Cortázar, Dunlop e Monrós-Stojakovic: A Tradução como Forma de Relacionamento

Cortázar, Dunlop and Monrós-Stojakovic: Translation as a Form of Relationship

 

Brenda Bressan Thomébrendathome@gmail.com

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

 

Resumo
Julio Cortázar e Carol Dunlop, ambos escritores que também atuaram como tradutores, compartilharam dos últimos anos de suas vidas como um casal e juntos publicaram seu último livro, Autonautas da Cosmopista. No livro Correspondencia, da editora Alpha-Decay, o leitor tem acesso à correspondência entre a tradutora de Rayuela para o servo-croata Silvia Monrós-Stojakovic, Julio Cortázar e Carol Dunlop. A partir de cartas e cartões postais inicialmente voltados para dúvidas de tradução, Monrós-Stojakovic estabelece uma amizade com Cortázar e posteriormente com Dunlop, chegando mesmo a visitá-los em Paris. Na rica correspondência reunida neste livro, os três trocam ideias sobre a vida, literatura, tradução, segredos, viagens e a amizade, mostrando que a tradução envolve mais do que verter textos de uma língua para outra, mas que permite deixar o relacionamento humano permear esse processo em toda sua complexidade. Monrós-Stojakovic e Dunlop escrevem em um espanhol peculiar de quem está se expressando em uma língua estrangeira, enquanto que Cortázar é o único que escreve em seu espanhol nativo argentino. A realidade política da época também fica ali explícita com os relatos e reflexões da agitação política da Sérvia dos anos 1980 e das viagens do casal estrangeiro que vive na França e percorre países de uma América Latina turbulenta. Este trabalho tem por objetivo mostrar que a correspondência tradutor-autor possibilita enxergar ao fundo as ideologias, relações interculturais e pessoais que se estabelecem e que a tradução pode ser encarada como uma forma de relacionar-se com o mundo e com as pessoas, juntando assim indivíduos que não teriam contato de qualquer outra forma. Apresentando o conteúdo das missivas presentes nesta obra, também se tem acesso aos últimos anos de vida de Cortázar e Dunlop, algo que pode despertar o interesse dos estudiosos da obra dos autores, e aqui também são revelados alguns aspectos de como os dois se relacionavam com o estado de doença que os levou a falecer.

 

Palavras-chave: Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, tradução literária, relacionamento humano

 

Abstract
Julio Cortázar and Carol Dunlop, both writers who also worked as translators, shared their last years as a couple and together they published their last book Autonauts of the Cosmoroute. In the book Correspondencia, by Alfpha-Decay, readers have access to the letters exchanged between the translator of Rayuela to Serbo-Croatian, Sylvia Monrós-Stojakovic, Julio Cortázar and Carol Dunlop. From letters and postcards initially driven to answer questions about the translation of the book, Monrós-Stojakovic establishes a friendship with Cortázar and, afterwards, with Dunlop, even getting to visit them in Paris. In the rich mail exchanges in this book, the three of them expose their ideas on life, litterature, traduction, secrets, travels and friendship, showing that translation can evolve more than pouring texts from one language to another, but it also allows the human relationship aspect to permeate the process in all its complexity. Monrós-Stojakovic and Dunlop write in a Spanish proper to foreigners trying to express themselves, whilst Cortázar is the only one here who writes in his native argentinian Spanish. The political reality of those times is also approached with reports and reflections about political happenings in Serbia in 1980’s and the travels through a politically charged Latin America taken by the couple living in France. This work aims to show that the mail exchange between author and translator allows a deeper vision of ideologies, intercultural and personal relations established and that translation itself can be a way to relate to the world and to people, getting together those that wouldn’t get to know each other any other way. Presenting the content of the letters in Correspondencia, one can also gain access to Cortázar and Dunlop’s lasts years, something that may concern those who study their work, and here are also revealed some aspects of how they both related to the sickness that lead to their demise.

 

Keywords: Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, literary translation, human relationship


Cortázar, Dunlop e Monrós-Stojakovic: A Tradução como Forma de Relacionamento

 

1. Introdução

 

Poucas introduções são necessárias para falar de Julio Cortázar, célebre escritor argentino, autor de O Jogo da Amarelinha (ou Rayuela, no original em espanhol), contista habilidoso, inventor dos cronópios e dos famas. Seu terceiro casamento foi com a também escritora e tradutora Carol Dunlop, americana-canadense 32 anos mais nova do que ele e que compartilhava da mesma pulsão por escrever. Foram apresentados em Montréal, e em 1978 ela deixou para trás o Canadá (e seu filho de 10 anos, Stéphane Hébert) para viver com ele na França e escreverem juntos (Dalrymple, 2014).

Já a tradutora Silvia-Monrós-Stojakovic é sérvia-argentina, de família catalã e vive em Belgrado, como também vivia na época em que trocou cartas com Dunlop e Cortázar. Como é típico, pouco se encontra sobre a biografia da tradutora, ou talvez seja apenas difícil pesquisar sobre ela para alguém que não esteja familiarizado com o servo-croata e seu alfabeto misto ocidental-cirílico.

O livro Correspondencia, publicado pela editora Alpha-Decay na coleção Alfanhuí em 2009, reúne nove cartas e cartões postais escritas por Julio, cinco cartas de Carol Dunlop e outras de Silvia Monrós-Stojakovic, que assina o prefácio. Neste livro curto, porém rico, podemos ver como se desenvolveu uma amizade entre a tradutora de O Jogo da Amarelinha ao sérvio-croata e o casal que vivia na França: através da correspondência tradutor-autor.

A relação entre os três se inicia em julho de 1980 « quando Silvia [...] escreve a Cortázar para enviar um convite oficial para umas palestras e pedir auxílio para algumas aulas de pós-graduação que seriam sobre ele[1]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, orelha, tradução minha). A própria Silvia relata que esta primeira carta, de tom muito formal, convidando Julio a um evento acadêmico em Belgrado, não foi respondida: « Já tinha escrito a Julio antes para repassar um convite feito pelo Centro Cultural Estudantil de Belgrado para que viesse para cá falar sobre o que quisesse [...] mas Julio nunca respondeu a essa primeira carta minha»[2] (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 11, tradução minha).

Determinada a estabelecer contato com o autor que traduziria, ela adotaria uma nova estratégia, que se provou muito mais charmosa a um autor de personalidade poética como era Cortázar.

 


 

2. Sobre como iniciar uma carta

 

Traduzir é uma tarefa de mediação, de levar de um lado para outro, de uma língua para outra. Como diz Rónai: «A comparação mais óbvia é fornecida pela etimologia: em latim, traducere é levar alguém pela mão para o outro lado, para outro lugar. O sujeito deste verbo é o tradutor, o objeto direto, o autor do original a quem o tradutor introduz num ambiente novo [...]» (Rónai, 1976, p. 3)

Silvia havia recebido a tarefa de traduzir Rayuela para o sérvio-croata e estava determinada a contactar e conhecer o escritor: « Então achei que, muito profissionalmente, deveria entrar em contato com o autor a fim de fazer todas as consultas necessárias. Na verdade, queria viajar a Paris e conhece-lo ao vivo e a cores.[3]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 10, tradução minha). Ela era contrária à ideia de que não se deve conhecer o escritor a quem se traduz « [...] se bem que já aqueles que acham que é melhor não conhecer o autor se ele ainda não tenha morrido e entrado para a imortalidade[4] » (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 10, tradução minha).

Como dito anteriormente, a primeira carta da tradutora, convidando o autor para um evento acadêmico em Belgrado, não teve resposta. Por isso, ela decidiu adotar uma estratégia diferente: « Supus depois que isso tinha a ver com o fato de que essa era uma carta oficial [...] supus que não me respondia porque nesta carta me dirigia a Cortázar chamando-o de Estimado Senhor[5]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 11, tradução minha).

E por que isso seria um problema? Posteriormente, Silvia leu o texto « Grave Problema Argentino», do livro Volta ao dia em oitenta mundos. Nele, Cortázar discorre sobre o problema de começar uma carta: qual tratamento utilizar? « Concretamente, quando um escritor tem que escrever a um colega de quem não é amigo pessoal, e tem que combinar a cortesia e a verdade, ali começa o triturar das penas[6]» (CORTÁZAR, 2010, p. 29). Tendo encontrado esta informação sobre seu destinatário e utilizando de sua criatividade, ela começa uma carta nova, pois segundo ela, não tinha nada a perder:

 

Então, nada a perder, na minha próxima carta peguei um salto número nove, visto que o Céu já estava dentro de mim: então escrevi uma carta em que me dirigi a ele chamando-o «Julíssimo Julio». Me dirigi a ele por «tu» e chamando-o assim «Julíssimo Júlio» e então sim. Respondeu-me então «Silvíssima Silvia».[7] (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 11-12, tradução minha)

 

De fato, na carta resposta de Cortázar, iniciada por «Silvíssima Silvia», ele declina o convite para ir a Belgrado por estar no México com « uma necessidade imperiosa de seguir descansando[8]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 20, tradução minha). Ele atribui seu cansaço a viagens seguidas e aos «[...] Pinochets e Videlas deste pobre planeta[9]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 20, tradução minha). Aí se tem um pouco da expressão daquilo que marcou os últimos anos de vida do escritor: o engajamento político contra as ditaduras que dominavam a América Latina e o cansaço causado por uma doença misteriosa.

Temos certeza do sucesso de Silvia na mudança de tom de suas cartas pois, além da troca de correspondências a que temos acesso neste livro, ao final de sua primeira carta de resposta, Cortázar expressa sua amizade claramente: «tua carta tem aquilo que faz se reconhecer nela a amizade, e eu sou muito mais sensível a isso do que a todos os feitos acadêmicos e eruditos[10]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 21, tradução minha).

 Por vezes a forma de começar uma conversa pode ser o caminho para que ela renda, aí está o exemplo. Mesmo em se tratando de uma relação profissional entre escritor e tradutor, não se deve esquecer que estamos lidando com seres humanos, que ser amigável e gentil conta muitos pontos dentro da construção de uma relação.

 

3. As cartas dão seqüência ao encontro, desenvolvem a amizade e revelam segredos

 

Em fevereiro de 1981, Silvia visitou o casal em Paris, foi recebida em seu apartamento, onde moravam com a gata Flanelle. Depois disso, começa o fio de correspondência também entre Silvia e Carol, num tom muito diferente daquele que ela mantinha com Julio. Um exemplo que ilustra bem essa situação é quando ela relata os acontecimentos na Ioguslávia de 1981, que lidava com os protestos da região do Kosovo em busca de independência. A Cortázar, Silvia descreve a situação falando sobre as notícias e fatos, já para Carol, ela confidencia que toda essa agitação política pesa em seu casamento, pois ela é impedida de desenvolver seu papel político por causa da ausência do marido, que não cuidou dos filhos quando ela precisava:

 

Expus a situação a Julio a partir do ponto de vista econômico-social, com A Julio le expus ela situación desde el punto de vista económico-social, com riqueza de dados estatísticos e referências históricas, mas para mim o conflito aconteceu quando meu marido chegou tarde no domingo em que tinha que tomar cuidado das crianças, já que eu tinha que ir a uma reunião convocada justamente por causa dos acontecimentos de Kosovo. Tinha que participar desta reunião como a presidente do Conselho dos Vizinhos do nosso prédio. [...] Você acredita que por estar cuidando dos filhos não vou poder construir uma consciência de classe a altura da história e de suas reviravoltas?[11] (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 32-33, tradução minha).

 

Entre e Silvia e Carol se desenvolve uma amizade de natureza um tanto quanto mais aberta, pois falam de literatura e também da vida, da família, dos filhos, do marido, compartilhando não apenas idéias acadêmicas e literárias, mas fatos sobre a vida. Elas refletem, inclusive sobre o feminismo e seus papéis enquanto mulheres. Silvia questiona: «Quero dizer que no fundo não sou nem feminista nem emancipada. Quase nem sou mulher. Ainda ao menos sou esposa[12].» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 32, tradução minha).

Com tamanha abertura, e após a visita pessoal da tradutora ao casal de escritores, Carol sente-se livre para compartilhar com Silvia um segredo que estava carregando sozinha. «[...] agora que decidi, mesmo que ao fim seja injusto para você que por ter passado uma vez em nossa casa como uma das estrelas de uma constelação que não terminou de se revelar, vou te dar um fardo para carregar injustamente[13].» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 50, tradução minha)

Em seguida, Carol compartilha que era a única a saber que Julio sofria de uma doença crônica: « Faz quase um ano que sei, e sou a única a saber fora os médicos, que Julio tem uma leucemia crônica. Ele não sabe, nem tem que saber, porque sendo do jeito que é, sua melhor esperança de viver mais e bem é não saber.»[14] (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 51, tradução minha).

Ao fim da carta, ela confessa estar se sentindo melhor depois de compartilhar «aquela coisa». Também aproveita para falar sobre a viagem que estavam fazendo: tinham limpado toda a agenda e durante dois meses percorriam a autopista entre Paris e Marselha, parando em dois parkings por dia. Estavam, Carol e Julio, registrando este projeto em um livro «entrando na pele dos antigos exploradores e gozando da ironia de pegar o caminho mais rápido e mais «civilizado» para fazer uma viagem a passo de tartaruga.[15]» (p. 55). Este livro seria finalizado por Cortázar e publicado no ano seguinte com o título de Autonautas da Cosmopista. Por fim, Carol confidencia que ela e Julio haviam se casado oficialmente há um mês.

 

4. A tradução como forma de relacionamento

 

Para o linguista George Steiner, as línguas são uma expressão do « do enigma profundo da individualidade humana, da evidência biogenética e bissocial de que não existem dois seres humanos inteiramente iguais» (2005, p. 72). A partir desta fala, podemos dizer que a tradução toma um papel de relacionar as individualidades humanas, de aproximar os diferentes em torno de uma forma comum de se expressar.

Essa idéia é reforçada pelo que diz Octavio Paz em Traducción: literatura y literalidad, de que aprender a falar é « aprender a traduzir: quando uma criança pergunta a sua mãe o significado desta ou daquela palavra, o que realmente pede é que traduza para a sua linguagem a palavra desconhecida. [...] e a história de todos os povos repete a experiência infantil» (PAZ, 1990, p. 9).

Ao longo da correspondência, vemos várias reflexões sobre a tradução, atividade que os três amigos tinham em comum e que se enredava em sua amizade de forma intensa. A tradução também é, nesse caso, uma forma de estar perto e de se relacionar. Isso se dá especialmente por parte de Silvia e Carol, que se dedicam mais à tradução do que Julio.

Por exemplo, Silvia, ao receber um conto de Carol pelo correio, responde que aquele « é um conto para ser traduzido no verão[16]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 31, tradução minha). O que seria um conto para ser traduzido no verão? Leve, fresco? É algo que passa pelo sentir da tradutora, uma classificação pessoal muito rica, que se relaciona com a visão que ela tem sobre a sua atividade.

Carol, em outra carta, propõe escrever um livro através de cartas trocadas pelos três: « [...] o que acha de fazer uma novela a três? (poderíamos ir nos traduzindo mutuamente!).[17] » (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 61, tradução minha). Ela pode ter tido esta idéia pois vinha trabalhando numa novela com uma escritora americana, segundo relata nas cartas. Silvia fica extasiada com esse convite, e responde que «[...] independentemente de se levarmos esse projeto até o fim, o isso que corresponde por completo ao que essa carta representa para mim, o reconhecimento entre quem a envia e quem a recebe, a escrita como ponte [...] e só nos encontramos uma vez.» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 65, tradução minha).

Carol mostra que, para ela, a relação com os autores que traduz não se dá de forma tão suave como a amizade entre ela e Silvia ou Silvia e Julio. « Quero dizer, te escrever não é nada parecido com escrever, como faço com muita satisfação e interesse, a alguns autores que traduzi, pois com eles sei que ainda que eu diga coisas que me interessam, existem limites.[18] » (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 75, tradução minha).

Apesar de desejar mais escrever seus próprios textos do que traduzir, Carol ainda traduzia, e lamentava não poder ter mais tempo para se dedicar ao que era seu: « Passei as férias lutando com uma tradução que por fim terminei, jurando para mim mesma, como sempre, que nunca mais, que vou virar criada, puta ou fotógrafa, mas traduções nunca mais, sei que isso é mentira, mas por agora não sou tradutor e me sinto muito bem.[19]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 76, tradução minha).

Com este registro, vemos a expressão da relação nem sempre saudável que o tradutor tem com o seu trabalho: é cansativo, as vezes se deseja parar no meio de tudo, mas por um motivo ou outro, é difícil resistir a fazer tudo de novo.

A própria Carol, em sua revolta, deixa claro que o sentimento de raiva que expressa é passageiro, e o confidencia a uma colega tradutora que vai saber compreendê-la. Enquanto tradutor, é importante compartilhar do seu processo solitário e penoso com alguém que tenha a dimensão do que se está falando. Por que não trocar impressões com os colegas?

 

5. A morte de Carol e a tradução como forma de cura

 

Depois que Dunlop e Cortázar terminaram sua viagem na estrada que liga Paris a Marselha produzindo o livro Autonautas da Cosmopista, Carol caiu doente e, dentro de dois meses, faleceu. Seus sentimentos em relação a este triste acontecimento ficam registrados nas cartas que enviou a Silvia comunicando: «Não tenho planos e só penso em terminar o livro que fizemos juntos, Carol e eu, e que tenho que terminar sozinho agora. Devo isso ao livro, quero que saia, neste momento é minha única maneira de estar com ela, conversando e escutando-a.[20]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 87, tradução minha).

 Neste trecho, vemos que a edição, a preparação do livro é também um momento de relação humana, assim como a tradução. Cortázar, ao ler as palavras que Dunlop escreveu, mantém suas lembranças e sua memória viva. O mesmo acontece quando ele se deseja traduzir os textos de Carol ao espanhol, « [...] pois quero que alguém os publique; são lindos.[21]» (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 89, tradução minha).

 Na ocasião do luto, estar envolto nas palavras da pessoa que partiu ou de quem é próximo a essa pessoa também pode ser uma forma de se curar, de lidar com a falta daquele ser querido. Silvia termina a troca de cartas dizendo a Julio que estava trabalhando na tradução de um dos contos dele de forma a « [...] recuperar as peças do espelho em que tudo deve convergir é incorporar-se ao conto por meio da sua tradução. A tradução desse relato é para mim uma maneira de manter a imagem composta por Carol, você e eu.[22] » (Cortázar, Dunlop, Monrós-Stojakovic, 2009, p. 90, tradução minha).

 Esta é a última carta longa remetida por Monrós-Stojakovic, em abril de 1983. Depois, neste livro, só há dois pequenos bilhetes ou postais escritos por Cortázar informando-a de que ele não se encontra bem de saúde, sendo o último de novembro daquele ano. Como se sabe, o escritor morreu em fevereiro do ano seguinte, e, portanto, a troca de cartas com a tradutora é um dos últimos relatos seus.

 

6. Considerações finais

 

Ao longo deste artigo, pôde-se mostrar que a partir de uma relação de trabalho tradutor-autor e uma simples saudação mais afetuosa, se desenvolveu uma amizade que atravessou questões não apenas relacionadas à literatura e à tradução, mas também um intercâmbio de ideias sobre a vida, a política, os relacionamentos, que são, afinal, a matéria com que trabalham aqueles que vivem das palavras.

Num sentido amplo, com o apoio das ideias de Rónai, Steiner e Paz, pode-se afirmar que traduzir é também falar, conversar, revelar o íntimo de cada um. Nesse sentido, as cartas aqui mostradas podem exemplificar como a tradução é uma atividade que fascina, gera dúvidas, cria relatos, amplia horizontes e expande contatos.

Monrós-Stojakovic com certeza não teria conhecido Dunlop e Cortázar se não fosse seu trabalho de tradução, a amizade simplesmente não existiria. Encarada de maneira mais humana, a tradução é uma forma de relacionar-se com o outro e consigo mesmo, com a sua língua e as outras. E também um instrumento de amizade, como se observou com o desejo de escrever um livro a seis mãos e traduzi-lo ao mesmo tempo.

Também foi possível perceber como é saudável estabelecer contato com colegas tradutores, pois eles podem estar compartilhando dos mesmos problemas e tendo as mesmas reflexões sobre a atividade como um todo. O ofício do tradutor tende a ser muito solitário: um texto, dicionários, um computador e mais nada, mais ninguém. É importante colocar-se em movimento, contactar pessoas da mesma área, mesmo que ainda sejam desconhecidas. E, por que não, contactar o autor a quem se está traduzindo, se ele for vivo. Não é necessário criar uma amizade, como foi o caso aqui, mas esse contato pode proporcionar uma abordagem mais humana e mais próxima daquele texto do que seria trabalhar com os escritos de alguém a quem não se conhece. É claro que com os clássicos e vários outros isso é impossível, mas pode-se até mesmo imaginar essa relação, quando ela não existe.

Quando se entrega um trabalho (falo aqui dos trabalhos escritos, um livro, uma tradução) a alguém para edição ou revisão, espera-se que ele seja tratado mais do que profissionalmente, com cuidado. Paulo Rónai escreveu um livro quando já estava na casa dos setenta anos contando da sua relação com a tradução durante várias décadas e deu a ele o nome de A tradução vivida. Pois é isso, traduzir é viver, formar laços, passear entre línguas, e não há como viver sem se envolver.

 

Referências

Cortázar, J. (2010). La vuelta al día em ochenta mundos. Ciudad de México, México/ Barcelona, España: Editorial RM.

Cortázar, J.; Dunlop, C.; Monrós-Stojakovic, S. (2009). Correspondencia. Barcelona, España: Alpha-Decay, Alfanhuí.

Dalrymple, T. (2014). The Parallel Highway. Maisonneuve. Disponível em https://maisonneuve.org/article/2014/11/12/parallel-highway/

Paz, O. (2012) Traducción: literatura y literalidad. Alicante, España: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/traduccion-literatura-y-literalidad/

Rónai, P. (1976). A tradução vivida. Rio de Janeiro, Brasil: EDUCOM.

Steiner, G. (2005). Depois de Babel: questões de linguagem e tradução (Trad. Faraco, C. A.). Curitiba, Brasil: Editora UFPR.

 

 

 

 



[1] No original: «cuando Silvia [...] escribe a Cortázar para cursarle uma invitación oficial a unas conferencias y solicitar su ayuda em unos estúdios de tercer ciclo que va a dedicarle»

[2] No original: «A Julio y le había escrito antes para transmitirle una invitación que se le había hecho desde el Centro Cultural Estudiantil de Belgrado para venir acá y hablar de todo lo que quisiera [...] pero Julio nunca contestó a esa primera carta mía.»

[3]No original: «Entonces opiné, muy profesionalmente, que debía entrar en contacto con el autor a fin de hacerle todas las consultas necesarias. En realidad, deseé viajar a París y conocerlo en vivo y en directo [...]»

[4] No original: «[...] si bien hay quienes opinan que es mejor no conocer el autor en caso que todavía no haya pasado a la inmortalidad.»

[5] No original: «Supuse después que eso tenía que deberse al hecho de que era ésa una carta oficial [...]. Supuse que no me contestaba porque en esa carta yo me dirigía a Cortázar diciéndole Estimado Señor»

[6] No original: «Concretamente, cuando un escritor tiene que escribirle a un colega de quien no es amigo personal, y ha de combinar la cortesía con la verdad, ahí empieza el crujir de plumas.»

[7] No original: «Entonces, nada que perder, en mi próxima carta pegué un salto tipo casilla número nueve, puesto que el Cielo ya estaba dentro de mí: entonces le escribí una carta en la que me dirigí a él diciéndole ‘Julíssimo Julio’. Me dirigí a él tuteándolo y diciéndole eso, ‘Julíssimo Julio’, y entonces, sí. Contestome entonces, ‘Silvíssima Silvia’.»

[8] No original : «una necesidad imperiosa de seguir descansando»

[9] No original : «[...]Pinochet y los Videla de este pobre planeta»

[10] No original: «tu carta tiene todo eso que permite reconocer la amistad, y yo soy mucho más sensible a eso que a todos los brillos académicos y eruditos».

[11] No original: «A Julio le expuse la situación desde el punto de vista económico-social, con un lujo de datos estadísticos y referencias históricas, pero para mí el conflicto se produjo cuando mi marido llegó tarde el domingo en que tenía que retomar el cuidado de los niños ya que yo tenía que asistir a una reunión convocada precisamente a causa de los disturbios de Kosovo. A esa reunión tenía que asistir como presidente del Consejo de Vecinos de nuestro edificio. [...] Te das cuenta, por estar cuidando a los chicos no voy a poder edificar una consciencia de clase a la altura de la historia y sus turbulentos virajes.»

[12] No original: «Quiero decir que en el fondo no soy ni feminista ni emancipada. Casi ni soy mujer. Aunque no por menos soy esposa»

[13] No original: «[...] ahora que he decidido, aunque en el fondo sea injusto para vos. Que por haber pasado una vez por casa como una de las estrellas de una constelación que no ha terminado de revelarse, te vas a encontrar con un peso que no mereces.»

[14] No original: «Hace casi un año que sé, y soy la única en saberlo fuera de los médicos, que Julio tiene una leucemia crónica. Él no lo sabe, ni lo tiene que saber, porque siendo como es, su mejor esperanza de vivir más y bien [...] es no saberlo.»

[15] No original: «tomándoles el pelo a los antiguos exploradores, y gozando de la ironía de tomar el camino más rápido, y más ‘civilizado’, para hacer un viaje realmente de tortugas.»

[16] No original: «es un cuento para ser traducido en verano»

[17] No original: «¿[...] qué te parecería una novela a tres? (¡podríamos ir traduciéndonos mutuamente!)»

[18] No original: Quiero decir, escribirte no es en absoluto como escribir, como lo hago con mucho gusto y interés a algunos autores que he traducido, donde sé que aunque diga cosas que me importan mucho, hay límites.»

[19] No original: «Pasé [...] las vacaciones luchando con una traducción que por fin termine, jurándome como siempre que nunca más, que me voy a hacer femme de chambre o puta o fotógrafa, pero nunca más traducciones, sé que es falso, pero por ahora no soy traductora y me siento muy bien.»

[20] No original: «No tengo planes y sólo pienso en terminar el libro que hicimos juntos Carol y yo y que tengo que completar yo solo ahora. Se lo debo, quiero que salga, en este momento es mi única manera de seguir junto a ella, hablándole y escuchándola.»

[21] No original: «[...] pues quiero que alguien los publique; son hermosos.»

[22] No original: «[...] recuperar las piezas de ese espejo en el que todo debe converger es incorporarse al cuento por medio de su traducción. La traducción de ese relato es para mí una manera de mantener la figura compuesta por Carol, vos y yo. Es la constelación que componemos ante el labirinto»