturação da “cultura dominante”, provocando o “pensar” na direção de modificar estruturas opressoras e buscar a justiça social (abarcando as questões de gênero, de raça e de classe). A educação liberadora, com base na educação plural e democrática, valoriza, assim, o trabalho com vistas ao bem coletivo e não à competitividade. Tudo isso se traduz numa pedagogia engajada que, segundo hooks,
é essencial a qualquer forma de repensar a educação, porque traz a promessa de participação total dos estudantes [na sua diversidade]. A pedagogia engajada estabelece um relacionamento mútuo entre professor e estudantes que alimenta o crescimento de ambas as partes, criando uma atmosfera de confiança e compromisso que sempre está presente quando o aprendizado genuíno acontece. Ao expandir o coração e a mente, a pedagogia engajada nos torna aprendizes melhores, porque nos pede que acolhamos e exploremos juntos a prática do saber, que enxerguemos a inteligência como um recurso que pode fortalecer o bem comum. (hooks, 2020a: 51).
Desse modo, a educação libertadora não enxerga os estudantes de forma meramente passiva, mas, ao contrário, estimula e exige o despertar da criticidade sobre a sociedade em que se vive. Criticidade que envolve o desenvolvimento de um senso de comunidade e de conexão com a coletividade. Em outras palavras, hooks acredita que a educação que liberta conduz ao estabelecimento de comunidades de resistência às cisões entre grupos e entre pessoas, promovendo acolhimento e, sobretudo, pertencimento daquelas/daqueles que experienciam o preterimento social, seja por questões de gênero, de raça ou de classe. As trocas dialéticas em salas de aula e para além delas sustentam o engajamento como possibilidade de enfrentamento das opressões, sexistas, machistas, racistas e classistas que minam nosso senso de conexão com tudo o que nos cerca.
A educação libertadora, na proposta de hooks, ensina-nos, portanto, a criar senso de comunidade. Ao final de seu prefácio de Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança (2021), hooks, mais uma vez citando Park Palmer, afirma:
Essa comunidade vai muito além do nosso relacionamento cara a cara uns com os outros, como seres humanos. Na educação, principalmente, essa comunidade nos conecta com as [...] “coisas boas” do mundo, e com a “graça das coisas boas”. (...) Estamos em comunidade com todas essas coisas boas, e o bom ensino está relacionado a conhecer essa comunidade, sentir essa comunidade, perceber essa comunidade, e então conduzir seus estudantes a entrar nela. (hooks, 2021: 30).
Freire enfatiza o diálogo como prática libertadora. Corroborando com suas falas, hooks afirma que “a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos de trabalhar (...) uma forma de agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo” (hooks, 2013: 26). A reflexão dos oprimidos pode levá-los à liberdade. Esse movimento de liberdade posto por Freire e enfatizado por hooks vai muito além de uma liberdade de comer, mas liberdade para (re)criar a si mesmo e aventurar.
Descolonizando a educação
Para hooks, a educação é o elemento-chave que pode conduzir à libertação do machismo, do sexismo, do racismo e do classismo estruturalmente constituintes das sociedades os quais precisam ser combatidos na base, ou seja, no contexto educacional.
Suas propostas, no que se refere à educação, fundamentam-se na interação dialética entre teorias, experiências e ações. Não quaisquer ações, mas ações alicerçadas numa consciência do lugar que cada uma/um ocupa na estrutura social. É nesses termos que a educação descrita por hooks (2017) é uma educação engajada.
hooks parte de suas experiências como mulher, negra, professora e educadora, convocando-nos a focar nas distintas opressões que recaem sobre grupos subalternizados. Isso envolve a consideração de questões de gênero, de raça e de classe como questões fundamentais a serem levadas nas reflexões e ações no campo educacional. Sexismo, machismo e racismo devem, segundo ela, ser pautas essenciais da educação. Considerar as questões raciais, de gênero e de classe permite aprofundar no entendimento das situações sociais opressoras e, a partir disso, superá-las, num processo de descolonização.
Teorias, experiências e ações, na perspectiva educacional de hooks, envolvem postura crítica e acolhimento amoroso, em que a prática se faça presente através do engajamento entre todas/os as/os envolvidas/os no processo educacional. Devemos considerar a crítica, o acolhimento e o engajamento que conduzem à conscientização das diversidades de gênero, de raça e de classe em sala de aula e fora dela, no contexto social mais amplo.
A educação se expressa, assim, por meio da defesa da democracia e de uma pedagogia crítica e engajada para a efetivação de mudanças sociais revolucionárias as quais focam na eliminação de estruturas sociais sexistas, machistas, racistas e classistas. As ações educacionais, fundamentadas na ideia de uma educação descolonizadora, devem envolver a libertação coletiva e não individual. O acolhimento do diverso e plural deve transcender discursos e narrativas para efetivamente se expressar por meio de ações conscientes e conscientizadoras por parte de todas/os envolvidas/os com a educação.
A pedagogia crítica e engajada é a prática dialética impelida pelas experiências humanas concretas. Ao enfatizar a relevância de se tratar de questões de gênero, de raça e de classe no âmbito da educação, hooks coloca em foco as situações das pessoas subalternizadas; as relações sociais que condicionam as culturas “supremacistas brancas, patriarcais e capitalistas” dentro de comunidades oprimidas e amplia a noção dialética para incluir os efeitos de relações de exploração na produção do conhecimento em particular, e na educação em geral. A efetivação do “pensar-prático” na educação resgata a honestidade e a integridade do ensino-aprendizagem. Para hooks, “a integridade está presente quando há congruência ou concordância entre o que pensamos, dizemos e fazemos” (hooks, 2020: 64).
Uma educação libertadora e descolonizadora envolve, portanto, teorias, experiências e, sobretudo, ações conscientes. A partir do “olhar da consciência”, quaisquer interações se estruturam de um outro lugar, para além de um pensamento imposto, colonizado.
A proposta educacional de hooks aponta incisivamente para os problemas que afetam a todas as pessoas que compartilham experiências em sociedades estruturadas em relações de opressão. hooks nos convoca a olhar para isso e não somente apontar o problema, mas buscar soluções.
hooks nos lembra que a resolução dos problemas não cabe somente a quem pertence aos grupos subalternizados, mas a todas as pessoas que convivem e interagem nesse contexto social. O desenvolvimento da consciência do lugar de cada pessoa, inclusive de quem está em situação de privilégio, é fundamental. Em Ensinando Comunidade (2021), ela nos diz:
Devemos ressaltar todas as recompensas positivas e transformadoras resultantes de esforços coletivos para mudar nossa sociedade, sobretudo a educação, para que esta não seja espaço para afirmação de nenhuma forma de dominação. Precisamos que movimentos políticos de base convoquem os cidadãos a sustentar a democracia e os direitos de todos à educação e a trabalhar em prol do fim da dominação em todas as suas formas – trabalhar por justiça, mudando nosso sistema educacional para que a escolarização não seja um cenário onde alunos e alunas são doutrinados a apoiar o patriarcado capitalista imperialista supremacista branco ou qualquer ideologia, mas, sim, onde aprendem a abrir a mente, a se engajar em estudos rigorosos e a pensar de forma crítica. (hooks, 2021: 26).
Considerações finais
Para hooks, as discussões devem ultrapassar os muros da academia. E, para que uma educação seja comprometida e emancipatória, é necessário que pensemos no contexto dentro e fora da sala de aula, para que as pessoas sejam conscientes e autônomas. Para a autora, o ensinar é um ato de resistência:
o prazer de ensinar é um ato de resistência que se contrapõe ao tédio, ao desinteresse e à apatia onipresentes que tanto caracterizam o modo como os professores e alunos sentem diante do aprender e do ensina, diante da experiência da sala de aula. (hooks, 2017: 21).
Em suas teorias, hooks nos relata que passou por processos de “não pertencimento”, buscando algo que a fizesse sentir viva, e, para ela, esse processo foi importante, pois fez com que ela se sentisse recuperada. É neste momento que compreendemos que, assim como hooks, é necessário que sejamos fortes e incansáveis para lutar contra as injustiças sociais. Assim, é preciso que compreendamos que, para que isso aconteça, é fundamental que consigamos conciliar a teoria e a prática, pois uma capacita a outra.
É importante também compreender que o ensino precisa estar aberto a memórias, às histórias das pessoas e de suas particularidades. A aula é o lugar de ser político, o lugar em que construiremos a luta, a partir da pedagogia engajada. E, para que consigamos construir essa pedagogia, precisamos repensar nossas próprias práticas enquanto educadoras e educadores a partir da perspectiva crítica.
Portanto, ao longo das análises e leituras, enxergamos a importância de uma educação contra-hegemônica, que valorize o conhecimento prévio e as experiências vividas antes mesmo de estudantes chegarem ao contexto escolar. Respeitar as experiências diferentes, as visões de mundo e compreender que as pessoas não são depósitos, elas são produtoras de conhecimentos e saberes. O que fazemos e o que ensinamos aos estudantes, de alguma forma, poderão ecoar por toda sua vida, assim como as reflexões de Paulo Freire encontraram bell hooks ao longo de sua trajetória.
O que ensinamos e como ensinamos determinam em qual frente atuamos. Não há neutralidade. A maior visibilidade de pessoas negras, periféricas e LGBTQIA+, por exemplo, rompe com o projeto de legitimação de poder e saber do academicismo. Sendo assim, tomar por base a perspectiva decolonial é também tomar como base o emergente.
Por fim, retomamos a epígrafe desse texto, título do livro de bell hooks traduzido para o português em 2018, e uma das grandes contribuições de hooks: o feminismo é para todo mundo. A compreensão disso também é uma forma de abrir novos caminhos para a descolonização da educação.
bell hooks presente!
Recibido: 24 de septiembre de 2022
Aceptado: 5 de octubre de 2022
Referencias Bibliográficas
Bebop, Irene (2021, 19 de diciembre). Flores para bell hooks. Amanece Metrópolis. [Página web]. https://amanecemetropolis.net/flores-para-bell-hooks/
Freire, Paulo (1998). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.
Freire, Paulo (1983). Educação como prática da liberdade. Paz e Terra.
hooks, bell (2021). Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. Elefante.
hooks, bell (2020). Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Elefante.
hooks, bell (2020a). Ensinando Pensamento Crítico: sabedoria prática. Elefante.
hooks, bell (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rosa dos Tempos.
hooks, bell (2017). Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. Editora Martins Fontes WMF.
* Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP, Brasil (2005). Professora da Universidade Regional de Blumenau - FURB, Brasil. Lidera o Grupo Interdisciplinar de Pesquisas em Gênero, Raça e Poder, GENERA-FURB. Desenvolve projetos na Rede Brasileira de Mulheres Filósofas e na Red de Mujeres Filósofas da América Latina da UNESCO.
** Doutora em Educação pela UNISINOS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, Brasil.
*** Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.