N° 7

INTEGRACIÓN Y CONOCIMIENTO

 

ISSN 2347 - 0658

Vol. 2 Año 2017

EM BUSCA DA LIBERDADE NAS UNIVERSIDADES: PARA QUE SERVE A PESQUISA EM EDUCAÇÃO?1

António Nóvoa2

Universidade de Lisboa, Lisboa anovoa@reitoria.ulisboa.pt

Resumo

O texto, que corresponde à transcrição da palestra proferida no Porto, no Congresso Europeu de Pesquisa Educacional (4/set/2014), inicia-se com quatro histórias que são sintomas da corrosão atual das universidades e da pesquisa. Depois, na parte central, a partir de três palavras começadas por E e mais uma, criticam-se as ideologias de “modernização” que estão a

dominar as universidades: excelência,

empreendedorismo, empregabilidade, mais europeização. Na parte final, tiram-se conclusões para a pesquisa educacional, defendendo-se a necessidade de reforçar: a) práticas de debate e culturas de colegialidade; b) lógicas de diversidade e de convergência; c) processos de desenvolvimento de uma educação plena num quadro de abertura e de compromisso social. A primeira e a última palavra deste texto é liberdade, pois, sem ela, não há pensamento, nem ciência, nem educação, isto é, não há universidade.

1 El texto, originalmente publicado en el European Educational Research Journal, corresponde a la transcripción de la conferencia brindada en Porto, en el Congresso Europeu de Pesquisa Educacional (4.sep.2014). Por eso, se mantienen los rastros de la oralidad.

2Ex Rector de la Universidade de Lisboa (2006-2013).

Palavras chave: Excelência. Empreendedorismo. Empregabilidade. Europeização. Liberdade. Universidade.

EN BUSCA DE LA LIBERTAD EN LAS UNIVERSIDADES: ¿PARA QUE SIRVE LA INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN?

Resumen

El texto, que corresponde a la transcripción de la conferencia brindada en Porto, en el Congreso Europeu de Pesquisa Educacional (4/set/2014), se inicia con cuatro historias que sintomatizan la corrosión actual de las universidades y de la investigación. Luego, en la parte central, a partir de tres palabras que comienzan en “E” y una más, se critican las ideologias de la “modernización” que buscan dominar las universidades: excelencia, emprendedurismo, empleabilidad, más europeización. En la parte final, se presentan conclusiones para la

investigación educativa, defendiéndose la 131 necesidad de reforzar: a) las prácticas de debate y

la cultura de colegialidad; b) las lógicas de la diversidad y de la convergencia; c) los procesos de desarrollo de una educación plena en un marco de apertura y de compromiso social. La primera y la última palabra de este texto es libertad, pues, sin ella, no hay pensamiento, ni ciencia, ni educación, es decir, no hay universidad.

Palabras clave: Excelencia. Emprendedurismo.

Empleabilidad. Europeización. Libertad. Universidad

IN SEARCH OF FREEDON IN UNIVERSITIES: WHAT IS THE USE OF RESEARCH IN EDUCATION?

ABSTRACT

The text, which corresponds to the transcription of the conference given in Porto by Antonio Novoa, during the European Congress of Educational Research (September 4, 2014),

Excellence. Entrepreneurship.
Europeanization. Freedom.

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begins with four stories that describe the current corrosion of universities and research. Then, in the central part, from three words that begin with "E" and one more, these words criticize the ideologies of "modernization" that seek to

dominate universities: excellence,

entrepreneurship, employability, plus Europeanization. In the final part, conclusions for educational research are presented, defending the need to reinforce: a) debate practices and the culture of collegiality; b) the logics of diversity and convergence; c) the processes of developing a full education in a framework of openness and social commitment. The first and last word of this text is freedom, because without it, there is no thought, no science, no education, that is, there is no university.

Keywords:

Employability.

University.

APRESENTAÇÃO

Depois de sete anos, de grande intensidade, como Reitor da Universidade de Lisboa, passei o último ano no Brasil. Foi uma experiência extraordinária. Pude viver, in loco, a realidade de outro país, de outro continente, e tomar consciência de como são semelhantes as questões que nos afetam, de um e do outro lado do Atlântico, em todos os lugares do mundo. Ao longo de 2014, durante a preparação desta palestra, apercebi-me melhor da insanidade que está a tomar conta da vida acadêmica. Os sinais não são novos, mas têm vindo a agravar-se ano após ano. O nosso mal-estar é grande, mas parecemos resignados e apáticos, como se tudo isto fosse inevitável, como se não houvesse alternativa. Chegou o tempo de dizer “não”.

Este ano, celebra-se o centenário da Primeira Grande Guerra (1914-1918). Vale a pena recordar que ela aconteceu, como todas as guerras, não tanto por

causa das atitudes bélicas e agressivas de alguns, mas sobretudo por uma espécie de consentimento generalizado de muitos, que acabariam por ser as suas principais vítimas3.

“Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”. Esses versos de Sophia de Mello Breyner, cantados durante as lutas pela liberdade em Portugal, explicam a decisão de usar o meu tempo não para uma “palestra convencional”4, mas para juntar a minha voz a grupos e movimentos que estão a combater as tendências dominantes no espaço universitário, a combater por novas formas de organização da vida acadêmica.

VEMOS, OUVIMOS E LEMOS. NÃO PODEMOS IGNORAR!

O que vi, ouvi e li, e não posso

132

 

ignorar? A lista é longa, mas deixo-vos

 

apenas quarto exemplos, simples, mas

 

esclarecedores.

 

 

 

Primeiro. Vi as notícias sobre o embuste

 

preparado por John Bohannon, que

 

conseguiu publicar diferentes versões de

 

um falso artigo científico em 157

 

periódicos de livre acesso, alguns da

 

responsabilidade de importantes

editoras

 

internacionais como a Wolters Kluwer, a

 

Sage e a Elsevier.

 

 

 

A questão é: Por que é que

 

aceitamos

pagar

quantias

 

consideráveis

para publicar o

 

nosso trabalho num

sistema

 

3 Ver o discurso de Roger Martin du Gard no banquete oficial do Prêmio Nobel, em Estocolmo, no dia 10 de dezembro de 1937.

4 A palestra teve início com a imagem do famoso cachimbo de Magritte, acompanhada pela seguinte frase: “This is not a keynote address”.

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editorial tão medíocre? Por que é que nos resignamos perante essa insanidade? O que é que nos está a acontecer?

Segundo. Ouvi o prêmio Nobel Randy Schekman apelar a um boicote a revistas internacionais de referência, como a Nature e a Science, porque, na sua opinião, estão a distorcer o processo científico e a impor uma tirania que deve ser rejeitada.

A questão é: Por que é que não fazemos nada contra esta indústria editorial que está a causar tantos danos à ciência? Por que é que permitimos que as prioridades do nosso trabalho sejam definidas por interesses comerciais e orientações nocivas?

Terceiro. Li a história de Haruko Obokata, a jovem cientista japonesa acusada de falsear imagens numa pesquisa sobre as células-tronco, uma história semelhante a tantas outras dos últimos anos.

A questão é: Por que é que aceitamos as pressões dessa cultura de “publicar ou perecer”5? Por que

éque aceitamos o controle das nossas vidas por “fatores de impacto” e um produtivismo cego?

Por que é que consentimos? Por que é que nos resignamos?

Quarto. Recentemente, vi, ouvi e li as notícias sobre a avaliação do sistema científico português, conduzido através de um acordó entre a Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal) e a European Science Foundation. O acordo previa que apenas metade dos centros de pesquisa deveria ter financiamento6. No caso da pesquisa em educação, mais de

5Em inglês, “publish or perish culture”.

6A esse propósito, ver o texto da astrofísica Amaya Moro-Martin (2014).

70% dos centros foram eliminados logo na primeira fase. A avaliação foi conduzida da pior maneira possível, por avaliadores estrangeiros, através de métricas absurdas, sem um conhecimento mínimo da realidade do país, sem uma

visita aos centros, sem qualquer discussão com os pesquisadores…

A questão é: Por que é que aceitamos participar nesses painéis, usando métodos e cumprindo orientações políticas desse tipo? Por que é que aceitamos colaborar na erosão do nosso próprio campo científico? Por que é que aceitamos o inaceitável? Por quê?

Deixo-vos quatro histórias que tiveram lugar nos últimos meses. Poderia partilhar convosco muitas outras, como, por exemplo, o programa de computador

criado por pesquisadores do 133 Massachusetts Institute of Technology

que “fabrica” falsos artigos acadêmicos na área da ciência da computação. O programa está disponível numa página da internet e, por muito inconcebível que isso nos possa parecer, vários artigos forjados por ese processo foram aceitos para publicação em importantes editoras internacionais, como a Springer, o Institute of Electrical and Electronic Engineers, e muitas outras.

Essas histórias interessam-me não em si mesmas, mas como sinais, como sintomas de um mal-estar mais profundo que afeta a vida acadêmica e universitária. São sinais que têm vindo a multiplicar-se a um ritmo alarmante nos últimos anos, sintomas de uma corrosão das universidades e da pesquisa, que não podemos ignorar. Por isso, decidi redigir este apelo a favor de uma vida acadêmica

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diferente, um apelo à nossa responsabilidade individual e coletiva. Chegou o tempo de dizer “não”.

Contei-vos quatro histórias – sobre John Bohannon, Randy Schekman, Haruko Obokata e a avaliação da pesquisa em Portugal – e coloquei quatro perguntas que, na verdade, são apenas uma: por que é que aceitamos? Por que é que consentimos? Por que é que colaboramos? Por quê?

Claro que as perguntas são retóricas. Todos sabemos a resposta: trata-se de uma luta pela sobrevivência na selva acadêmica. Mas precisamos problematizá-la, refletir sobre ela no contexto das tendências dominantes no espaço universitário, em todo o mundo, mas sobretudo na Europa depois do Processo de Bolonha.

Talvez essas tendências possam ser resumidas através da comparação entre duas ideias bem conhecidas. A primeira pertence a Eliot Freidson (1986, p. 436): “As universidades são invenções sociais notáveis para apoiar o trabalho que não tem valor comercial imediato”. A segunda

éde Nicholas Barr, economista que desempenhou um papel importante nas reformas do ensino superior no Reino Unido: há 50 anos, o ensino superior não tinha grande relevância em termos econômicos; nos días de hoje, é

necessário compreender o valor econômico das universidades (2012)7.

Essas ideias estão separadas por cerca de três décadas, mas entre uma e outra vai uma distância de grande significado naquilo que se espera das universidades. Já não se trata de sublinhar a importância do conhecimento para o

desenvolvimento econômico e social. O que conta, agora, é o próprio valor econômico das universidades.

Num raciocínio excessivamente breve, e até simplista, talvez seja possível ilustrar essa ideologia com três E e mais um. Esses E são conceitos tóxicos, porque a nossa sobrevivência imediata depende da capacidade para respirarmos nesse ambiente nocivo, ainda que tal nos condene a uma morte lenta.

As palavras não são culpadas. O problema não está nas palavras, mas sim nas ideologias de “modernização” que olham sobretudo para o “valor econômico das universidades”.

IDEOLOGIAS DE “MODERNIZAÇÃO”? TRÊS E E MAIS UM

134

E de excelencia

Excelência é um dos conceitos mais recorrentes no mundo universitário, sobretudo quando se trata de definir os planos estratégicos das instituições e, em particular, de alimentar a esperança de ser uma “universidade de pesquisa de nível mundial”8. Como é óbvio, ninguém pode ser contra a excelência. Mas, por trás desse conceito, está a tendência para um produtivismo que enfraquece as bases da profissão acadêmica.

Publicar ou perecer? Essa cultura está diretamente relacionada com modalidades de avaliação dos professores e de produção de rankings que dominam as universidades, dando um enorme

7Ver também a página de Nicholas Barr na internet: http://econ.lse.ac.uk/staff/nb

8Em inglês, world-class research university. Ver, a esse propósito, Robertson (2012).

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poder às grandes companhias editoras internacionais.

“Quem são os capitalistas mais implacáveis no mundo ocidental?” – pregunta George Monbiot, escritor e jornalista inglês:

Quem é responsável por práticas monopolistas que fazem Walmart parecer uma pequena loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista? Há muitos candidatos, mas o meu voto não vai nem para os bancos, nem para as

petrolíferas, nem para as companhias de seguros, mas – vejam bem – para as editoras acadêmicas (Monbiot, 2011).

Trabalhamos todos, gratuitamente, para as revistas e editoras acadêmicas, como autores ou como revisores de artigos científicos, e, no entanto, somos obrigados a pagar verbas escandalosas para ter acesso a essas publicações, que foram financiadas, principalmente, por fundos públicos (Nora, 2014). Alguma coisa está errada.

Mesmo uma das universidades mais ricas do mundo, a Universidade de Harvard, aprovou uma declaração, há dois anos, informando que não tinha dinheiro para pagar os preços elevados pedidos pelas revistas científicas (Harvard University, 2012). E, nesse mesmo ano, 2012, o matemático Tim Gowers, galardoado com a medalha Fields, lançou um movimento contra o exorbitante “custo do conhecimento”, apelando a um boicote às revistas da responsabilidade da Elsevier e à adoção de formas alternativas de publicação acadêmica (The Cost Of Knowledge, 2012).

Estamos perante a indução de um produtivismo que conduz à banalização de práticas inaceitáveis, como o autoplágio, a autocitação ou o “fatiamento” de artigos. Há mesmo quem se orgulhe de ter publicado centenas e centenas de artigos ao longo da sua vida acadêmica. Será isso uma coroa de glória ou de demência?

Cada dia se publica mais. Cada dia se lê menos. Há pressões cada vez maiores para impor uma cultura de produtivismo. Não podemos ser cúmplices dessa corrupção da ciência e das universidades que está a destruir a vida acadêmica. É tempo de dizer “não”.

E de empreendedorismo

 

 

O que quero criticar nessa palavra?

 

Por um lado, quero criticar a

 

“universidade

empreendedora”,

a

135

emergência de práticas de gestão que

 

olham para as universidades como se

 

fossem empresas. Permitam-me

que

 

mencione o Manifesto for universities that live up to their missions, lançado em 2012, no qual se denunciam as tendências dominantes de governo das universidades, construídas em torno de ideias como eficiência, rentabilidade e competitividade, ideias que estão a arruinar a liberdade acadêmica.

Um dos nossos maiores problemas

éa separação, cada vez mais profunda, entre a gestão e a vida acadêmica. Dentro das universidades, o poder tem vindo a passar dos acadêmicos para os gestores e burocratas.

Por outro lado, quero falar do empreendedorismo enquanto atitude caracterizada pela inovação e pelo risco. Ninguém pode ser contra. Infelizmente, essa tendência está a conduzir a ritmos de

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trabalho cada vez mais acelerados e à adoção de dispositivos de avaliação que deixam na sombra muitos outros aspectos do trabalho acadêmico.

Essa situação é denunciada pelos subscritores do Slow Science Manifesto, documento de 2010 em que se pode ler: “A ciência necessita de tempo para pensar, de tempo para ler e de tempo para falhar. A ciência nem sempre sabe o que está certo num determinado momento”. O manifesto conclui com um último pedido, dirigido ao público: “Fiquem

conosco, apoiem-nos, enquanto pensamos”9.

Talvez a melhor maneira de contrariar essas concepções, erradas, de empreendedorismo seja através do recurso à palavra francesa désintéréssement, tão difícil de traduzir para outras línguas. Não significa desinteresse, mas sim um interesse maior, mais elevado, bem definido por Jacques Derrida (2011), na sua obra L’université sans condition, isto é, a universidade sem condição, de uma liberdade incondicional10.

O movimento a favor de uma “ciencia lenta” é parte de uma ação mais

vasta contra as tendências empreendedoras, no sentido negativo do termo, que estão a destruir o tecido universitário. É tempo de dizer “não”.

E de empregabilidade

O conceito de empregabilidade é o mais recorrente e tóxico nos debates europeus, sempre seguido por um outro conceito, ainda mais tóxico: “educação e formação ao longo da vida”11. Durante o

9The Slow Science Manifesto pode ser consultado na página da internet http://slow-science.org/

10Ver também Holmwood (2011).

11Em inglês, lifelong learning.

século XX, o direito à educação fez parte

 

de grandes lutas e

movimentos sociais.

 

Agora, com a repetição sistemática do

 

princípio da “educação e formação ao

 

longo da vida”, a educação deixou de ser

 

um direito e transformou-se num dever:

 

cada um tem a obrigação de se educar ao

 

longo da vida no sentido de melhorar os

 

seus níveis de empregabilidade.

 

 

 

As

 

universidades

foram

 

incorporando a ideia de empregabilidade,

 

abdicando de grande parte das suas

 

missões educacionais e culturais, para se

 

focarem, primordialmente, na preparação

 

para os empregos ou, melhor dizendo,

 

para futuros empregos.

 

 

 

 

 

A

aceitação

 

 

acrítica

dessas

 

tendencias torna-nos responsáveis pela

 

nossa própria destruição, como se explica

 

num importante documento, Charte de la

 

désexcellence

 

(2014),

 

recentemente

136

publicado por um grupo de acadêmicos

 

europeus.

As

nossas

 

atitudes,

muitas

 

vezes por omissão ou consentimento,

 

abrem

caminho

 

à

adoção

e

 

desenvolvimento de ideologias que estão

 

a condicionar seriamente as universidades,

 

a criar importantes constrangimentos à

 

vida acadêmica e a redefinir erradamente

 

as prioridades da investigação. É tempo

 

de dizer “não”.

 

 

 

 

 

 

 

Intencionalmente, decidi descrever

 

os três E confrontando-os sempre com

 

movimentos e formas de resistência que

 

têm vindo a ganhar cada vez mais

 

importância no interior do mundo

 

universitário:

a

 

declaração

 

da

 

Universidade de Harvard, o boicote

 

proposto por Tim Gowers, o Manifesto for

 

universities that live up to their missions, o Slow

 

Science Manifesto,

a

 

Charte

de

la

 

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désexcellence12 É a minha maneira de chamar a atenção para a nossa própria responsabilidade, como professores, como pesquisadores, como educadores e como membros de sociedades científicas na área da educação.

No princípio, disse-vos que apresentaria três E e mais um.

Omeu último E refere-se à europeização

Estamos perante mais um conceito

tóxico. Depois de décadas de europeização, a Europa está como está. Não falarei sobre isso. Mas quero expor as divisões entre norte e sul, entre centro e periferia, que as políticas da União Europeia no campo da ciência e inovação estão a agravar.

Habitualmente, sublinha-se a importancia do conhecimento para a organização e progresso das sociedades contemporâneas. É esse o argumento principal para aumentar as verbas europeias para a ciência. O programa Horizonte 2020 está, hoje, dotado com um orçamento de 79 mil milhões de euros.

Curiosamente, ninguém põe em

causa a estratégia de “fundos competitivos” que regula as políticas europeias de distribuição de recursos na área da ciência. É o melhor exemplo da ideologia dos três E. O resultado é óbvio: os fortes ficam mais fortes; os frágeis, mais frágeis.

Depois de quase três décadas na União Europeia, Portugal continua a ser um contribuinte líquido13 para os fundos

12Ver também uma petição recente de pesquisadores europeus, They have chosen ignorance!

13Contribuinte líquido significa que Portugal contribui com mais verbas para o orçamento europeu nesse setor do que aquelas que recebe da União Europeia.

europeus de ciência. Ironicamente, poder-

 

se-ia argumentar que os cidadãos dos

 

países menos desenvolvidos estão a pagar

 

a ciência que se faz nos países mais

 

desenvolvidos.

 

Que

estranha

 

europeização.

 

 

 

 

 

 

E depois somos confrontados com

 

histórias, como aquela que vos contei

 

anteriormente, sobre a avaliação dos

 

centros de pesquisa em Portugal. O

 

trabalho é realizado sob os auspícios da

 

European Science Foundation, com a

 

cumplicidade de

alguns

dos nossos

 

colegas. É desnecessário dizer que tudo é

 

feito de acordo com os melhores

 

“padrões

internacionais”,

legitimados

 

com linguagens e métricas de excelência,

 

inovação

 

e

competitividade,

 

empreendedorismo,

transferencia

de

 

conhecimento

e

mérito

tecnológico,

 

outputs,

produtividade e impacto. Mas

o

137

problema está precisamente aqui. Em

 

nome da europeização, reproduzem-se as

 

mesmas fraturas de sempre. É tempo de

 

dizer “não”. Quatro vezes “não”.

À

 

excelência.

Ao

empreendedorismo.

À

 

empregabilidade.

 

 

 

 

 

A “esta” europeização. Não por

 

causa das palavras, mas por causa das

 

ideologias que elas carregam.

 

 

 

 

Deixem-me ser totalmente claro.

 

Não

alimento

 

nenhuma

nostalgia

 

acadêmica. Mas isso não me obriga a

 

aderir

a ideologias

de “modernização”

 

que estão a destruir a nossa vida acadêmica e a nossa liberdade intelectual. Essas ideologias estão a empobrecer o trabalho científico, em particular no campo da pesquisa em educação. É o que tentarei explicar na última parte desta palestra.

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E A PROPÓSITO DA PESQUISA EM EDUCAÇÃO?

Deixar-vos-ei, de novo, três ideias, e mais uma.

Em vez de “excelência”, precisamos de debate e cultura

Em vez da ideologia da “excelência”, devemos basear a pesquisa em educação no debate e na cultura. Um entendimento errado do conceito de excelência conduz a separar os melhores dos outros, esquecendo que, nas sociedade do século XXI, é central que todos tenham acesso ao conhecimento e que haja uma valorização não apenas da ciência mas também da cultura científica.

O debate, o seminário e as comunidades de diálogo são elementos fundamentais da universidade. Essa tradição tem sido posta em causa por um sistema de revisão pelos pares14 cada vez mais desacreditado, por avaliações puramente quantitativas ou bibliométricas e por tendências que medem fatores de impacto duvidosamente definidos.

Énecessário reconstruir uma cultura de debate e de crítica, marcada pela interação, pelo diálogo, pela leitura conjunta dos nossos trabalhos, pela capacidade de nos envolvermos numa conversa intelectual com os outros. Não podemos nos resignar perante a tirania dos números, perante dispositivos quantitativos de avaliação que estão a pôr em causa a criatividade e a liberdade. Precisamos reinventar a pesquisa como uma práxis coletiva aberta e colaborativa.

Para transformar as universidades,

énecessário haver confiança em nós e nos outros, “dentro” (nas instituições) e

14Em inglês, peer-review system.

“fora” (na sociedade). Sem confiança, a tendencia dominante será sempre reproduzir lógicas burocráticas e métricas quantitativas, empurrando a vida acadêmica para um produtivismo tantas vezes sem sentido. Tudo precisa de tempo, colaboração e compromisso, colegialidade e liberdade.

Em vez de “empreendedorismo”, precisamos de diversidade e convergencia

A ideologia do empreendedorismo tende a reduzir a pesquisa a desenvolvimentos tecnológicos ou a

exercícios aplicados. Um certo estreitamento tem, por vezes, o efeito de voltar o trabalho científico para dentro do próprio campo educativo. Ora, a história educacional mais inspiradora baseia-se no

contrário, numa diversidade de

abordagens, de metodologias e de 138 maneiras de pensar.

Éestranho que, neste início do século XXI, quando as correntes científicas mais innovadoras procuram dinâmicas de convergência e de fertilização mútua, alguns pesquisadores estejam preocupados sobretudo com as

questões da identidade e da

“disciplinarização” das ciencias da educação.

Pessoalmente, acredito que precisamos alargar o espectro do nosso trabalho, numa perspectiva muito próxima da que é defendida por Michel Serres:

Dedicados à procura da verdade, nem sempre a atingimos quando a buscamos por análises e equações, por experiências ou evidências formais; por vezes, é preciso

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recorrer ao ensaio; e quando o ensaio não chega, sigamos pelo conto, se for possível; se a meditação fracassa por que não tentar a narrativa? (1991, p. 249).

A questão central é como enriquecer, aprofundar e diversificar a

nossa compreensão dos temas educacionais. Não há um camino único e, certamente, não podemos esperar que se obtenha um consenso na forma de organizar e de orientar o campo científico em educação. Mas podemos trabalhar para que a pesquisa acolha a diversidade e procure a convergência. Não nos podemos fechar no interior de uma “disciplina” única. Precisamos trabalhar nas fronteiras de vários conhecimentos,

juntar perspectivas diferentes na compreensão dos fenômenos educativos.

Em vez de “empregabilidade”, precisamos de plenitude e abertura

Vale a pena recordar a ironia de David Labaree, numa palestra dirigida a jovens pesquisadores em educação: “Errem, sejam preguiçosos e irrelevantes; e pensem no vosso trabalho como um esforço para equilibrar os valores da verdade, da justiça e da beleza” (2012, p. 74). Esses conselhos não podem ser interpretados literalmente, mas sim como uma crítica às tendências utilitaristas que dominam as universidades.

A pesquisa deve ser capaz de reforçar uma educação superior ampla, que não se esgota na “empregabilidade”. Para isso, importa consolidar os laços entre a educação e a ciência, entre a formação e a pesquisa, enriquecendo a vida universitária num duplo sentido: por um lado, construindo uma educação de

base, que dê a cada um os instrumentos de conhecimento e de autoconhecimento, de desenvolvimento de uma vida plena também na relação com o trabalho; por outro lado, realizando um esforço para levar a pesquisa até um público mais alargado, de modo a ligar a reflexão científica aos debates públicos sobre educação.

Todos sabemos que a educação está saturada de opiniões e de certezas e, por isso, é tão difícil instaurar e legitimar um conhecimento especializado nesse campo. Mas essa dificuldade é, ao mesmo tempo, uma das nossas principais vantagens, pois torna mais fácil uma relação próxima entre a ciencia e a sociedade, uma abertura decisiva para as sociedades do século XXI.

Aqui ficam as minhas três respostas à questão Para que serve a pesquisa

em educação? Mas prometi-vos três 139 respostas, e mais uma. A minha última resposta diz respeito à Europa. Se acreditamos, como gostamos de dizer,

que a educação e o conhecimento são

elementos centrais para o desenvolvimento dos países, então temos de repensar a forma como os fundos europeus de ciência estão a ser distribuídos. Não podemos aceitar acríticamente o argumento de que os fundos estão a ser concedidos apenas de acordo com a qualidade e o mérito das

equipes de investigação, das

infraestruturas e das projetos apresentados. Na verdade, essa política reproduz, cinicamente, as desigualdades de partida. Por essa via, nunca nos tornaremos mais iguais no espaço europeu.

A retórica da europeização tem estado ao serviço de divisões e fraturas

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cada vez mais profundas. Nenhum de nós pode continuar a jogar esse jogo, ingenuamente, como se nele não tivéssemos qualquer responsabilidade. Chegou o tempo de agir, dentro de cada uma das nossas universidades, mas também em associações como a

European Educational Research Association.

Está na altura de concluir esta viagem –recordem-se que isto não é uma “palestra convencional”– por temas universitários, pela vida acadêmica e pela pesquisa educacional. Espero ter sido capaz de juntar pontos de vista muito distintos, no esforço para revelar dilemas e problemas que nos afetam a todos.

Comecei com uma poeta do Porto, Sophia de Mello Breyner. Permitam-me que termine com um escritor de Lisboa, Vergílio Ferreira: “Não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa” (1992, p. 9). Do mesmo modo, também não se pode conhecer fora das posibilidades da ciência em que se conhece. É por isso que precisamos alargar o repertório da nossa ciência, dos pontos de vista teórico e metodológico. Alargar o espectro das nossas maneiras de pensar e de falar sobre educação. Aprofundar o nosso compromisso com a inclusão, a educação e a cultura. É para isso que serve a pesquisa educacional.

Todas as minhas palavras podem ser resumidas numa só – liberdade. As formas dominantes de organização do trabalho acadêmico e de avaliação dos professores estão a afetar gravemente a ideia de universidade e as nossas vidas profissionais e pessoais. Chegou o tempo de repensar a pesquisa educacional numa perspectiva mais ampla, com uma

liberdade sem condição. Porque a liberdade é tudo, e todo o resto é nada.

REFERÊNCIAS

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THEY HAVE CHOSEN

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