N° 7

INTEGRACIÓN Y CONOCIMIENTO

 

ISSN 2347 - 0658

Vol 2, Año 2017

CEM ANOS DEPOIS: ENTRE O MANIFESTO CÓRDOBA E OS NOVOS-VELHOS DESAFIOS DO CONTINENTE

Ricardo Spindola Mariz

Universidade Católica de Brasília marizricardo@gmail.com

Resumo

O presente trabalho discute o papel da Universidade no contexto de permanente desigualdade social na 74 América Latina. Para tanto retoma o Manifesto de Córdoba como elemento inicial de discussão sobre o papel da Universidade no continente. Diante de aceleradas mudanças no contexto social e informacional, a Universidade deverá encontrar formas distintas de desempenhar seu papel, contribuindo para uma perspectiva emancipatória do conhecimento científico ou fortalecendo o seu papel conservador e excludente, mais preocupada com a sua própria inclusão no cenário atual, do que a superação das desigualdades sociais que ainda caracterizam o nosso continente.

Palavras-chave: Desigualdade social, Universidade, Manifesto de Córdoba

CIEN AÑOS DESPUÉS: ENTRE EL MANIFIESTO DE CÓRDOBA Y LOS NUEVOS- VIEJOS DESAFÍOS DEL CONTINENTE

Resumen

El presente trabajo discute el papel de la Universidad en el contexto de permanente desigualdad social en América Latina. Para ello, retoma el Manifiesto de Córdoba como elemento inicial de discusión sobre el papel de la Universidad en el continente. Ante la aceleración de los cambios en el contexto social e informacional, la Universidad debe encontrar formas distintas de desempeñar su papel, contribuyendo a una perspectiva emancipatoria del conocimiento científico o fortaleciendo su papel conservador y excluyente, más preocupado por su propia inclusión en el escenario actual que en la superación de las desigualdades sociales que aún caracterizan nuestro continente.

Palabras clave: Desigualdad social, Universidad, Manifiesto de Córdoba

Dossier Especial: A Cien Años de la Reforma Universitaria de 1918.

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A HUNDRED YEARS LATER: BETWEEN THE CÓRDOBA MANIFESTO AND THE CONTINENT’S NEW-OLD CHALLENGES

Abstract

The present study discusses the role of the University in a permanent social inequality context in Latin America. Therefore it takes Córdoba Manifesto as an initial element for the discussion about the role of University in the continent. Faced with accelerated social and informational changes, the University may find different ways to play its role, contributing to an emancipatory perspective of scientific knowledge or strengthening its conservative and excluding role, but most concerned with its own inclusion in the current scenario than overcoming the social inequalities that still characterize our continent.

Key words: Social inequality, University, Manifest of Córdoba

INTRODUÇÃO

Na obra “Cem anos de solidão” Gabriel Gárcia Márquez descreve, de forma inusitada e magistral, uma longa trajetória de uma família, seus descendentes e outros

moradores de uma cidade fictícia. Apesar de um período extenso de tempo e de vários 75 aspectos tratados, o tema da solidão parece ser o eixo entre os personagens e a história. O autor, a partir de uma história local, consegue oferecer, também, elementos para uma compreensão da história do nosso continente.

O período de cem anos, onde se transcreve o conjunto de histórias narradas pelo autor, parece ser um período simbólico importante. Seria um tempo suficiente de distância para pensarmos estruturalmente um determinado acontecimento e suas consequências, mas sem que a própria distância possa nos afastar muito muito o núcleo gerador daquilo que se pretende compreender. Cem anos possui também um potencial simbólico, de certa forma, parece encerrar um ciclo ou uma época.

Depois de cem anos do Manifesto de Córdoba, poderíamos nos perguntar sobre os fatos ocorridos, se teríamos nesta “outra história” um elemento central aglutinador, ou ainda se o tema da solidão caberia também para definir a nossa experiência de universidade no continente. Poderíamos também avaliar o quanto os dias de hoje são herdeiros de elementos daquele Manifesto. Num determinado trecho da obra “Cem anos de Solidão”, a esposa diante do lamento de seu marido sobre algumas atitudes dos filhos, faz a seguinte afirmação: “os filhos herdam as loucuras dos pais”(Márquez, 2009, p 26).

São muitos caminhos possíveis e parte deles já foram trilhados por outros artigos e ensaios. No presente trabalho pretende-se abordar outro aspecto: a partir do Manifesto de Córdoba e da situação de desigualdade social que, infelizmente, perdura no continente por muito mais de cem anos, refletir sobre a encruzilhada que se encontra o ensino superior no

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continente: um momento onde o conhecimento produzido se presta muito mais à regulação, perdendo assim seu potencial emancipatório (Santos, 2000).

O ensino superior, na tentativa de superação de um polo autoritário, denunciado pelo Manifesto de Córdoba pode num movimento pendular, perder-se num caminho de adaptação “ao seu tempo”, ou seja, para que não fique fora do processo ou esvazie seu sentido, ela pode contribuir com os processos excludentes dos quais ela deseja, em tese, evitar.

Para tratar essa questão com o devido cuidado, o presente trabalho percorrerá a seguinte trilha: um breve resgate de elementos centrais presentes no Manifesto de Córdoba, o panorama social da América Latina a partir do enfoque da desigualdade social e, finalmente, o papel do ensino superior nesse contexto, onde será retomado de a ideia da encruzilhada em que nos encontramos.

MANIFESTO

Um manifesto, compreendido a partir da sua dimensão política, declara publicamente uma posição pela transformação ou manutenção de uma determinada realidade que possui uma tendência contrária, ou seja, um manifesto nasce num campo de disputa. No caso do Manifesto de Córdoba a disputa se dava a partir da compreensão dos propósitos e métodos do ensino universitário.

Mesmo não possuindo uma posição detalhada sobre o novo formato de 76 universidade desejada, o Manifesto de Córdoba sinalizava o descontentamento com um “estado de coisas” que naquele período configurava a universidade e a prática docente universitária.

A análise crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da própria existência e que, portanto, há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe. O desconforto, o inconformismo ou a indignação perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua superação. (Santos, 2000, p. 23).

Nesse sentido o Manifesto de Córdoba aponta uma realidade que se deseja superar: uma universidade que ainda representava, do ponto de vista cultural a “marca” da relação colonial. A dimensão da autonomia universitária era e é uma questão central em todo esse processo. Autonomia aqui compreendida não como anomia, ou seja, onde a Universidade não teria vínculo com a sociedade, mas que a relação com os outros segmentos dessa mesma sociedade não fosse baseada na perspectiva da heteronomia.

O tema da autonomia é central no Manifesto e essa temática circunda sempre as outras duas possibilidades de constituição das relações social: heteronomia e anomia. Autonomia, heteronomia e anomia são marcadores importantes na constituição e na transformação da universidade. Como verificaremos mais tarde essa questão ganha uma

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relevância central nos rumos atuais da Universidade na América Latina e a relação com regulação estatal e com o mercado.

Outra temática central do Manifesto é a relação dos discentes com os docentes. Nesse campo, em especial, o Manifesto produz uma dura crítica às estruturas de Cátedras que eram um “espetáculo de imobilidade senil”. Aqui presenciamos um debate também atual sobre o lugar da experiência em momentos de mudanças, por um lado percebido como algo ultrapassado e objeto de superação e por outro como espaço garantia de reprodução daquilo que era culturalmente correto ou mais evoluído.

Érazoável pensar que, se a Universidade no plano cultural representava ainda representava o período colonial, os docentes de maneira geral e suas relações como os discentes eram a concretização dessa representação. Nesse aspecto a docência sempre estará envolvida com o capital cultural construído e consolidado, pelo menos como um ponto de partida e muitas vezes como referência para sua reprodução, ou seja, como ponto de partida e como finalidade (Bourdieu, 1998). No trecho abaixo do próprio Manifesto essa relação entre o período colonial, docência e a própria estrutura da Universidade fica evidente:

...Acabamos de romper a última cadeia que, em pleno século XX, nos atava à antiga dominação monárquica e monástica... Nosso regime universitário – mesmo o mais recente – é anacrônico. Está fundado sobre uma espécie de

direito divino; direito divino do professorado universitário. Acredita em si 77 mesmo. Nele nasce e nele morre. Mantem um distância olímpica... Por isso queremos arrancar na raiz do organismo universitário o arcaico e bárbaro conceito de autoridade que nestas casas de estudo é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsa dignidade e a falsa competência. (Manifesto de Córdoba – 1918).

Naquele momento parece claro que, se a Universidade representava uma relação colonial que se desejava ver superada, seus professores e as relações pedagógicas eram a ponta mais evidente dessa relação e por isso um objetivo central de transformação no conteúdo do Manifesto. Os professores, a partir dessa dimensão, eram representantes do “capital cultural institucionalizados” (Bourdieu, 2011).

O Manifesto , além de apontar as questões relacionadas à prática docente, também sinalizou aspectos relacionados a participação dos estudantes no modelo de gestão da Universidade, um alargamento da oferta universitária do ponto de vista cultural, ou seja, uma oferta para além daquilo que se considerava “cultura universitária”, o tema da autonomia universitária que sinalizei anteriormente e a abertura da Universidade para o povo, que podemos considerar como um elemento originário do debate em torno da democratização da Universidade.

O Manifesto de Córdoba, por meio de suas denúncias, acaba por anunciar elementos que ainda hoje fazem parte do campo de disputa universitária no continente. Para além de suas consequências concretas para o caso da Argentina e da América Latina,

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nos interessa neste trabalho fazer a análise do contexto atual que se encontra o ensino

 

superior na América Latina. Nesse sentido faremos um pequeno “desvio” na rota de

 

estudo do Manifesto, para sinalizar elementos do contexto atual da América Latina, a partir

 

do aspecto da desigualdade social. Em seguida retomaremos o Manifesto como uma chave

 

de leitura possível da atual situação, seus desafios e possíveis caminhos.

 

 

A UNIVERSIDADE E O CONTEXTO ESTRUTURAL E ESTRUTURANTE DE

 

DESIGUALDADE SOCIAL

 

 

A desigualdade social na América Latina se faz presente em várias dimensões, tendo

 

a dimensão econômica seu traço mais nítido. É também um fenômeno multicausal e que,

 

de alguma forma, é retroalimentado pelos frutos da própria desigualdade. Nesse caso as

 

consequências, como por exemplo, diferenças na escolarização, são também causas de

 

outras dimensões da mesma desigualdade, como é o caso da relação entre escolaridade e

 

acesso ao mundo do trabalho.

 

 

A desigualdade é uma marca histórica no continente, muito evidente nas relações

 

coloniais e que até hoje, guardando as singularidades do caminho percorrido por cada país,

 

ainda se faz presente. É um processo multifacetado, como aponta o relatório da Comissão

 

Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL):

 

 

A análise das desigualdades sociais requer que se dê atenção à distribuição de

 

78

ativos, de meios e oportunidades, de renda e de outros resultados, de poder e

 

 

influência. Neste sentido, a desigualdade faz referência às

assimetrias na

 

capacidade de apropriação dos recursos e ativos produtivos (renda, bens e serviços, entre outros) que constituem ou geram bem estar, entre diversos grupos sociais. Ao mesmo tempo, faz referência à exclusão e à distribuição desigual do poder político e econômico, que reservam para poucos o espaço das decisões que afetam a maioria, impossibilitando ou limitando o exercício de direitos ou o desenvolvimento das capacidades de todos. (CEPAL, 2016, p. 05).

No Continente a desigualdade é estrutural, histórica e estruturante de sua continuidade. A educação, por exemplo, apresenta-se como um fator estrutural e estruturante na manutenção da desigualdade. A ideia de estrutura estruturante é utilizada por Bourdieu em seus estudos sobre o conceito de habitus (Bourdieu, 1989), mas parece-me possível prolongar um pouco mais essa ideia, que nos ajuda na compreensão noção nos estudos de fenômenos sociais mais amplos, como é o caso da desigualdade social.

Como já sinalizado a educação é um fator onde a causa e consequência se encontram quando se trata de desigualdade. No caso brasileiro, como um exemplo expressivo para o Continente, encontramos dois tipos de desigualdades muito evidentes, aqueles que ainda se encontram fora do sistema escolar e aquelas incluídos formalmente num sistema em expansão, mas que de fato não possuem aprendizagem esperada relativa

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aos seus anos de escolarização. Esse segundo caso é tão grave como o primeira, já que se configura numa exclusão por dentro do sistema, exclusão que pode ser pouco evidenciada nas estatísticas oficiais.

No Brasil, segundo o acompanhamento do Movimento todos Pela Educação, baseados nos dados da PNAD (Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua), ainda encontramos 2.486.245 crianças, adolescentes e jovens de 04 a 17 anos fora da escola. Entre as crianças de 4 a 5 anos são 512.940 não matriculados, entre as crianças e adolescentes de 6 a 14 anos possuímos 429.592 não matriculados e encontramos o expressivo número de 1.543.713 jovens e adolescentes entre 15 a 17 anos fora do sistema escolar do país (Todos pela Educação, 2017).

Quanto aos estudantes que estão dentro do sistema escolar, mas não aprendem adequadamente, a tabela abaixo sinaliza que a quantidade de estudantes que não aprendem num nível adequado é maior do que aqueles que possuem um aprendizado abaixo do adequado a sua escolaridade.

Aprendizagem adequada dos estudantes (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

 

 

4ª-5º EF -

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ling. Port.

39,3

35,5

24,8

23,7

25,6

26,6

27,9

34,2

40,0

45,1

 

 

4o/5º EF

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

79

- Matem.

19,0

21,4

14,4

14,9

15,1

18,7

23,7

32,6

36,3

39,5

 

 

 

8ª/9º EF -

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ling. Port.

37,5

31,8

18,6

21,8

20,1

19,5

20,5

26,3

27,0

28,7

 

 

8ª/9º EF -

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Matem.

16,8

16,7

13,2

13,4

14,7

13,0

14,3

14,8

16,9

16,4

 

 

3ª EM -

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ling. Port.

45,4

39,7

27,6

25,8

26,9

22,6

24,5

28,9

29,2

27,2

 

 

3ª EM -

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Matem.

11,6

17,9

11,9

11,6

12,8

10,9

9,8

11,0

10,3

9,3

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Demo,2016

 

Outra “ponta” reveladora dessa mesma desigualdade dentro do sistema educacional pode ser percebida no caso dos professores, em especial, se nos afastamos um pouco no tempo para verificar a dimensão histórica desse fenômeno. No Brasil em 1996 nós tínhamos 1.071.603 professores atuando nos primeiros anos de escolarização. Dentre esses professores 85.706 professores só possuíam o ensino fundamental e já atuavam na educação neste mesmo nível ou na educação infantil. O quadro era mais grave no caso de 99.213 professores que atuavam no mesmo nível e não possuíam o ensino fundamental completo (Mariz, 2010).

Por mais valorosos sejam esses professores, a oportunidade de aprendizagem oferecida por eles já carregava na sua origem a marca da desigualdade. Neste mesmo

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período tínhamos, segundo relatórios oficiais do Ministério da Educação e Cultura do Brasil, 68.7% dos estudantes da educação básica com alguma distorção de idade/série (Mariz, 2010). Uma realidade muito exigente e que, em parte, justifica nos ajudam na compreensão da dimensão histórica dos dados atuais sobre o baixo percentual de aprendizagem adequada de grande parte dos estudantes “incluídos” no sistema escolar.

Elementos como esses reforçam uma constatação presente no documento Panorama Social da América Latina – 2016, produzido pela CEPAL. A desigualdade no continente possui uma característica que amplia sua complexidade – a ausência de proteção em períodos de vida críticos. Tomando como base a infância e juventude, a partir dos dados relatados acima, podemos confirmar que em momentos muito exigentes de cuidado a sociedade não se fez presente ou presente de maneira efetiva para uma parcela significativa da população. Segundo o mesmo documento essa é uma constante no quadro da desigualdade social.

Na América Latina e no Caribe a desigualdade é um traço característico desde as primeiras etapas de vida das pessoas. A pobreza na infância é especialmente crítica pelo maior nível de dependência, falta de autonomia e elevada vulnerabilidade das crianças... A juventude é outro período crítico, em que as desigualdades sociais podem se aprofundar ou diminuir. Nesta etapa definem-se aspetos que marcarão a vida adulta... Contudo, na realidade

latino-americana, frequentemente essas fases e transições não seguem uma 80 trajetória linear, mas constituem momentos em que a desigualdade se reproduz e aprofunda. (CEPAL,2016).

Ainda no mesmo relatório encontraremos um aspecto que sinaliza o ápice desse processo de desigualdade em sua condição estrutural e estruturante de mais desigualdade, por exemplo, na relação entre a escolaridade e aposentadoria. Em 2014 somente 30% dos homens de 65 anos ou mais que possuíam o primário incompleto recebiam aposentadoria. Esse indicador subia para 66% quando se avaliava do grupo com escolaridade correspondente ao secundário ou maior que o secundário. No caso das mulheres a diferença entre os dois grupos era de 21% entre as mulheres de escolaridade mais baixa e 62% entre as mulheres com escolaridade mais alta. (CEPA,2016).

Encontramos uma constante de desigualdade e vulnerabilidade ao longo da vida em um grupo muito expressivo no Continente. São inúmeros aspectos que criam, para esse grupo da sociedade, uma forma de determinação social. É diante desse quadro que desejo retomar a reflexão produzida a partir do Manifesto de Córdoba e o papel da Universidade no continente.

Num contexto de desigualdade a Universidade parece ser chamada a um duplo papel de inclusão, no sentido macro e micro. Do ponto de vista macro contribuir para melhorar o posicionamento dos países do continente na relação com os outros países do mundo e outros blocos. Do ponto de vista micro contribuir para um processo efetivo de inclusão de seus estudantes, ou seja, “da Universidade depende tudo: o futuro de todo o

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país no contexto das nações, o futuro de cada cidadão na conquista da liberdade”. (Masi, 2017, p.496).

Se a desigualdade social não é uma novidade no Continente, percebe-se uma singularidade no contexto atual que potencializa o papel da Universidade no jogo de reforço ou superação dessa mesma desigualdade: a intensificação do uso do conhecimento e das tecnologias da informação nos processos produtivos, nas relações trabalhos e nos novos formatos de sociabilidade.

O conhecimento científico que produzimos pode atuar no ofuscamento ou do desvelamento dos mecanismos sociais de manutenção da desigualdade. Pode reforçar ou fragilizar a dinâmica excludente atual. Esse elemento já foi sinalizado por Demo há duas décadas como uma tendência possível que, infelizmente, para está se efetivando.

Possivelmente a marginalização mais drástica do futuro seja frente ao conhecimento: cada vez mais o conhecimento de ponta estará fechado em blocos reduzidos de países centrais, tornando a pobreza não só um problema de carência material, mas sobretudo de exclusão política (Demo, 2000).

Vivemos numa nova dinâmica de produção, reprodução e circulação de conhecimento. Nessa nova dinâmica as instituições escolares (básicas e superiores), de certa forma, perderam parte de sua centralidade e se percebem, não raras vezes também

atrasadas. Essa situação lança todas as instituições escolares num desafio: como 81 “recuperar” o espaço e a centralidade de outrora?

Porém, o desafio do ponto de vista da superação do estado da desigualdade social que ainda perdura no continente, parece levantar um outro aspecto para a mesma pergunta: a Universidade, por exemplo, irá recuperar sua centralidade contribuindo com a dinâmica de desigualdade, que no momento intensifica o uso do conhecimento para manutenção das diferenças sociais?

O poder emancipador do conhecimento como uma meta, muito presente no Manifesto de Córdoba, parece ceder lugar à sua dimensão regulatória, ou seja, grande parte da inovação produzida hoje, com ou sem a contribuição do conhecimento produzido na Universidade, possui uma força de transformação conservadora, que consolida e aprofunda as desigualdades sociais. Um conhecimento que gera o novo à serviço da conservação e ampliação das distâncias entre os eleitos da sociedade e os excluídos.

A absorção da emancipação pela regulação – fruto da hipercientificização da emancipação combinada com a hipermercadorização da regulação – neutralizou eficazmente os receios outrora associados à perspectiva de uma transformação social profunda e de futuros alternativos...A ciência e a tecnologia aumentaram a nossa capacidade de ação de uma forma sem precedentes...A expansão da capacidade de ação ainda não se fez acompanhar de uma expansão semelhante da capacidade de previsão, e por

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isso, a previsão das consequências da ação científica e necessariamente muito menos científica do que a ação científica em si mesmo. (Santos, 2000, p. 58).

Nos encontramos numa situação que situei no início do trabalho como uma encruzilhada. A dimensão emancipatória do conhecimento pode não estar no novo, como parecia evidente no contexto do Manifesto de Córdoba. O conhecimento hoje é tomado com um ativo no processo de produção. Ele ganha força de realização, mas pode perder em capacidade emancipatória. A capacidade de realização e o potencial criador do conhecimento segue num crescente vertiginoso, resta-nos perguntar pelas consequências do conhecimento que nós mesmos produzimos.

O conhecimento científico conquista sua centralidade na modernidade a partir da disputa com a explicação idealista da vida social. Uma explicação que subjugava a razão ao revelado previamente. Nesse “enfrentamento” encontramos a coincidência entre o conhecimento científico e sua força emancipatória. O lugar do conhecimento científico naquele momento era de ruptura de uma determinada ordem social.

Hoje o conhecimento científico parece encontrar na perspectiva pragmática da inovação sua senha de acesso ao “centro do jogo”. Na verdade, no caso das Universidades, a nova dinâmica de produção e circulação do conhecimento aponta indícios a Universidade pode deixar de ser um “locus” privilegiado dessa produção e circulação. A inovação parece ser a grande chave de acesso.

A inovação nessa perspectiva deixa de ser meio para uma transformação e parece 82 ser um fim em si mesmo. Diante desse quadro parece ser oportuno questionarmos se o pragmatismo inovador não é uma faceta do idealismo que outrora desejávamos combater e superar (VÁZQUEZ, 2007).

O pragmatismo inovador idealiza as condições sociais como determinações e assim se aproxima do idealismo, o pensamento emancipatório não encontra espaço em nenhuma dessas duas formas. O pragmatismo inovador seria uma forma frustrada de superação do idealismo, já que os dois resultam numa postara que nega o potencial original da ciência.

Inovar e inovar-se seria a grande meta a ser perseguida como ingresso para o “centro do jogo”. Seria uma meta performática, ou seja, uma meta que na verdade não se alcança, um desempenho que se auto supera constantemente. Talvez uma extensão daquilo que Weber apontou como “razão instrumental”, quando o meio ocupa o lugar do fim.

Trata-se de fazer sempre mais, sempre melhor, sempre mais rapidamente, com os mesmos meios e até com menos efetivos...” Isso não se dá necessariamente através da ação “de regulamentar o emprego do tempo e quadricular o espaço, e sim de obter uma disponibilidade permanente para que o máximo de tempo seja consagrado à realização dos objetivos fixados...

Trata-se, portanto, sempre de construir um tempo integralmente rentável. (Gaulejac, 2007, p. 110)

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Inovar como meta encontrou uma terra fértil na sociedade performática e reforçada pelos modelos gerencialistas de gestão que ocupam com força crescente o ambiente educacional. Nesse modelo, por exemplo, os indicadores ocupam o lugar da realidade, ou melhor, a realidade por vezes é reduzida aos seus indicadores.

A Universidade, nesse contexto, sabe-se atrasada sem saber para onde ir e, por vezes, ocupa-se no frenesi do excesso de atividades como isso fosse o suficiente. É mister perguntar-nos se parte do atual frenesi não se presta muito mais a uma espécie de “terapia ocupacional”.

No manifesto de Córdoba os estudantes apontavam como problema a “imobilidade senil”, talvez nosso desafio contemporâneo seja uma espécie de “mobilidade juvenil”. Algo que represente nossa pressa de sair do lugar, sem a clareza do caminho a ser percorrido. A Universidade nesse quadro encontra-se numa posição semelhante ao protagonista de um filme do cinema mudo alemão O Estudante de Praga, que foi baseado no conto “Willian Wilson” de Edgar Poe.

Neste filme o protagonista protagonista observava uma festa que acontecia nas proximidades de sua casa. Num determinado momento ele busca informações sobre o que era necessário para “participar na festa”. A condição para sua entrada era entregar a sua imagem ao responsável, ou seja, daquele momento em diante o estudante não se perceberia mais nos espelhos. Feito o trato o estudante passou a frequentar a festa e durante um tempo tudo parecia caminhar bem.

Nas cenas que se seguem o estudante começa a viver um dilema. A sua imagem, 83 desvinculada dele, age de maneira independente. O estudante, por sua vez, se via obrigado

a responder pelos inconvenientes causados pela sua imagem. A partir daquele momento o estudante passa a perseguir a sua imagem. Num determinado momento os “dois” se encontram e travam uma luta onde acabam morrendo.

A perseguição do estudante atrás de uma imagem projetada e que não se alcança a não ser com o desaparecimento dos dois, parece ser uma possibilidade que nos encontramos hoje. De certa forma ao eleger essa maneira de ingresso ou reingresso no jogo, a Universidade passa muito mais a consumir inovações do que de fato produzi-las.

O dilema atual encontra no tempo de resposta da Universidade uma questão central. Ela, se percebendo atrasada e em processo de isolamento do jogo, julga ser premente agir e recuperar o atraso. A questão é que o tempo de reação é também um aspecto metodológico central para o pensamento científico. No imperativo da resposta em “tempo real” a Universidade pode construir um conhecimento muito próximo da doxa e, dessa forma, descaracterizar seu próprio papel.

Essa relação paradoxal entre o atraso, o tempo de resposta e a qualidade política dessa resposta, constitui-se num elemento central da encruzilhada que nos encontramos. O contrário também pode ser problemático, a desigualdade social no continente não se resume ao grupo de indicadores que precisam ser melhorados, são pessoas que não podem esperar por muito tempo. No caso da educação são gerações sendo afetadas pela incapacidade da sociedade de resolver seus problemas básicos.

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A “justa medida” para essa e outras respostas é o nosso desafio central. O pensamento científico pode encontrar ou aprofundar sua relevância no contexto atual. Pode fazer isso atuando majoritariamente na reprodução ou na transformação social. Esse é o jogo a ser jogado nos próximos anos.

CONCLUSÕES

Estamos vivendo um processo de “desimaginação do social” (Santos, 2017). Na verdade, um processo de uma construção de um social composto somente por indivíduos, uma social antissocial. A imaginação pode ser compreendida com uma forma de ampliação da realidade. Um olhar esperançoso que enxerga o potencial em conjunto com aquilo que já existe de fato. A “desimaginação” seria o contrário, uma ação reducionista do real, na medida em que por indolência (Santos, 2000) ou conveniência, reduzimos o pensar ao pragmatismo das tendências que “podem dar certo”.

A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em

todos os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorrem efetivamente. 84 (Santos, 2000, p. 36).

O Manifesto de Córdoba aponta para uma Universidade que não existia e que ainda não existe, mas que é possível. É nesse campo das potencialidades que devemos nos movimentar e não no campo das determinações. Fazer o determinado ou consolidar tendências parece reduzir a potencialidade do próprio pensamento científico ou, ao menos, enquadrá-lo numa existência medíocre e muito aquém de seu potencial.

O que poderemos dizer a partir dos próximos cem anos? Que tipo de manifesto traduziria o atual estágio que nos encontramos? O Manifesto de Córdoba não aponta um roteiro, um modelo ou metodologias a serem seguidas, essas questões devem ser contextualizadas no seu próprio tempo, mas o Manifesto aponta um postura a ser assumida. Postura proveniente na esperança que temos do projeto humano e das possíveis contribuições da Universidade para esse projeto. Uma aproximação (Bachelard, 2004) daquilo que é, mas ainda não existe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aremdt, H. (2011). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.

Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do

conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto

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Bachelard, G. (2004). Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto.

Bourdieu, P. (1989). O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus.

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N° 7

INTEGRACIÓN Y CONOCIMIENTO

 

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