Um vestido apertado demais: uma leitura feminista da tradução do conto O vestido de veludo, de Silvina Ocampo, para o português brasileiro
A dress too tight: a feminist reading of the translation of the short story O vestido de veludo, by Silvina Ocampo, into Brazilian Portuguese
Melissa Maciel PAIVA - macielp.melissa@gmail.com
Universidade Federal do Paraná
Nylcéa Thereza de SIQUEIRA PEDRA - npedra@hotmail.com
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Apoiadas nas considerações feitas por Françoise Massardier-Kenney em seu célebre estudo Caminhos para uma redefinição da prática feminista da tradução (2022), pretendemos discutir no presente artigo de que modo a recuperação da obra de Silvina Ocampo, especialmente do seu conto El vestido de terciopelo/O vestido de veludo (1959/2019), contribui para uma leitura feminista da sua produção literária e de sua respectiva tradução ao português brasileiro. Para isso, revisitaremos alguns estudos feitos sobre a autora e sua obra de modo a apresentar uma leitura comentada do argumento do conto analisado e também uma leitura crítica da sua tradução, destacando elementos que, a nosso ver, contribuem para a recepção da obra de Silvina Ocampo no Brasil.
Palavras-chave: crítica literária feminista, tradução, Silvina Ocampo, O vestido de veludo
Abstract
Based on the considerations made by Françoise Massardier-Kenney in her famous study Towards a Redefinition of Feminist Translation Practice (2022), we intend to discuss in this article how the recovery of Silvina Ocampo's work, especially her short story El vestido de terciopelo/O vestido de veludo (1959/2019), contributes to a feminist reading of her literary production and its respective translation into Brazilian Portuguese. To do so, we will revisit some studies about the author and her work in order to present a commented reading of the argument of the analyzed short story and also a critical reading of its translation, highlighting elements that, in our point of view, contribute to the reception of Silvina Ocampo's work in Brazil.
Keywords: feminist literary criticism, translation, Silvina Ocampo, O vestido de veludo
1. Considerações iniciais
É apenas no ano de 2022 que um dos mais importantes estudos sobre a prática feminista da tradução - Caminhos para uma redefinição da prática feminista de tradução - escrito originalmente em 1997, ganha tradução ao português brasileiro. Neste estudo, Françoise Massardier-Kenney faz uma importante discussão sobre o que entende por feminismo, o papel ocupado pelas tradutoras franco-canadenses na defesa de uma prática tradutória feminista, e apresenta estratégias que marcam o exercício de uma tradução feminista. As considerações tecidas pela autora contribuem significativamente para a avaliação crítica do exercício da tradução e, consequentemente, para os estudos da área de forma mais ampla.
Para Massardier-Kenney, a prática feminista da tradução deve adotar estratégias que se centram na pessoa que escreve e também na pessoa que traduz[1]. Aqui, ampliamos a proposição da estudiosa, entendendo que tais estratégias também devem se centrar na(s) pessoa(s) que realiza(m) a crítica literária das obras e de suas traduções, uma vez que é nessa tríade pessoa autora - pessoa tradutora - pessoa crítica que se concretiza a mudança de status de uma obra, a sua visibilidade e a possibilidade de um olhar outro para produções que estiveram ofuscadas por uma ideologia e concepção de cânone patriarcal.
Ao colocar a atenção na pessoa que escreve, a crítica aponta para a importância do que chama recuperação, isto é, a necessidade de recuperar as autoras que foram suprimidas ou mantidas em esquecimento. Se atualmente podemos dizer que, ao menos no mundo das letras hispânicas, Silvina Ocampo goza de um reconhecimento que poderíamos aproximar ao canônico, tal valorização só se faz bastante tardiamente, como aponta José Amícola:
[Seja como for, pode-se considerar que a crítica acadêmica argentina demorou para reconhecer os méritos da obra de Silvina Ocampo, mas a partir da década de 80, quando a autora estava concluindo seu labor criativo de cinquenta anos de dedicação à literatura, os professores universitários rio-platenses colocaram em seus programas de literatura estes contos insubmissos]. (Amícola, 2014, p. 6, tradução nossa).[2]
Ainda no que diz respeito à recepção da obra de Silvina Ocampo na Argentina, Mariana Enríquez corrobora a argumentação de Amícola e a expande, ao afirmar que a autora é mais lida pela academia do que pelo grande público: [é certo que Silvina Ocampo é hoje um verdadeiro fetiche da academia, que lhe dedicou inúmeros trabalhos críticos, e ainda que continue sem vender muito, se consolidou no lugar da Grande Escritora Argentina] (Enríquez, 2018, posição 2205).[3]
No contexto brasileiro, a recepção da obra da escritora no âmbito acadêmico ainda parece ser incipiente. Em busca realizada com os termos «Silvina Ocampo» na base de dados da plataforma Scielo, foram encontrados apenas 12 registros, sendo que nenhum deles foi publicado em periódicos brasileiros. Por outro lado, a mesma busca realizada no Google Scholar[4] resultou em 299 registros que, após triagem manual, totalizou 20 trabalhos cujo objeto central é a obra de Silvina Ocampo, entre eles artigos, ensaio, capítulo de livro eletrônico, trabalhos de conclusão de curso, dissertação e tese.
Um dado bibliométrico interessante a ser levado em conta a partir deste levantamento é que desde 2019 o número de publicações de estudos sobre a autora se amplia no país, possivelmente impulsionado pelo aparecimento do primeiro livro autoral de Silvina Ocampo traduzido no Brasil: A fúria e outros contos (2019), em tradução de Livia Deorsola, publicado pela Companhia das Letras, importante casa editorial brasileira. Ao caso de Silvina Ocampo, unem-se os de outras várias autoras. Na última década, pôde-se assistir uma crescente publicação de latino-americanas no mercado brasileiro. Observa-se desde a recuperação de nomes como o de Elena Garro e Sara Gallardo, à apresentação de autoras com produções mais contemporâneas como María Teresa Andruetto, María Fernanda Ampuero, Magela Baudoin, Gabriela Cabezón Cámara, Andrea Jeftanovic, Socorro Venegas, Lilia Lardone, Estela Smania, entre outras. Certamente há uma movimentação e um interesse editorial para que este boom - considerado por muitos o novo boom da literatura latino-americana[5] - aconteça. No entanto, não desconsideramos que o aumento da publicação de autoras também se deve a uma crescente consciência feminista, que tem permitido um olhar para as obras de autoras que sempre estiveram produzindo, mas estavam relegadas a um segundo plano.
Outra constatação digna de nota é que a tradução destas autoras foi feita, em sua grande maioria, por mulheres. Concordamos com Olga Castro (2017, p. 229) quando afirma que «a partir da tradução, também se pode contribuir para a transformação do cânone literário contemporâneo [...] o que enriquece grandemente o campo da tradução». E a estudiosa vai além na argumentação da importância de se traduzir autoras:
[...] o fato de que se traduzam textos de autoria feminina entre diferentes línguas e culturas colocará em contato experiências de mulheres muito distintas, contribuindo para dissolver a presunção patriarcal de que o homem é heterogêneo e a mulher homogênea, e a constatar que o gênero não é o princípio unificador para todas as mulheres, mas apenas configura a identidade junto a outras variáveis. (Castro, 2017, p. 231).
Por muito tempo a leitura das obras de Silvina Ocampo ficou circunscrita a um possível autobiografismo. De certo modo, a resenha que sua irmã Victoria publica na Revista Sur em razão da apresentação de Viaje olvidado (1937) corrobora essa leitura. A afirmação de que se trata de [uma pessoa disfarçada de si mesma] (Enríquez, 2018, posição 81)[6] convida a entender a obra de Silvina como estritamente autobiográfica. Esta é uma apropriação bastante limitada do termo, já que se pensarmos que o relato autobiográfico «se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica» (Bourdieu, 1998, p. 184) das experiências de vida, estes serão inevitavelmente reelaborados no campo da criação. O conto é o laboratório de experimentação estética de Silvina Ocampo, que não se furta de engendrar distorções do “eu”, com sucessivas manifestações do incoerente e do contraditório, para além de uma almejada racionalidade totalizadora. É inquestionável que a fonte de que se alimenta para compor muitos dos seus contos permeia espaços e experiências vividas, especialmente na infância. No entanto, se este é o seu insumo, a autora é capaz de transformá-lo de um modo perverso, realizando, assim, uma inversão entre o vivido e o narrado. Aqueles a quem dava tanta atenção e nutria tanta admiração - os serviçais da casa, as costureiras, passadeiras, cozinheiras - são os que ganham protagonismo em seus contos e, com eles, as crianças, mas não qualquer uma:
[[...] perto de San Isidro viviam muitos meninos pobres. Para mim, pareciam muito superiores aos que nos visitavam, muito mais divertidos do que minhas primas. Minhas primas eram umas tontas, umas inúteis. Não sabiam roubar nada [...], estavam sempre impecáveis, não queriam se sujar, não se mexiam para não se desarrumarem]. (Enríquez, 2018, posição 48).[7]
São essas as personagens que ocuparão as páginas de La furia y otros cuentos, publicado originalmente em 1959 e reeditado em 1982. Em uma imersão num universo de vozes predominantemente femininas, Silvina Ocampo nos apresenta uma obra que, longe de ser um espelho fiel da sociedade em que vivia, é capaz de refleti-la crítica e jocosamente. Há em seus contos mulheres que ocupam posições sociais diferentes, representando de maneira contundente a heterogeneidade feminina que destacamos anteriormente em citação de Olga Castro:
[Predominam as vozes femininas, preceptoras, cabeleireiras, modistas, chapeleiras, criadas; em geral, mulheres que fazem trabalhos manuais e cuja linguagem, impregnada de estereótipos e clichês, ressoa em ambientes adornados com enfeites de plástico, colchas cor-de-rosa e imagens religiosas]. (Enríquez, 2018 posição 964).[8]
2. Por uma crítica feminista do conto O vestido de veludo
Para aprofundar a discussão de como a obra de Silvina Ocampo pode ser lida desde a perspectiva da tradução feminista, tomamos como objeto de análise o conto El vestido de terciopelo, traduzido para o português como O vestido de veludo. Com isso, pretendemos dar conta de mais uma estratégia para uma prática feminista da crítica de tradução, que são os comentários, um exercício que aponta para «o desejo de visibilizar o ato da tradução, mas que também permite que quem traduz possa refletir sobre as estratégias tradutórias utilizadas e sobre a importância da pessoa que escreve e que agora chega a uma nova língua» (Massadier-Kenney, 2022). E, neste espaço, trabalharemos concomitantemente com os comentários relacionados à obra em sua apresentação original e à tradução. Isso se deve à nossa compreensão de que não existe a possibilidade da realização de uma tradução neutra e objetiva, reprodutora fiel do texto de partida:
Essas novas abordagens começaram também a questionar o papel, até então neutro, objetivo e invisível, da pessoa que traduz, reivindicando seu papel ativo, pois o primeiro passo ao traduzir consiste em ler o original escrito por uma figura autoral que deve ser consciente da existência de várias (embora não infinitas) leituras e interpretações possíveis a partir de suas textualidades. Parece irreal, então, a possibilidade de produzir um texto equivalente e fiel ao original ou à autoria. (Castro, 2017, p. 220).
O primeiro elemento que merece atenção na leitura do conto é a sua voz narrativa. Uma menina, de oito anos de idade, cujo nome é desconhecido dos leitores, acompanha a costureira Casilda fazer a entrega de um vestido de veludo na casa de Cornelia Catalpina. É ela quem descreve o caminho que as leva até a casa, o seu interior e a funesta prova do vestido. Se, por um lado, o relato nos conduz a observar a preparação da menina para os afazeres femininos de uma mulher de sua classe, inclusive na ausência de um nome próprio como a indicação de um futuro pré-determinado; por outro, observamos uma personagem que está duplamente à margem, por ser criança e por ser uma menina periférica, que se diverte diante de uma situação trágica numa casa opulenta. Ela é mais uma das crianças más que abundam nos contos de Silvina Ocampo:
[Grande parte da literatura de Silvina Ocampo parece estar contida ali: na infância, nas dependências de serviço. Parecem vir daí seus contos protagonizados por crianças cruéis, crianças assassinas, crianças suicidas, crianças abusadas, crianças piromaníacas, crianças perversas, crianças que não querem crescer, crianças que nascem velhas, meninas bruxas, meninas videntes; seus contos protagonizados por cabeleireiras, costureiras, por preceptoras, por adivinhas, por corcundas, por cães embalsamados, por engomadeiras]. (Enríquez, 2018, posição 81).[9]
Do início ao fim do conto, há uma interjeição constante na fala da menina que marca a ambiguidade de seu caráter. No texto original, Silvina Ocampo utiliza como modo de marcar tal ambiguidade a expressão ¡qué risa!, repetida oito vezes no decorrer da narrativa curta, que aparece em tradução para o português brasileiro como que divertido!. Embora respeitemos a opção tradutória feita por Livia Deorsola - uma vez que a segunda entrada para o termo no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define o adjetivo como «que diverte, que provoca riso; alegre, engraçado» - gostaríamos de problematizar a sua escolha para a expressão repetida pela narradora. Parece pouco provável ser divertido fazer o que não se tem vontade e em condições pouco favoráveis, como lemos nas primeiras linhas do conto:
Suando, secando a nossa testa com lenços, que umedecíamos na fonte da Recoleta, chegamos a esta casa ajardinada na Calle Ayacucho. Que divertido!
Subimos pelo elevador até o quarto andar. Eu estava mal-humorada, porque não queria sair, pois meu vestido estava sujo e eu pensava em aproveitar a tarde para lavar e passar a colcha da minha caminha. (Ocampo, 2019 [1959], p. 125).
Embora o adjetivo «divertido» contemple a ideia do riso, o faz sem o duplo sentido impresso na colocação original da narradora. É como se acompanhando a expressão ¡qué risa! pudéssemos ver um sorriso maroto de menina num crescendo, entre a diversão e o sarcasmo. Acreditamos que o uso da locução que sarro!, empregada mais comumente em português brasileiro para situações de graça constrangedora, além de conter duas sílabas e se aproximar à sonoridade da palavra em espanhol, poderia cumprir este duplo papel da expressão em seu original. Tal dualidade no uso da expressão, também se vê registrada no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que, na acepção «sarro» registra: «ser um sarro: ser muito divertido, alegre / tirar (um sarro): zombar de, troçar de». Indo em direção à leitura de Monica Zapata (2005), além das problematizações de gênero na análise do conto, a autora também destaca o tom desafiador da menina no uso do sintagma, que se subverte progressivamente ao mesmo tempo em que se intensifica a angústia incrementada no conto. Além disso, tal escolha contemplaria de maneira mais ampla a estratégia narrativa ocampiana observada por José Amícola:
O que mais chama a atenção na estratégia narrativa de Silvina Ocampo é o jogo astuto entre o saber e o não saber do relator, isto é, a estratégia peculiar que a autora preparou para a função relatora. Se com razão sempre nos chamou a atenção como se dá a história nos contos de Silvina Ocampo, talvez o que não se tenha dito é que esta impassibilidade narrativa de muitas das crianças ocampianas diante do cruel é um operativo que, no fim, aponta para desmistificar a ideia da inocência infantil. As pequenas narradoras desta contista se colocam na pose de não saber por que acontecem as coisas, mas, finalmente, acabam aceitando, como as crianças verdadeiras, a maldade das situações, porque se encontram para além de toda consciência moral. (Amícola, 2014, p. 3).[10]
A personagem Casilda também merece destaque em uma discussão que parece às vezes bastante limitada na crítica da obra de Silvina Ocampo: a distinção de classes entre as personagens. Embora hoje se reivindique os textos da autora para leituras feministas e se procure em sua biografia marcas de uma militância, sabemos pela leitura de sua biografia que, ao contrário de sua irmã Victoria, Silvina nunca vivenciou um feminismo engajado. Isto não quer dizer, no entanto, que as discussões feministas não se fizessem em seu entorno. Enríquez recupera uma entrevista em que a autora dá sua opinião a respeito da aprovação do voto feminino na Argentina, no contexto do peronismo e movido por Eva Perón: [Confesso que não me lembro. Pareceu-me tão natural, tão evidente, tão justo, que não julguei que requeria una atitude especial] (Enríquez, 2018, posição 1771)[11]. Apesar de seu posicionamento político ambíguo, essas discussões foram plasmadas e elaboradas em seus textos literários, até mesmo antecipando o que, anos mais tarde, estudiosas como María Lugones defenderiam nos estudos feministas decoloniais: a importância da compreensão da interseccionalidade para uma análise feminista.
Assim, temos neste conto a possibilidade de encarar a representação feminina de maneira mais complexa, com duas mulheres pertencentes a dois mundos espacial e socialmente diferentes. Diferenças que já se imprimem no nome atribuído a cada uma delas:
[[...] os nomes escolhidos para os personagens centrais também colaboram para essa oposição bairrista e classista antes mencionada: «Casilda» é um nome que se tornou popular na Argentina pela sua disseminação entre as pessoas do campo e arredores, enquanto «Cornelia» tem seu sabor patrício e, portanto, remete às posições elevadas da classe social que o torna próprio. «Casilda» se opõe, assim, à «Cornelia» de modo absoluto]. (Amícola, 2014, p. 3).[12]
No conto, em sua versão original, o contraponto entre as duas personagens se faz de maneira mais explícita na descrição do espaço ocupado por cada uma delas e na relação estabelecida entre ambas. Se uma vive nas redondezas da cidade, em um bairro de trabalhadores, a outra ocupa um casarão aristocrático, imponente, mas com cheiro de naftalina. A voz de Casilda não é tão evidenciada no texto como a voz de Cornelia, visto que aquele encontro tem uma finalidade muito específica de prestação de serviço e não é à toa que a personagem se dirige de maneira submissa à senhora no sentido de persuadi-la a provar o vestido, fruto de seu trabalho. Algumas das intervenções de Cornelia reforçam a imagem de uma mulher alienada, incapaz de enxergar a outra personagem que para ela cumpre apenas o papel de servi-la: «Que sorte têm vocês, de viver nos arredores de Buenos Aires! Pelo menos lá não tem fuligem. Até pode ter cachorros e queima de lixo… Mas olhem a colcha da minha cama. Devem achar que ela é cinza. Não. É branca» (Ocampo, 2019 [1959], p. 126). Sob este aspecto, a tradução proposta por Deorsola ganha uma camada a mais de complexidade. Ao contrário do texto de Silvina Ocampo, no qual, apesar da diferença de classe, as mulheres parecem utilizar um registro linguístico bastante próximo, sem marcas de distinção de classe na expressão das personagens, na tradução do conto ao português brasileiro observamos a preocupação da tradutora em marcar esta diferença também em suas falas. Neste ponto, articula-se a estratégia de resistência apresentada por Massardier-Kenney (2022) em seu estudo. Neste sentido, ao «intervir» no texto, a tradutora torna «visível o trabalho da tradução usando, para isso, meios linguísticos que têm um efeito desfamiliarizador e que funcionam contra a fluência fácil». (p. 10)
Sobre este aspecto, gostaríamos de comentar duas das escolhas feitas por Deorsola. A primeira delas diz respeito à forma de tratamento que Casilda dirige à Cornelia. Se no texto de Silvina Ocampo se faz pelo uso do «señora», marcando respeito e subordinação, na tradução registra-se o uso do «madame». Embora seja uma palavra originária do francês, e com uma acepção próxima à senhora, é interessante observar o sentido conotativo impresso ao termo quando empregado entre mulheres no Brasil. Além de poder marcar a diferença de classe - sempre utilizado da mais pobre para a mais rica -, cumpre a função adjetiva de anunciar uma mulher que quer ter uma boa vida, sem preocupações e com luxo. Deste modo, a escolha do substantivo traz em si uma síntese da personagem Cornelia: uma mulher rica, cuja única preocupação é a prova do vestido para levar para sua próxima viagem à Europa para ver a neve.
Outro termo que gostaríamos de destacar é a escolha por «ancas», no lugar de «caderas». Na tentativa de ajudar Cornelia a colocar o vestido lemos: «Durante algunos segundos Casilda trató inútilmente de bajar la falda, para que resbalara sobre las caderas de la senhora» (Ocampo, 1999 [1959], p. 234), que na tradução se registra: «Casilda ficou alguns segundos tentando inutilmente fazer descer a saia, para que deslizasse para as ancas da madame» (Ocampo, 2019 [1959], p. 127). Embora compartilhem uma mesma acepção, cada uma das laterais do corpo humano, da cintura à articulação da coxa, o uso delas se faz com um matiz diferente. Ao optar por «ancas», a tradutora se aproxima do termo utilizado para falar da parte mais alta do quarto traseiro de um quadrúpede, isto é, associa o corpo à sua condição animal, oposto à cadeira, geralmente associada ao ser humano e especialmente às mulheres. Certamente nesta escolha se lê o lugar de origem de Casilda, sua condição de migrante do campo para a cidade. Com estes dois exemplos, observamos como o trabalho de seleção lexical contribui para a ampliação da dimensão discursiva do texto permitindo que se leia mais claramente a diferença de classe entre elas.
Cabe ainda lugar para discutir o espaço que as personagens ocupam na cena narrativa e de que modo este dialoga com o vestido de veludo e com a condição feminina do século XX. Trata-se, como já anunciamos, de um apartamento aristocrático no bairro da Recoleta. A descrição que a menina faz do quarto de Cornelia revela o gosto exagerado dos de sua classe: «O quarto era todo vermelho, com um cortinado branco e espelhos com molduras douradas» (Ocampo, 2019 [1959], p. 125-126). Esta casa, aparentemente tão pouco aconchegante, distancia-se do lugar de refúgio e proteção que Gaston Bachelard enuncia em sua Poética do Espaço. Por outro lado, se a tomamos como metáfora da sociedade em que vivia a personagem, nos apropriamos das palavras do mesmo filósofo para afirmar que «a casa modela o homem» (Bachelard, 1989, p. 120) e, como bem aponta Enríquez: [Em sua obra, há uma verdadeira obsessão pelas casas, a casa como último refúgio e também como o lugar que, quando se torna inimigo, é o mais perigoso de todos]. (Enríquez, 2018, posição 642).[13]
É interessante observar como o espaço da casa também vai se reduzindo a um único cômodo, ao mais íntimo deles, que é o quarto. E tomamos a liberdade de reproduzir uma citação mais extensa de Amícola que, a nosso ver, sintetiza de maneira contundente a relação da personagem Cornelia com esse espaço. Ao fazer um comentário sobre o conto, afirma:
[Aqui há uma relação puramente inter-feminina; isto é, um mundo formado por mulheres, que se retroalimenta. Ódios, ressentimentos y conjuros se desenvolvem no seio da casa que se transforma em ameaçadora, apesar do seu entorno idílico. Como em Casa tomada, de Cortázar, a moradia vai se reduzindo em um setor no conto de Silvina Ocampo. O quarto passa a ser o habitáculo por antonomásia de Cornelia. Este é o lugar onde dorme, se veste (e talvez ama), mas também é o lugar onde morre finalmente asfixiada por um vestido que quis tão justo como estrangulante, por uma questão de fidelidade a seus gostos e à elegância, uma lei de ferro dentro de seu «habitus» de classe]. (Amícola, 2014, p. 4)[14]
Há quem entregue ao vestido de veludo o protagonismo do conto. Afinal, sua importância é tal que ele chega a ganhar vida. Preferimos tomá-lo, no entanto, como o grande antagonista, ponto de união das três personagens que, cada uma a seu modo, revelam o seu encanto por ele: «Não me cansava de contemplar as provas daquele vestido com dragão de lantejoulas» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128), diz a menina; «Que vestido! Acho que não há outro modelo tão lindo em toda Buenos Aires» (Ocampo, 2019 [1959], p. 127), exclama Casilda; «O veludo é o tecido de que mais gosto» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128), conclui Cornelia.
No vestido imprime-se uma chave de leitura fundamental para o conto. Se o tomamos como a vestimenta feminina por excelência, podemos problematizar de que modo ele cumpre com o papel metonímico da vida imposta à mulher na sociedade da época. Vale a pena observar como Cornelia e a menina se relacionam com ele e de que modo representam uma tentativa de ruptura com o modelo feminino socialmente imposto. Ambas demonstram manter uma relação ambígua com o vestido, ora de admiração, ora de repulsa, ao mesmo tempo em que o admiram, sentem o arrepio que ele pode causar: «Eu tocava o veludo: era áspero quando se passava a mão para um lado, e suave, quando se passava para o lado oposto» (Ocampo, 2019 [1959], p. 127), diz a narradora; «O veludo me faz trincar os dentes, me causa arrepio, (...) e, no entanto, para mim não há no mundo outro tecido que se compare» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128), afirma Cornelia durante a prova do vestido.
De passagem, Cornelia faz uma outra comparação em relação aos vestidos também digna de nota. Ao comparar os vestidos com as flores, a personagem realiza mais uma vez uma clara analogia com o feminino e o seu lugar na sociedade do período. Sendo a flor um órgão reprodutivo da planta, a sua finalidade biológica é a reprodução sexuada, visto que é o elemento estratégico para a atração dos polinizadores. Para além de sua condição na vida natural, no mundo social as flores são objeto de domesticação e, entre os seus muitos usos, servem de adornos e artifícios utilizados para diversos fins e efeitos estéticos. É interessante observar que Cornelia aproxime justamente a flor ao vestido, ampliando-a em direção a um aspecto do gênero, a partir do vestuário da mulher, como elemento estratégico para a atração do outro masculino e ao mesmo tempo como o elemento de controle do corpo, que deverá se encaixar ao ter determinada forma, inevitavelmente frágil e efêmera. Entre as flores, Cornelia evoca o nardo como sendo a sua preferida, flor que Casilda considera triste. Cornelia corrobora o caráter infeliz desta flor e desenvolve a comparação de que, assim como o efeito ambíguo do veludo, o nardo, também lhe causa mal-estar: «Quando aspiro seu cheiro, me sinto descomposta» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128). A associação não é em vão, já que o nardo costuma ser prensado para a extração de sua essência, assim como o vestido de veludo que sufoca a personagem ao vesti-lo.
Para além das comparações estabelecidas por Cornelia, o vestido guarda uma ambivalência que se impõe ao ser ao mesmo tempo «lindo e complicado» (Ocampo, 2019 [1959], p. 127) e «suntuoso e sombrio» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128). A extravagância do modelo chama ainda mais a atenção pois, além de ter como tecido o luxuoso veludo, nele brilha um «dragão de lantejoulas pretas» (Ocampo, 2019 [1959], p. 127), bordado ao lado esquerdo da bata. É justamente a partir do vestido que o fantástico se inscreve na narrativa, fazendo com que o evento ultrapasse a simples prova e a vestimenta passe por uma metamorfose que afeta a todas as personagens: o dragão bordado ganha a vida de um animal fabuloso, acompanhando a forma, os movimentos do corpo e até mesmo os batimentos cardíacos de Cornelia. Como sabemos, a representação ambivalente do dragão é bastante presente em diversas mitologias ao redor do mundo (Chevalier e Gheerbrant, 1986), sendo uma das mais conhecidas o mito de São Jorge e sua luta contra o dragão, que, uma vez vencido, passa a obedecer aquele que o domina. No conto, há também uma luta, mas o vestido-dragão é aquele que passa a dominar a sua suposta dona. Além disso, o vestido sufocante também pode ser relacionado ao elemento masculino enquanto presença opressora e violenta, que possui, estrangula e tira a vida da mulher sem maiores consequências. Cornelia parece saber muito bem disso e se resigna ao afirmar que «Tendré que dormir con él» (Ocampo, 1999 [1959], p. 234), parte do parágrafo omitido na tradução para o português brasileiro que comentaremos a seguir. Como sabemos a partir da narrativa em espanhol, Cornelia não chega a dormir com o vestido animalizado, visto que [o impaciente dragão não quis esperar o sonho da senhora para realizar seus desejos obscuros] (Zapata, 2005, p. 254).[15]
Diante da ambiguidade de sentimentos que o vestido lhe causa, Cornelia opta por colocá-lo e, com isso, submete-se ao desconforto de estar apertada em um lugar que não lhe cabe, mas o qual lhe garante a manutenção de seu status feminino: «Que mulher está mais bem-vestida do que aquela que se veste de veludo preto? Não faz falta nem uma gola de renda, nem um colar de pérolas; qualquer coisa seria um exagero. O veludo se basta a si mesmo» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128). Ao deixar-se vencer pelo vestido, mais do que na sua morte fantástica, podemos pensar na morte metafórica da mulher submetida a padrões que lhe são impostos. E é neste ponto da narrativa, no qual Cornelia é capaz de pronunciar que a sua escolha é uma prisão, que temos uma grande omissão na tradução do conto para o português brasileiro. A última fala da personagem, antes de cair morta no chão, aparece assim registrada no conto de Silvina Ocampo e omitida no texto de Deorsola:
—Tendré que dormir con él —dijo la señora, frente al espejo, mirando su rostro pálido y el dragón que temblaba sobre los latidos de su corazón—. Es maravilloso el terciopelo, pero pesa —llevó la mano a la frente—. Es una cárcel. ¿Cómo salir? Deberían hacerse vestidos de telas inmateriales como el aire, la luz, o el agua. (Ocampo, 1999 [1959], p. 234).
Embora não saibamos os motivos da omissão do parágrafo, e tampouco queiramos atribuir tal ausência à tradutora, uma vez que concordamos com Olga Castro ao afirmar que
Geralmente, considera-se que as/os tradutores são as/os principais operadores do processo de tradução, mas com frequência sua capacidade de escolha está subordinada às decisões funcionais tomadas por outros agentes mediadores/as: os/as paratradutores/as (pessoas encarregadas da correção de provas, revisão linguística, edição, intermediação com cliente, cliente, patrocionador/a, agência de tradução, etc) que frequentemente possuem mais poder para intervir no processo. (Castro, 2017, p. 242)
O certo é que esta ausência sequestra do público leitor de língua portuguesa a possibilidade de acompanhar a reflexão de Cornelia e, com ela, ter elementos para realizar uma leitura mais crítica do texto. Afinal, é neste parágrafo que habita a grande pergunta para as mulheres: como sair deste mundo e caber em outros?
Talvez esta resposta não pudesse ter sido dada no tempo da narrativa e não existisse outro final possível que a condenação de Cornelia ao mundo em que lhe coube viver. No entanto, há no conto uma menina que, como já pontuamos, também se sente atraída pelo vestido, mas a relação que pode estabelecer com ele é outra. Ela é convidada por Cornelia a manter o status quo feminino: «- Quando você for adulta - me disse a madame - vai gostar de usar um vestido de veludo, não é mesmo?» (Ocampo, 2019 [1959], p. 128), e, embora responda afirmativamente, é capaz de pressentir o que a escolha lhe causaria: «-Sim - respondi, e senti que o veludo daquele vestido estrangulava meu pescoço com mãos enluvadas» (Ocampo, 2019 [1959], p. 129). E reside nesta personagem, tão ambígua como qualquer uma de nós, a possibilidade de olhar pela janela, observar o mundo dos vendedores e da rua e, quem sabe, apostar em uma nova vestimenta, que seja tão sem limites e constrangimentos quanto o ar, a luz e a água.
3. Uma consideração que não pretende ser final
Ao longo destas páginas, procuramos evidenciar a importância da prática de uma crítica literária e de tradução feminista e, para encerrar, parece-nos importante destacar mais uma das categorias apontadas por Massadier-Kenney. Em colaboração, este trabalho foi feito a quatro mãos, que negociaram e dialogaram na escolha e atribuição de sentido a tudo o que escrevemos. Junto com o posicionamento de Massadier-Kenney, ressaltamos a relevância da abordagem feminista na crítica do texto literário e sua tradução, afinal, «é necessário reconsiderar o objetivo da tradução não como um texto a servir ou a dominar, mas sim como um evento cultural a re-apresentar» (Massadier-Kenney, 2022). Assim, com o presente trabalho quisemos contribuir com a ciranda de mulheres, tendo convidado Silvina Ocampo e Livia Deorsola para nos darem as mãos e, juntas, olharmos para um futuro no qual as meninas possam ter a liberdade de vestir o que quiserem.
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Referencias bibliográficas
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Bourdieu, P. A ilusão biográfica. (1998). In: Ferreira, M. e Amado, J. (Ed.), Usos e abusos da história oral (p. 183-191). Rio de Janeiro, Brasil: Editora da FGV.
Castro, O. (2017). (Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?. Tradterm, 29, 216-250. Tradução de Beatriz Regina Guimarães Barboza. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v29i0p216-250.
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Houaiss, A. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Brasil: Editora Objetiva.
Massadier-Kenney, F. (2022). Caminhos para uma redefinição da prática feminista de tradução. Tradução de Emanuela Carla Siqueira e Marcela Lanius. Revista X. Vol.17(01), 192-212. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/revistax/article/view/84391/45903.
Ocampo, S. (1999). Cuentos Completos I. Buenos Aires, Argentina: EMECÉ Editores.
Ocampo, S. (2019). A fúria e outros contos. Tradução de Livia Deorsola. São Paulo, Brasil: Companhia das Letras. [1959].
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[1] A autora destaca, entre as estratégias centradas na pessoa que escreve, a recuperação, o comentário e a resistência; e, entre as centradas na pessoa que traduz, os comentários, os textos paralelos e a colaboração. Trataremos de algumas dessas estratégias ao longo do artigo.
[2] A partir desta nota, colocaremos as versões originais dos textos nas notas de rodapé sempre que a tradução for de nossa autoria. «Sea como fuere, se podría sostener que la crítica académica argentina tardó en reconocer los méritos de la obra de Silvina Ocampo, pero que a partir de la década del 80, cuando la autora estaba concluyendo su operación creativa de cincuenta años de dedicación a la literatura, los profesores universitarios rioplatenses pusieron estos cuentos insumisos en sus programas de literatura».
[3] «lo cierto es que hoy Silvina Ocampo es un verdadero fetiche de la academia, que le dedicó innumerables trabajos críticos, y aunque sigue sin vender mucho, se ubicó en el lugar de la Gran Escritora Argentina».
[4] A busca na plataforma Scielo foi feita a partir da expressão «Silvina Ocampo», dentro dos títulos, resumos e palavras-chave; no Google Scholar a expressão é procurada no conteúdo completo da produção. Ambas as buscas foram realizadas em fevereiro de 2022.
[5] Ver «El otro ‘boom’ latinoamericano es femenino», matéria de Paula Carroto, publicada no jornal El País: https://elpais.com/cultura/2017/08/13/actualidad/1502641791_807871.html (acesso em 09 fev. 2022).
[6] «una persona disfrazada de sí misma».
[7] «[...] cerca de San Isidro vivían muchos chicos pobres. A mí me parecían tan superiores a los que nos visitaban, mucho más divertidos que mis primas. Mis primas eran unas pavotas, unas inútiles. No sabían robar nada [...], estaban siempre impecables, no querían ensuciarse, no se movían para no desarreglarse».
[8] «Predominan las voces femeninas, institutrices, peluqueras, modistas, sombrereras, criadas; en general, mujeres que hacen trabajos con sus manos y cuyo lenguaje, infestado de estereotipos y clisés, retumba en ambientes adornados con voladitos de plástico, colchas rosadas e imágenes religiosas».
[9] «Gran parte de la literatura de Silvina Ocampo parece contenida allí: en la infancia, en las dependencias de servicio. De allí parecen venir sus cuentos protagonizados por niños crueles, niños asesinos, niños suicidas, niños abusados, niños pirómanos, niños perversos, niños que no quieren crecer, niños que nacen viejos, niñas brujas, niñas videntes; sus cuentos protagonizados por peluqueras, costureras, por institutrices, por adivinas, por jorobados, por perros embalsamados, por planchadoras».
[10] [Lo más llamativo de la estrategia narrativa de Silvina Ocampo es el juego astuto entre el saber y el no saber del relator, o mejor dicho, la peculiar estrategia que le tiene preparada la autora a la función relatora. Si con razón siempre ha llamado la atención cómo se nos da en los relatos de Silvina Ocampo la historia, tal vez lo que no se ha dicho es observar que esta impasibilidad narrativa de muchos de los niños ocampianos frente a lo cruel es un operativo que, en definitiva, apunta a desmitificar la idea de la inocencia infantil. Las pequeñas narradoras de esta cuentista se colocan en la pose de no saber por qué ocurren las cosas, pero, al fin y al cabo, terminan aceptando, como los niños verdaderos, la maldad de las situaciones, porque se hallan más allá de toda conciencia moral].
[11] «Confieso que no me acuerdo. Me pareció tan natural, tan evidente, tan justo, que no juzgué que requería una actitud especial».
[12] «[...] los nombres elegidos para los personajes centrales también colaboran a esa oposición barrial y clasista antes señalada: «Casilda» es un nombre que se ha tornado popular en la Argentina por su divulgación entre la gente de campo y aledaños, mientras que «Cornelia» tiene su sabor patricio y, por lo tanto, remite a lo encumbrado de la clase social que lo hace suyo. «Casilda» se opone así a «Cornelia» de modo absoluto».
[13] «Hay una verdadera obsesión por las casas en su obra, la casa como último refugio y también como el lugar que, cuando se vuelve enemigo, es el más peligroso de todos».
[14] «Aquí se trata de una relación puramente inter-femenina; es decir, un mundo formado por mujeres, que se autoabastece. Odios, resentimientos y conjuros se desarrollan en el seno de la casa que se transforma en ominosa, a pesar de lo idílico de su entorno. Como en Casa tomada, de Cortázar, la vivienda se va reduciendo a un sector en el cuento de Silvina Ocampo. El dormitorio pasa a ser el habitáculo por antonomasia de Cornelia. Este es el lugar donde duerme, se viste (y tal vez ama), pero es también el lugar donde muere finalmente asfixiada por un vestido que ha querido tan estrecho como estrangulante, por una cuestión de fidelidad a sus gustos y a la elegancia, una ley de hierro dentro de su «habitus» de clase».
[15] «el impaciente dragón no quiso esperar el sueño de la señora para realizar sus oscuros deseos».