Marina Carr No Brasil: Uma Análise Da Tradução No Pântano Dos Gatos...
Marina Carr in Brazil: An Analysis of the Translation No Pântano Dos Gatos…
Cristiane Bezerra do Nascimento[1] - cristianebz@hotmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a dramaturga irlandesa contemporânea Marina Carr, bem como fazer uma análise crítica da tradução da peça teatral By the Bog of Cats..., traduzido no Brasil como No Pântano dos Gatos... pela tradutora, dramaturgista e diretora teatral Alinne Fernandes. By the Bog of Cats... é uma das obras mais importantes de Carr, sendo estreada no Abbey Theatre, o Teatro Nacional Irlandês, durante o Dublin Theatre Festival, o mais renomado festival de teatro da Irlanda. Carr é um dos nomes mais influentes do teatro contemporâneo e a principal dramaturga da Irlanda. Embora Carr seja um dos nomes mais influentes do teatro contemporâneo, a dramaturga é praticamente desconhecida no Brasil. No pântano é uma tradução exclusiva, sendo a única peça da Marina Carr publicada no Brasil até a presente data. A peça possui grandes diferenças culturais e linguísticas, apresentando um dialeto da região irlandesa das Midlands, e originalmente escrita no Hiberno-English, uma variação linguística do inglês mesclada com expressões idiomáticas do gaélico utilizando metáforas que não são comuns na língua inglesa. Para a análise, baseamo-nos em uma entrevista concedida pela própria tradutora, juntamente com analítica da tradução proposta por Berman (2012) e dialogando com Basnett (2003) sobre as questões que envolvem a tradução dramática, englobando suas dificuldades e os desafios de se traduzir um texto com critério adicional da representabilidade. Observamos como a tradutora recorre a estratégias criativas para estabelecer diálogos entre as duas culturas, especificamente brasileira e irlandesa, e adapta para o público teatral brasileiro. Dito isto, busca-se fazer uma análise crítica da tradução da peça voltada a perspectiva da tradutora, averiguando as escolhas tradutórias mais interessantes presentes na peça, dificuldades e soluções encontradas.
Palavras-chave: teatro irlandês, Marina Carr, No Pântano dos Gatos..., By the Bog of Cats...
ABSTRACT
This study aims to present the contemporary Irish playwright Marina Carr, as well as to make a critical analysis of the translation of the play By the Bog of Cats… which was translated in Brazil as No Pântano dos Gatos… by translator, playwright and theatre director Alinne Fernandes. By the Bog of Cats… is one of Carr's most important plays, premiered at the Abbey Theatre (Irish National Theatre) during the Dublin Theatre Festival which is Ireland's most renowned theatre festival.Carr is one of the most influential names in contemporary theatre and the Ireland’s leading female dramatist.Although Carr is one of the most influential names in contemporary theatre, she is almost unknown in Brazil. No Pântano dos Gatos… is an exclusive translation and the unique play of Marina Carr published in Brazil until now.The play has significant cultural and linguistic differences, presenting a dialect from the Irish Midlands region. This Irish play was originally written in Hiberno-English which is a linguistic variation of English mingles with Gaelic idiomatic expressions using metaphors that are not common in the English language. This analysis is based on an interview with the translator along with the analysis of the translation proposed by Berman (2012) and the issues involving the dramatic translation proposed by Basnett (2003). Therefore, this study shows issues involving dramatic translation, including its difficulties and challenges of translating a text with additional criterion of representability. I wish to demonstrate how the translator uses creative strategies to establish dialogues between Irish and Brazilian culture and how the translator suits the text to the Brazilian audience. That said, I will make a critical analysis of the translation focusing on the translator perspective, her most interesting decisions, difficulties and solutions.
Keywords: Irish theatre, Marina Carr, No Pântano dos Gatos..., By the Bog of Cats…
Marina Carr No Brasil: Uma Análise Da Tradução No Pântano Dos Gatos...
1. Introdução
O presente artigo está inserido na área de tradução e teatro, focando principalmente no teatro irlandês contemporâneo. Buscamos fazer uma análise crítica da tradução da peça teatral By the Bog of Cats... escrito pela dramaturga irlandesa Marina Carr, e traduzido no Brasil como No Pântano dos Gatos pela tradutora, diretora teatral e Professora da UFSC Drª Alinne Balduino Pires Fernandes, sendo esta uma tradução exclusiva no Brasil e única tradução da Marina Carr que foi publicada até a presente data. Dito isto, será feita uma análise crítica voltada sob a perspectiva das escolhas da tradutora e seu processo tradutório, e através de uma entrevista com a mesma[2], analisaremos as escolhas tradutórias mais interessantes encontradas na tradução No Pântano dos Gatos....
A análise da tradução intitulada No Pântano dos Gatos..., nos interessou pelo fato da peça possuir semelhanças com a tragédia grega Medeia de Eurípides, trazendo personagens femininas fortes de origens irlandesas e grandes dificuldades linguísticas encontradas em diálogos marcados pelo Hiberno English[3] utilizando metáforas, aspectos gramaticais e expressões idiomáticas que não são comuns na língua inglesa.
Carr nasceu Dublin e cresceu no Condado de Ofally[4], na província de Leinster, localizada em uma região denominada de Irish Midlands, uma área predominantemente rural da República da Irlanda. A dramaturga irlandesa é um dos nomes mais influentes da dramaturgia contemporânea atual e suas obras estão inseridas no cânone irlandês. De acordo com o The Guardian, Marina Carr é a principal dramaturga da Irlanda[5]. Carr é membro da Aosdana[6], e recebeu diversos prêmios como o Dublin Theatre Festival Best New Irish Play award (1994-1995), Irish Times Playwright (1998), ), prêmio Susan Smirth Blackburn (1997) pela peça Portia Coughland, prêmio melhor peça irlandesa no festival de teatro de Dublin em 1994, prêmio EM Foster da Academia Americana de Artes e Letras e Prêmio de Fundo Americano/Irlandês, prêmio Macaulay Fellowship (2012), prêmio Hennessy (1994) e o prêmio literário americano Windham-Campbell Prize, que se trata de um prêmio literário americano realizado no festival literário internacional em Yale, sendo Marina Carr a segunda Irlandesa a receber um prêmio de tamanha importância.
Mencionamos ainda que, embora Marina Carr seja um dos nomes mais importantes do teatro contemporâneo atual, tendo suas peças traduzidas e encenadas em teatros de grande prestigio como o Abbey Theatre e sendo traduzida para diversos idiomas como português, alemão, francês, norueguês, etc. a dramaturga é praticamente desconhecida no Brasil. Carr possui um número aproximado de 20 peças escritas que foram encenadas e publicadas até a presente data pela editora Faber and Faber e The Gallery Express. Contudo, no Brasil temos apenas a peça No Pântano dos Gatos... publicada.
Assim, ao longo deste artigo, pretendo mostrar: a) uma breve apresentação da peça By the Bog of Cats..., bem como sua tradução para o português brasileiro No Pântano dos Gatos...; b) mostrar brevemente como se dá o processo da tradução teatral dialogando com Basnett (2003); c) fazer uma análise crítica da tradução de No pântano..., através da analítica de tradução proposta por Berman (2012) focando nas escolhas tradutórias mais interessantes da tradutora através de uma entrevista com a mesma.
2. By the Bog of Cats… na Irlanda e no Brasil
A peça teatral By the Bog of Cats... teve sua estreia em 7 de outubro 1998 no Abbey Theatre – O Teatro Nacional Irlandês -, durante o Dublin Theatre Festival, o mais importante festival de teatro na Irlanda. A peça é um dos trabalhos mais eminentes de Carr, pois através de By the Bog of Cats... a dramaturga teve sua estreia no Abbey, obtendo um lugar no cânone literário irlandês. A obra pode ser encontrada na editora Faber and Faber, no volume 1 da coleção “Contemporary Classics” como também em volumes individuais.
No Abbey Theatre, a peça recebeu direção de Patrick Manson e possui um elenco composto por 13 atores. By the Bog of Cats... possui uma linguagem cultural da região rural da Irlanda denominada de Irish Midlands, região interiorana da República da Irlanda marcado pelo Hiberno English conforme veremos mais adiante. Na peça, Carr (1998, p.10) menciona sobre o sotaque utilizado ao citar que «Eu dei um ar das Midlands no texto, mas o real sotaque das Midlands é mais seco, brusco e gutural do que permitem as palavras escritas».[7] A obra se ambienta na Irlanda, no tempo presente, e tem como intertexto a peça Medeia de Eurípedes. By the Bog of Cats... trata da história de Hester, uma mulher irlandesa de 40 anos que foi abandonada pelo seu parceiro e que poderá perder a guarda de sua filha. Hester, também foi abandonada pela mãe quando criança, e a peça é narrada por diversos personagens contando diferentes versões da mãe enquanto Hester é assombrada por fantasmas. A peça é dividida em três atos, no qual o primeiro ato se passa na casa de Hester e perto do Trailer «No Pântano dos Gatos», o segundo na casa de Xavier Cassidy e o terceiro ato no pátio da casa de Hester e perto do trailer. Mencionamos ainda que By the Bog of Cats... é repleta de elementos místicos, utilizando referências como o folclore irlandês, feitiçaria e trata de temas como maternidade, preconceito étnico, traição e disputa por propriedade de terras.
De acordo com Fernandes (2017)[8], até o ano de 2016 By the Bog of Cats... foi traduzida e encenada na Turquia (2016), Estônia (2013), Alemanha (2012, 2004 e 1999), República Tcheca (2009 e 2005), Servia (2009), Hungria (2005 e 2000), Japão (2005), Noruega (2003), EUA (2001) e Inglaterra (2004). No Brasil, conforme mencionamos anteriormente, a peça recebeu a tradução intitulada como No Pântano dos Gatos..., sendo uma tradução inédita traduzida pela dramaturgista e diretora teatral Profª Draª Alinne Balduino Pires Fernandes. No Pântano dos Gatos... foi publicado em 2017 pela editora Rafael Copetti, sendo a única peça de Carr publicada no Brasil até a presente data. A peça recebeu uma leitura dramática no Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, no dia 29 de junho de 2010, e teve como elenco os alunos da Oficina Permanente do Teatro do DAC- UFSC. A leitura foi dirigida por Carmem Fossari e teve como dramaturgia Alinne Fernandes. A peça fez parte da elaboração e da revisão da tradução.
Dito isto, faremos uma análise comparada ambos os textos, By the Bog of Cats... (1998) e No Pântano dos Gatos... (2017), e consequentemente partiremos para uma investigação sobre as escolhas lexicais e semânticas da tradutora, organização da peça e iremos analisar as escolhas tradutórias mais interessantes em relação a linguagem, palavras originalmente irlandesas e notas de rodapé utilizadas.
3. No Pântano dos Gatos... no contexto brasileiro: uma análise crítica voltada as escolhas da tradutora
A priori, é importante mencionarmos que a tradução dos textos dramáticos não possui a mesma metodologia quanto aos textos narrativos. Ao analisar um texto teatral, é necessário levar em conta que o texto dramático é um texto que está ligado a representação teatral. Para isto, se faz mister mencionamos Basnett (2003, p.190) que ao tratar sobre a semiótica teatral menciona que “o sistema linguístico é apenas mais um componente opcional numa concatenação de sistemas que compõe o espetáculo”, no qual devemos levar em conta as situações extralinguísticas tais como signos não-verbais, som, cenário e os personagens. A autora menciona ainda que o texto dramático é escrito para vozes contendo um conjunto de sistemas paralinguísticos como o sotaque, a velocidade do enunciado, sotaque e entonação.
Em relação a produção textual, se faz mister mencionarmos Pavis (2008) sobre o texto para palco:
Levar um texto para palco é um dos partos mais difíceis: no exato momento em que o espectador estiver assistindo ao espetáculo, já será demasiado tarde para conhecer o trabalho preparatório do encenador; o resultado já está ali: um pequeno ser sorridente ou amargurado, ou seja, um espetáculo mais ou menos bem sucedido, mais ou menos compreensível, no qual o texto nada mais é que um dos sistemas cênicos, contíguo aos atores e/ou o encenador. (PAVIS, 2008, p. 21)
O tradutor deve levar em conta todas as referências extratextuais e signos de linguagem presentes em todo processo que envolve a tradução dramática. Seguindo as palavras de Fernandes (2015, p. 314) «a tradução do palco é, mais uma vez, não um processo individual, mas um processo colaborativo». [9]
Basnett (2003) menciona que a tradução teatral coloca o tradutor em um problema central, no qual o primeiro seria traduzir o texto teatral como algo puramente literário ou nas palavras da autora (2003, p.190) «tentar traduzi-lo na sua função de mais um elemento dentro de outro sistema mais complexo». No caso do texto em português brasileiro No Pântano dos Gatos... a tradução tanto recebeu uma leitura dramática no teatro da UFSC, como também foi publicado pela Editora Rafael Copetti conforme já mencionado anteriormente.
Partindo para a análise textual da tradução perante o texto original averiguamos que, quanto ao formato, averiguamos que tanto By the Bog of Cats... (1998) quanto No Pântano dos Gatos... (2017) possuem a mesma divisão de atos e cenas, sendo respectivamente: o primeiro ato se passando na casa da Hester e perto do trailer da no pântano dos gatos, o segundo ato na casa de Xavier Cassidy e o terceiro ato novamente no pátio da casa da Hester e perto do trailer. A tradução No Pântano dos Gatos... transmite as mesmas informações que o original sem perdas semânticas significativas, no qual as escolhas da tradutora não prejudicam a compreensão da peça teatral. Acreditamos que a tradução facilita o leitor ao entrar no universo da Marina Carr.
À luz dessa premissa, é interessante iniciarmos com a tradução do título da peça – e também local onde se passa a maior parte da história – o termo bog em By the Bog of Cats... traduzido para o português brasileiro como «pântano», sendo a peça traduzida como No Pântano dos Gatos... É importante mencionar que o termo linguístico bog possui uma carga simbólica muito maior no contexto irlandês.
O Oxford Dictionary define bog como «uma área de solo lamacento úmido que é muito mole para suportar um corpo pesado»[10], que seria uma zona úmida com alto teor de matéria orgânica de origem vegetal, com tradução aproximada para paúl. O termo bog transmite ressonâncias simbólicas na Irlanda, podendo ser encontrada em grande parte da paisagem irlandesa da República da Irlanda e da Irlanda do Norte. Os bogs estão também presentes em muitas histórias da literatura irlandesa sobre fantasmas e almas, assim como ocorre em By the Bog of Cats.... Fernandes (2017) menciona que bogs é um problema central para um tradutor de peça teatral irlandesa dado seu papel substancial na cultura irlandesa. Para a tradutora, o público brasileiro não teria nenhum senso de familiaridade com a palavra bog em relação a um Europeu no norte. É eminente mencionarmos sobre a importância de se traduzir bog para «pântano», pois além de soar mais familiar ao público brasileiro, o termo nos remete a algo sombrio que se relaciona a terras pantanosas, sendo compatível de conhecimento do público brasileiro. De acordo com Fernandes (2017):
A escolha da tradução de bog como pântano se deu pelo fato de o termo ser, em português do Brasil, o termo guarda-chuva dos tipos de zonas úmidas e também pela carga simbólica associada a ele. Há algo de sombrio e decadente que nos é trazido pela palavra ‘pântano’ – terras pantanosas nos remetem a putrefação e morte. (p.171)
Em relação a tradução dos nomes, a tradutora mantém os nomes conforme consta no original, sem problemas tradutórios específicos, contudo observamos duas escolhas interessantes da tradutora ao traduzir Ghost Fancier para «Aquele que espreita as almas», e a opção de traduzir Mrs Kilbride para Dona Kilbride, conforme podemos observar na tabela abaixo:
By the Bog of Cats… |
No Pântano dos Gatos… |
Hester Swane |
Hester Swane |
Josie Kilbride |
Josie Kilbride |
Carthage Kilbride |
Carthage Kilbride |
Monica Murray |
Monica Murray |
Mrs Kilbride |
Dona Kilbride |
Xavier Cassidy |
Xavier Cassidy |
Caroline Cassidy |
Caroline Cassidy |
Catwoman |
Mulher-gato |
Ghost Fancier |
Aquele que espreita as almas |
Ghost of Joseph Swane |
O fantasma de Joseph Swane |
Young Dunner/Waiter |
Jovem Dunnes, um garçom |
Father Willow |
Padre Willow |
Waiters |
Outros dois garçons |
Quadro 1 - Tradução de nomes em No Pântano dos Gatos...
A partir do quadro acima, podemos observar que a tradutora optou por manter os nomes próprios, e averiguamos com particular atenção a utilização do termo linguístico «Dona» para a personagem Kilbride. A personagem Kilbride é mãe de Carthage – consequentemente sogra da Hester Swane -, e acreditamos que escolha tradutória foi cabível, pois além de evitar dificuldades linguísticas para os atores, a palavra «Dona» mostra mais uma proximidade ao leitor/espectadores na questão familiar, pois é um termo usado cotidianamente.
Outro aspecto importante é em relação do termo em inglês Ghost Fancier – termo não tão comum na língua inglesa - traduzido para «Aquele que espreita as almas». Para analisarmos esta escolha, devemos recordar que No Pântano dos Gatos... é uma peça também fala sobre mistérios e assombração. A personagem Hester Swane é assombrada pela morte e tem diálogos com o fantasma que aparece como forma de assombração.
A escolha da tradutora por «Aquele que espreita as almas» traz um ar sombrio e de mistério, tendo em vista que a opção de traduzir por «fantasma» tornaria a tradução caricata, enquanto «Aquele que espreita as almas» nos remete que Hester está sendo assombrada constantemente, seja por Joseph Swane —irmão que ela assassinou por ciúme—, seja pelas lembranças de sua própria mãe que a abandonou, ou pelas pessoas vivas que querem que ela abandone o pântano dos gatos. Fernandes (2016) nos deixa isto claro ao mencionar que:
Personagens mortos são feitos presentes na peça, sendo lembrados em histórias e músicas. Porque eles são constantemente trazidos de volta à vida e reencenados na mente dos personagens vivos, esses personagens mortos são presenças assombradas na peça. Eles nos lembram, que é disso que o teatro é feito: memórias, reconstruções de experiências passadas, combinadas e reencenadas de uma maneira recém-criada. (p.107)[11]
Em relação a linguagem do texto, conforme mencionamos, o texto original é escrito em Hiberno English, uma linguagem própria do teatro irlandês, no qual Marina Carr menciona que o sotaque tem um ar das Midlands, zona predominantemente rural da República da Irlanda. É eminente citar que a personagem principal —assim como os outros— é originalmente irlandesa que valorizam e tem orgulho de suas origens. A seguir, citamos como exemplo um diálogo entre Hester e sua filha Josie:
By the Bog of Cats… |
No Pântano dos Gatos… |
Hester: G’wan back to your weddin’ and lave me be Caroline: I promise ya I’ll do everythin’ I can about Josie Hester: G’wan. G’wan. Come on, ya done it aisy enough to another, now it’s own turn. Josie: Mam – What’s that ya’ve got there? Hester: (stops) Just na auld fishin’ knife, Josie, I’ve had this years. |
Hester: Vai lá, vai. Caroline: Prometo que vou fazer tudo que eu puder pela Josie Hester: Vai lá, vai. Vamo’ lá, tu já fez isso com outra pessoa com tanta facilidade, agora é a tua própria vez Josie: Mamãe! O que é isso? Hester: (para) Só uma faça de pesca velha, Josie, tenho essa faca há anos. |
Quadro 2 - Diálogo entre Hester e Josie
A partir do Quadro 2 acima, notamos que a tradutora optou pelo uso do «Tu» para a personagem Hester Swane, utilizando uma linguagem mais informal através de termos linguísticos como «vamo», evitando possíveis dificuldades linguísticas para os atores.
Se faz mister citar que, o texto feito para representação teatral diverge do texto feito para ser puramente lido. Basnett (2003) menciona que o texto teatral se caracteriza pelo ritmo, sonoridade e tom, ou seja, por elementos que não pode serem apreendidos por uma leitura direta do texto isolado, o que pode ser referência no caso da escrita informal “vamo”. Em No Pântano dos Gatos... observamos a tradução faz o uso intercambiável dos pronomes «Tu» e do «você». No caso do personagem «Aquele que espreita as almas», trata de um ser mais refinado que utiliza sempre o uso do «você», conforme podemos observar o diálogo a seguir:
By the Bog of Cats… |
No Pântano dos Gatos… |
Hester: Who are you? Haven’t seen you around here before. Ghost Fancier: I’m a ghost fancier Hester: A ghost fancier, Never heard tell of the like. Ghost Fancier: You never seen ghosts? Hester: Not exactly, felt what I thought were things from some other world betimes, but nothing’ I could grab onto and say, that is a ghost.
|
Hester: Quem é? Quê que tu ’tá fazendo aqui? Aquele que espreita as almas: Eu sou aquele que espreita as almas Hester: Espreita alma? Quié isso? Aquele que espreita as almas: Você nunca viu uma alma penada? Hester: Não é isso. Sempre vi coisas de outro mundo, mas nada assim, que nem uma alma penada |
Quadro 3- Uso dos pronomes Tu e você nos diálogos entre Hester e Aquele que espreita alma
Fernandes (2017) menciona que dependendo de onde a peça for encenada, é possível que o uso dos pronomes seja adaptado, porém que deve ficar atento para que os personagens não fiquem com representações caricatas.
Em entrevista[12], a tradutora menciona que no processo tradutório houve uma preocupação de que as vozes dos personagens de algum lugar específico do Brasil, ao mesmo tempo que resolveu não optar pelo caminho mais fácil do português padrão. De acordo com a tradutora, a tradução possui também marcas linguísticas dela mesma e do grupo de atores do litoral catarinense.
Ao pensar nas vozes dos personagens, a tradutora opta pelo uso do «você» pelo fato de que «Aquele que espreita as Almas» ser um «ceifador galante e sedutor, que diferentemente de todos os outras personagens, se constrange por se equivocar quanto a regras de etiqueta[13], citando um exemplo em que o personagem se confunde com o horário de sua chegada e fica constrangido por tal fato». Por isso, nas palavras da tradutora «Ele sim usa um português brasileiro padrão justamente para marcar seu posicionamento distinto naquele contexto».[14] No caso da voz da personagem de Hester Swane, a tradutora menciona que Hester utiliza o pronome o «tu», porém não conjuga os verbos corretamente, diferentemente da personagem Dona Kilbride, que altera seu uso de linguagem, com a neta usa o «tu» e em um discurso do casamento em um jantar com o filho, utiliza o «você».
Dito isto, observamos que No Pântano dos Gatos... é uma tradução que se preocupou não apenas com que o texto chegasse com o mínimo de obstáculos possíveis aos atores e com todo processo que envolve a concretização cênica, mas que também buscou dar vozes aos personagens, preservando sua essência e poética através de escolhas tradutórias que focaram na história dos personagens para dar vida em suas falas. Em suas escolhas, a tradutora opta por referências toponímicas, procurando não localizar a peça em nenhum outro local.
A próxima escolha tradutória que acreditamos ser interessante mencionar é em relação ao termo linguístico Tinker presente no original By the Bog of Cats.... Na peça, a comunidade se refere a Hester Swane e seus familiares como Tinkers, termo usado pejorativamente para se referir aos membros dos Irish Travellers[15], conforme podemos observar abaixo:
By the Bog of Cats… |
No Pântano dos Gatos… |
Mrs Kilbride Tell him! Ya won’t be tellin’ him anythin’ I haven’t tould him meself. He’s na eegit, your Daddy. I warned him about that wan, Hester Swane, that she’d get het claws in, and she did, the tinker. That’s what yees are, tinkers. And your poor Daddy, all he’s had to put up with. Well, at least that’s all changin’ now. Why don’t yees head off in that auld caravana, back to wherever yees came from, and give your poor Daddy back to me where he rightfully belongs. And you’ve your jumper on backwards. |
Dona Kilbride Conta! Nada que eu não já tenha lhe contato. O teu papai é um idiota. Falei pra ele sobre aquelazinha, a Hester, falei que ela enfiaria as garras nele, do jeitinho como ela fez, aquela cigana. Isto é o que vocês são, ciganas. E o teu pobre papai, tudo que ele passou. Bom, pelo menos as coisas tão mudando agora. Por que vocês não se mandam de volta pro lugar de onde vocês vieram e devolvem o teu papaizinho pra mim, pro lugar onde ele pertence? O teu blusão tá de trás pra frente. |
Quadro 4- Utilização do termo «tinker» traduzido como «cigana».
O Quadro acima mostra uma situação em que Dona Kilbride, ao falar com sua neta, se refere a Hester Swane como uma tinker. Para analisarmos a escolha tradutória, é necessário levar em conta também a situação em qual vive a personagem Hester. Hester é uma irish traveller, julgada pela comunidade do Pântano dos Gatos por ser um tinker e julgada pela sua própria comunidade por ter se casado com Carthage, um homem que não pertencente ao grupo dos travellers. Em entrevista, a tradutora menciona que ao estudar e pensar sobre os grupos nômades no Brasil chegou a escolha de se traduzir por «Ciganos». Conforme menciona a autora, os ciganos —assim como os Irish Travellers— tornaram-se personagens de fábulas mostrando mulheres maliciosas e também corruptas. Em seu posfácio a tradutora Alinne Fernandes (2017) menciona que:
A retratação da irlandesa «Hester» e de sua mãe como «ciganas», mulheres de personalidade indecifráveis e de poderes místicos, dialoga com os estereótipos da mulher misteriosa que aparecem na literatura brasileira do século XIX. Basta-nos pensar, por exemplo, em Dom Casmurro (1990), de Machado de Assis, cujo protagonista Bentinho desconfia da sua mulher e a descreve como uma mulher que tem «olhos de cigana» e que é uma «oblíqua dissimulada». (p. 175)
Dentro das possibilidades do contexto cultural brasileiro em que é inserido a peça e nos contextos históricos de “tinkers” e “ciganos”, acreditamos que a tradução utiliza o termo em português que mais próxima da carga simbólica, como também a semelhança na forma pejorativa utilizada para se referir a personagem. Os ciganos são os mais similares no estilo de vida, hábitos culturais comparando com os Irish Travellers.
O último ponto que destacamos na tradução se trata da nota de rodapé utilizada pela tradutora da cena. No segundo ato da Cena IV, a personagem Dona Kilbride (ex sogra de Hester) aparece na cena do casamento do seu filho vestida de branco com a seguinte citação que mencionamos no Quadro abaixo:
By the Bog of Cats… |
No Pântano dos Gatos… |
Mrs Kilbride: Of course ya do, the three crosses ya mad up on the slope and remember the wind was howlin’ and the pair of us yellin’ ‘Calvary! Calvary” to wan another. Of course ya remember. I’m only tellin’ yees this story as wan of the countless examples of Carthage’s kind nature and I only wany yo say that Caroline intoo the Kilbride household. And that if Carthage will be as good a son to Caroline as he’s a husband to me then she’ll have no complains. (Raises her glasses). Cheers.
|
Dona Kilbride: É claro que você se lembra, as três cruzes acima do morro e o vento uivando e nós dois gritando um para o outro: “Calvário! Calvário! ”. É claro que você se lembra. Eu narro apenas um entre incontáveis exemplos de natureza dócil do Carthage, e, com isso, quero dizer que a Caroline é muito bem vinda à casa dos Kilbride. E quero dizer também que se o Carthage for um filho tão bom para Caroline quanto ele tem sido um bom marido pra mim, ela não vai ter do que reclamar. (Ergue sua taça). Saúde |
Quadro 5- Ato falho da personagem Dona Kilbride
No Quadro 5 acima, observamos uma das falas da personagem Dona Kilbride. No final da fala, a personagem refere-se ao Carthage – seu filho – como “um bom marido” para ela mesma, enquanto para Caroline – sua nora – Carthage seria um bom filho. Para que não houvesse uma confusão ao público leitor, é inserida uma nota de rodapé mencionando que esta inversão da personagem é proposital do texto, pois se caracteriza um ato falho da personagem e o absurdo da cena, no qual a mãe – uma mulher possessiva e ciumenta com seu filho – aparece de branco no casamento do seu próprio filho.
Como último exemplo de escolhas importantes feitas pela tradutora em No Pântano dos Gatos que é possível averiguar que a tradução adquiriu traços domésticos facilitando a compreensão do público do teatro e também do leitor. Na quarta cena em By the Bog of Cats, a personagem Josie joga Snap com sua avó, sendo este um jogo pouco ou praticamente desconhecido no Brasil. A tradutora optou por traduzir por truco, sendo assim um jogo conhecido que envolve cartaz e, principalmente pela importância na cena, na qual Dona Kilbride – avó de Josie Swane – humilha a neta sobre os gritos de triunfo, sendo uma característica que deve ser levada em conta na cena, conforme mostramos a seguir:
By the Bog of Cats... |
No Pântano dos Gatos… |
Mrs Kilbride: Snap—snap! Snap! (Stacking the cards.) How many games is that I’m after winnin’ ya? Josie: Five Mrs Kilbride: And how many did you win? Josie: Ya know right well I won ne’er a game. |
Dona Kilbride: Truco! Truco! Truco! Quantas partidas já ganhei de ti? Josie: Cinco. Dona Kilbride: E quantas tu ganhou? Josie: A senhora sabe que eu nunca ganho nenhum jogo. |
Quadro 6 - Tradução de Snap para Truco no diálogo entre Dona Kilbride e Josie
A partir das escolhas, partimos para as teorias de Berman (2012) em sua obra A Tradução e a Letra ou o Albergue Longinquo sobre a analítica da tradução. Entre as tendências mencionadas no trabalho de Berman, mencionamos o enobrecimento, no qual existem as traduções embelezam o original. Acreditamos que no Pântano dos Gatos apresenta escolhas tradutórias que embeleza a peça, através de uma linguagem fluida que leva em conta os socioletos dos personagens de forma que não os tornem caricatos. O texto também apresenta a tendência a clarificação proposta por Berman, porém no sentido positivo, de tal forma que o público e leitor pode compreender o cenário irlandês sem que haja um estranhamento.
4. Considerações finais
A análise buscou apresentar as escolhas mais interessantes da tradução No Pântano dos Gatos..., como a peça foi traduzida e inserida partindo do contexto irlandês para o brasileiro, focando com particular atenção nas perspectivas da tradutora. Procuramos investigar o processo tradutório de como a tradutora chegou na tomada das decisões, percorrendo pelos caminhos que envolve o processo tradutório da tradução teatral até chegar a decisão final na tradução.
No Pântano dos Gatos... é uma peça repleta de uso de referências específicas arraigadas da cultura irlandesa. Na peça é possível encontrar elementos do folclore irlandês mesclada com elementos da cultura popular. A tradutora dá vozes aos personagens, no sentido que cada personagem tem a sua poética. Através das escolhas da linguagem falada por cada personagem, a tradutora não torna os personagens caricatos a nenhuma região brasileira, contudo a peça pode ser adaptada de acordo com a região em que a peça poderá ser encenada, desde que exista um particular cuidado em que os personagens não fiquem caricatos. As escolhas tradutórias de No Pântano dos Gatos... não trazem perdas semânticas significativas e não prejudicam a compreensão da peça, mas enriquecem tanto para o leitor quanto para o público-alvo do teatro.
Por fim, as referências culturais são mantidas no contexto irlandês, e a linguagem escolhida por tradutora nos remete a um ar de terras esquecidas e traz a Irlanda interiorana para o Brasil adquirindo também traços domésticos.
Referências bibliográficas
Basnett, S. (2003). Estudos de Tradução fundamentos de uma disciplina (Trad. de Vivina de Campos Figueiredo). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian.
Berman, A. (2007). A tradução e a letra ou o albergue do longínquo (Trad. de Mauri Furlan, Marie-Hélène Catherine Torres y Andréia Guerini). Rio de Janeiro, Brasil: 7Letras/PGET.
Carr, M. (2017). No Pântano dos Gatos... (Trad. em Alinne Fernandes). São Paulo, Brasil: Rafael Copetti Editor.
_______ (2005). Marina Carr Plays 1: Low in the Dark, The Mai, Portia Coughlan, By the Bog of Cats…. London, Inglaterra: Faber and Faber.
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_______ (2016). “What ghost are you goulin’ for around here?” The haunted presences of theatre and translation. Cadernos de Tradução, 36(2), 105-121. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-79682016000200105
_______ (2015). Performing translation as practice-led research: the case of Carr’s By the bog of cats… in Brazil. Aletria, 25(2), 311-329. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/288039345_Performing_Translation_as_Practice-led_Research_The_Case_of_Carr's_By_the_Bog_of_Cats_in_Brazil
Gardner, L. (29 de novembro de 2004). La muerte se convierte en ella. The Guardian [Em linha]. Disponível em https://www.theguardian.com/stage/2004/nov/29/theatre
Pavis, P. (2008). O Teatro no cruzamento de culturas (Trad. de Nanci Fernandes). São Paulo, Brasil: Perspectiva.
[1]Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Bacharel em Estudos da Tradução pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. É membro do Núcleo de Estudos Irlandeses (NEI) da UFSC. Este trabalho foi realizado com o apoio da CAPES (Brasil).
[2] A entrevista foi realizada em dezembro com a tradutora, dramaturgista e Professora da UFSC Dra. Alinne Balduino Pires Fernandes. A entrevista ainda não foi publicada.
[3] Variação linguística do inglês com expressões idiomáticas e aspectos gramaticais do Gaélico. Também conhecido como Irish English ou Inglês Irlandês. Fonte: https://core.ac.uk/download/pdf/38997656.pdf
[4] Em irlandês Uíbh Fhailí
[5] Ireland’s leading female dramatist. Fonte: https://www.theguardian.com/stage/2004/nov/29/theatre
[6] Criada em 1802, a Aosdana é uma associação irlandesa de artistas envolvidos em literatura, música e artes visuais. A afiliação é feita através de convite dos membros atuais e é limitada a 250 pessoas. Fonte: <http://aosdana.artscouncil.ie/Members.as>
[7] Minha tradução para:“Accent Midland. I've given a slight flavour in the text, but the real midland accent is a lot flatter and rougher and more guttural than the written word allows.”
[8] Informações retiradas do Pósfacio de Alinne Fernandes da tradução No Pântano dos Gatos... (2017).
[9] Minha tradução para: “translation for the stage is, once again, not an individual process but a collaborative one’
[10] «An area of wet muddy ground that is too soft to support a heavy body».
[11] Minha tradução para: «Dead characters are made present in the play by way of being remembered in stories and songs. Because they are constantly brought back to life and re-enacted in the living characters’ minds, those dead characters are haunted presences in the play. They remind us, rather meta-theatrically, that that is what theatre is made of: memories, reconstructions of past experiences, combined together and re-enacted in a newly created fashion».
[12] Entrevista não publicada feita com a tradutora Alinne Balduino Pires Fernandes. (A entrevista foi realizada em janeiro de 2019)
[13] Palavras da tradutora Dra. Alinne Fernandes em entrevista sobre suas escolhas tradutórias na peça teatral No Pântano dos Gatos...
[14] Trecho mencionado pela tradutora na entrevista.
[15] Os Irish Travellers – também conhecidos como Pavees - são atualmente reconhecidos como minoria étnica na Irlanda que mantém tradições. Os grupos falam em inglês e também falam um dialeto próprio, conhecido como Shelta e são conhecidos historicamente como nômades. Fonte: https://theculturetrip.com/europe/ireland/articles/a-brief-history-of-irish-travellers-irelands-only-indigenous-minorit