CIDADES CUIDADORAS. A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES E A CONSTRUÇÃO DE UM URBANISMO CONTRA HEGEMÔNICO

CARING CITIES. THE PARTICIPATION OF WOMEN AND THE CONSTRUCTION OF AN COUNTER-HEGEMONIC URBANISM

Katia Ferreira de Oliveira

Universidade Federal de Santa Maria-Campus Cachoeira do Sul/RS/BR

MAIL: arqkatia@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0693-9767

 

Resumo

A grande maioria das cidades contemporâneas, não está preparada para satisfazer os cuidados com a vida cotidiana, impactando negativamente na qualidade de vida das pessoas e, em especial, daquelas que realizam essas atividades, que são majoritariamente mulheres. (Valdivia, 2018) Este trabalho tem o objetivo de problematizar o urbanismo hegemônico vigente, com enfoque no contexto brasileiro e apresentar caminhos produzidos para a construção de ‘cidades cuidadoras’, a partir da participação das mulheres envolvidas com a vida comunitária, representantes políticas, técnicas, acadêmicas e ativistas feministas, onde os cuidados com a vida cotidiana são valorizados, colocados no centro das decisões urbanas e compartilhados pelo conjunto da sociedade. Esses caminhos se apresentam em contraposição ao ‘urbanismo androcêntrico’, que se estrutura a partir do trabalho produtivo e industrial e se apresenta como neutro e universal, mas que está diretamente direcionado para atender as demandas do patriarcado. Para tal, serão apresentadas experiências referenciais que demonstram boas práticas para a construção de um urbanismo contra hegemônico, inseridas em três diferentes realidades: em Barcelona e outras cidades da Catalunha, na Espanha; em Bogotá, capital da Colômbia e em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, no Brasil.

Palavras-chave: cidades cuidadoras, participação das mulheres, urbanismo contra hegemônico

 

Abstract

The vast majority of contemporary cities are not prepared to satisfy the care of daily life, negatively impacting the quality of life of people and, in particular, those who carry out these activities, who are mostly women. (Valdivia, 2018) This work aims to problematize the current hegemonic urbanism, focusing on the Brazilian context and to show the way done for the construction of 'caring cities', from the participation of women involved in community life, political representatives, technical, academic and feminist activists, where care for daily life is valued, placed at the center of urban decisions and shared by society as a whole. These paths are presented in contrast to 'androcentric urbanism', which is structured on productive and industrial work and presents itself as neutral and universal, but which is directly directed to satisfy the demands of patriarchy. To this end, referential experiences will be presented to demonstrate the good practices for the construction of a counter-hegemonic urbanism, inserted in three different realities: in Barcelona and other cities in Catalonia, Spain; in Bogotá, capital of Colombia and in Porto Alegre, capital of Rio Grande do Sul, Brazil.

Keywords: caring cities, women participation, counter-hegemonic urbanism

 

Fecha de recepción: 15 de agosto de 2021

Fecha de aceptación: 23 de noviembre de 2021

 

Introdução

Os avanços, desafios e reflexões a seguir apresentados são realizados à luz do conceito de ‘cidade cuidadora’ desenvolvido pela socióloga Blanca Valdivia no artigo ‘Del urbanismo androcéntrico a la ciudad cuidadora’. Este conceito se apresenta como uma alternativa que se contrapõe ao urbanismo hegemônico e que se estrutura na valorização do trabalho reprodutivo de cuidados e de sua inserção no centro de diferentes políticas setoriais, planos e projetos de habitação e desenvolvimento urbano, pautados, especialmente, pela equidade de gênero. A lógica da cidade cuidadora confronta o legado do urbanismo voltado para atender apenas o trabalho produtivo, chamado por Valdivia de ‘urbanismo androcêntrico’, que se apresenta como neutro e universal, mas que está diretamente direcionado para atender as demandas do patriarcado (Valdivia, 2018).

Este trabalho tem o objetivo de problematizar o urbanismo hegemônico vigente, com enfoque no contexto brasileiro e apresentar caminhos produzidos para a construção de ‘cidades cuidadoras’, a partir da participação das mulheres envolvidas com a vida comunitária, representantes políticas, técnicas, acadêmicas e ativistas feministas, onde os cuidados com a vida cotidiana são valorizados, colocados no centro das decisões urbanas e compartilhados pelo conjunto da sociedade. Resulta de revisão bibliográfica que intersecciona conhecimentos, em especial, nas áreas da sociologia, da antropologia, da geografia, da história e jornalismo e da arquitetura e urbanismo e está organizado em cinco partes principais. As duas primeiras partes buscam responder as seguintes questões: O que caracteriza o ‘urbanismo androcêntrico’ e as cidades por ele produzidas? O que priorizam as ‘cidades cuidadoras’ em contraposição a este modelo de urbanismo hegemônico? As três partes subsequentes apresentam experiências referenciais que demonstram boas práticas para a construção de cidades cuidadoras, inseridas em três diferentes realidades: em Barcelona e outras cidades da Catalunha, na Espanha; em Bogotá, capital da Colômbia e em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, no Brasil.

Para apresentar um conjunto de avanços no sentido da implantação de uma cidade cuidadora, em Barcelona e outras cidades da Catalunha - ES, será utilizado o artigo Aplicación de la perspectiva de género al urbanismo y la arquitectura. Experiencias a escala regional y municipal en Cataluña, de autoria de Zaida Muxí-Martínez (2020), professora e pesquisadora do Departamento de Urbanismo y Ordenación del Territorio (DOUT), da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona (ETSAB), na Universidad Politécnica de Cataluña-BarcelonaTech (UPC). Na mesma direção, para apresentar os avanços da experiência da capital Bogotá serão utilizadas as informações contidas no documento intitulado ¿Quién cuida en la ciudad? Oportunidades y propuestas en Bogotá (Colombia), preparado por Marisol Dalmazzo Peillard (2017), arquiteta consultora da Divisão de Assuntos de Gênero, da Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, no marco do projeto das Nações Unidas para o Desenvolvimento denominado ‘Desenvolvimento urbano, autonomia econômica das mulheres e as políticas de cuidados’.

A partir da participação ativa e majoritária das lideranças comunitárias femininas em diferentes regiões da cidade, o Orçamento Participativo de Porto Alegre (OP) se constitui como uma importante ferramenta de controle social do orçamento público e de inclusão e atendimento de pautas e demandas das mulheres por serviços e infraestrutura em suas comunidades e bairros, nas áreas de Circulação e transporte; Cultura e Juventude; Desenvolvimento Econômico, Tributação, Turismo e Trabalho; Educação, Esporte e Lazer; Habitação, organização da cidade, desenvolvimento urbano e ambiental e Saúde e assistência social, inserindo-as na arena da política urbana local. Para apresentar um pouco desta experiência será utilizado o trabalho de conclusão de graduação da cientista social e antropóloga Liziane Gonçalves de Matos (2009) intitulado ‘As mulheres na democracia participativa. Etnografia da participação feminina no Orçamento Participativo de Porto Alegre a partir das lideranças comunitárias’ e a publicação produzida pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, ‘Orçamento Participativo de Porto Alegre 25 anos’ com textos dos jornalistas Poti Silveira Campos e Núbia Silveira (2015).

 

O urbanismo androcêntrico e a divisão sexual e racial do espaço.

Novas identidades e responsabilidades de gênero surgiram com a divisão sexual do trabalho imposta durante o processo de industrialização mundial, que separou o trabalho em reprodutivo e produtivo, atendendo a uma lógica binária (feminina e masculina) e patriarcal que colocou as mulheres em condições de maior vulnerabilidade e desigualdade social em relação aos homens. Nesse processo houve um deslocamento do cuidado desde o espaço doméstico/comunitário ao âmbito privado das famílias e das redes femininas de cuidados, fazendo com que nossas cidades atuais não sejam preparadas para satisfazer as demandas das mulheres, sobre as quais recai a maior parte dessas responsabilidades e também de crianças, jovens e idosos, que dependem diretamente desse trabalho feminino (Valdivia, 2018).

Na virada do século XIX para o XX, a lógica de organização das cidades mudou definitivamente e o chamado ‘urbanismo’, conceito que aparece de diversas formas nesse período, aplica no campo da organização das cidades, os princípios estabelecidos na indústria. A noção-chave é a de especialização contida no sistema taylorista, que sistematizou o processo industrial, tratando de decompor e simplificar as tarefas para tornar sua realização mais rápida e rentável. O urbanismo moderno vai incorporar a lógica industrial na prática sob a forma de zoneamento de usos que, mais tarde, Le Corbusier e a Carta de Atenas, publicada em 1941, levarão ao extremo. Também, na cidade moderna da revolução industrial, a mobilidade das informações, dos bens e do veículo individual assume um lugar estrutural. A primeira medida foi a de adaptar as cidades às exigências da produção, do consumo e das trocas mercantis. Hausmann, Cerdá, Sitte, Howard e, certamente, Le Corbusier estavam movidos, através de suas práticas e reflexões pela preocupação de adaptação das cidades à nova sociedade industrial europeia (Ascher, 2010).

O modelo de ‘urbanismo androcêntrico’[1] associa o âmbito público com o produtivo e o âmbito privado com a esfera reprodutiva. Impõe uma divisão espacial a partir dessa divisão sexual do trabalho, conduzindo à segregação territorial segundo o sexo. Nesse modelo, os espaços surgem das relações de poder e é dentro delas que se estabelecem as normas, definindo os limites sociais e ditando quem pertence a um lugar ou quem será excluído. Também a divisão entre público (masculino) e privado (feminino), que define para cada espaço um protagonismo de gênero (binário e cis heteronormativo), tem consequências discriminatórias, atenta contra a igualdade de oportunidades (Valdivia, 2018), contra a diversidade e fortalece realidades urbanas hostis e violentas para as mulheres e demais populações vulneráveis.

Ao focalizarmos na realidade brasileira o tema da violência contra as mulheres em diferentes âmbitos de sua vida, seja no ambiente doméstico e familiar ou no espaço público, circulando pela cidade, fazem do Brasil o quinto colocado no ranking da violência de gênero no mundo, com muitas vítimas anualmente. Diversos fatores contribuem para que uma cidade não seja segura para mulheres, e estes fatores são potencializados de acordo com o perfil da mulher, como a idade, a raça e a orientação sexual. As mulheres negras e indígenas, por estarem historicamente e em maioria em situação de vulnerabilidade, são as que mais sofrem com os deslocamentos, com a falta de mobilidade e com o acesso à cidade, como a serviços públicos, moradia digna, saneamento básico, transporte eficiente, creches e oportunidades de trabalho (Matos, 2020).

São diversas as mulheres e suas realidades e, portanto, é fundamental entendê-las para poder promover a equidade nas cidades de forma interseccional. No Brasil, a realização das tarefas essenciais à reprodução e manutenção da vida, está ancorada principalmente na exploração do trabalho mal remunerado ou não remunerado realizado pelas mulheres, sobretudo pobres e negras e é um grande obstáculo para a busca da redução das desigualdades. Essa realidade é denunciada desde a década de 1980 por militantes e pesquisadoras feministas negras . Em seus estudos, a antropóloga Lélia Gonzales demonstra que a aparente liberação das mulheres brancas das atividades de cuidados, tinha relação com a subordinação continuada de mulheres negras na execução de serviços domésticos de baixa remuneração nas casas das famílias brancas. O que permitiu que as mulheres brancas obtivessem mais tempo para seu desenvolvimento pessoal e entrassem cada vez mais no mercado de trabalho de melhor remuneração (Caldwell, 2000).

No que se refere ao direito de ocupar o território da cidade formal, a arquiteta e urbanista, pesquisadora e vereadora carioca, Tainá de Paula aponta que a exclusão dos negros dos espaços das cidades brasileiras, do ponto de vista legal, teve como marco, a Lei de Terras de 1850, que os proibia de terem acesso à terra, impedindo-os concretamente de se constituírem como parte do tecido urbano e do exercício construtivo formal. Esta exclusão se seguiu nas cidades pós-abolição (1888) quando então as pessoas negras deixam de ser mercadorias para constituírem um grupo de excedentes descartáveis que, portanto, ocupará os territórios de descarte e sem valor agregado das cidades, como encostas, margens de cursos d’água e manguezais. No decorrer da história também se somaram aos processos de exclusão, o apagamento forçado das matrizes histórico-culturais africanas nas cidades brasileiras, tanto do ponto de vista material, como simbólico e epistemológico, obrigando a população afrodescendente, maioria no País, a construir a sua própria cidade (Paula, 2019).

Gonzalez (1988/2020) também denunciou a segregação espacial de cunho racial existente nas cidades brasileiras, que sempre reforçou a continuação da adoção das práticas políticas construídas ainda no período colonial e escravocrata. Para a antropóloga, a organização espacial das cidades brasileiras é fruto de práticas políticas coloniais que se materializam no território de forma a manter as condições de dominação da população não branca.  Desde o início do período (1530), houve uma separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e por dominados, onde o lugar natural do grupo branco dominante está constituído pela casa grande, pelo sobrado e pelos belos edifícios residenciais. Enquanto isso, o lugar do negro está, evidentemente, no lugar oposto, onde a divisão racial do espaço se evidencia na existência das senzalas, das favelas, dos cortiços, ocupações irregulares, alagados e conjuntos habitacionais periféricos.

Ao analisarmos, sobretudo a realidade brasileira, é possível verificar que o chamado ‘urbanismo androcêntrico’ surgido a partir da revolução industrial na Europa e disseminado pelo mundo nas primeiras décadas do século XX como um ideal de modernidade, irá continuar a lógica extrativista, racista e sexista de produção das cidades implantada ainda no período colonial no País. Esta lógica de urbanismo centrada nas atividades econômicas, nas exigências da produção, do consumo e das trocas mercantis, beneficia prioritariamente os homens brancos e ricos e desvaloriza e explora o trabalho reprodutivo de cuidados, sobretudo executado pelas mulheres empobrecidas e racializadas, produz segregação territorial, desigualdades e vulnerabilidades, cidades violentas e o esgotamento dos recursos naturais.

 

O urbanismo da cidade cuidadora, um urbanismo contra hegemônico.

São muitas, diversificadas e complexas as atividades de cuidados e afazeres domésticos para a reprodução da vida e torna-se importante revelar aquelas elencadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para a realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD-Contínua. Uma importante fonte de dados e informações do País, que atende às necessidades dos mais diversos segmentos da sociedade civil, bem como dos órgãos das esferas governamentais federal, estadual e municipal. Atualmente a pesquisa realizada pelo instituto, apresenta uma separação entre atividades de cuidado e afazeres domésticos, que compõem o chamado “trabalho reprodutivo” ou “trabalho invisível”, central na economia do cuidado.

Conforme o IBGE (2018), considera-se cuidado de pessoas: “alimentar, vestir, pentear, dar remédio, dar banho, colocar para dormir; auxiliar em atividades educacionais; ler, jogar ou brincar; monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio; transportar ou acompanhar para escola, médico, exames, parque, praça, atividades sociais, culturais, esportivas ou religiosas; e outras tarefas de cuidados de moradores”. Enquanto os afazeres domésticos compreendem: “preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louças; cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos; fazer pequenos reparos ou manutenção do domicílio, do automóvel, de eletrodomésticos ou outros equipamentos; limpar ou arrumar domicílio, a garagem, o quintal ou o jardim; cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados etc.); fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio; cuidar dos animais domésticos; e outras mais tarefas domésticas”.

Além desta diversificada lista de atividades em grande parte não remuneradas em nossa sociedade, todos esses trabalhos englobam uma notável carga de subjetividade, emoções, sentimentos, afetos e desafetos, amores e desamores que acaba construindo socialmente a obrigação moral de “ser mulher” através da mística dos cuidados e da maternidade.  Ao contrário do trabalho produtivo que tem um valor de troca mercantil, que visa o permanente aumento da produtividade e fomenta a competividade; os trabalhos de cuidados produzem bens e serviços para o autoconsumo, têm um valor de uso, carregam uma forte carga emocional e respondem a uma ética centrada nas relações e nas necessidades humanas (Valdivia, 2018).

Para romper com a lógica binária que define o público e produtivo aos homens e o doméstico e o reprodutivo às mulheres, Valdivia assinala que é preciso acabar com os essencialismos que outorgam às mulheres qualidades especiais para exercerem e assumirem esta carga de trabalho decorrente das atividades de cuidados a partir de diferenças biológicas e posicioná-las como atividades sociais para além dos laços familiares e sanguíneos. E que precisamos superar o modelo de família nuclear heteronormativa patriarcal e colocar os cuidados num lugar central em nossas cidades, uma vez que existe uma grande diversidade de modelos familiares que sustentam relações afetivas e de cuidados (Valdivia, 2018).

Para tal, na escala da cidade e do bairro, as leis, planos e projetos urbanos devem fomentar a distribuição equitativa de serviços, equipamentos e comércio de proximidade em diferentes regiões, dar lugar a percursos funcionais e minimizar o uso do veículo privado, reforçando o sistema público e coletivo de transporte e construindo ciclovias e corredores verdes. Uma cidade que proporciona que as pessoas se cuidem conta com espaços públicos equipados para o lazer e a diversidade de práticas esportivas, favorecendo a melhora da saúde física e as relações interpessoais. É importante construir espaços púbicos abertos onde seja possível estar a salvo das intempéries, com sanitários, lugares para sentar, descansar, conversar e estabelecer relações sem a necessidade de alguma atividade comercial. A cidade que cuida oferece autonomia às pessoas dependentes como crianças, idosos e deficientes e permite que conciliem as diferentes esferas de sua vida cotidiana (Valdivia, 2018). Criar leis, espaços de combate à violência de gênero e atendimento às mulheres vítimas de violência é, da mesma forma, estrutural para uma cidade cuidadora.

Da mesma forma é fundamental, construir uma lógica de planejamento que não se oriente pela utilização de recursos energéticos e ambientais sem limites. Portanto, uma cidade para ser cuidadora deve estabelecer políticas que se contraponham às premissas do urbanismo androcêntrico voltado para a exploração e consumo crescentes dos recursos naturais e deve ter ações e políticas que busquem minimizar os resíduos produzidos; promovam ações para descontaminação do solo, do ar e da água; impulsionem estratégias para aproveitamento de equipamentos e espaços subutilizados ou não utilizados;  priorizem a reabilitação de edifícios e espaços em contraponto à prática das demolições e que não expulsem as pessoas de seus bairros por aluguéis altos, especulação e regulação do uso do solo (Valdivia, 2018).

A cidade cuidadora também trata as políticas habitacionais como prioridade e produz programas habitacionais e projetos adequados a diversidade de grupos familiares. A moradia, suporte fundamental para as atividades domésticas e comunitárias, está estreitamente vinculada aos cuidados de reprodução da vida, especialmente nas famílias mais pobres. De acordo com o relatório sobre adequação habitacional, uma moradia adequada deve conter condições básicas para o desenvolvimento da vida e, para que isso ocorra, devem ser considerados sete elementos centrais: 1) a segurança da posse; 2) a habitabilidade; 3) a disponibilidade de serviços; 4) a infraestrutura e os equipamentos públicos; 5) a localização adequada; 6) a adequação cultural; 7) a não discriminação e a priorização de grupos vulneráveis a preços acessíveis (Rolnik, 2012).

Também é essencial a participação política e cidadã daquelas que melhor conhecem a realidade de seus bairros e comunidades e gestionam para melhorá-los. Estes espaços, de poder masculino, devem garantir a paridade de gênero e criar condições materiais para que as mulheres consigam exercer seu direito à participação de forma efetiva. Vale destacar que, no Brasil, muitos dos avanços nas políticas para a equidade de gênero e garantia do direito à cidade foram alcançados, principalmente, por meio das representações extraparlamentares feministas. Também a crescente especialização dos movimentos de mulheres no trato com a política nas três esferas de poder, ocupando ministérios, secretarias de estado, prefeituras, casas legislativas, conselhos e comissões especializadas, produziram avanços nas políticas de equidade de gênero (Hollanda e Pellegrino, 2018).

Iniciativas que promovem trajetos urbanos diferenciados adequados à vida cotidiana das mulheres, iluminação pública e acesso à água aumentam em quase 90% quando estas participam de conselhos de representação urbana. No mesmo sentido, o trabalho de grupos e organizações feministas pelo mundo vem apontando formas de reduzir os problemas decorrentes da desigualdade e violência de gênero  nas cidades, propondo um imposto de enfrentamento à misoginia, o “misogyny tax”, com a finalidade de criar fundos de equidade; a taxação extra para hospitais cesaristas funcionarem; o aumento de impostos para prédios com aluguéis abusivos perto de escolas e creches e  multas para prefeituras que não apresentem planos de enfrentamento à violência de gênero (Paula, 2021).

Muito embora a lógica do urbanismo da ‘cidade cuidadora’, se organize a partir de uma visão feminista de urbanismo, sua intenção é produzir cidades melhores, mais justas e menos violentas para todas as pessoas. O direito à uma cidade cuidadora está, sobretudo, relacionado com a garantia dos direitos a uma vida digna e com autonomia, saudável, sem exploração e violência para mulheres, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência e tantas outras que compõem o contingente de excluídos das cidades do urbanismo androcêntrico. Em diferentes partes do mundo, em diversas áreas e espaços de atuação, as mulheres vêm enfrentando e combatendo as assimetrias e desigualdades produzidas pela sociedade patriarcal e seu urbanismo excludente e extrativista, propondo outros modelos de arquitetura, de planejamento e de gestão urbana.

 

Construindo a cidade cuidadora – A experiência de Barcelona e outras cidades na Região da Catalunha/Espanha

Na Espanha, especialmente em Barcelona, capital da região da Catalunha, um conjunto de avanços no sentido da implantação de uma cidade cuidadora estão em curso, especialmente com a inserção da equidade de gênero no centro de diferentes políticas setoriais, planos e projetos de desenvolvimento urbano. Para melhor conhecê-los será apresentada uma síntese destes com base no artigo Aplicación de la perspectiva de género al urbanismo y la arquitectura. Experiencias a escala regional y municipal en Cataluña (Muxi-Martinez, 2020).

Uma importante referência para o avanço das ações de inclusão das demandas das mulheres em programas e projetos públicos em cidades espanholas, é a Lei 2/2004, de 4 de junho, Llei de millora de barris, àrees urbanes i viles que requereixen una atenció especial, da região da Catalunha. A chamada ‘Lei de Bairros’ foi a primeira normativa no âmbito urbanístico da Espanha que introduziu o gênero como parâmetro de planejamento urbano. Uma normativa cujas ações propostas, receberam financiamento de 50% do governo regional e 50% dos municípios e onde foram definidos três tipos de tecidos urbanos como prioritários para projetos e investimentos: centros históricos, conjuntos residenciais e bairros autoproduzidos. 

A Lei 2/2004 exigia que os projetos municipais devessem abordar 8 critérios obrigatórios, sendo o ‘Ponto 6’, o critério relativo à equidade de gênero no uso dos espaços públicos e equipamentos. A criação desse importante marco legal ocorreu justamente quando houve a eleição de um governo de esquerda na Catalunha, entre 2003 e 2006. Nesse momento, o Institut Català de les Dones – ICD (Instituto Catalão de Mulheres), organismo da administração regional, passou a ter uma relação mais orgânica e direta com a presidência da Generalitat (governo regional).  O ICD foi criado em 1989, com os objetivos de elaborar e executar os projetos e propostas relativas à promoção da mulher e fazer efetivo o princípio da igualdade de gênero.

Segundo Muxí-Martínez (2020), a Lei de Bairros é a raiz para que muitos governos municipais começassem a implementar a perspectiva de gênero no planejamento e nos projetos urbanos na Espanha. Cidades importantes como Madri com Manuela Carmena (de 2015 à 2019), gestionou “por uma cidade das pessoas”, enquanto Barcelona, a partir de 2015, com Ada Colau gestiona “por uma cidade feminista e cuidadora”. Prefeitas feministas, que propiciaram que os espaços de relevância política em seus governos fossem dirigidos por mulheres feministas. Por outro lado, a nível regional, o ICD foi responsável por permear transversalmente todas as políticas na região e também gerar a produção de conhecimento e formação sobre a temática, especialmente dirigidas aos técnicos dos municípios.

Foram realizados também pelo ICD, cursos de formação de curta duração para as mulheres participantes das associações de vizinhos do território catalão, a fim de aproximá-las de conhecimentos mais técnicos sobre urbanismo e desvelar o conhecimento resultante de suas experiências práticas cotidianas. Estas associações contaram e seguem contando majoritariamente com as vozes de mulheres para reclamar por melhorias urbanas, serviços, equipamentos e espaços públicos para viabilizar a vida cotidiana em seus bairros.  São consideradas por Muxí-Martínez (2020) primeiro espaço democrático de pensamento urbano na Espanha e uma das forças que sustenta o processo de participação cidadã no planejamento de suas cidades. As associações de vizinhos na Espanha, embora tivessem atuação anterior, foram legalizadas em 1964, na última década da ditadura de Francisco Franco (1939 – 1975), através da Ley de las Asociaciones.

Nos anos seguintes à aprovação da Lei de Bairros, a aposta de introduzir o gênero em outras leis de alcance regional ligadas ao meio ambiente construído na Catalunha, foi resultado do trabalho conjunto do ICD e do Departamento de Política Territorial e Obras Públicas da Generalitat (governo regional). O desenvolvimento transversal da política voltada para as questões de gênero na região foi reflexo do Plan de acción y desarrollo de las políticas de las mujeres en Cataluña (Plano de ação e desenvolvimento de políticas para mulheres na Catalunha), entre 2005 e 2007 e do Plan de políticas de mujeres del Gobierno de la Generalitat de Cataluña (Plano de política das mulheres do Governo da Generalitat da Catalunha), entre 2007 e 2011.

Outro importante marco legal, que introduziu critérios de gênero sobre o ambiente construído, dessa vez na escala da moradia, foi a Lei 18/2007, de 28 de dezembro, Del dret a l’habitatge (Do direito à moradia). Em seu artigo 23, sobre os requisitos exigíveis, estabelece que nos processos de edificação, conservação e reabilitação devem ser fixados critérios de gênero, através de novos tipos de habitação que tenham em conta os diferentes modelos de convivência, assim como a necessidade de grupos específicos. O item “d” do referido artigo 23, explica que a inovação na concepção e desenho deve permitir a acessibilidade no uso de elementos para facilitar o trabalho doméstico de cuidados e para adequar-se aos novos papéis de gênero, contemplando transformações no interior das habitações para adaptá-las às variações de estruturas familiares.

Em Barcelona, a partir do Conselho de Habitação, se promoveu a produção de uma nova tipologia de habitação coletiva pública, denominada co-habitação (co-habitatge ou co-vivienda) ou habitação cooperativa em cessão de uso. Esse foi um projeto proposto por grupos cooperativos organizados pelo direito à moradia, que há algum tempo já trabalhavam no desenvolvimento da proposta, inspirados pelas importantes experiências das Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua do Uruguai. (Muxi-Martinez, 2020) No início da década de 1990, a Cooperativa de Usuarios por Ayuda Mutua de Mujeres Jefas de Familia (MUJEFA), organizada através da Federação Uruguaia de Cooperativas de Vivenda por Ajuda Mútua (FUCVAM), foi incluída no Programa Piloto de Reciclagem de edifícios no centro histórico da cidade de Montevideo e é considerada uma importante experiência para as políticas habitacionais voltadas a atender as demandas de mulheres chefes de família em centros urbanos (Santos, 2020).

O projeto da Cooperativa La Borda (2020), em Can Batlló, em Barcelona, surgiu com a ideia de reabilitar um antigo galpão industrial, produzindo habitação coletiva com usos e espaços compartilhados. O projeto da Rua Princesa propôs a reabilitação de um edifício de propriedade do município para convertê-lo em seis unidades habitacionais para atender a demanda da Cooperativa Sostre Cívic (2017). Entre 2015 e 2019 se estabeleceram regras e leis que tornaram possível a construção do sistema habitacional cooperativo de posse coletiva em cessão de uso, cujos projetos privilegiam espaços compartilhados que colocam os cuidados no centro, promovendo maior socialização e acompanhamento de pessoas dependentes e tornando mais leve a carga derivada das atividades domésticas.

Muxi-Martinez (2020) salienta que já levam décadas no contexto da região as lutas feministas por cidades que tenham em conta as tarefas de reprodução e dos cuidados da vida no centro do pensamento e processo de planejamento e projeto. Na atualidade, na região da Catalunha, são requeridas pessoas especialistas em gênero em concursos de grandes projetos urbanos, assim como para a redação e revisão de estudos que abordam a perspectiva de gênero no urbanismo e na arquitetura.

As ações concretas nas cidades por iniciativa de prefeitas feministas, o trabalho de formação de técnicos municipais, a participação e a escuta das demandas de mulheres ativistas das associações de vizinhos, a introdução do tema de gênero nos marcos legais e em estudos de pós graduação na Universidade Politécnica da Catalunha (UPC), a criação do Col.lectiu Punt 6 (Coletivo Ponto 6) e de outras cooperativas de arquitetos e demais profissionais especializados no tema e a difusão dos conhecimentos gerados nesse processo, ampliaram sua repercussão e provaram que cidades mais justas, menos violentas e sustentáveis devem incluir no centro de seu planejamento as tarefas de cuidados e reprodução da vida nas suas diferentes escalas.

 

Construindo a cidade cuidadora – A experiência de Bogotá, Colômbia.

Para que seja possível entender melhor as transformações que estão ocorrendo desde 2004 na Colômbia, em especial na capital Bogotá, serão utilizadas as informações contidas no trabalho coordenado por Dalmazzo Peillard (2017), intitulado ¿Quién cuida em la ciudad? Oportunidades y propuestaemen Bogotá (Colombia), realizado no âmbito das Nações Unidas, pela Divisão de Assuntos de Gênero da Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL

Bogotá tem uma população de 7.862.243 habitantes, onde 51,96% se declaram mulheres e 48,04 % homens.  Está dividida administrativamente em 20 localidades e tem uma área de 158.750 hectares, dos quais 121.474 hectares são rurais (76%).  Assim como as capitais latino-americanas em geral, se caracteriza por ser uma cidade altamente segregada em função das diferenças de rendimentos e também por consequência das políticas urbanas de habitat e mobilidade. Políticas estas que resultam na localização das moradias dos extratos mais pobres em zonas periféricas de mais baixo custo, distantes das oportunidades de trabalho e de serviços essenciais. A segregação está expressa nas diferenças de acesso aos equipamentos e serviços sociais de saúde, educação, cuidados, à segurança, à moradia adequada e ao meio ambiente saudável. Para que soluções efetivas avançassem na busca por direitos sociais nas últimas décadas na capital colombiana, houve a mobilização, organização e o trabalho das mulheres em diferentes setores da sociedade.

Assim como aconteceu na Espanha, na Colômbia, mulheres envolvidas com a vida comunitária, feministas, políticas e acadêmicas, promoveram através de espaços nacionais e internacionais a incorporação de compromissos específicos por parte de governos locais. Compromissos que visam a conquista de direitos das mulheres, dentre os quais o direito à cidade. Desde 2004, houve importante abertura ao tema da equidade de gênero através da política pública Mujer, Género y Diversidad Sexual, que embasou o desenho e a criação do Plan de Igualdad de Oportunidades para la Equidad de Género (2004-2016), da cidade de Bogotá, incluindo sete direitos fundamentais para a conquista da igualdade de oportunidades e da equidade de gênero:  1) uma vida livre de violências; 2) a participação e a representação das mulheres; 3) o trabalho em condições de igualdade e dignidade; 4) a saúde plena; 5) a educação com equidade; 6) uma cultura livre de sexismo; 7) o direito ao habitat.

De acordo com Dalmazzo Peillard (2017), estes compromissos que se estabeleceram na Colômbia contaram com avanços na abordagem voltada para a economia do cuidado e receberam impulso da CEPAL e de importantes economistas feministas. Foram fomentados por meio de oficinas para a equidade de gênero realizadas na capital Bogotá e no resto do País e constituíram avanços embasados em um diagnóstico que apontou as políticas e a oferta de serviços de cuidados disponíveis, as características de quem os realiza e com que conhecimentos e habilidades contam. Também foi identificada a acessibilidade aos equipamentos no território, considerando barreiras e oportunidades para a igualdade de gênero e a autonomia econômica das mulheres. Foram ainda analisados dados relativos à educação, à situação do mercado de trabalho, aos tipos de moradias, à pobreza e recursos para satisfazer às necessidades básicas, salários e suas diferenças entre homens e mulheres, trabalho remunerado e não remunerado e ao uso do tempo na cidade.

Entre os avanços alcançados através de compromissos públicos que abordam a economia do cuidado como central para o alcance da equidade de gênero na Colômbia, a consultora destaca:  a) a criação da Lei 1413 de 2010, que define, em seu artigo 2, a economia do cuidado como aquela que “faz referência ao trabalho não remunerado que se realiza na casa, relacionado com a manutenção dessa, os cuidados com outras pessoas na moradia ou na comunidade e a manutenção da força de trabalho remunerado”; b) a realização da Pesquisa Nacional do Uso do Tempo (ENUT) em 2013-2014, atualizada em 2017; c) a inclusão da economia do cuidado no Sistema de Contas Nacionais a fim de medir a contribuição das mulheres no desenvolvimento econômico e social do País, como ferramenta fundamental para a definição e implementação de políticas públicas no tema; d) o desenho do Sistema Nacional de Cuidado.

A partir da criação da Lei 1413 de 2010, a Comissão Intersetorial de Economia do Cuidado, vem trabalhando na elaboração das bases institucionais e técnicas do Sistema Nacional de Cuidado e na agenda nacional sobre o tema. Inicialmente foi definido o público alvo, seus eixos, enfoques e princípios. Foram selecionados os princípios de equidade, progressividade, gradatividade, complementaridade, articulação intersetorial, corresponsabilidade e oportunidade. Sob os enfoques dos direitos, do território, de gênero e das diferentes fases da vida.  Está centrado no direito universal ao cuidado e tem como eixos orientadores o reconhecimento, a redistribuição e a redução das responsabilidades de cuidados entre o Estado, o mercado, a sociedade civil e a família.

O Plan de Igualdad de Oportunidades para las Mujeres, a Secretaria Distrital de la Mujer de Bogotá, através do Plan de Desarrollo Bogotá Mejor para Todos e do Programa Mujeres Protagonistas, Activas y Empoderadas busca gerar ações que promovam o direito das mulheres ao trabalho em condições de igualdade e dignidade. Através de campanhas, visa sensibilizar a cidadania da capital, em especial a masculina, para que aumente, ao menos em uma hora, sua dedicação às atividades domésticas não remuneradas a fim de diminuir a sobrecarga de trabalho das mulheres para que avancem em sua autonomia.

A participação cidadã das mulheres, a criação de oportunidade para seu desenvolvimento pessoal e o combate à violência de gênero, nas diferentes regiões da cidade são condições chave para a formulação, implantação e consolidação das políticas de cuidados em Bogotá. Foram criados o Conselho Consultivo de Mulheres (CCM) e as Casas de Igualdade de Oportunidades, nas diferentes localidades, além das instâncias de participação como os Comitês Locais de Gênero e os Conselhos Locais de Segurança de Mulheres. O Conselho Consultivo de Mulheres é a instância que coordena os processos entre as diversas organizações femininas e se caracteriza por ser um organismo técnico e político.

O financiamento dos programas de proteção e cuidado de pessoas dependentes (crianças, idosos, deficientes) são orientados a atender o bem estar destas resultando também na diminuição da sobrecarga de trabalho das mulheres e contribuindo para sua maior independência. Se baseiam nos programas do Instituto de Bienestar Familiar e do Plan de Desarrollo Distrital de Bogotá 2016- 2020. Nesse sentido, sucessivas administrações da cidade avançaram na formulação de planos e programas para ampliar a cobertura dos serviços de atendimento à primeira infância, à implantação da jornada escolar única e a de serviços de cuidados com idosos em horários noturnos.

Por fim vale destacar o trabalho da Mesa de Economia Feminista, outra importante estrutura governamental criada para dar suporte às políticas de cuidados na capital colombiana. Funciona desde 2011 e é formada por economistas mulheres e especialistas em estatísticas e indicadores, possibilitando uma interlocução qualificada com o governo distrital de Bogotá, para apoiar o Sistema Distrital de Cuidados. Além disso, a revisão do Plano de Ordenamento Territorial da capital deverá contemplar a territorialização dos cuidados e os enfoques de cidade de proximidade para a vida cotidiana.

 

Construindo a cidade cuidadora - A experiência de Orçamento Participativo de Porto Alegre/RS/Brasil

Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, é a capital mais meridional do Brasil e tem uma população estimada em 2021 de 1.492.530 habitantes, com 46,39% de homens e 53,61% de mulheres. No percentual de residentes por cor/raça, 79,23% se declaram brancos, 20,24% pardos e pretos (negros), 0,29% amarelos e 0,23% indígenas. Segundo o IBGE, ocupa uma área de 497 km², de geografia diversificada, com morros, baixadas e um grande lago: o Guaíba. A Zona Rural, no extremo sul da cidade, está inserida em uma área com 4,1 mil hectares. (Wikipédia, 2021) Embora apresente Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) de 0,81, ocupando o sexto lugar entre as 26 capitais estaduais do País, também é uma cidade segregada, desigual e injusta.

A cidade, tornou-se conhecida dentro e fora do Brasil através de iniciativas relevantes na disputa pela democratização do direito à cidade para todas as pessoas e na construção do pensamento de um outro mundo possível através da implantação do Orçamento Participativo - OP e da realização de quatro edições do Fórum Social Mundial – FSM (2001; 2002; 2003; 2005). O Orçamento Participativo, já era reconhecido internacionalmente e deu legitimidade para a realização do Primeiro Fórum Social Mundial - FSM, na capital gaúcha, em 2001. O OP é um sistema de participação popular na definição do orçamento municipal através da cogestão de parte dos recursos públicos a serem investidos na cidade, pela população participante e o executivo municipal. Teve sua criação e estruturação no período das administrações municipais do Partido dos Trabalhadores - PT, que governou por um período de dezesseis anos consecutivos Porto Alegre, entre os anos de 1989 e 2004. (Campos e Silveira, 2015)

A ideia da criação do OP em 1989 em Porto Alegre por parte da administração municipal se apoiou na constituição nacional promulgada em 1988 e teve respaldo, principalmente, das organizações de movimentos populares reunidas na cidade em torno da Federação Riograndense das Associações e Amigos de Bairros – FRACAB e da União das Associações de Moradores de Porto Alegre - UAMPA, organizadas nos anos de 1970 para resistir ao regime ditatorial da época. (Campos e Silveira, 2015) A Constituição de 1988, obrigou os municípios a adotarem como princípio na elaboração das leis orgânicas, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” (artigo 29, inciso XII). Em 2001, também o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), em seu artigo 44, determinou que a gestão orçamentária participativa é condição obrigatória para que a Câmara Municipal aprove o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. O Estatuto da Cidade ainda especificou que a gestão orçamentária participativa devesse incluir a realização de debates, audiências e consultas públicas.

O sistema de gestão urbana local chamado popularmente de OP, proporciona o processo de discussão de prioridades e votação através das representações de delegados e conselheiros. Estes são eleitos em Assembleias nas 17 Regiões definidas segundo sistema de planejamento local e divisão geográfica do IBGE e também em seis Assembleias temáticas que debatem e elegem demandas nas áreas da saúde e assistência social; educação, esporte e lazer; tributação, desenvolvimento econômico e turismo; desenvolvimento urbano e ambiental; cultura e circulação e transporte (Campos e Silveira, 2015).

Tanto as Assembleias Regionais quanto as Temáticas obedecem a quatro critérios para priorização do atendimento às demandas, na seguinte ordem de hierarquização: (1º) prioridade da microrregião ou comunidade, (2º) prioridade dos(das) delegados(as), (3º) carência do serviço ou infraestrutura e (4º) população atingida. Participam das assembleias pessoas maiores de 16 anos que elegem representantes em dois níveis: delegados e conselheiros (titulares e suplentes). Cada Região e cada Temática têm direito a um delegado a cada grupo de 10 pessoas credenciadas nas 23 plenárias (dezessete regiões e seis temáticas) realizadas durante o processo anual (Campos e Silveira, 2015).

O OP possibilita que as mulheres das áreas mais empobrecidas possam manifestar suas demandas e torná-las realidade através da sua inclusão no plano de investimentos municipal, a partir desses diferentes mecanismos de participação. Muito embora o mundo da política, da visibilidade e do debate sobre os rumos das cidades seja tradicionalmente identificado como um campo de atuação masculino, o OP foi se tornando uma alternativa de inclusão das mulheres na arena política através dos mecanismos de democracia participativa nele instituídos. Com características específicas e vidas singulares, as trajetórias dessas mulheres convergem em um ponto comum: a inserção no mundo da política como alternativa de superar os diversos problemas relacionados à vida cotidiana das comunidades que pertencem ou passaram a pertencer. Se engajaram no campo da política e perceberam que ele oferecia oportunidades que transcendiam apenas a realização de projetos coletivos de transformação objetiva do espaço onde viviam, culminando em uma transformação em termos subjetivos (Matos, 2009).

Por outro lado, mesmo que sejam as mulheres as que mais participam das assembleias, o espaço de maior poder de decisão é de maioria masculina. Em 2009 o percentual de mulheres participantes das Assembleias do Orçamento Participativo foi de 54,7%, contra 44,8% de participantes do sexo masculino. Mesmo a participação feminina no OP sendo um fenômeno observável, as análises quantitativas da participação por gênero destacam que, no que tange à representação no Conselho do Orçamento Participativo (COP), a instância de maior prestígio e poder na organização interna do processo, a participação das mulheres se torna minoritária quando analisados os cargos de titularidade. Por outro lado, não se pode deixar de evidenciar que essas mulheres conseguiram criar espaço para as suas demandas, ter voz, mobilizar e, em especial, transformar e qualificar seus locais de moradia (Matos, 2009).

O COP foi criado em 1992 e constituiu-se como o órgão central de todo o processo, tendo a função de deliberar sobre a receita e despesa do Município, apreciando o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual antes de ser encaminhado à Câmara de Vereadores para aprovação. (Campos e Silveira, 2015). Todas estas decisões orçamentárias são de responsabilidade do prefeito, conforme Lei Orgânica do Município, o que ocorre é uma decisão consensual entre o executivo e a população participante sobre a destinação dos recursos para investimentos na cidade, aumentado a assertividade das ações dos agentes públicos no atendimento à população e apresentando maior transparência.

O Regimento Interno do OP institui, na composição do Conselho (COP), cotas para a participação de ambos os sexos: um mínimo de 40% e um máximo de 60%, não definindo paridade de gênero entre suplentes e titulares. A dupla jornada de trabalho (remunerado e doméstico); a falta de recursos financeiros para deslocamento para participar das atividades do COP, realizadas na região central da cidade; os horários agendados e a dificuldade de ter onde e com quem deixar os filhos prejudicam a participação das mulheres das regiões mais periféricas e empobrecidas como titulares (direito à voto) do Conselho do Orçamento Participativo (Matos, 2009).

Embora, atualmente, esteja sofrendo muitos ataques e não seja respaldado pelos últimos prefeitos de Porto Alegre, todo esse processo participativo do OP formou até aqui, muitas pessoas nas discussões sobre o planejamento e sobre a gestão participativa da cidade, possibilitou obras e serviços que transformaram a vida de muitas comunidades e aproximou os gestores públicos da realidade cotidiana das diferentes regiões. Ainda tem muitos problemas para solucionar e projetos políticos contrários, mas certamente pode ser considerado um potencial espaço de empoderamento feminino e de atendimento das demandas das mulheres na construção de uma cidade cuidadora para todas e todos. A participação cidadã nas propostas de investimentos e no controle social sobre os fundos públicos são fundamentais para a construção de um planejamento urbano contra hegemônico.

 

Considerações finais

Em decorrência de um modelo de urbanismo voltado para atender as demandas do trabalho produtivo, a grande maioria das cidades contemporâneas não está preparada para satisfazer as atividades reprodutivas de cuidados, em especial em países onde imperam lógicas coloniais, de população empobrecida e com grandes desigualdades, como é o caso do Brasil e da Colômbia. Este despreparo acaba impactando negativamente na qualidade de vida e na rotina de boa parte das pessoas e, em especial, daquelas que realizam o trabalho reprodutivo que são, majoritariamente, mulheres. Na busca pela mudança dos paradigmas ditados por esse urbanismo hegemônico de poder patriarcal, o trabalho conjunto e colaborativo de uma diversidade de mulheres, que se envolvem com a vida comunitária em seus bairros, representantes políticas, técnicas, acadêmicas e ativistas feministas, têm produzido avanços na construção de cidades cuidadoras, menos violentas, mais justas e sustentáveis, que incluem no centro de seu planejamento, nas diferentes escalas, as tarefas de cuidados e reprodução da vida.

Como apontam Hollanda e Pellegrino (2018), a crescente especialização dos movimentos de mulheres no trato com a política nas três esferas de poder, ocupando ministérios, secretarias de estado, prefeituras, casas legislativas, conselhos e comissões especializadas (nacionais e internacionais), proporcionaram o crescimento das políticas voltadas para a equidade de gênero. Nas últimas décadas, mesmo que com muitos desafios a enfrentar e retrocessos, é possível evidenciar importantes avanços nas experiências de Barcelona e cidades na Região da Catalunha, na Espanha; de Bogotá na Colômbia e de Porto Alegre, no sul do Brasil. Cada uma delas, com suas realidades peculiares, demonstram que as condições chave para a formulação, implantação e consolidação de políticas de cuidados nas cidades estão diretamente relacionadas com a participação paritária entre mulheres e homens em espaços de poder e representação política, com a criação de leis e planos voltados para a equidade de gênero, com a criação de oportunidades para o desenvolvimento pessoal e econômico das mulheres e com o combate à violência de gênero.

A experiência de Bogotá indica que a territorialização dos cuidados e os enfoques de cidade de proximidade para a vida cotidiana devem ser incorporados aos Planos Diretores de desenvolvimento territorial. Também demonstra que para o planejamento de cidades cuidadoras, primeiramente deve haver o reconhecimento da realidade das diversas mulheres que vivem nas cidades, através de diagnósticos que apontem as políticas e a oferta de serviços de cuidados disponíveis, as características de quem os realiza e com que conhecimentos e habilidades contam. Da mesma forma é importante identificar a acessibilidade aos equipamentos no território, considerando barreiras e oportunidades para a igualdade de gênero e a autonomia econômica das mulheres; analisar dados relativos à educação, à situação do mercado de trabalho, aos tipos de moradias, à pobreza e recursos para satisfazer às necessidades básicas; salários, diferenças entre homens e mulheres, trabalho remunerado e não remunerado e uso do tempo na cidade.

Também cabe destacar que, medir a contribuição das mulheres no desenvolvimento econômico e social dos países, como vem ocorrendo na Colômbia, torna-se essencial para justificar, embasar e implementar políticas públicas de equidade que transformem a realidade de exploração vivida por elas. A participação feminina ativa e qualificada no Orçamento Participativo de Porto Alegre, assim como nas Associações de Vizinhos da Espanha e nos comitês e conselhos de mulheres da Colômbia, evidencia a importância de seu trabalho e conhecimento situado nos espaços de gestão e planejamento das cidades. As diversas mulheres que se engajam no campo da política através dos mecanismos da democracia participativa vivenciam oportunidades que transcendem à realização de projetos coletivos de transformação objetiva do espaço onde vivem e têm a oportunidade de experimentar mudanças subjetivas que as fortalecem e empoderam.

Muito embora a lógica do urbanismo da ‘cidade cuidadora’, se organize a partir de uma visão feminista de urbanismo, sua intenção é produzir cidades melhores, mais justas e menos violentas para todas as pessoas. O direito à uma cidade cuidadora está, sobretudo, relacionado com a garantia dos direitos a uma vida digna e com autonomia, saudável, sem exploração e violência para mulheres, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiências e tantas outras que compõem o contingente de excluídos das cidades do urbanismo androcêntrico. Em diferentes partes do mundo, em diversas áreas e espaços de atuação, as mulheres vêm enfrentando e combatendo as assimetrias e desigualdades produzidas pela sociedade patriarcal e seu urbanismo excludente e extrativista, propondo outros modelos de arquitetura, de planejamento e de gestão de cidades.

 

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[1] Androcentrismo é um termo cunhado pelo sociólogo estadunidense Lester F. Ward em 1903 e não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também à forma como as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal tanto para homens quanto para mulheres. (Wikipédia, 2021)