Colonialidade e silenciamento nos cânones literário

e historiográfico brasileiros

 

[Coloniality and Silencing in Brazilian Literary and Historiographical Canons]

 

Fernanda Rodrigues de Miranda

(Universidade Federal da Bahia)

fernandaromira@gmail.com

 

Marcello Fesliberto Morais de Assunção

(Universidade do Rio Grande do Sul)

marcellofma@gmail.com

 

Resumen

O artigo busca delinear a complexa relação entre a construção do cânone historiográfico e literário brasileiros e a produção de silenciamento/colonialidade, compreendendo assim o cânon como uma tecnologia de poder reprodutora da racialização. Para dar conta desta problemática dividimos o artigo em duas partes. Na primeira parte esboçamos como a fundação da disciplina da História esteve alicerçada no silenciamento sistêmico e na figura do White Savior, eixos fundamentais para a racialização da escrita da história, abordando também algumas alternativas. Em seguida, aprofundamos essa reflexão a partir da dimensão literária, repensando como a construção deste cânone silencia e mascara a imensa pluriversalidade das narrativas ficcionais/não-ficcionais, explorando assim como as narrativas dissidentes (negros e antirracistas) reorganizam o ordenamento do cânon.

 

Palabras clave: Colonialidad; Silenciamiento; Canon; Historiografía; Literatura

 

Abstract

The article seeks to outline the complex relationship between the construction of the Brazilian historiographical and literary canon and the production of silencing/coloniality, thus understanding the canon as a technology of power that reproduces racialization. To address this issue, we divided the article into two parts. In the first part, we outline how the foundation of the discipline of History was based on systemic silencing and on the figure of the White Savior, fundamental axes for the racialization of the writing of history, and also approaching some alternatives. Then, we deepen this reflection from the literary dimension, rethinking how the construction of this canon silences and masks the immense pluriversality of fictional/non-fictional narratives, thus exploring how dissident narratives (black and anti-racist) reorganize the order of the canon.

 

Keywords: Coloniality; Silencing; Canon; Historiography; Literature

 

 

Recibido: 29/08/2022

 

Evaluado: 13/10/2022

 

Aceptado: 11/11/2022

 

A formação dos cânones nacionais inevitavelmente institui políticas de apagamento, dado que costumam ser forjados na intersecção entre o poder e as dinâmicas de silenciamento que inscrevem a ordem social na tessitura da ordem discursiva (Jara y Tallens, 1987; Reis, 1994).

Tal pressuposto se torna mais delicado quando provém de países que foram atravessados pela colonização e pela escravidão. No caso do Brasil, em que a história da colonização é ainda a história do presente, essa ordem social é constituída nos racismos, desigualdades e hierarquias e o cânone, enquanto tecnologia e enquanto arquivo, é inteiramente atravessado por essa configuração –desde sua fundação à sua transmissibilidade e comunicabilidade contemporâneas.

Entretanto, esses processos de formação, fixação e inevitabilidade canônica não foram capazes de impedir a existência de textos diversos, justamente aqueles mantidos à margem do cânone. Dado que o modus operandi canônico priorizou e ainda prioriza autorias brancas, masculinas e socialmente bem posicionadas (Dalcastagnè, 2012; Oliveira y Rodrigues, 2016), sua durabilidade é acompanhada de uma tradição de enfrentamento, substancializada, no recorte aqui proposto, pela escrita de autoria negra.

O estabelecimento do cânone brasileiro mobilizou, desde os primórdios, a intersecção entre literatura e história. Os primeiros atos de composição da noção de literatura brasileira, em suas autorias e obras representativas, foram também registros de um dado tempo, repleto de anseios pela escrita de uma História do Brasil capaz de formalizar definitivamente traços de parentesco com a Europa. Não apenas em temáticas e estéticas, mas também no âmbito da autoria, essa busca produziu as redes de comunicabilidade e as fibras do silêncio imposto às dissidências de tais domínios.

Silenciamento é um conceito nuclear que tem dinamizado grande parte dos esforços críticos em prol de uma historiografia, uma teoria e uma cena literária pluriversal (Ramose, 2011). Sabemos que experiências históricas silenciadas, como aquelas dos povos negros que chegaram ao Brasil, foram pouco assumidas como realidades valorativas ao ponto de serem guardadas como arquivos ou como índices de historiografia. O diálogo entre a história e a literatura tem sido uma ponte fundamental para redimir esses silêncios, pois a produção literária negra, principalmente no século XIX, pode ser considerada a principal plataforma criativa e arquivística da experiência negra brasileira, dentro da ordem discursiva.[1]

 

1. Cânone historiográfico e silenciamento sistêmico

 

Poucas coisas expressam melhor o epistemicídio sobre as populações negras, sobre seus saberes e agências, do que os pares do branco salvador e do negro suplicante. Esta imagem foi reproduzida ad infinitum por diversas modalidades e tipologias discursivas. Desde pelo menos o emblema anti-escravista “Eu não sou um homem e um irmão?” (Am I Not a Man and a Brother?) de Josiah Wedgwood, do fim do século XVIII, até filmes como “Green book” há uma reprodução institucional de um discurso expresso nos não-ditos: a humanidade do negro é uma concessão do mundo branco[2].

O que significa que o negro, nesta leitura historicista, não tem história, a não ser aquela concedida por aqueles que de fato protagonizaram a transformação e construção do mundo contemporâneo. O negro é, nesta perspectiva, a “antessala da história” à espera do seu White Savior, sempre uma paisagem de um cenário onde os protagonistas são os grandes estadistas brancos da história.

No âmbito da cultura, um exemplo muito notável dessa configuração pode ser recolhido na relação controversa e sempre complexa da escritora Carolina Maria de Jesus e seu editor, o jornalista Audálio Dantas. Em 1960 a autora ficou conhecida mundialmente devido à publicação de seu diário “Quarto de despejo, diário de uma favelada”, editado por Dantas. Carolina era uma mulher negra e pobre que vivia e estetizava a experiência de compor a margem da cidade, a margem da cidadania, a margem do progresso e do dito desenvolvimento da cidade de São Paulo. A narrativa dessa experiência, inaudita até então, produziu um dos episódios mais paradigmáticos da história do livro e da leitura no Brasil – bem como das relações editoriais intervencionistas – e até hoje está em debate. Não obstante todas as alterações que o editor realizou no texto da autora (Perpétua, 2000), sua presença e protagonismo nos processos de enunciação da autora é reivindicada inclusive recentemente, na ocasião da publicação inédita de seus textos sem corte (Jesus, 2021), como um White Savior incontornável.

A colonialidade do saber estruturou a construção dos campos disciplinares nas sociedades marcadas, na primeira e segunda modernidade, pelo domínio econômico, político e cultural dos “centros” sobre as “periferias”. Este processo, como afirma uma vasta bibliografia, não pode ser entendido meramente sobre um olhar que se restrinja a dados econômicos, mas também está umbilicalmente ligado à forma específica como os sistemas simbólicos e instituições sociais foram moldadas sob a imagem do colonizador. Por isto, não é arbitrário que a História, literatura e as ciências humanas tenham marginalizado por tanto tempo negros e mulheres dos seus respectivos cânones.

Os genocídios/epistemicídios do “longo século XVI[3]” foram fundantes para a criação de um lugar epistêmico[4] que instituiu uma falsa universalidade fundada na autoimagem do europeu, branco, masculino e heterossexual. Através de um engenhoso (e maquiavélico) jogo de “espelhos” (Fontana, 1994) a Europa formatou a invenção do “outro” para que através da sua suposta subalternidade fosse instituída uma “geopolítica do conhecimento” (Bernardino-Costa, Grosfoguel y Maldonado-Torres, 2019), ao qual o polo europeu fosse valorizado como legítimo e racional e os “outros” tidos como hierarquicamente “inferiores”. A noção de colonialidade do saber, constituída por Aníbal Quijano, e a tradição “decolonial[5]”, é fundamental para pensar como o “novo padrão de poder” instituído com a destruição de um “mundo histórico” nas Américas e do “estabelecimento de uma nova ordem”, fundou-se na racialização oriunda de classificações sociais como o “indígena”, “negro” e “mestiço[6]”.

A contínua reconfiguração/atualização das classificações sociais sob o signo da “raça” contou com a História como um dos seus principais instrumentos para o enquadramento de populações colonizadas ou/e sob formas de colonialismos internos em sociedades pós-coloniais marcadas pelos efeitos das “plantations” na população negra e mestiça. A violência anti-negritude advinda de taxinomias societárias (“atraso” e “progresso”), biológicas (as diversas hierarquias internas e exclusões legitimadas pelo cientificismo do fim do século XIX e início das décadas de XX) e culturais (os enquadramentos reducionistas que uma certa antropologia, etnologia e sociologia constituíram sobre as vidas negras) foram legitimadas por uma historicidade que excluiu o negro/não-branco enquanto agente da história e da escrita desta mesma História. A “política do tempo” do historicismo (Iggers, 1995; Falcon, 2002; Avila, 2016) enquadrou as populações racializadas (assim como todos os “outros” construídos nessa grade temporal) na “antessala da história”, seguindo o esquema “primeiro na Europa, depois em outros lugares”, na feliz expressão de Dipesh Chakrabarty (2008, p. 35).

O medo branco de uma “onda negra” resultou na contínua negação do negro enquanto agente da sua história[7]. Para isto foi necessário um processo generalizado de negação da humanidade do negro, da “epidermização da raça” (Fanon, 2021; Faustino, 2015) para que através desta fosse construída a justificativa, cultural ou/e biológica a depender da conjuntura, para a ideia do negro enquanto objeto e ser anômico da história. A constituição do negro de selvagem à bárbaro passou por uma operação de temporalização: do selvagem e “infiel” sem alma para o “atrasado” e, em seguida, para o biologicamente inferior, no seio do darwinismo social, contando com inúmeras instituições e tendo a História disciplinar como espaço por excelência (Moura, 1990; Avila, 2016).

No Brasil o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Colégio Pedro II foram essenciais para a constituição de um código disciplinar (Schmidt, 2012) que instituísse o padrão europeu e branco como eixos do cânone historiográfico nacional. Desde o famoso texto fundador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) “Como se deve escrever a história do Brasil” (1843), de Von Martius, a construção do ideário do “branco salvador” se constitui por meio da miscigenação enquanto padrão fundamental.

Os historiadores associados ao IHGB construíram a história de forma análoga ao que os pintores construíam a visualidade nacional: os não-brancos como paisagem de uma história constituída pelos agentes brancos da elite nacional. É como se estes historiadores reproduzissem a nível da escrita da história o que Victor Meireles e Pedro Américo faziam na pintura. É Varhnagem na sua História Geral do Brasil (1854-1856) que expressa entre estes a visão de mundo mais consolidada da aristocracia racista em seu olhar sobre o papel das elites brancas na história em contraposição a suposta “selvageria” dos negros e dos indígenas. Na sua percepção, estes (os não-brancos), seriam incapazes de narrar sua própria história e, se o fizessem, seria por puro revanchismo contra o branco civilizado:

 

Claro está que, se o elemento europeu é o que essencialmente constitui a nacionalidade atual, e com mais razão (pela vinda de novos colonos da Europa) constituirá a futura, é com esse elemento cristão e civilizador que principalmente devem andar abraçadas as antigas glórias da pátria, e por conseguinte a história nacional. Abrace embora exclusivamente os Africanos e a sua causa o historiador do captiveiro, impiamente importado, desses infelizes; abrace ainda mais ternamente os Índios, e defenda, com o hallucinado P. Las Casas, a resistencia que opposeram e opõem a libertarse da escravidão da anthropophagia selvagem, em que jaziam e jazem, o historiador dos Indios; -- a historia da actual nação, -- a historia geral da civilização do Brasil, deixaria de ser logica com o seu proprio titulo, desde que aberrasse de symphatisar mais com o elemento principalmente civilizador (...).

Um índio que escrevesse a história da conquista não teria que cansar-se muito para nos dizer que para ele tudo quanto haviam feito os europeus fora violência, ilegitimidade, usurpação; e com inscrever estas três palavras no frontispício de um livro em branco, satisfaria a sua missão, sem rebuscar documentos nos arquivos inimigos; pois que lhe faltaria tempo para contar-nos a miséria, degradação e antropofagia dos seus. Eis a história nacional se os índios do mato conquistassem todo o Brasil [...]. Daqui até a adorar historicamente a selvageria não vai muita distância (...) 

Um infeliz Africano, que escrevesse a historia do captiveiro hereditário, poderia também compendiar a sua obra exclamando: Engano, crueldade e escravidão! – E nestas três palavras se deveria resumir a historia da republica de Haity, anterior ao actual domínio nella da raça africana, se a sua forma de governo, os seus códigos, e a sua língua permitissem ao historiador haityense renegar de todo da civilização francesa (...). (Varnhagem, 1854, pp. XXV-XXVI)

 

A leitura de Varnhagem da história nacional confundida com a história do estado e das elites brancas dinamizou e ainda constitui um elo fundamental para a imaginação histórica brasileira[8]. Mesmo os abolicionistas, quando construíam suas imaginações históricas, não fugiam muito dessa leitura do não-branco como ente passivo da história. Posto que a construção do negro passivo suplicante é a regra comum nas visualidades construídas por aqueles que, diferentemente de Varnhagem, concebiam na libertação dos negros um caminho acertado[9].

Entretanto, esse suposto “privilégio epistêmico ocidental” (Sanjay, 2013, p. 187), e branco (Barbosa, 2018) constituído por seu ímpeto imperialista sobre povos coloniais ou/e racializados, foi confrontado desde as suas origens por estes mesmos “povos sem história” que negaram esse “código” da escrita da história por meio de “contra-histórias”. Estas contra-histórias assumiram diversas formas desde escritos anti-coloniais no contexto afro-asiático, discursos de valorização étnica dos povos afrodiaspóricos e africanos (como é o caso do pan-africanismo, negritude e o movimento “Harlem Renascence”, para ficarmos estritos nesses exemplos) e, nomeadamente, na formatação de uma literatura que narra (em um âmbito ficcional) a historicidade desse “outro” por excelência do historicismo (o negro) por meio de um discurso à contrapelo.

Na América Latina/Caribe o pensamento afrodiaspórico ou/e terceiro-mundista (na forma do ensaio, romance, etc.) construiu toda uma noção de tempo que se opôs sistematicamente a esta cronologia esquemática da modernidade. Para Édouard Glissant, a compreensão da temporalidade na Caribe/América Latina deve ter como eixo uma “dolorosa noção de tempo” ao qual a “cronologia esquemática” (da História com H maiúsculo) ou o “lamento nostálgico” (de certos essencialismos identitários) não dão conta de preencher (Glissant, 2010, p. 125). O desenraizamento brutal oriundo do tráfico de escravos e das contínuas violências e rupturas que se seguiram em nossa historicidade são um impedimento para que a consciência histórica se assente nos moldes de uma “filosofia da história totalitária” segundo o molde eurocêntrico, mas antes associada as “descontinuidades no continuum” (Glissant, 2010, p. 126). Glissant, em paralelo ao referido Seth Sanjay e Dipesh Chakrabarty, atribui a História com H maiúsculo uma “fantasia altamente funcional do ocidente”, sendo confrontada exatamente quando estes mesmos povos enquadrados começaram a não aceitar mais essa concepção linear e cronológica do tempo (Glissant, 2010, p. 126).

A experiência afrodiaspórica, caribenha/latino-americana e dos “condenados da terra”, que foram enquadrados pelas políticas do tempo do historicismo como “outros”, são exemplos de uma possibilidade transversal de implodir o continuum do tempo “linear” e “homogêneo” (que refere-se Walter Benjamin em suas teses), seguindo o caminho de uma relação transcultural, ou como prefere Glissant, de uma filosofia da relação (Glissant, 2005) como crítica à verdade absoluta do ser e do Homem (com H maiúsculo) que é a origem do autocentramento e do ego moderno.

Os debates mais contemporâneos sobre a formatação de “histórias indisciplinadas” (Avila, 2018; 2019) e do chamado “giro ético-político” (Araujo y Rangel, 2015; Rangel, 2019) têm levado os historiadores brasileiros a pensarem gradativamente na importância da “diferença” enquanto elemento constitutivo para a reescrita da história que de fato rompa com o tempo “vazio e homogêneo” (Benjamin, 1987) da história disciplinada e a “indiscipline” por meio de uma radical pluralidade de tempos e abordagens. Entretanto, a produção de coletâneas, eventos e produtos culturais associadas a estas reflexões ainda estabelecem esta noção de “diferença” em um nível muito abstrato, não discutindo explicitamente o papel da racialidade nesta reescrita do cânone e nem mesmo incorporam ainda em sua totalidade um debate mais profundo sobre a geopolítica do conhecimento, oriunda de tradições latino-americanas ou/e afrodiaspóricas ou de campos do conhecimento como as teorias feministas[10] e queer.

Superar o descompasso entre uma disciplina nascida no XIX, firmemente atrelada à sua temporalidade e às mudanças do fim do século XX e início do XXI (Avila, 2019, p. 18), têm sido objeto de uma grande miríade de debates no campo historiográfico, sendo o fetiche por um realismo à maneira positivista somente um dos elementos deste debate[11]. O campo historiográfico, e, nomeadamente, seus subcampos metateóricos (a teoria da história e a história da historiografia, etc.), ganharia muito ao incorporar o debate sobre a produção do conhecimento alicerçada aos “corpos geopolíticas” oriunda da tradição decolonial, da filosofia latino-americana/caribenha ou/e pensamento afrodiaspórico (principalmente em Quijano, Dussel, Lugano, Wynter, Glissant, Denisse Ferreira da Silva e outros). Importante dizer também que a crescente importância dessas questões na escrita da história não se dá por um movimento unilinear da universidade para a sociedade, mas em grande medida acontece o contrário: são os movimentos sociais (principalmente o movimento negro) que têm trazido problemáticas que eram até então dificilmente consideradas como relevantes no interior dos espaços intelectuais, acadêmicos e institucionais como um todo.

Uma ética da historicidade –voltada para uma radical pluralidade do tempo e confrontadora das imagens hegemônicas produzidas pela história disciplinar– têm em conta que uma abordagem a fundo na “diferença” não é meramente produto de uma “concessão” benevolente de uma certa intelectualidade, predominantemente branca e da elite, que só muito recentemente se volta para estes temas, posto que historicamente quem têm feito uma “história à contrapelo” e confrontado o “cortejo triunfal” daqueles que “não tem cessado de vencer” são mesmo aqueles que foram e são sistematicamente derrotados e através de uma leitura crítica desta derrota são capazes de despertar a “centelha da esperança” que irrompe o tempo “vazio e homogêneo” da história disciplinar.

O pós-abolição é certamente o campo historiográfico que melhor consubstancia este projeto, constituindo uma verdadeira “revolução copernicana” no olhar sobre os agentes e a agência da história nacional para além do cânone. Quando esta veio à tona nos anos 1990 –enquanto expressão dos debates sobre a nova história da escravidão– o campo expressava ainda uma geopolítica do conhecimento fundada na imensa maioria de historiadores brancos que protagonizavam o debate sobre a agência/agenciamentos negros.

Entretanto, nos anos 2000 há um processo de inversão dessa tendência dominante na escrita da história canônica, que consubstanciou a máxima: “Nada sob nós, sem nós”. As razões para isto encontram-se na contínua pressão, dentro e fora da universidade, por uma historicidade que ultrapasse a cortina de fumaça constituída por um cânone que ainda resume os não-brancos a mera paisagem social, isto não somente na história enquanto processo, mas também no processo da própria escrita da história e das suas contínuas revisões (a história da historiografia).

A rede de historiadorxs negrxs e o campo do pós-abolição, ao qual essa se filia, expressam muito desse movimento do “negro-vida” (em oposição à sua redução a “negro-objeto”) não só por uma escrita que busque confrontar o cânone da História disciplinar, mas na própria forma de circulação e produção interna dessa história.[12] Estas posturas indisciplinares revelam que não basta meramente mudar a forma/representação da escrita da história e do cânone para que este deixe de ser hegemônico, é preciso de uma outra forma de produzir e circular os conhecimentos produzidos à contrapelo, para que o mesmo não seja apropriado por um processo de “extrativismo epistêmico” que neutralize o seu potencial transformador.

 

2. Cânone literário e as insurgências literárias negras

 

Pensando nas perspectivas e possibilidades de uma filosofia decolonial ou descolonizadora, Nelson Maldonado-Torres (2021) conclui ser necessário abolir o cânone:

 

Decolonial philosophical thinking demands the abolition of the canon, which does not mean the rejection of every idea found in existing canonical texts, but rather, a fundamental reorientation of the ways of conceiving knowledge production and creation—one that cannot take place without active involvement in decolonial struggles and without generative relations with knowledge creators and explorers embedded in those struggles. (Maldonado-Torres, 2021, p. 14).

 

Abolir o cânone, como se vê, não significa romper ou soterrar os textos que o compõem, pelo contrário, implica em desviar dos caminhos, métodos, sistemas e relações colonizadoras que o constitui, a fim de conceber outros mecanismos de produção do conhecimento e partilha do arquivo.

Mas, antes de mais nada, convém refletir: afinal, o que é o cânone literário? De forma muito sintética, podemos entender o cânone como núcleo central do regime que torna a literatura uma instituição, constrangida por instâncias tão variadas como a academia, o mercado editorial, o ensino de literatura, a tradução, as associações de classe (como a Academia Brasileira de Letras e as diversas academias regionais), etc. Prioritariamente, cânone remete a uma recolha de obras consideradas representativas de uma dada literatura nacional – como um museu que guarda exemplares de valor literário.

 

Um texto literário, escreve Jenaro Talens, não é uma presença, mas um espaço vazio, cuja semantização está para ser produzida pela praxis historicamente determinada do leitor. É o ato de leitura que faz com que o espaço vazio se transforme em uma obra literária, produzida depois de ter sido transformada em algo dotado de um significado pela apropriação por um leitor. Se acatarmos a anotação de Talens, se poderia desde logo inferir que a leitura estará condicionada pelo estatuto de classe, pelo “gosto”, pelo lugar ocupado pelo leitor no tecido social e num dado momento histórico (Reis, 1992, p. 2)

 

No Brasil, o cânone literário possui raízes profundas com a construção da elite letrada nacional e os seus mecanismos de permanência em lugares e narrativas instituídos/as de/no poder. A este respeito, destacamos a síntese feita por Roberto Reis (1992), em seu artigo “Cânon”:

 

Não resta dúvida de que existe um processo de escolha e exclusão operando na canonização de escritores e obras. O cânon está a serviço dos mais poderosos, estabelecendo hierarquias rígidas no todo social e funcionando como uma ferramenta de dominação. Para desconstruir esse processo, sem dúvida ideológico, faz-se necessário problematizar a sua historicidade. Quer dizer: não se questiona o cânon simplesmente incluindo um autor não ocidental ou mais algumas obras escritas por mulheres. Um novo cânon decerto não lograria evitar a reduplicação das hierarquias sociais. O problema não reside no elenco de textos canônicos, mas na própria canonização, que precisa ser destrinchada nos seus emaranhados vínculos com as malhas do poder. Seria o caso de perguntar, então, quem articulou o cânon – de que posição social falava, que interesses representava, qual seria seu público-alvo e qual a sua agenda política, qual o seu estatuto de classe, de gênero ou étnico, por quais critérios norteou a sua eleição e rejeição de obras e autores. A noção de valor e a atribuição de sentido não são empresas separáveis do contexto cultural e político em que se produzem, não podendo, por conseguinte, ser desconectadas de um quadro histórico. O significado de qualquer juízo de valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto em que for emitido e de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade de afetá-los ou mesmo convencê-los. (Reis, 1992, p. 5)

 

O cânone literário brasileiro se constitui sobre o silenciamento das vozes dissidentes dos marcadores da autoria hegemônica. Isto é, todos aqueles que não são homens brancos, provenientes dos maiores eixos urbanos e das classes sociais mais elevadas, heterossexuais e letrados, estiveram silenciados dos mecanismos de circulação e canonização. Um exemplo previsível pode ser recolhido na análise das historiografias literárias publicadas no século XX, como a de Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Veríssimo, Afrânio Coutinho, Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moisés, entre outros. Em todas, existe uma partilha do invisível, digamos assim, no sentido do soterramento, isto é, da invisibilização que produzem em relação às autorias negras e em larga medida femininas, como Maria Firmina dos Reis e Ruth Guimarães, ainda que ambas tenham usufruído de reconhecimento público em seus contextos de surgimento.

Por outro lado, a historicidade da presença vernacular negra no Brasil reflete o âmbito ininterrupto da disputa por espaço e existência nos domínios da circulação textual, como mostram os exemplos de autores/as que publicaram no século XIX e participaram ativamente da construção da cena literária em seus respectivos contextos, como Cruz e Souza, Luiz Gama, José do Patrocínio e o próprio Machado de Assis. Em sua maior parte, essas autorias, embora bem sucedidas em seus atos de escrita e publicação, foram atravessadas pela seletividade do cânone, tornando suas trajetórias fragmentadas no sentido da recepção. Maria Firmina dos Reis, assim como Lima Barreto, são autores representativos dessa fragmentação, que provoca uma assincronia entre autor, leitor, crítica e os processos de significação negra.

A dinâmica de silenciamento da voz autoral negra no Brasil organiza não só a literatura, mas o próprio sistema de ideias e pensamentos, conformando um funcionamento nacional constituinte e, portanto, sistemático, que produz outra temporalidade para as obras, e mais especificamente para sua recepção.

A escritora Ruth Guimarães, por exemplo, que publicou “Água funda” na década de 1940 –o primeiro romance de autoria feminina negra após a abolição da escravidão– é contemporânea das políticas atuais de visibilidade, pois só agora passou a ser conhecida do público leitor amplo. Maria Firmina dos Reis, que publicou no século XIX e vem a ser a primeira romancista brasileira, ainda permanece pouco conhecida e somente mais recentemente tem sido frequentada por pesquisadores/as e leitores/as em geral. A principal escritora brasileira viva neste momento, Conceição Evaristo, manifesta em várias entrevistas o fato de que, embora escreva desde a tenra juventude, só conseguiu publicar aos 44 anos, e numa publicação coletiva, negra e autogestionada, os Cadernos negros.

Exercícios de retomadas de obras de autoras silenciadas tais como Ruth Guimarães e Maria Firmina dos Reis são também tecnologias de acesso a interpretações e estéticas que nos chegam como “novas”, posto que não eram antes conhecidas. Essa espiral temporal produz também seus próprios movimentos, de modo que as leituras feitas no presente intervêm ativamente nos processos de acercamento, enfrentamento e reformulação do passado. Em suma, o silenciamento é um dispositivo que produz a negação da historicidade da escrita, o que gera implicações não somente na recepção, mas na própria fragmentação do percurso e da rede convexa que a literatura tece, envolvendo leitura, crítica, tradução, adaptações, influências, etc.

O mesmo acontece com historiadores/historiadoras ou mesmo intérpretes negros/negras que produziram desde o pós-independência leituras sobre o Brasil e que foram sistematicamente ignoradas pelas políticas de silenciamento do cânone historiográfico. A justificativa para este apagamento sistemático é ontológica, no sentido em que estes campos em formação no século XIX justificam à nível simbólico as linhas entre o “ser” e o “não-ser” constituídas desde o século XVI no contexto de formação do próprio conceito de raça e da racialização subsequentes. As universidades ocidentalizadas, os campos culturais e intelectuais não só são testemunhas do genocídio sobre as populações racializadas, mas produzem o fundo ontoepistemologico que será basilar para o epistemicidio sobre os “condenados da terra”.

Pensando o edifício literário brasileiro, no qual cânone e poder são palavras correlatas, nos parece elementar refletir ainda a cena literária nacional contemporânea, repleta, por um lado, de publicações de autores negros pelos grandes impérios editoriais, que sempre os ignorou, alinhando ao liberalismo ideias como inclusão, representatividade e protagonismo. Nesse contexto, não podemos deixar de considerar conceitos como “extrativismo epistêmico” (Maldonado-Torres, 2021) e white immune system (Bouteldja, 2017) como operadores discursivos não só da literatura enquanto instituição, mas do próprio cânone.

Por outro lado, este ordenamento, embora resistente, tem sido balizado também na contemporaneidade. As produções literárias de autoria negra brasileiras têm enunciado caminhos sólidos de uma comunidade interpretativa que vê e elabora o Brasil, a história e a sociedade brasileiras de forma crítica e, muitas vezes, dissonantes das leituras canônicas e comumente reproduzidas do país – por exemplo, a afirmativa de que vigora aqui um sistema de relações sociais harmônico e acolhedor, outrora figurado como democracia racial.

Compondo exercícios radicais de descolonização epistêmica, a contemporaneidade assume a possibilidade de pensar por outras vias: vozes negras, vozes indígenas, vozes mulheres e LGBTQIA+, vozes periféricas e de fora dos grandes centros, estão pluralizando a cena da escrita no Brasil. Embora ainda partamos de um cenário hegemonicamente branco em termos de teoria, crítica e historiografia literária, as presenças autorais e suas epistemologias do tempo presente tem permitido pensar de forma mais rizomática a destituição da inevitabilidade do cânon, produzindo reflexões densas sobre o estatuto filosófico do autor; sobre a ideia de valor estético como algo previamente definido e estanque; ou sobre a noção de pluriversalidade (Ramose, 2011) em contraponto ao restritivo universal, que sempre mimetizou particularidades no campo do poder falar.

Hoje, o cânone não é mais um lugar insuspeito e incontornável, posto que o silenciamento constitutivo que o define tem sido confrontado com presenças que modificam a cena basilar da homogeneidade. Podemos pensar hoje uma literatura pluriversal, na qual a ideia de valor estético não pressupõe, a priori, hierarquia entre negros e brancos, mulheres e homens, centro e periferia, entre outras declinações. Ou ainda, repensar, de forma sistemática, os gestos de apagamento recorrentes no século XX. Essas perspectivas operam descentramentos no cânone e nos seus pilares constitutivos, possibilitando novos arranjos críticos.

Esses arranjos ultrapassam aquilo que seria o campo específico da literatura, pois não apenas apontam para outro exercício de imaginação histórica, dado que as temporalidades imbricadas com o silenciamento sistêmico agora se abrem à emergência do afropresentismo; como também provocam dissidências na representação de engrenagens em interação na sociedade, ofertando às ciências humanas materiais mais complexos de análise. Podemos pensar hoje uma literatura brasileira pluriversal como um ecossistema de muitas vozes e formas, incapturável, portanto, aos enquadramentos do cânone.

A autoria negra pensada dentro deste sistema literário pluriversal articula diversos pontos adjacentes. Um deles é o entendimento de que todas as instâncias do literário são constituídas por disputas que confluem com os jogos de força do social. A própria ideia, já mencionada, de valor estético, que tem orientado historicamente a existência de “altas literaturas” em detrimento de “literaturas menores” e organizado as obras consideradas “universais” a partir de caracteres valorativos que parecem emergir da própria natureza, ocultando que todo valor estético é definido em um campo de poder que invariavelmente corresponde à interação entre a série literária e a série social. Enquanto agência coletiva de enunciação, a autoria negra disputa sentidos, cuja partilha está em franco debate. Disputa por representação e pelo direito à fabulação, disputa pelo lugar de autor, de leitor, e de intérprete.

Com efeito, o tempo presente é um tempo de revide, e possui suas próprias complexidades. Acima de tudo, é um tempo em que as vozes no mundo público de circulação de textos têm se tornado mais diversas. A luta contra o apagamento sistêmico em torno da voz e pensamento negro, afrodiásporico e contracolonial está produzindo, neste momento, um futuro mais aberto e menos europerspectivado.

Muitos fatores intervêm na tecnologia do silenciamento, instituída pelo cânone. O mercado editorial, as universidades, as mídias. Nunca antes no Brasil essa dinâmica foi tão apontada e combatida, garantindo a possibilidade de pensar fora do cânone. Percebemos no presente o estabelecimento de uma comunidade leitora negra, que também é uma comunidade interpretativa. Essa comunidade promove linhas de fuga ante qualquer ideia de imanência canônica.

Por um lado, autores/as negros/as do século XIX, silenciados/as pelo cânone do século XX, tem sido resgatados/as e colocados em diálogo com as vicissitudes do tempo histórico. Por outro, autores e autoras contemporâneos/as estão incomparavelmente mais presentes nos processos de visibilidade e circulação, justamente porque são requisitados por essa comunidade leitora negra e antirracista.

Essas presenças irremediavelmente colocam perguntas ao cânone. Diversificar o cânone é suficiente, quando é intrínseco à sua constituição o estabelecimento de margens? Destituir o cânone é possível, quando a literatura é uma instituição repleta de mecanismos hierárquicos? Ignorar o cânone é viável, quando suas instâncias se interpõem a todos os eixos da circulação textual? Construir outro cânone, como um cânone negro, é estratégico, dado a dimensão sistêmica do racismo e do regime de desigualdade brasileira?

Muito mais importante que cogitar respostas para essas questões talvez seja enunciá-las, pois a possibilidade de tomar o presente como episteme se traduz na emergência de uma “imaginação radical” (Kelley, 2002; Nyong’o, 2018; Silva, 2019), que no caso do Brasil, requer epistemes e autorias dissonantes ao cânone - como as negras, indígenas e dissidentes de gênero.

Vistas pelo arquivo da autoria negra, as linhas de fuga e insurgências epistêmicas produzidas na intersecção da literatura com a história são, em si, índices do tempo, fraturas no silenciamento. Como em um observatório do cânone, talvez seja tempo de perceber as fagulhas do futuro dessa escrita, para lembrar as palavras de Saidiya Hartman.

Apesar destes avanços, é preciso estar “atento e forte” contra as possíveis capturas da agenda descolonizadora e dos saberes negros e indígenas aos quais são engolidos pelo “sistema imunológico branco”, transformando suas demandas em meros capitais simbólicos nas academias ocidentais/neoliberais. No estilo do famoso trecho de Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”, as academias ocidentais tendem a ver essas teorias como commodities retóricos, que estetizam a política, acomodando as reivindicações em um nível bastante tímido.

Gershem Baniwa, professor indígena recém-empossado no departamento de antropologia da UnB, disse em um evento sobre a docência indígena nas universidades que uma estratégia fundamental para a reprodução desse molde das universidades ocidentalizadas é o isolamento dos indígenas e não-brancos, negando as pluriepistemologias (Baniwa, 2022). A desproporção entre professores negros/indígenas em relação aos brancos no ensino superior, é em instâncias de produção e reprodução cultural, é uma das evidências de que o cânone se reproduz em diversas disciplinas não só no campo historiográfico e literário.

Entretanto, é preciso reiterar que essa desproporção não é somente produto de uma “inocência branca” em nível “estrutural”, posto que existem projeto políticos e institucionais que detêm amplo apoio de certas frações da população que buscam uma retomada do cânone (branco, masculino, heterossexual, etc.) com o intuito claro de reiterar a narrativa nacional “desracializada”, mas que é profundamente identitária no seu senso eurocêntrico, branco e misógino.

É preciso reiterar que a persistência do racismo antinegro na fundação dos cânones não seja somente uma questão resolvida pela máxima iluminista kantiana: o esclarecimento e a libertação pela “verdade”. O cânone é uma tecnologia de poder que a branquitude criou para exercer poder e afirmar, por meio da exclusão e do silêncio, as linhas nem tão invisíveis do ser e do não-ser. A racialização travestida das roupagens disciplinares reproduz a colonialidade e o silenciamento que se expressam em cada espaço (coletâneas, dossiês, conferências, entrevistas, etc.) que são reservados aos chamados “intelectuais”, “pensadores” e “acadêmicos” (quase todos tão brancos quanto o padrão “sueco” da novela brasileira).

No entanto, diferente de gerações anteriores, não estamos mais sós e isolados. Não somos mais (e nunca fomos) o negro representado no referido emblema antiescravagista: prostrados, de cabeça para baixo à espera do reconhecimento de nossa humanidade, à espera do White Savior. Reconhecer isso (antes que seja tarde demais) talvez seja o primeiro passo para que as universidades ocidentalizadas formadas na lógica propriamente racial da exclusão possam começar a de fato repensar as lógicas opressivas aos quais dão base para a reprodução dos cânones.

 

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[1] O recorte aqui é para a cultura vernacular, pois dentro da cultura negra existem diversas outras possibilidades de elaboração e memória da experiência histórica negra, como na música, nas artes visuais, no cinema.

[2] Saidiya Hartman refere-se a este “duplo” da seguinte maneira: “Eu não podia deixar de pensar no famoso emblema antiescravidão de Josiah Wedgwood, que apresentava um escravo ajoelhado e acorrentado, implorando, em súplicas: “eu não sou um homem e um irmão?” A ilustração desfrutou tanta popularidade que se tornou o ícone do movimento abolicionista e foi usada como broche ou grampo de cabeça por mulheres elegantes nos anos 1780 e 1790. Mas a proposta para emancipação reproduzia a posição abjeta do escravo. E o apelo e a súplica por socorro ante a justiça golpearam-me exatamente da mesma maneira – era um ato de veneração ao Estado (...) “Quando eu imaginava o escravo, não pensava nesse companheiro ajoelhado, tentando manter a dignidade ao defender a própria humanidade. Suas mãos entrelaçadas estavam dobradas como se ele estivesse rezando com a cabeça levemente erguida, como se estivesse olhando para Deus, mas compreendi que não era para Deus que ele estava olhando e rezando, e sim para os povos da Inglaterra ou França, que poderiam também ter sido Deus. E qualquer um que olhasse poderiam também ter sido Deus. E qualquer um que olhasse para sua figura desnuda poderia ver que esse homem estava desamparado e necessitava da assistência desses povos, apesar de seus músculos torneados, do amplo tórax e dos fortes ombros. Sua humilhação os comoveu, os fez se sentir culpados e incitou compaixão.” (Hartman, 2021, pp. 210-211).

[3] Ramón Grosfoguel, fundamentado na leitura de Enrique Dussel, expõem que no decorrer do “longo século XVI” (1450-1650), se formataram pelo menos quatro genocídios/epistemicidios que foram fundantes para o novo padrão de poder na modernidade, a saber: “1. contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da “pureza do sangue”; 2. contra os povos indígenas do continente americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3. contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizados no continente americano; e 4. contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento o indo-europeu na Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas” (Grosfoguel, 2016, p. 31).

[4] Sobre o conceito de lugar epistêmico, ver: Barbosa (2018).

[5] Importante mencionar os diversos paralelos entre as reflexões de Quijano (2005) com uma tradição afrodiaspórica e terceiro-mundista que detém como genealogia autores como o próprio Frantz Fanon à uma Sylvia Winter. Estamos, portanto, de acordo com os autores do livro “Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico” (Bernardino-Costa, Maldonado-Torres y Grosfoguel, 2019) que afirmam que a teoria decolonial sistematiza uma série de reflexões já latentes na já referida tradição dos “condenados da terra” (terceiro-mundista e negra), sendo que autoras como a própria Wynter já propunham de forma bastante estruturada elementos análogos ao próprio Aníbal Quijano, ver: Wynter (1995; 2003). Neste livro de Bernardino-Costa; Maldonado-Torres y Grosfoguel (2019) encontram-se também uma série de reflexões que detém uma forte sinergia com as reflexões que fazemos aqui sobre cânone, decolonialidade e pensamento afrodiaspórico.

[6] Quijano define este processo de racialização da seguinte forma: “A vasta e plural história de identidades e memórias (seus nomes mais famosos, maias, astecas, incas, são conhecidos por todos) do mundo conquistado foi deliberadamente destruída e sobre toda a população sobrevivente foi imposta uma única identidade, racial, colonial e derrogatória, “índios”. Assim, além da destruição de seu mundo histórico-cultural prévio, foi imposta a esses povos a ideia de raça e uma identidade racial, como emblema de seu novo lugar no universo do poder. E pior, durante quinhentos anos lhes foi ensinado a olhar-se com os olhos do dominador. De modo muito diferente, mas não menos eficaz e perdurável, a destruição histórico-cultural e a produção de identidades racializadas teve também entre suas vítimas os habitantes seqüestrados e traídos, do que hoje chamamos África, como escravos e em seguida racializados como “negros”. Eles provinham também de complexas e sofisticadas experiências de poder e de civilização (ashantis, bacongos, congos, iorubas, zulus etc.). E embora a destruição daquelas mesmas sociedades tenha começado muito mais tarde, e não tenha alcançado a amplitude e profundidade que alcançou na América (“Latina”), para esses seqüestrados e arrastados para a América, o desenraizamento violento e traumático, a experiência e a violência da racialização e da escravidão implicaram obviamente em uma não menos maciça e radical destruição da subjetividade prévia, da experiência prévia de sociedade, de poder, de universo, da experiência prévia das redes de relações primárias e societárias” (Quijano, 2005, p. 17).

[7] Referimo-nos aqui ao medo da elite brasileira (e latino-americana) da formação de um “novo Haiti” no Brasil. Este “medo branco” de uma “onda negra” fomentou a construção de projetos imigrantistas até a perseguição sistemática da população negra livre, sendo um elo fundamental para compreender no pós-abolição a permanência da precariedade estrutural das vidas negras. Sobre o tema, ver: Azevedo, 1987; Andrews, 2007.

[8] É preciso dizer que mais recentemente alguns autores tem buscado outras chaves de leitura para pensar a produção e contribuição de Varnhagem e da historiografia do oitocentos para além desse referente mais tradicional do binômio nação/dominação, ver: Cezar (2018).

[9] Isto pode ser claramente visto em obras clássicas da pintura romântica oitocentista, a saber: Alegoria do ventre livre (1871, Miguel Navarro Cañizares), A primeira libertação (1885, Pedro Peres), Lei Áurea (1888, Miguel Navarro Cañizares), A libertação dos escravos (1889, Pedro Américo), A Abolição da Escravatura (Victor Meireles, 1888-1903).

[10] Para não ser injusto, é importante mencionar os esforços recentes de Maria da Glória de Oliveira nesse sentido, ver: Oliveira (2018; 2022). Allan Kardec Pereira (2021), têm feito também um esforço importante de compreender a história indisciplinada em uma historicidade de mais longa duração e por meio de uma chave afrodiaspórica e afropessimista que passa por autoras como Hortense Spillers e Saidiya Hartman (2021).

[11] Avila (2019) menciona também alguns outros fatores fundamentais da crítica ao cânone e sua disciplinarização: “(...) é fundamental também colocarmos o cânone da disciplina sob escrutínio. Antes de pensar a história da historiografia como uma série de “escolas” ou “revoluções”, cristalizando determinados momentos em detrimento de outros, em que o conhecimento histórico foi se expandindo constante e teleologicamente em direção a estágios verdadeiramente científicos, deveríamos, como questão pedagógica fundamental, questionar os meios pelos quais tais cânones foram constituídos, seus efeitos políticos e as concepções de história que ensejam. Em outras palavras, o que está dentro e o que está fora do cânone? Quais são os autores e autoras privilegiadas e quais posições teóricas são normatizadas como “histórias de verdade”? Quais as críticas possibilitam e quais impedem? Quais exclusões são explícitas e quais são implícitas? Quais tradições reafirmam e quais ocultam? Quais lugares são naturalizados? E, por fim, quais práticas daí derivam? Ainda que pareçam óbvias, estas indagações podem desestabilizar as operações disciplinares de canonização, que tentam ocultar suas origens no chão mundano das disputas políticas inerentes à disciplina (sua historicidade) para se apresentarem como sendo o resultado “natural” do seu desenvolvimento interno” (Avila, 2019, pp. 27-28).

[12] Como no caso das colunas “Nossas Histórias” na Geledés e “Presença Negra” na UOL. Para maior conhecimento das atividades da rede, URL: https://www.instagram.com/historiadorxsnegrxs/.