Parteiras imigrantes: atuação, conflitos e redes de apoio no campo profissional (Porto Alegre, final do século XIX)

[Immigrant Midwives: Performance, Conflicts and Support Networks in the Professional Field (Porto Alegre, late 19th Century)]

Maíra Ines Vendrame *

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS, Brasil)

vricamaira@yahoo.com.br

Resumo:

O presente artigo parte da análise de um processo-crime da última década do século XIX, que tem como ré uma imigrante europeia que desempenhava o ofício de parteira na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Conflitos entre imigrantes que chegavam ao Brasil com qualificação profissional era um dos aspectos que marcava a trajetória daquelas mulheres que precisavam garantir uma inserção social, conquistar clientes e prestígio na sociedade. O trabalho das parteiras era amplo, indo além daquele ligado apenas a assistência ao parto, uma vez que eram conhecedoras de saberes e práticas diversas que vinham da medicina popular e da ensinada nas universidades. Um dos objetivos principais do trabalho é indicar para as possibilidades da utilização dos documentos judiciais no avanço dos estudos ligados aos campos de atuação das mulheres imigrantes em realidades urbanas. Desse modo, parte-se da análise de situações específicas para apreender as lógicas que orientavam os comportamentos, as percepções, expectativas e controles, sendo os dados nominativas tomados como fios condutores para mapear percursos individuais e coletivos em outras fontes documentais. Através do cruzamento das informações extraídas de documentos diversos, é possível apreender de maneira complexa as atividades, articulações, escolhas, bem sucedidas ou fracassadas, e desempenhos que marcam as experiências e o trabalho das parteiras imigrantes no Brasil.

Palavras-chave : Parteiras imigrantes; Conflitos; Redes de apoio; Saúde

Abstract:

This article starts from the analysis of a criminal case from the last decade of the 19th century, which has as its defendant a European immigrant who performed the job of a midwife in the capital of Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Conflicts between immigrants who arrived in Brazil with professional qualification was one of the aspects that marked the trajectory of those women who needed to guarantee social insertion, win customers and prestige in society. The midwives' work was broad, going beyond that linked only to childbirth assistance, since they were knowledgeable about the diverse knowledge and practices that came from popular medicine and that taught in universities. One of the main objectives of the work is to indicate the possibilities of using judicial documents to advance studies related to the fields of action of immigrant women in urban realities. Thus, it starts from the analysis of specific situations to apprehend the logics that guided the behaviors, perceptions, expectations, and controls, with the nominative data being taken as conducting threads to map individual and collective paths in other documentary sources. By crossing the information extracted from different documents, it is possible to apprehend in a complex way the activities, articulations, choices, successful or failed, and performances that mark the experiences and the work of immigrant midwives in Brazil.

Keywords : Immigrant midwives; Conflicts; Support networks; Health

Recibido: 26/09/2020

Evaluación: 12/01/2021

Aceptado: 24/02/2021

No presente artigo, optou-se por utilizar fontes criminais como documentos para pensar a atuação de imigrantes europeias no campo da saúde feminina no espaço urbano da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nas últimas décadas do século XIX. O uso da documentação policial e judicial como ponto de partida para apreender experiências sociais em contextos migratórios, seja no espaço urbano ou rural, tem se mostrado proveitoso. [1] Mais do que permitir analisar tensões e articulações nas quais as mulheres se encontravam envolvidas, tanto na condição de vítimas como de rés, a utilização de tais fontes, somadas a outras de natureza diversas, possibilitam uma leitura atenta às lógicas e motivações que orientavam os mais diversos comportamentos, articulações e classificações. Nesse sentido, tendo como ponto de partida uma denúncia crime contra uma imigrante alemã, serão analisados aspectos ligados à atuação profissional, as estratégias de inserção social, os conflitos e o mundo relacional de uma parteira que, nas últimas décadas do século XIX, estabeleceu-se na capital do Rio Grande do Sul para atuar. As disputas, os controles e apoios intragrupo étnico, bem como os usos que mulheres e homens fazem dos recursos oficiais e públicos, é algo possível de ser compreendido através de uma análise atenta a determinadas escolhas individuais e coletivas.

Perceber o papel ativo das imigrantes nas dinâmicas de inserção na nova sociedade, através de escolhas diversas no campo profissional e na constituição do próprio status social, surge como um caminho que ajuda a romper com as invisibilidades e esquecimentos que prejudicam a construção de uma história mais equilibrada sobre as diferentes experiências e expectativas femininas nos deslocamentos e contextos migratórios. Entende-se que os estudos de trajetórias surgem como escolhas que possibilitam captar a heterogeneidade dos grupos e a complexidade dos elementos que interferem nos percursos bem sucedidos ou fracassados de cada um. Olhar para os conflitos, descontinuidades e dificuldades variadas que caracterizam os percursos individuais e coletivos nos espaços urbanos permite refletir sobre o universo de possíveis e a totalidade de questões que marcam cada momento específico.

Adotando uma perspectiva metodológica inspirada na micro-história italiana, [2] que toma como recurso analítico o estudo de casos específicos através da lente do microscópio para apreender aspectos escondidos, contrariedades e complexidades que ajudam a propor novos questionamentos na pesquisa. Esses, porém, não devem ficar limitadas a lugares e espaços circunscritos, pelo contrário, devem possibilitar comparações com outras realidades e contribuir para à formulação de hipóteses para uma escala mais ampla (Ginzburg, 2015). O presente artigo se encontra dividido em três partes. Na primeira, é feita uma descrição detalhada do crime e acusações contra a imigrante alemã e parteira Joanna Mehnert. Já nas outras duas partes, são problematizadas as disputas e acusações entre as parteiras diplomadas, bem como as estratégias acionadas para garantir prestígio e clientela no espaço urbano da capital Porto Alegre. Para apreender as ações das parteiras que aparecem no processo-crime, utilizar-se-ão reportagens de jornais, diversificando, assim, o número de fontes através de uma busca orientada pelo método nominativo. [3]

O “crime da parteira”

Em 1876, Joanna Mehnert, nascida em Kappel, Alemanha, partiu para o Brasil três anos após seu casamento, na companhia do marido e do filho. Eram todos da religião luterana. A imigrante era diplomada como parteira pelo Instituto de Partos de Dresden, localizado na capital da Saxônia. Em 1888 Mehnert conseguiu habilitação profissional na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, lugar em que residiu por três anos. Porém, em 1890, já em Porto Alegre, irá aparecer como ré num processo-crime. Atuando como parteira, Joanna Mehnet (41 anos, casada) residia no centro da cidade, na rua Voluntários da Pátria, no momento da denúncia realizada pelo comerciante alemão Jacob Frederico Kraup (30 anos, casado). Esse se considerava “chefe da vítima”, a também imigrante alemã Mathilde Peltz. [4] Jacob Kraup afirmou ter tomado conhecimento do ocorrido através da esposa, Rosa Kraup (23 anos, casada, natural da Alemanha), que lhe comunicou que sua criada havia tido um aborto devido aos remédios proferidos pela parteira Mehnet, fato esse levado ao conhecimento do subdelegado João Hilgert, que deu abertura à investigação policial.

Com exceção do denunciante, que era o patrão de Mathilde Peltz, todas as outras nove testemunhas convocadas para prestar depoimento eram mulheres. Ao ser interrogada, a imigrante Clara Geidel (30 anos, casada, natural da Alemanha) afirmou ter “ouvido falar que a parteira Joanna Mehnert fornecia drogas abortivas a diversas pessoas”. Negando não saber e nem ter “ouvido dizer”, Maria Luiza Muller (27 anos, casada, natural do Estado) revelou que há três meses tinha abortado um feto –que fora enterrado no quintal da própria casa–, tendo sido ela assistida pela denunciada. A testemunha Barbara Frazen (20 anos, solteira, natural do Estado), que se dedicava aos serviços domésticos, confessou ter morado com a parteira Mehnert e ter tido na residência da mesma “uma criança” que nasceu morta após “nove meses de gestação”. Apesar de também declarar nada saber sobre a denúncia, Emma Nitz (33 anos, casada, natural da Alemanha) afirmou que, em “conversa intima”, Franzen havia revelado ter tido uma criança que falecera horas depois do nascimento, e que todos os remédios foram ingeridos por “própria conta”. Como se pode perceber, as mulheres indagadas inicialmente eram aquelas que haviam vivenciado ou acompanhado alguma experiência de aborto, bem como recebido atendimento da parteira denunciada.

Já a imigrante Helena Mierisch [5] (38 anos, casada), natural da Saxônia, colega de profissão da acusada, também parteira diplomada, disse “não ter certeza se Joanna Mehnert fornece drogas abortivas às suas parturientes”. Helena Mierisch acusa a denunciada de ter provocado o aborto em diversas mulheres. Ao fazer isso, ela buscou não silenciar em relação ao desempenho reprovável da conterrânea e colega de profissão, Joanna Mehnert. Para as mulheres parteiras, diplomadas ou não, os pedidos por “drogas” e procedimentos abortivos era algo que certamente se fazia muito presente no seu cotidiano de trabalho. Algumas, como a própria acusada, provavelmente adquiriram mais “fama” do que outras ao realizarem práticas abortivas, atendendo, assim, o desejo das que queriam se livrar dos sinais do pecado, da culpa e da vergonha. Ou ainda, que buscavam evitar prejuízos à honra individual e familiar através do sigilo das transgressões sexuais e fatos moralmente reprováveis. É correto acreditar que algumas parteiras eram mais procuradas para realização de procedimentos abortivos, sendo esse um dos motivos pelo qual construíam um conjunto de relações que lhes conferiam proteção e solidariedade, possibilitando que continuassem atuando dentro do seu campo de saber.

O campo de atuação das mulheres que se dedicavam à arte de partejar podia ser bastante amplo e heterogêneo, atendendo pacientes de origens sociais variadas, com enfermidades diferentes ou que buscavam uma solução para gravidez indesejada. Dentro do universo da medicina popular, as parteiras se destacavam no atendimento das doenças femininas ligadas ao corpo e aos órgãos reprodutores, bem como os males que afetavam as crianças. Para isso, sob a denominação de curandeira, elas, ao lado de outros praticantes da cura, sejam homens ou mulheres, usavam técnicas diversas, com ervas, chás, substâncias naturais e mágico-religiosas ao assistir as parturientes e curar as enfermidades (Zárate Campos, 2007). [6] Em relação ao trabalho das parteiras diplomadas, que atuaram em diferentes lugares no decorrer do século XIX e início do XX, é preciso destacar que o mesmo era uma mescla de saberes populares e novos conhecimentos científicos, conforme apontam alguns estudos. [7]

Retornando à investigação promovida contra Joanna Mehnert pela autoridade policial, suspeitas sobre a atuação profissional da acusada passaram a ser comentadas e a circular através das redes de contato e vizinhança, fazendo com que inimizades surgissem e rivalidades se intensificassem. Apesar disso, os apoios também se manifestaram neste momento.

Indicada como inimiga da investigada, a testemunha Josefina Hildebrand Corangelo (28 anos, casada, natural do Estado) afirmou que Maria Flex (33 anos, casada) lhe contara que Maria Luísa Müller tinha abortado uma criança depois de consumir remédios fornecidos por Mehnert. E, pelo trabalho, a parteira havia recebido o valor de quarenta mil réis. Porém, as mencionadas mulheres (Müller e Flex), que residiam juntas, afirmaram nada saber sobre a denúncia, apesar de uma delas ter sido atendida pela parteira quando da ocorrência do aborto. Apesar de não declarar, é provável que Hildebrand também atuasse como parteira, ou estivesse aprendendo a arte de partejar, o que justifica o fato de ter assistido o parto mencionado acima.

Apontada como uma das mulheres que também contraiu os serviços da acusada, Sophia Fechtner (35 anos, casada, natural da Alemanha) afirmou que três dias antes do aborto “confidenciou” à Mehnert o que vinha sentido há um mês. Nesse momento, não foi receitado remédio algum, porém, depois do aborto, a parteira lhe encaminhou para o doutor João Birnpeld, ficando em tratamento pelo período de quinze dias. Diferentemente das mulheres assistidas pela acusada, a testemunha Rosa Kraups (23 anos, casada, natural da Alemanha), esposa do alemão que denunciou Joanna Mehnert, declarou que “a criada que esteve alugada em sua casa” adquiriu da ré “pílulas para abortar”, tendo pagado pelo tratamento quarenta mil réis. O casal Kraups responsabilizou a parteira pelo aborto da empregada, que, após consumir os remédios, foi para a casa da acusada para ter o filho. O fornecimento de “drogas abortivas” e o acompanhamento das mulheres grávidas, bem como a assistência a elas no momento no parto, parece ter sido a maneira como a denunciada procedia. Mas, o que motivou a acusação pública por parte dos conterrâneos, levantando suspeitas a respeito das atividades profissionais de uma parteira imigrante que era diplomada? Que tipo de rivalidade existia entre as mulheres alemãs do grupo ao qual pertencia Joanna Mehnert?

Na fase pública do processo, depoentes e acusada forneceram explicações sobre os questionamentos que lhe foram realizados. Ao ser perguntada, a parteira Helena Mierisch confirmou ter “cortado relações com a denunciada por mau procedimento desta para com ela”, porém “não lhe vota má vontade”. Ambas as parteiras eram as únicas mulheres profissionais diplomadas a exercer o trabalho de partejar em Porto Alegre da última década do século XIX. Por conta disso, não é estranho que entre elas surgissem intrigas e disputas no que se refere à busca por espaço de atuação e clientes. Imigrantes alemães, Mierisch e Mehnert, chegaram ao Brasil certamente com pouca experiência no campo profissional, uma vez que eram jovens e a diferença de idade entre elas era de poucos anos.

Em relação às declarações das testemunhas, Clara Geidel primeiro negou saber algo que desabonasse a denunciada, porém, posteriormente, retificou seu depoimento falando sobre a realização de aborto numa senhora casada.

[...]A Senhora de Ernesto Paulo [...], conhecida como Faéca, disse que querendo abortar uma criança, visto sofrer muito por ocasião de seus partos, entendeu-se [...] com a acusada Joanna Mehnert e por meio de um ferro que esta forneceu conseguiu o que desejava, isto é, a expulsão do feto; tendo sido pago a acusada pelo serviço prestado a quantia de quarenta mil réis. Disse mais que a senhora referida pediu-lhe que não revelasse este facto a pessoa alguma, pois ela se achava perfeitamente boa, tendo sido tratada por médico. [...] disse ter sido o Doutor Barcelhos Filho. [...] Respondeu que esta senhora [Faéca] lhe disse que procurou a acusada Joanna com o fim mesmo de conseguir com o auxílio desta um aborto.

O ocorrido havia sido relatado à depoente pela “vizinha e amiga” que recorreu aos serviços de Joanna Mehnert, tendo essa “exigido o pagamento do serviço prestado”. Também afirmou ter “cortado relações” com a acusada e ter exercido a função de parteira quando da falta de Helena Mierisch. Por solicitação dessa, foi pessoalmente assistir uma parturiente que residia fora da cidade, porém, “a criança nascera morta, já em estado de putrefação”.

Mesmo não aparecendo com tanta evidência, parece certo acreditar que as mulheres que depuseram no processo-crime contra Joanna Mehnert se dividiam em dois grupos: as que já haviam tido contato com os serviços da mesma, e aquelas que, por motivos variados, buscavam expor as práticas realizadas pela ré imaginando causar-lhe algum tipo de prejuízo e constrangimento. As testemunhas também indicam que algumas delas atuavam como parteiras auxiliares, estavam procurando conquistar reconhecimento e experiência, como parece ser o caso de Clara Geidel. O apoio entre aquelas que portavam diplomas e as que não o possuíam, entre as experientes e as iniciantes, bem como a circulação de saberes e proteções é um aspecto que é possível de ser percebido entre as parteiras imigrantes que atuaram no contexto urbano de Porto Alegre do século XIX. As afinidades étnicas e de origem social marcavam as relações entre as parteiras, parturientes e pessoas próximas, implicando obrigações de uns para com os outros quando do surgimento de imprevistos e problemas que precisavam ser controlados.

A parteira “auxiliar” Geidel também alegou ter sido denunciada à Inspetoria de Higiene Pública e à autoridade policial por Joanna Mehnert para “exibir seus títulos de habilitações”. A relação de amizade entre ambas, segundo ela, se rompeu após ocorrência da denúncia à mencionada inspetoria. É possível perceber, através das queixas públicas contra mulheres que atuavam como parteiras, que existia um campo de disputa aberto por prestígio e reconhecimento no que compete à arte de partejar. Logo, a ocorrência de aborto e morte do recém-nascido eram situações que poderiam ser usadas para causar prejuízos ao trabalho e fama das profissionais.

O depoimento da imigrante Clara Geidel é revelador das situações que fragilizavam ou rompiam as relações entre as mulheres que exerciam a atividade de parteiras, bem como a existência de tensões e hierarquias entre elas. Se existia circulação de auxílios e proteções entre algumas parteiras, tudo podia se romper, transformar-se num conflito público e desdobrar-se em investigação por parte das autoridades policiais, caso as relações entre elas fossem afetadas por alguma rivalidade. O próprio processo-crime ora analisado é um exemplo disso, uma vez que, através dos relatos das testemunhas, percebe-se a existência de solidariedades e apoios em momento anterior, porém, as inimizades e acusações vêm à tona quando o caso passa a ser investigado.

Nesse sentido, as denúncias conferidas às autoridades policiais por parte de mulheres que exerciam a atividade de “partejar” livremente, mas sem possuir registro da sua condição profissional, ou ainda de outras que possuíam diploma e também receitarem remédios abortivos, aparecem como um indício de rivalidades e concorrência local. A denúncia pública é um recurso para causar prejuízos morais e materiais às outras parteiras, expondo-as a julgamentos públicos. No entanto, os embates não se restringiam apenas às parteiras e suas clientes, mas envolviam famílias e grupos formandos por homens e mulheres que ocupavam posições sociais diversas.

A acusação contra Joana Mehnert ocorreu meses depois de ela ter receitado remédios abortivos para a “criada” que residia na casa do alemão Jacob Krauser. Originária de Santa Cruz, ex-colônia de imigrantes alemães, [8] em julho de 1889 Mathilde Peltz se transferiu para Porto Alegre, chegando à residência de Krauser já “adoentada, queixando-se de dores de cabeça e de faltas de evacuação”. Aconselhada por “colega de profissão”, Peltz recorreu à Mehnert, que lhe receitou umas “pílulas do Doutor Brander Schweiszer”. Passados dois meses ela teve um aborto, não podendo pagar o valor integral do tratamento, entregando à parteira a quantia de vinte mil réis “devido à sua pobreza”, conforme relatou Maria Luiza Muller. Quando da denúncia a parteira, a “vítima” Mathilda Peltz não residia mais em Porto Alegre. Foi no mês seguinte à saída da criada da casa de Krause que ele apresentou explicações do ocorrido para o subdelegado. Mas, o que teria motivado o interesse tardio em apresentar denúncia de crime de aborto? Por que motivo Krause, patrão de Peltz, não apresentou queixa assim que soube do ocorrido? O que fica claro é que a abertura do inquérito policial serviu como uma oportunidade para algumas testemunhas exporem outros casos de abortos realizados por Mehnert. Não foi uma queixa específica, mas a denúncia frente a uma prática recorrente da parteira diplomada que fez com que o subdelegado apresentasse denúncia contra à mesma.

A existência de rivalidades e rompimento das relações de amizade entre as três imigrantes alemães, Helena, Joanna e Clara, as duas primeiras parteiras diplomadas e a terceira “auxiliar”, é reforçada na defesa apresentada pela ré. Essa atribuiu a abertura de “diligências policiais” devido a um “sentimento de vingança” por conta de fatos ocorridos anteriormente. O marido de Mehnert havia dado queixa de “crime de calúnia” contra o subdelegado Hilgert, no dia 16 de junho de 1890, por ter este “injuriado” a parteira com a afirmação de que fornecia “drogas abortivas”. As práticas abortivas eram realizadas em segredo pelas parteiras, destacando-se algumas profissionais em determinados procedimentos e técnicas, como parece ter sido o caso da parteira denunciada no processo-crime analisado. No entanto, as acusações públicas de realização de abortos eram tomadas como algo negativo, sendo uma ofensa à honra individual e familiar (Vendrame, 2018).

No “ato de defesa” da acusada é ressaltada a inexistência de provas que indicassem a criminalidade. Em suas alegações é sublinhado também a existência de sentimentos de ódio e vingança por parte da autoridade policial em relação a acusada, conforme pode-se perceber em fragmento que segue:

[...] Do exame da prova testemunhal não se colige a criminalidade da acusada. Ao contrário, quem examiná-lo atentamente reconhece a vacilação dos depoimentos, o espírito de ódio, intuitos de vingança, uma linda maquinação da maledicência, com que se quis lançar a consternação no seio de uma família, amargurar um esposo, desesperar tristes crianças, cuja mãe se quer oprimir por portar ódios insaciáveis, pobre mulher sem outras afeições que não as de seu lar, sem outro amparo que não o indefectível espírito de justiças do Ilustre Juiz Julgador, guarda serena da liberdade individual. Para desfazer o tecido da insidia constante dos presentes autos, basta referir que os médicos referidos em vários depoimentos, como o Dr. João Birnpeld e Barcellos Filho declararam [...] acharem-se dispostos a vir a juízo lançar o seu testemunho contra a veracidade do ato criminoso que fala a denúncia. Somente a pobreza da acusada a impediu de justificar-se, proclamando a sua inocência com semelhantes depoimentos. [9]

Joanna Mehnert é descrita como uma “pobre mãe” dedicada ao lar e aos filhos, que foi alvo de incriminações e intriga de quem quer causar aborrecimentos e desesperos à família. A atuação da mesma como parteira não é mencionada, mas sim o fato do “espírito de ódio” e os “intuitos de vingança” serem causadores de consternação no seio da família, que atingiu marido e filhos. Nesse sentido, é destacado que a denúncia contra Mehnert afetou especialmente a sua condição de esposa e mãe, perturbando a tranquilidade no ambiente familiar. As declarações apresentadas na defesa também indicam para a existência de disputas entre as parteiras e vinganças, sendo a queixa pública em si uma forma de represália e castigo. Ganha atenção ainda na argumentação acima é as condições e papéis que as mulheres deveriam assumir. No entanto, os possíveis prejuízos que as acusações lançadas contra a parteira poderiam causar em relação à atuação no campo profissional não são mencionados, destacando-se a defesa das condições que prejudicavam Joanna Mehnert na direção de suas responsabilidades familiares e maternais no espaço doméstico. A autonomia profissional das mulheres, bem como a circulação pelas esferas públicas não eram aspectos qualificadores do feminino, apesar de muitas alcançarem certa liberdade e prestígio ao desempenharem determinados trabalhos.

É interessante também ressaltar o fato de dois médicos, que aparecem nos depoimentos, serem apontados pela acusada como vozes que poderiam contestar as afirmações presentes contra ela nos autos criminais. Os mencionados profissionais certamente mantinham uma proximidade com Joanna Mehnert, sendo conhecedores das atividades realizadas pela parteira, pois ela encaminhava parturientes que necessitavam de assistência médica. As redes da mesma se estendiam para além do grupo de conterrâneos/as que residia em Porto Alegre, pois, por meio do seu desempenho no campo profissional, ela reforçava os vínculos com alguns médicos. Posteriormente à denúncia apresentada contra Joanna Mehnert, no início de julho de 1890, o subdelegado João Hilgert, passaria a ser investigado por “crime de calúnia”. [10] A acusação aparece aqui como uma contra-ofensa por ter o mesmo denunciado o procedimento da parteira. Nesse sentido, a ocorrência de uma queixa pública seguida de outra, é indicação do quanto a abertura de uma investigação criminal podia servir como um recurso de exposição e restauração do equilíbrio de poder entre indivíduos e grupos que viviam um conflito. A denúncia contra o subdelegado não impediu o avanço da investigação em relação à parteira alemã, podendo ser ela percebida como uma maneira de responder publicamente às ofensas e prejuízos que a investigação causava à honra da parteira. O uso do recurso da justiça como caminho para expor, constranger, prejudicar e atingir a reputação de alguém é um aspecto que fica visível nas denúncias analisadas no presente artigo.

Em 29 de dezembro de 1890, foi ela acusada por incorrer nos seguintes quesitos: 1º-Que “em meados do mês de setembro do ano passado [1889] a ré Joanna Mehernt forneceu, com conhecimento de causa, a Matilde Petlz pílulas abortivas”; 2º- “Que foi a ré impelida a esse crime por um motivo reprovado”; 3º- “Que a ré cometeu por paga”. Com a comprovação dos mencionados quesitos, a promotoria pública solicitada a condenação da parteira Mehernt nas penas do artigo 200 do Código Criminal. [11] Após ser lançada no rol dos culpados sob a acusação de ter utilizado de “drogas” para produzir aborto, a ré foi presa na Rua Voluntários da Pátria, local onde residia, e recolhida à cadeia cível de Porto Alegre.

No dia seguinte à prisão, em 31 de dezembro de 1890, o júri, composto por doze representantes dos diversos distritos da cidade, votaram todos não para o 1º quesito, que considerava ter a ré Joanna Mehernt fornecido pílulas abortivas para a Matilde Peltz. Frente à negativa dos jurados em relação ao primeiro ponto, todos os demais quesitos da acusação ficaram prejudicados. Logo, a ré foi absolvida do crime, sendo, portanto, colocada em liberdade. Levando em conta essa decisão do júri a favor da acusada, surgem questionamentos sobre a extensão e força da rede protetiva que dispunha a parteira no espaço urbano de Porto Alegre. Por conta das limitações em relação às fontes documentais, não possível realizar uma busca nominativa que permitisse reconstruir as ligações interpessoais de Joanna Mehnert, seu marido, as mulheres e famílias por ela assistidas e apoiadores, que certamente eram bastante amplas. No entanto, é necessário destacar que as redes protetivas mostravam a sua força ou eram acionadas quando do surgimento de determinadas situações, como aquela de evitar uma condenação no tribunal por parte da justiça do Estado.

Antes de ser a parteira Joanna absolvida da acusação crime, em outubro de 1890, seu marido, Carlos Augusto Mehnert aparece novamente acusando o conterrâneo, depois de passados apenas dois dias de o mesmo ter reassumido o cargo na subdelegacia do 2º distrito da capital. Agora, no entanto, aquele, como representante da esposa, apresenta denúncia contra João Mierisch, Germano Wagner, João Hilgert e Helena Mierisch. Sobre os mencionados acusados recaía a queixa de “perseguições de toda espécie” à Joanna Mehnert, e, não satisfeitos, “planejam os querelados desafiar a mulher do queixoso”.

Na noite do dia 23 de outubro de 1890, Joanna Mehnert se tornou alvo de agressão física orquestrada na própria casa, localizada na Rua Voluntários da Pátria. Depois de ter atendido ao toque da campainha, a parteira foi atacada por “diversas bengaladas” proferidas de surpresa por João Mierisch, irmão de Helena Wagner. Na sequência, o agressor “deitou a correr, mas foi perseguido pelo clamor público e detido pelos homens do povo”. Enquanto a perseguição ocorria, chegaram ao local Germano Wagner e João Hilgert, que aguardavam “ambos em emboscada” a conclusão do ataque. Apesar do ato em flagrante, o agressor não foi preso.

De acordo com o queixoso, “a agressão que foi vítima Joanna Mehnert” é reveladora de “um ajuste entre os querelados, pois antes de se dar o fato, Helena, Germano e Hilgert o anunciaram”. Esses três são apontados como mandantes das “bengaladas” proferidas contra a parteira, e Carlos Augusto Mehnert solicitou que todos eles fossem punidos por agressão física. O dano foi avaliado no valor de um conto de réis, devendo essa quantia ser concedida a parte agredida. [12] Nos conflitos apresentados até então, fica evidente que as tensões vividas entre as parteiras imigrantes envolviam familiares e conterrâneos, sendo os ajustes e reparações buscados através de punição física e denúncia pública, como através de compensação financeira por danos físicos e morais causados à parte agredida, como sugere a situação acima apresentada.

Durante o andamento de um processo-crime, poderiam ocorrer embates cotidianos diversos, como ameaças de vinganças através da violência física, bem como o estabelecimento de acordos e compensações privados entre às partes em conflitos. [13] Todos elas aparecem enquanto recursos que visavam restabelecer paz e equilíbrio ameaçados ou rompidos. Assim, no desenrolar do processo-crime contra a parteira Joanna Mehnert, agressões, denúncias públicas e tentativas de compensação foram acionadas por parte dos integrantes das famílias que se encontravam envolvidas no embate. O sucesso ou não dessas iniciativas interferiam no andamento e impactavam no resultado dos autos criminais, ou seja, na absolvição ou condenação dos acusados.

Disputas entre parteiras diplomadas

Capital do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, local onde se desenrolou o processo-crime contra a parteira Joanna Mehnert, concentrava na segunda metade do oitocentos uma presença significativa de imigrantes europeus. Os alemães começaram a chegar a partir de 1824, especialmente quando da fundação da Colônia São Leopoldo, no vale do rio dos Sinos. Na década de 70, os teutos residentes constituíam o terceiro maior grupo entre os habitantes, ficando atrás apenas dos africanos e portugueses. De acordo com informações do censo de 1872, a população de origem germânica que residia em Porto Alegre totalizava o número de 936, representando a segunda posição em termos de número de imigrantes europeus. [14]

No decorrer da primeira e segunda metade do século XIX, os imigrantes europeus se fixaram em diferentes regiões de colonização fundadas na província mais meridional do Brasil, destacando-se, inicialmente, as famílias de origem germânica e, posteriormente, as italianas. Muitos integrantes de ambos os grupos étnicos optaram por se fixar na capital, onde passaram a se dedicar a atividades comerciais e profissionais diversas. Esse foi o caso das ambas as parteiras alemães apresentadas neste artigo. Joanna Mehnert, por exemplo, após permanecer por algum período na cidade do Rio de Janeiro, se transferiu para a capital do Rio Grande do Sul num momento de grande crescimento populacional, onde já se encontrava atuando a colega de profissão Helena Mierisch.

Em 1888, Porto Alegre possuía 42.115 habitantes, chegando em 1890 ao número de 73.672 habitante, e, posteriormente, em 1910, a totalidade de 130.227 (Mauch, 2004, p. 70). Antes mesmo de 1850, é bastante significativa a presença alemã na capital, sendo maior o número dos que vinham diretamente da Europa do que os que reimigravam das colônias. Magda Gans (2004, p. 26), em seu estudo sobre os teutos no cenário urbano porto-alegrense da segunda metade do século XIX, identificou que os teutos se encontravam inseridos em diversas atividades ligadas ao comércio, sendo significativa a presença de homens e mulheres alemães em profissões e estabelecimentos comerciais nas principais ruas da capital. Conhecida como “rua de alemães”, o Caminho Novo (atual Rua Voluntários da Pátria), concentrava o maior número dos negócios dos teutos, constituindo um total de quarenta estabelecimentos, distribuídos entre importadores de ferros e ferragens e atacadistas de secos e molhados. Foi na mencionada rua que se concentraram os comerciantes alemães de nível socioeconômico mais alto (Gans, 2004, p. 39). Nela também residia a parteira Joanna Mehnert quando apareceu como ré no processo-crime anteriormente analisado. Os teutos também se faziam presentes em outras ruas do centro da capital, bem como ao redor do Mercado Público, onde era intensa a comercialização de produtos que vinham das regiões coloniais.

Além da rua Voluntários da Pátria, a rua Flores da Cunha, local em que Joanna Mehnert passou a residir e a atender suas clientes, também existia um alto número de alemães que desenvolviam algum tipo de atividade comercial. Se encontravam ali estabelecidas, especialmente entre as décadas de 60 e 80 do oitocentos, alemãs que eram proprietárias de escolas para moças e outros profissionais diversos, como padeiros, ferreiros, hoteleiros, cervejeiros, serralheiros, barbeiros, relojeiros, professor, etc. (Gans, 2004, pp. 65-66). Sozinhas ou acompanhadas do marido, as imigrantes aparecem gerindo negócios e trabalhando como comerciantes, professoras e parteiras. [15]

Sobre a atuação das parteiras diplomadas na capital Porto Alegre, por meio de uma busca nominativa, foi possível chegar a outros documentos que traziam informações sobre as situações vividas por Joanna Mehnert e Helena Mierisch. Uma rápida pesquisa nos jornais da Hemeroteca da Biblioteca Nacional indicou dados importantes para auxiliar a compreender as experiências sociais de ambas as imigrantes na capital Porto Alegre. No entanto, neste artigo, optamos por centrar a análise na trajetória de Joanna Mehnert. Depois de ser libertada da acusação, sua colega de profissão Helena Mierisch encaminhou um texto para o Jornal A Federação publicado nos primeiros dias de janeiro de 1891, sob o título a “Aventureira”.

Dando indicações de sua habilidade como escritora, a mencionada parteira buscou se defender das acusações públicas. Referindo-se ao julgamento de Joanna Mehnert e a defesa do advogado Dr. Germano Hasslocher, [16] afirma que este, numa explosão de ira, a definiu como uma “aventureira que para fazer fama foi casar-se na cadeia”. Contestando as acusações proferidas a ela, Mierisch reforça aspectos da sua carreira profissional, como o fato de nunca ter perdido uma só parturiente. Em relação a Hasslocher, destacou ser o mesmo o “porta-voz” de certa “inveja profissional que desde certo tempo me move perseguição implacável com o fim de fazer-me retirar por meio de desgostos, ora com multa, ora com atentado contra meu irmão, ora com querelas e chicanas”. Com o objetivo de desmentir “certas inverdades” passadas publicamente contra ela, revela também ter sido “obrigada pela autoridade a depor contra Joanna Mehnert”. Porém, neste momento, havia falado “tão somente o que já não se podia silenciar”. Segue afirmando que:

[...] Não desejava a desgraça d’essa mulher que deve a mim, em grande parte, a sua habilitação de parteira, como poderei provar com as pessoas a quem neste sentido recorri. No começo da sua carreira cedi-lhe parte das minhas clientes; cortei depois relações com ella devido ao seu modo grosseiro e gênio rancoroso, pelo qual vive em eterna lucta com suas colegas não diplomadas que a cada momento denuncia, como poderá attestar a honra da inspectoria de hygiene.

O desacordo em relação ao comportamento “grosseiro” e “rancoroso”, bem como ao fato de denunciar constantemente às colegas parteiras não diplomadas, são apontados como motivos do afastamento por parte de Helena Mierisch de Joanna Mehnert. Se, num primeiro momento, o apoio no campo profissional entre as imigrantes se fez presente, posteriormente, o distanciamento e a ruptura se tornou algo inevitável. Nesse sentido, além da existência de disputas entre as duas parteiras, é possível perceber discordâncias em relação à maneira como cada uma delas atuava, algo que aparece no processo apresentado anteriormente. Mesmo existindo afinidades entre elas, ambas as imigrantes irão se utilizar de estratégias diferentes para conquistar espaço, prestígio e clientes na sociedade porto-alegrense. No entanto, isso não evitou que entrassem em disputas e lançassem acusações mútuas.

Enquanto Helena Mierisch aparece defendendo sua reputação através de artigos publicados no Jornal A Federação, o marido de Joanna Mehnert apresentava denúncia de agressão na delegacia contra àquela e seus familiares –irmão e marido, conforme viu-se anteriormente–. Os embates se deram em diferentes momentos e através de ao menos dois campos, não ficando restritos apenas a elas, mas envolvendo seus familiares e conterrâneos. Essa questão pode ser percebida na maneira como a parteira/escritora se refere ao advogado Germano Hasslocher.

Quando do início do processo-crime que apurava o procedimento da parteira Mehnert de distribuir “remédios abortivos”, Helena Mierisch afirma ter Hasslocher lhe solicitado que não depusesse contra sua cliente. Segundo Helena, Joanna Mehnert desejava “tão somente ‘escangalhar’ e meter na cadeia o subdelegado João”, que era seu rival. Segue afirmando que o mencionado advogado “bem sabia do que era capaz” a acusada, que a conhecia de longa data, tendo sido defensor da mesma em num processo instaurado no Rio de Janeiro por “crime de assassinato”. E, para evitar a prisão, Joanna Mehnert fugira para o Rio Grande do Sul. Ressalta ainda que a divulgação do que havia sido publicado nos jornais cariocas ou a “certidão dos respectivos autos” teria causado um mal imenso à referida parteira. No entanto, nada disso foi feito “porque não desejamos a desgraça de ninguém, nem dos que se prestam como instrumentos contra nós”. Por fim, Helena Mierisch reforça sua manifestação de indignação contra as acusações lançadas a ela.

[...] Jamais pensei que n’um tribunal de uma capital fosse possível ser injuriada uma testemunha por ter cumprido seu dever, que fosse permitido incectivar uma mulher que, embora pobre, nunca deu lugar de se poder duvidar de sua honra e decência, –que a claque encarregada de abafar com bravo, muito bem o brado de indignação dos homens decentes, insultasse e ameaçasse o marido que protestava contra os ultrajes feitos à sua mulher ausente– Essa inqualificável covardia sirva de eterna vergonha ao seu auctor. [17]

Helena Mierisch crítica Germano Hasslocher pelos insultos proferidos em tribunal, duvidando da “sua honra e decência” publicamente. Tudo isso por ter ela testemunhado no processo-crime que investigava o comportamento da colega Mehnert de fornecer “medicamentos abortivos”. Segundo a parteira/escritora, injúrias ofensivas à sua “honra e decência” como mulher foram proferidas publicamente, apesar de ter cumprido seu papel como testemunha, bem como nunca ter dado motivos para que duvidassem da própria reputação.

Durante o julgamento de Joanna Mehnert, houve trocas de ofensas, tendo o marido de Helena Mierisch defendido a mesma das difamações lançadas. Fica claro o quanto as denúncias públicas, trocas de ameaças, ataques e a apresentação de explicações através de artigo no jornal aparecem como recursos de defesa e exposição dos rivais. Mais do que isso, eram escolhas que visavam defender a honra e controlar os rumores e fofocas prejudiciais à reputação individual e familiar, buscando, ao mesmo tempo, restabelecer os equilíbrios de poderes entre as pessoas e grupos em disputa. O artigo publicado no Jornal A Federação foi uma forma de rebater publicamente as ofensas lançadas contra Mierisch, bem como restabelecer um certo equilíbrio no jogo poder, ocorrido através dos atritos, trocas de ameaças e denúncias, intensos durante todo o ano de 1890, entre ela –marido, irmão e aliados– e a rival Mehnert e seu grupo de apoio.

Não é nosso objetivo analisar outros conflitos vividos por Helena Mierisch naquela última década do século XIX, porém, novos processos-crime indicam para a continuidade das rivalidades entre a parteira/escritora e o advogado Germano Hasslocher. Aquela foi acusada de lançar injúrias ao mencionado advogado ao se manifestar na sessão “Ao público” do Jornal Correio do Povo, de abril de 1899. O motivo do conflito e acusações estava ligado à existência de dívidas entre a acusada e o seu denunciante, o qual foi injuriado como “caloteiro”. [18] Considera-se importante destacar que Helena Mierisch utilizou-se do domínio que tinha da escrita e da possibilidade em se manifestar nos jornais como um recurso de defesa da própria reputação, bem como uma escolha para pressionar o devedor para que cumprisse com seus compromissos financeiros para com ela. Porém, um aprofundamento maior sobre a trajetória da mencionada imigrante alemã deverá ser feita em outra pesquisa.

Estratégias de atuação

Posteriormente, às explicações apresentadas acima pela parteira/escritora, nas páginas do Jornal A Federação foram também divulgadas as suspeitas sobre a ocorrência de outros casos de aborto envolvendo Joanna Menhert. [19] Numa publicação de 15 de junho de 1909, Rosa Klaus procura inocentar Mehnert das acusações sobre um suposto envolvimento dessa no destino de uma criança recém-nascida. Com a justificativa que não podia criá-lo, Rosa Klaus afirmou no jornal que resolvera, espontaneamente, mandar colocar o mesmo na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia. Deu para ao “preto Edmundo de tal (vulgo Cinco Paus)” o valor de 10$000 para que levasse a criança até o local, “sem que disso tivesse conhecimento a parteira Joanna Mehnert”. Por meio dessa declaração pública, Rosa Klaus buscou justificar o que havia ocorrido após o nascimento do filho, isentando a parteira de qualquer responsabilidade. Em relação a esse caso, não foi possível reunir provas que indicassem a existência de “crime de abandono de criança recém-nascida”. [20] Porém, aqui é possível perceber a proteção e rede de apoio entre as mulheres que podiam se manifestar frente a diferentes situações, sendo ela constituída também através de relações diversas, no campo do trabalho, no compartilhamento de segredos, amizade e troca de favores na vizinhança (Witter, 2001).

No entanto, através de outras notícias publicadas, sabe-se que entre 1908 e 1909, Mehnert é denunciada às autoridades policiais por suspeita de participação em ulteriores crimes, como a tentativa de aborto em uma paciente que falecera após o parto. [21] Em relação às acusações divulgadas em um jornal, a parteira se defende afirmando que “revivendo um ato passado há mais de seis meses, a Gazeta, mais uma vez, manifesta a sua má vontade para comigo”. Segue se defendendo:

[...] Neste, como nos outros crimes, estou isenta de culpa, tanto que nem siquer fui então chamada à presença dos representantes da justiça. Na sua inglória tarefa, explora aquele Jornal o facto de receber eu pensionista em minha casa, o que absolutamente não constitui infração de leis. Perde, portanto, o seu tempo. Felizmente, sou bem conhecida pela sociedade descendente desta capital. [22]

Apesar das denúncias e abertura de investigações policiais, em nenhuma delas a parteira Joanna Mehnert foi considerada culpada. Na defesa do processo-crime analisado anteriormente, ela deu indicações de dois médicos que atuavam na capital Porto Alegre que poderiam desmentir as acusações que eram lançadas contra ela. A existência de uma rede de proteção, certamente, foi um dos fatores que fez com que a mencionada imigrante conseguisse fazer com que as acusações lançadas não prejudicassem tanto a sua atuação como parteira. A declaração de que “felizmente, sou bem conhecida pela sociedade descente desta capital”, aponta para a questão da segurança sentida pela mesma, fruto das relações fortes que havia construído com pessoas de prestígio social que viviam na realidade urbana da cidade. Os contatos que mantinha com alguns médicos, com os quais compartilhava o atendimento a parturientes, possivelmente foi um dos aspectos que garantiu a Joanna Mehnert a sequência de seu trabalho como parteira.

Na segunda metade do século XIX, houve um aumento do número de parteiras e diversificação do perfil profissional do grupo, em parte provocado pela maior presença de imigrantes europeus em algumas capitais brasileiras. [23] Muitas estrangeiras já chegavam tendo conhecimento sobre a arte de partejar, tendo obtido diploma em instituições universitárias do país de origem, como foi o caso de muitas italianas que se fixaram na província de São Paulo. Com experiência na realização de partos, assim que chegavam no Brasil, muitas delas buscaram obter reconhecimento do diploma junto a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Outras, depois de algum tempo estabelecidas, passaram a frequentar os recém-criados cursos de obstetrícia, sendo as estrangeiras, especialmente as italianas, o maior número de alunas das primeiras turmas em determinadas realidades urbanas (Mott, 2001, p. 51). Tais informações ajudam a levantar questionamentos sobre os espaços de atuação e as estratégias de inserção social utilizadas pelas mulheres imigrantes para garantir sucesso profissional, aceitação e clientela nos lugares de chegada. Nesse sentido, é importante que a busca pelo reconhecimento de diplomada por parte das estrangeiras tenha se apresentado como um caminho para alcançar segurança e legitimidade para atuarem como parteiras, bem como reconhecimento e diferenciação frente às colegas, sejam elas brasileiras ou não. Acredita-se que esse foi o caso das alemãs Joanna Mehnert e Helena Mierisch que chegaram ao Brasil com diploma de parteira instituído na Saxônia. Ambas irão, também, obter autorização para exercer a profissão junto a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, após, certamente, terem realizado algum curso de preparação, como outras mulheres, nacionais ou estrangeiras, que passaram a se dedicar ao ofício de partejar.

No entanto, diplomadas ou não, as parteiras estrangeiras teriam que investir em estratégias para conquistar clientela e vencer a concorrência. Elas precisavam dispor de uma rede de auxílio, que poderia ser acionada quando do surgimento de denúncias e investigações em relação ao seu trabalho. Tratar de diferentes tipos de enfermidades femininas e realizar práticas abortivas eram serviços que realizavam em suas próprias residências e pensões, onde recebiam as mulheres que necessitavam de tais assistências. Por prestarem socorros diversos, as casas onde eram assistidas passaram a ser vistas como locais “perniciosos, onde prostitutas davam à luz e as parteiras podiam fazer abortos”, sendo esses espaços denunciados na segunda metade do século XIX (Mott, 2001, p. 48).

Além disso, as estrangeiras abriram “casas de parto” através das relações que mantinham com os médicos, colocando-se, porém, em relação a esses em uma “posição subalterna” (Mott, 2005; Barbosa y Pimenta, 2016, p. 509). No entanto, a existência dessa cooperação não anulava o surgimento de competição e conflitos no campo profissional, provocando divisões entre médicos e parteiras, bem como a formações de grupos de apoio entre eles. [24] Através da divulgação de acusações, denúncias, que podiam ou não se transformar em investigações policiais, os jornais se tornaram um dos canais através dos quais eram condenados e estigmatizados os saberes tradicionais das mulheres em relação ao ofício de partejar. Tanto no Brasil, como em outros países, no decorrer da segunda metade do século XIX e início do XX, irá ocorrer um processo de medicalização e institucionalização da obstetrícia de procedimentos por parte dos médicos, empenhados na difusão de saberes e técnicas científicas e no combate a práticas da medicina popular. [25] A construção de uma imagem estereotipada da parteira ignorante e imoral foi um aspecto fundamental para favorecer a aceitação de determinados profissionais, bem como garantir o reconhecimento da ciência médica e da necessidade da administração sanitária promovida por homens. Os médicos se colocaram à frente de um movimento de reformas, domínio e modernização, no qual receberam o apoiado do Estado e das universidades para combater e desprezar saberes e procedimentos populares considerados desprezíveis. As denúncias divulgadas na imprensa e levadas aos tribunais foram usadas como ferramentas de controle e defesa por parte dos médicos e políticos para garantir a legitimidade da medicina científica e o monopólio da assistência sanitária em oposição aos diferentes práticos, curandeiros (as) e parteiras, condenados por suas condutas e práticas (Zárate Campos, 2007, pp. 677, 875-876).

A suspeita de participação feminina em tratamentos abortivos, infanticídios e até no abandono dos recém-nascidos, foram alguns dos principais motivos de denúncias e perseguições, geralmente por colegas de trabalho e médicos como forma de causar algum prejuízo moral na disputa por reconhecimento público e clientela. Na imprensa se expunham as desconfianças sobre a sexualidade e reprodução feminina, sendo utilizado como recurso de controle sobre ações de autonomia. Segredos partilhados entre parteira e clientes podiam ser divulgados na imprensa, bem como os comportamentos de ambas. A misoginia e a hostilidade sobre o feminino são expressas através de piadas e historiadas narradas nas páginas de periódicos republicanos, conforme apontam estudos que buscam analisar o trabalho das parteiras e as relações entre as mulheres na Porto Alegre da última década do século XIX (Witter y Moreira, 2020).

Ambas as parteiras aqui analisadas aparecem de diferentes maneiras se manifestando em jornais de Porto Alegre. Em edição do Jornal A Federação de 1891, Helena Mierisch escreve sobre a “Liberdade Profissional”, manifestando o seu temor em relação à nova lei, pois essa poderia instaurar um estado de “anarquia e perigo à vida” devido à falta de mulheres que possuíam conhecimentos sobre a arte de partejar na capital do Rio Grande do Sul. [26] É preciso também levar em conta que a mencionada parteira fala de um lugar social e busca reforçar, através do que escreve, uma hierarquia e diferenciação entre as mulheres que têm conhecimento sobre a arte de partejar, diplomadas e as não. No entanto, através do protesto, Helena Mierisch não estava apenas defendendo a sua posição, mas também à da colega Joanna Mehnert, apesar de existir divergências entre ambas e críticas em relação à forma de atuação profissional, como foi possível observar anteriormente. Com as declarações publicadas nos jornais, a diplomada Mierisch manifestava sua opinião e defendia publicamente uma posição.

Na imprensa, também eram publicados elogios aos serviços da “incansável e hábil parteira gynecologista exma. dra. Helena Mierisch Wagner.” [27] Por tratar as doenças femininas e exercer o ofício de parteira, era a referida imigrante um “anjo salvador” que curava as enfermidades que ameaçavam “vida preciosa das esposas e mães de famílias”. [28] Joanna Mehnert também aparece recebendo agradecimentos na imprensa pelos serviços prestados, conforme se pode conferir em jornais de Porto Alegre de fevereiro de 1900. [29] Através das informações sobre suas atividades, é possível perceber que o trabalho das parteiras diplomadas ia muito além daquele ligado à arte de partejar. Problemas acerca da saúde feminina, tratamentos para a vida sexual e reprodutiva. Mais do que isso, o cuidado aos recém-nascidos, sua circulação ou encaminhamento para instituição de assistência, bem como aluguel de amas de leite e o alojamento de mulheres grávidas, jovens solteiras ou casadas, todas essas eram funções que as parteiras poderiam desempenhar, conforme apontam estudos (Mott, 2005, p. 126; Zárate Campos, 2007).

Diferentemente da colega Helena Mierisch, Joanna Mehnert aparece em jornais associada a casos de aborto e nascimento seguido de abandono da criança. Neles, há indicação de que atendia suas clientes no local onde residia, na rua Dr. Flores, pois ali possuía uma “clínica” e as pacientes alugavam quartos para permanecer por algum período. Catharina Nicolay, empregada no Hotel Trein, se apresentou na residência da parteira e solicitou que fosse recolhida em sua casa, alegando estar doente. Isso tudo teria ocorrido “depois de a mesma ter dado à luz a uma criança morta ou cometido o crime de infanticídio no local onde morava e residia”. [30] Essa prática de acolher as pacientes é algo que aparece evidenciado no processo-crime contra Mehnert, uma vez que a mesma também teria hospedada a “criada” suspeita de ter tomado “medicamentos abortivos”. [31] As mulheres eram atendidas em suas próprias residências ou na casa da parteira, onde possuía quartos para alugar. Constituída por mulheres que desempenham serviços domésticos na condição de criadas, parte da clientela de Mehnert residia na casa dos patrões, lugares esses que não garantiam sigilo sobre sua condição ou procedimentos realizados (Witter y Moreira, 2020). A referida parteira também fornecia condições para que abortos e partos fossem bem sucedidos e garantidos em segredo, conforme a necessidades de cada situação. Desse modo, além dos recursos financeiros que vinham da atuação profissional de Mehnert no campo da saúde, ela também garantia a manutenção de outros ganhos através da “casa pensão”.

O costume das parteiras em atenderem na própria casa, local onde podiam ter uma “casa de parto” ou pensão, é algo identificado em diferentes realidades urbanas, como já destacado anteriormente. Realizar os diferentes atendimentos em determinados espaços era uma forma de preservar as parturientes das fofocas, uma vez que a presença de uma parteira na residência da paciente poderia levantar desconfianças na vizinhança sobre questões que deviam ser mantidas em sigilo. Possuir quartos para alugar e receber “pensionistas” era uma atividade que rendia ganhos econômicos, mas também auxiliava no trabalho de assistência que as parteiras conferiam as mulheres com enfermidades, as parturientes e as que desejavam abortar. É certo também pensar que esse tipo de comportamento era uma maneira de oferecer um atendido mais completo e seguro às clientes, garantindo o máximo de sigilo sobre as práticas realizadas. O compartilhamento de segredos, as trocas de auxílios e atendimentos fornecidos se transformavam em vínculos de confiança recíprocos. A realização de procedimentos que visavam controlar a reprodução, através de práticas contraceptivas e abortivas, permitira, portanto, que algumas parteiras conseguissem ampliar e variar seu campo de atuação. O sucesso que tinham na utilização de alguns técnicas e saberes fazia com que se tornassem referência, procuravam assim reforçar certa diferenciação frente ao domínio e sucesso na realização de determinadas práticas. Essa questão fica bastante evidente ao se analisar a atuação da parteira Mehnert, pois, em diferentes momentos, são levantadas suspeitas sobre a realização de tratamentos abortivos em suas clientes. A competência da mesma nos procedimentos realizados, bem como a ampla rede de apoio, certamente foram aspectos que impediram que fosse condenada no tribunal pela realização da prática do aborto ou crime de infanticídio. É necessário destacar que a diferença entre as duas parteiras alemães, Joanna Mehnert e Helena Mierisch, se dava pelo fato de terem se utilizado de estratégias diversas, pelos saberes e competências que possuíam e também por atenderem pessoas de grupos sociais diversos.

Na última década do século XIX, especialmente através da criação da Diretoria de Higiene, em 1895, foram instituídas iniciativas para organizar os serviços sanitários, bem como controlar as atividades dos médicos, parteiras e farmacêuticos. Todos deviam obter o registro junto à diretoria, se não o fizessem, seriam multados. Joanna Mehnert, no ano de 1899, aparece sendo multada duas vezes por desrespeitar alguns artigos do Regulamento do Serviço de Higiene. A parteira e o médico imigrante Huber Monschau são multados no valor de 100$ réis por descumprimento do artigo 35 e inciso 9º das regras sanitárias. [32] Posteriormente, Joanna Mehnert é novamente multada no artigo 23 –do capítulo I, que trata “Do exercício da medicina, da pharmacia, drogaria, obstetrícia e arte dentária” – por “abusos cometidos” no exercício da profissão. De acordo com o valor da multa, é possível que a infração esteja relacionada ao inciso 5º, que diz: “O pharmaceutico que vender remédios falsificados ou deteriorados, será multado nas reincidências, além da responsabilidade”. [33] Tudo indica que a mencionada parteira continuava a ser acusada de conferir “remédios abortivos” para suas pacientes, negando ao mesmo tempo todas as acusações que a ela fossem realizadas nesse assunto. [34]

Alguns meses depois, em janeiro de 1900, é inaugurada uma farmácia na Rua das Andradas, no centro de Porto Alegre: “sociedade beneficente de mútuos socorros, União Policial”. Joanna Mehnert e outros médicos dariam consultas no estabelecimento, como o Dr. Frederico Falk, que recentemente havia obtido o título de médico na capital da República do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. [35] Dentre todos os profissionais que atenderiam na farmácia, a parteira Mehnert e Falk eram estrangeiros, ambos imigrantes alemães. Isso leva a pensar que a existência de uma afinidade étnica e profissional tenha sido fator que fez com que atendessem no mesmo estabelecimento. O Dr. Frederico G. Falk era “médico operador e parteiro”, atendia na “Phamácia Allemã do Caminho Novo”, [36] na Rua Voluntários da Pátria, em residência e na farmácia fundada pela “União Policial”, ficando esses dois últimos lugares localizados na Rua dos Andradas. É certo que o apoio entre a parteira e o médico “operador e parteiro” conferia a ambos os benefícios em relação às atividades curativas e de assistência no cenário urbano de Porto Alegre, garantindo troca de saberes, compartilhamento de clientes, conquista da confiança, reconhecimento e proteção, caso essa fosse necessária. A origem social e étnica, somada à condição de imigrante, bem como os conflitos e apoios são aspectos a serem considerados ao se analisar os conflitos, rupturas e solidariedades no que se refere ao sucesso ou fracasso das escolhas migratórias e estratégias de inserção socioprofissional em contextos marcados pela presença de diferentes grupos de estrangeiros europeus,

Com a instauração da República e a promulgação do Código Penal, em 1890, uma atenção maior passa a ser conferida a práticas populares de cura e de controle da reprodução, criminalizando procedimentos e atores sociais que atuavam nesse sentido. As primeiras acusações públicas contra Joanna Mehnert pelo uso de “remédios abortivos” em suas pacientes, por parte de pessoas do mesmo grupo étnico e colegas de profissão, ocorreram exatamente num momento em que o crime de aborto e infanticídio ganhava destaque nas novas leis republicanas. Junto com o reforço da criminalização de práticas de controle da reprodução, procedimentos, ervas e chás utilizados pelas parteiras, estava ocorrendo um processo de medicalização do corpo feminino e construção da medicina científica e obstétrica. Em Porto Alegre, no ano de 1897, será organizado o primeiro curso de partos na Santa Casa de Misericórdia com objetivo de formar parteiras a partir de uma instrução médica masculina. Porém, ele não teve muita procura. Logo em seguida, o curso de obstetrícia que passou a funcionar junto a Faculdade de Medicina, e entre a virada do século XIX e primeira década de XX, a procura pelo mesmo por parte das mulheres foi baixa (Brandão, 1998, p. 95). [37] Tal iniciativa tinha por objetivo controlar as atividades das parteiras tradicionais, bem como impor um projeto educativo que visasse garantir a instrução das novas profissionais a partir de parâmetros da medicina científica e masculina. [38]

A segunda metade do século XIX foi marcada por um processo amplo de valorização das instituições de saber médico e uma defesa da atuação dos profissionais diplomados que podem ser identificados em diferentes lugares (Weber, 1999). Estudos realizados sobre diversos países apontam que o domínio da arte de partejar começou a partir paulatinamente para as mãos dos médicos (Zárate Campos, 2007; Dahhur, 2019; Medeiros, Carvalho y Tura, 2018). No decorrer da trajetória aqui analisada, identificaram-se aspectos que apontavam para uma proximidade entre a parteira Joanna Mehnert e médicos estrangeiros que residiam na capital Porto Alegre. É certo que as relações que foi construindo com tais profissionais, compartilhando paciente e por vezes trabalhando juntos, conferiu à mesma maior segurança para continuar a realizar práticas proibitivas e criminalizadas pelo Estado. Depois de ser investigada por conferir “remédios abortivos”, a parteira foi adquirindo controle sobre determinados procedimentos, além, é claro, de contar com uma fortalecida e ampliada rede de proteção. Uma prova disso está ligado ao fato de não ter sido encontrado outra investigação criminal contra Mehnert, porém, multas por infrações cometidas e denúncias divulgadas nos jornais sobre possível envolvimento com práticas abortivas irão aparecer, mesmo depois de quase duas décadas da primeira acusação pública.

Considerações finais

No presente trabalho, antes de apenas identificar a presença das imigrantes em determinadas serviços, procurou-se perceber as escolhas, as estratégias e as dinâmicas que propiciaram a elas a inserção na sociedade de chegada, conseguindo, assim, usufruir de oportunidades de trabalho e ascensão social. As imigrantes se inseriram em campos profissionais, constituíram redes de relações, conquistaram clientela e reconhecimento por dominarem determinados saberes e técnicas. Também vivenciaram disputas e conflitos com pessoas do mesmo grupo étnico na defesa de posições e de reconhecimento público da honra individual e familiar. A qualificação profissional ou o domínio da arte de partejar possibilitou um amplo campo de atuação para as parteiras chegadas ao Brasil que buscavam construir uma nova vida. Porém, era preciso conquistar clientela, confiança e espaço nas realidades urbanas da sociedade de adoção.

As imigrantes europeias trouxeram na bagagem técnicas e métodos para tratar de doenças femininas, assistir as parturientes e atender demandas contraceptivas e, igualmente, a práticas abortivas –que eram ilegais–. No entanto, o grupo das atendidas pelas parteiras europeias não era constituído apenas por estrangeiras, mas por um número bastante diverso de mulheres, no qual o tamanho dependia muito das habilidades, competências e tipos de serviços que podiam realizar. O conhecimento de artifícios e uso de materiais para interromper a gravidez indesejada foi trazido na bagagem pelas parteiras imigrantes, apesar de muitos deles já serem utilizados no Brasil, como contraceptivos pelas mulheres. Dentre as técnicas abortivas, destaque-se a utilização de “agulhas de tricô, grampos, penas de ganso e palitos para perfurar a parede uterina,” o que poderia provocar graves problemas de saúde à mulher (Silva, 2012, p. 1248). O emprego de alguns dos referidos instrumentos, bem como o uso de substâncias abortivas por parte de parteiras e boticários, aparece nas denúncias presentes na imprensa ou nas fontes criminais.

Pode-se afirmar que a busca pelos serviços das parteiras estrangeiras também estava ligada a uma questão étnica, pois, pelo que foi possível apurar, parte da clientela vinha exatamente de imigrantes e descendentes de mesma origem. A utilização de determinadas técnicas, orientações em relação aos procedimentos empregados, também pode ser uma justifica que explique essa procura. Não se localizou processos-crime ou indicações em outras fontes documentais sobre a presença de conflitos entre as parteiras imigrantes e as brasileiras. A documentação aqui analisada não dá indicações da existência de disputas entre esses dois grupos. O que mostra são as disputas, vinganças, perseguições e formação de grupos de apoio entre pessoas do mesmo grupo étnico. O que se buscou pensar através das experiências e situações apresentadas nesse artigo foram os desempenhos femininos ligados à arte de partejar por estrangeiras em contextos urbanos marcados pela presença significativa de imigrantes europeus no decorrer da segunda metade do oitocentos. Entende-se que o fato de terem chegado com alguma experiência e com diploma de parteira no país de destino, certamente, foi um dos fatores que garantiu um campo aberto para as estrangeiras trabalhar e conquistar certo reconhecimento em relação à própria qualificação profissional. A questão étnica, a origem social, o fato de dominarem a escrita, bem como serem conhecedoras de determinadas técnicas e saberes foram aspectos que influenciaram na busca de alguns grupos por tais profissionais. As parteiras imigrantes diplomadas, provavelmente, teriam mais influência entre as mulheres da elite, onde poderiam cobrar mais pelos seus serviços e contar com apoio de médicos conhecidos e conterrâneos. Categorias como etnia, gênero, raça e grupo social são colocadas em jogo na construção da ideia da “parteira ignorante” e analfabeta que apelavam para manipulações variadas, como das ervas e procedimentos de cura mágico-religiosos, em oposição ao conhecimento científico praticado pelos médicos e aquelas que recebiam formação em obstetrícia (Zárate Campos, 2007).

A disposição para atender as mais diferentes enfermidades, demandas e aflições femininas, dominando tanto a arte de parir quanto a do abortamento, conferia às profissionais um espaço mais alargado de atuação, que, consequentemente, propiciava a ampliação das redes relacionais, de clientes e a própria fama individual. O socorro às mulheres nas mais diferentes situações permitia o estabelecimento de uma relação que significava mais que apenas a contratação de um serviço. Além disso, o compartilhamento de pacientes com os médicos fazia com que as parteiras reforçassem vínculos e compromissos morais com a pessoa beneficiada pelos seus serviços, colocando em circulação uma economia de favores e proteções. Marcel Mauss (1974, p. 1888), ao pensar o dom e o contra-dom, afirma que tais dádivas obrigam três relações: a de dar, receber e restribuir .

Analisando somente o primeiro caso, o dar estabelece uma relação dupla entre quem dá e aquele que recebe, institui vínculos de solidariedade, superioridade, obrigação e dívida, como aquele de restituição do presente recebido. Em diferentes sociedades, a “economia do dom” se encontra na base de diversas “práticas informais de poder” e na constituição de recursos relacionais (Hespanha apud Xavier y Hespanha, 1993, p. 381). Nesse sentido, o dom, expresso no ato de assistir e livrar as pacientes de seus incômodos, garante não apenas aproximação entre a parteira e paciente, mas marca também uma gratidão e amizade desigual entre aquele que recebe e o doador. Tudo isso reforça uma posição, uma imagem e constitui um “capital simbólico” para determinadas pessoas no grupo social do qual fazem parte.

O apoio que Joanna Mehnert recebeu nos momentos em que foi acusada e investigada por fornecer tratamentos abortivos ou acobertar crimes de infanticídio vinha de mulheres que, em algum momento da vida, haviam sido por ela atendidas, e também de profissionais da área médica. Registros encontrados na imprensa indicam para relação bastante próxima entre Mehnert e alguns médicos imigrantes que atuavam na capital Porto Alegre, o que possibilita pensar no papel das afinidades étnicas como um elemento de aproximação entre os diferentes profissionais diplomados que passavam a se dedicar às artes de curar. [39] Havia uma circulação de auxílios e benefícios entre parteiras, diplomadas ou não, e os médicos, bem como internamente em cada grupo, o que não impedia o surgimento de disputas e rupturas. Frente a acusações em relação ao seu procedimento “criminoso”, a parteira ressaltou o fato de “felizmente” ser ela “ bem conhecida pela sociedade descendente desta capital”, indicando assim possuir um capital relacional [40] que lhe garantia benefícios, como proteção e amparo. As amizades realizadas através da atividade profissional e se transformaram em recursos que garantiram certa segurança para agir e acionar apoio quando denunciada às autoridades públicas.

Nesse sentido, pode-se dizer que Joannna Mehnert teve uma trajetória de crescente conquista de espaço, prestígio e de relativo sucesso assim que chegou à capital Porto Alegre. [41] O processo-crime analisado nesse artigo pode ser tomado como um marco importante no percurso da parteira imigrante, conferindo à ela certo aprendizado em relação à maneira como deveria agir com outras colegas de profissões, diplomadas ou não, quanto aos procedimentos que realizava e necessidade de cada vez mais reforçar o seu capital, recurso esse fundamental para garantir segurança para continuar a desempenhar trabalhos diversos, além daquele ligado estritamente ao parto.

Alguns aspectos da atuação de Joanna Mehnert podem ser tomados como perguntas para que se questionar as estratégias de inserção profissional, de conquista de clientela e controle de situações prejudiciais à reputação das parteiras imigrantes em diferentes realidades urbanas no decorrer da segunda metade do século XIX e início do XX. Diplomadas ou apenas práticas, elas entraram em disputas com conterrâneas que também dominavam a arte de partejar, mas fizeram circular apoios e estabeleceram alianças com colegas que atuavam no mesmo campo. Tanto os conflitos quanto as solidariedades internas entre pessoas do mesmo grupo étnico são aspectos que se fazem em contextos marcados pela presença significativa de população estrangeira.

Sendo um grupo bastante heterogêneo, as parteiras se utilizaram de procedimentos e estratégias diferentes a fim de conquistar clientes, reconhecimento e prestígio, bem como na hora de se defender de denúncias por práticas e ações “ilegais” realizadas. O fato de muitas imigrantes serem qualificadas profissionalmente, com diploma inclusive, não impediu que entrassem em choque com as instituições de controle do Estado, e fossem colocadas como rés em investigações criminais pela realização de abortos. As denúncias sobre a utilização de procedimentos abortivos virão das próprias colegas parteiras, e não apenas de médicos ou autoridades públicas, geralmente como uma escolha para causar algum tipo de prejuízos por rivalidades existentes entre elas. Buscar perceber os usos que as pessoas e diferentes grupos faziam do recurso da justiça ajuda bastante a entender por que motivos alguns casos são denunciados. Mais do que procurar pela frequência de alguns tipos de processos-crime, optou-se por analisar qualitativamente uma situação específica, procurando entender as relações entre os envolvidos na investigação e as intenções dos denunciantes.

Os documentos judiciais são fontes prodigiosas para se levantar questões a respeito dos espaços de atuação de sujeitos históricos, tanto em espaços urbanos quanto rurais. No caso específico deste artigo, tomou-se uma denúncia criminal como ponto de partida para buscar reconstruir a trajetória profissional de algumas mulheres, sendo essa uma opção que possibilitou compreender o papel ativo das imigrantes no campo da saúde feminina, as decisões bem-sucedidas e as fracassadas. Nesse sentido, compartilha-se a ideia de que não basta falar das mulheres imigrantes para mostrar sua presença e relevância nos diferentes espaços sociais –familiar, público e profissional–. É preciso perceber e analisar como elas operavam em tais realidades, identificando suas ações, projetos, escolhas e expectativas, mostrando os fracassos, os sucessos e reconstruindo as redes que se encontravam inseridas.

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Para citar este artículo:

Vendrame, Maíra Ines (2021). Parteiras imigrantes: atuação, conflitos e redes de apoio no campo profissional (Porto Alegre, final do século XIX ). Anuario de la Escuela de Historia Virtual, 19, 70-97.



* Pesquisa financiada pelo Programa Pesquisador Gaúcho-PQG/FAPERGS.

[1] Sobre a utilização de fontes criminais para estudar as experiências de inserção social e conflito vividos por homens e mulheres de origem europeia, consultar: Vendrame (2016, 2018 y 2019).

[2] A opção metodológica do presente artigo se inspira na micro-história italiana ao buscar olhar para eventos específicos e experiências individuais com um olhar atento e aproximado, buscando compreender as lógicas que orientam as diferentes escolhas e as tramas relacionais nas quais os sujeitos analisados se encontram inseridos. O método permite visualizar modos de viver e agir que não são perceptíveis através de visão ampla e externa, mas sim através de uma análise imersa no próprio emaranhado de relações ou eventos que se propõem estudar (Levi, 2016, p. 20).

[3] O nome como um fio condutor da pesquisa nas pesquisas em diferentes tipológicas de documentos, é uma sugestão metodológica conferida por Carlo Ginzburg (1989). Essa perspectiva auxilia a perceber as estratégias individuais, familiares e de grupo nos mais diferentes espaços e situações vivenciadas pelos atores estudados.

[4] A “vítima” do aborto não foi interrogada na investigação, pois, quando o inquérito se iniciou, ela não se encontrava mais residindo na capital Porto Alegre.

[5] Como Joanna Mehnert, a imigrante alemão Helena Mierisch chegou ao Brasil com diploma de parteira, sendo também aprovada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

[6] Ao realizar uma história social do parto e das relações de gênero nesse campo de trabalho no Chile, Maria Soledad Zárate Campos (2007, pp. 875-876) afirma que desde a Colônia até o século XIX, a medicina popular esteve nas mãos femininas. O ataque à “ciências das ervas” foi crucial no processo de desprestígio das artes de cura populares e seus praticantes, incluindo aqui o trabalho das parteiras tradicionais, que passaram a ser descritas como ignorantes e seu trabalho desqualificado por razões de gênero, étnicas e morais.

[7] Ver: Zárate Campos (2007), Carrillo (1999) y Mott (2001 y 2005).

[8] No momento em que Mathilde Peltz sai de Santa Cruz, o local se encontrava na condição de Vila de São João de Santa Cruz, desde o ano de 1878. Em 1849, havia sido fundada no lugar uma colônia que passou a receber famílias camponesas de imigrantes alemães que vinham diretamente da Alemanha e de outras regiões de colonização do Rio Grande do Sul. Sobre a vida no referido universo camponês, ver: Arend (2020).

[9] Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), Ato de Defesa de Joanna Menhert, Porto Alegre, 02 de outubro de 1890. Processo-crime, Comarca Porto Alegre, Nº 1724, 1890, ré Joanna Menhert, vítima Mathilde Peltz.

[10] Essa acusação de crime de calúnia contra o subdelegado João Hilgert não foi levada adiante pela parte acusadora. Carlos Augusto Mehnert, marido da parteira Joanna, desistiu de manter as acusações contra aqueles que considerava acusadores da esposa. APERS, Processo-crime, Comarca Porto Alegre, Nº 1724, 1890, ré Joanna Menhert, vítima Mathilde Peltz.

[11] No artigo 200 do Código Criminal do Império do Brasil (1830), constava: “Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique”. A pena para o crime era de prisão com trabalho por dois a seis anos. Por fim, “Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de tais artes; Penas - dobradas”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acessado em 22 de maio de 2020.

[12] APERS, Processo-crime, Comarca de Porto Alegre, Sumário, réus João Mierisch, Germano Wagner, João Hilgert, Helena Mierisch Wagner, N° 2717, ano 1890.

[13] O acionamento do recurso da justiça como uma maneira de expor e encaminhar a articulação de acordos privados, bem como a existência de diferentes entendimentos sobre as punições que deveria ser aplicada para aqueles que não obedeciam determinadas normas e comportamentos, é algo discutido no livro O poder na aldeia (Vendrame, 2016).

[14] Dentre os estrangeiros residentes, os africanos correspondiam a um total de 1.608, os portugueses 1.270 e os alemães 936. Em números menores irão aparecer os franceses, 232, os austríacos, 170, italianos, 154, espanhóis, 98, etc. Fonte: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v11_rs.pdf (Fecha de consulta 12/03/2021).

[15] Indicações sobre os trabalhos desempenhados pelas imigrantes alemães na capital Porto Alegre na segunda metade do século XIX, bem com a presença das mesmas na esfera pública, são indicadas em alguns estudos. Sobre esse tema, ver: Gans (2004, pp. 62-66) y Arend (2001).

[16] De origem germânica, Germano Hasslocher foi político, advogado, jurista, professor e atuou como jornalista, tendo se filiado ao Partido Liberal na segunda metade do século XIX e no Partido Republicano Rio-Grandense, no início do XX.

[17] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (HDBN), “Aventureira”, Helena Mierisch Wagner, 1 de janeiro de 1891, Porto Alegre. Jornal A Federação, 02 de janeiro de 1891, Porto Alegre.

[18] APERS, Processo-crime, Comarca Porto Alegre, Cível e Crime, Ré Helena Mierisch, N° 3643, ano 1899.

[19] Notícias publicadas nas páginas do Jornal A Federação sobre a ocorrência de abortos, infanticídios e nascimentos de crianças de mulheres atendidas pela parteira Joanna Mehnert. Ver: HDBN, Jornal A Federação, ed. 5, 1894; Jornal A Federação de 1909, p. 2.

[20] Em nota publicada no jornal era comunicado a improcedência da denúncia lançada contra Joanna Mehnert e Edmundo Antônio da Silva. Jornal A Federação, Porto Alegre, 4 de dezembro de 1909, HDBN.

[21] HDBN, “Crime Revoltante”. Jornal O Século, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1908; Movimento Forense. Jornal A Federação, Porto Alegre, 11 de setembro de 1909.

[22] HDBN, “Ao público”. Jornal A federação, Porto Alegre, 17 junho de 1909.

[23] A presença significativa de imigrantes europeias atuando como parteiras diplomadas em outras capitais brasileiras é um aspecto analisado em outras pesquisas. Sobre esse tema. ver: Mott (1994), Muniz, Alves, Santos, Maestrini y Santos (2007). Em relação à concorrência quanto à arte de partejar entre as parteiras tradicionais e as diplomadas, bem como constituição de redes com os médicos, conferir: Medeiros, Carvalho y Tura (2018) y Barbosa y Pimenta (2016).

[24] Sobre atuação dos diferentes curadores no Rio Grande do Sul no período da Primeira República, Beatriz Weber, no livro As artes de curar, ressalta que as mulheres que dominavam a arte de partejar tinham uma grande proximidade com a população, atendendo os mais diversos “incômodos do útero” e as “moléstias de senhoras”. Como forma de controlar as atividades dessas curadoras, os médicos irão organizar um primeiro curso de partos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, em 1897 (Weber, 1999, p. 167).

[25] Sobre o processo de institucionalização da obstetrícia e os jogos de conflitos entre saber e poder, que deve também ser observado através de uma perspectiva de gênero, destaca-se alguns estudos relativos ao Brasil, México, Argentina e Chile. Ver: Carrillo (1999), Motta (2001 y 2005), Zárate Campos (2007), Robles y Sandoval (2007) y Medeiros, Carvalho y Tura (2018).

[26] HDBN, “Liberdade Profissional”, Helena Mierisch, 01 de agosto de 1891. Jornal A Federação. Porto Alegre, 3 de agosto de 1891.

[27] Em 1889, a parteira Helena Mierisch, aos 37 anos, casou-se com Germano Teodoro Wagner, viúvo, de nacionalidade prussiana, na capital Porto Alegre.

[28] HDBN, Agradecimentos, Luiz José d’Almeida Couto, Porto Alegre, 29 de novembro de 1892. Jornal A Federação. Porto Alegre, 9 de janeiro de 1893. Ed. 7.

[29] HDBN, Agradecimentos e missas. Jornal A Federação. Porto Alegre, 22 de fevereiro de 1900.

[30] HDBN, Notícias, p. 2. Jornal A Federação. Porto Alegre, 25 de abril de 1894.

[31] A parteira Joanna Mehnert aparece em diferentes épocas como dona de espaços que ela alugava. Em 1905, ela aparece como dona de um prédio na Rua Andradas que funcionava como uma casa de pensão. Tanto nesse momento, como em outros, a parteira aparece alugando quartos em locais onde também residia. HDNB, “Registro Mortuário”, Jornal A Federação, 10 de junho de 1905, p. 2.

[32] O artigo 35 e inciso previa que frente ao aparecimento de qualquer “doença transmissível” ou que possa se tornar “epidêmica”, devia o médico comunicar imediatamente o fato à autoridade sanitária. A infração seria punida pelo valor de 100$000. Do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Regulamento do Serviço para Higiene, Decreto N° 44, de 2 de abril de 1895, pp. 142-43. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).

[33] Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Regulamento do Serviço para Higiene, Decreto N° 44, de 2 de abril de 1895, p. 134.

[34] Depois de decorridos vários dias, a parteira Joanna Mehnert recorreu à última multa lançada pela Diretoria de Serviços para Higiene contra ela no início de agosto de 1899, conforme se constatou em informação divulgada na imprensa. HDBN, Jornal A Federação, Porto Alegre, 4 de setembro de 1899, p. 2.

[35] HDBN, Jornal A Federação, Porto Alegre, 10 de fevereiro de 1900, p. 2.

[36] HDBN, “Indicações”. Jornal A Federação, 13 de agosto de 1900, p. 2.

[37] Entre 1899 e 1911, o número de pessoas que cursaram obstetrícia junta a Faculdade de Medicina somou um total de 18 pessoas, não chegando a dois diplomados por ano (Brandão, 1998, p. 95).

[38] O livro Dar a luz en Chile, siglo XIX, de María Soledad Zárate Campos (2007), discute de maneira bastante completa como a história social do parto, da segunda metade do século XIX, especialmente o combate entre os diferentes saberes e as transformações no campo da assistência e sanitário, não podem ser entendidos sem levar em conta as relações de gênero.

[39] Entre a última década do século XIX e as primeiras do XX o número de médicos estrangeiros aumentou bastante na cidade de Porto Alegre. A maior parte dos profissionais diplomados em universidades estrangeiras eram imigrantes alemães e italianos. Dentre essas nacionalidades, Leonor B. Schwartsmann (2017, p. 105) identificou em sua pesquisa a presença de 47 médicos originários da Itália entre 1898 e 1920, apenas na capital do Rio Grande do Sul. Sobre a presença de uma imigração qualificada de profissionais da área médica no território gaúcho.

[40] É certo que esse “capital relacional” havia se constituído muito em parte por conta do comportamento da própria parteira para com as pessoas com quem se relacionava. O desempenho da mesma para com pessoas de diferentes grupos sociais na dinâmica da prestação de favores, trocas e auxílios podem ser vistos como mecanismos de fortalecimento do prestígio e consolidação do poder pessoal (Hespanha y Xavier, 1993).

[41] Em 1915, Joanna Mehnert realiza o inventário do marido, o que permite perceber que o casal era próprio de dois terrenos e várias casas construídas sobre esses, sendo, provavelmente, essas alugadas. Além dos referidos no inventário, não aparecem os imóveis que uma década antes a parteira possuía numa das ruas centrais da capital Porto Alegre. É provável que a viúva também fosse proprietária de bens que não são referidos no momento do inventário. APERGS, Inventário de Carlos Augusto Mehnert, n. 248, 1916, Juízo Distrital da Vara de Órfãos de Porto Alegre.