Ideologia e pandemia: estudo sobre al concepções políticas dos líderes de Brasil e Mexico es suas implicações diante da crise sanitária da Covid 19 (2020-2022)

 

Ideology and pandemic: A study on the political conceptions of the leaders of Brazil and Mexico and their implications in the face of the health crisis of Covid-19 (2020-2022)

 

 

Resumo

Além de convulsões sociais e desaceleração econômica nos anos anteriores, logo nos primeiros meses de 2020, a América Latina se deparou com outra crise, desta vez sanitária: a pandemia de COVID-19. Inicialmente, as medidas tomadas pelos países da região foram marcadas pelo protecionismo e pela ausência de coordenação em âmbito regional. Muito por conta disso, o cenário que se seguiu durante os anos de 2020 e 2021 foi, no geral, de número elevado de mortes e crises econômicas intensas. Nesse contexto, dois países se destacaram negativamente na condução da pandemia: Brasil e México. Em vista disso, a pergunta que este trabalho pretende responder é: qual o papel da ideologia nos desempenhos econômico e político de Brasil e México durante a pandemia de COVID-19? O objetivo é identificar elementos conexos entre os dois líderes que permitam relacionar políticas que contribuíram para o aprofundamento dos desequilíbrios econômicos e das instabilidades sociopolíticas. Adota-se a abordagem qualitativa. Quanto aos procedimentos, caracteriza-se como pesquisa documental e bibliográfica. Identificou-se que, embora tenham origens políticas distintas e não partilhem da mesma ideologia, os dois líderes agiram de maneiras análogas ao subestimarem os efeitos da pandemia, ao negarem ou atrasarem estratégias de contenção do vírus e negligenciarem demandas dos mais pobres.

Palavras-chave: COVID-19; Brasil; México.

 

Abstract

In addition to social upheaval and economic slowdown in previous years, in the early months of 2020, Latin America faced another crisis, this time a health crisis: the pandemic of COVID-19. Initially, the measures taken by the region's countries were marked by protectionism and a lack of coordination at the regional level. Because of this, the scenario that followed during the years 2020 and 2021 was, in general, of high death tolls and intense economic crises. In this context, two countries stood out negatively in the conduct of the pandemic: Brazil and Mexico. In view of this, the question this paper aims to answer is: what is the role of ideology in the economic and political performances of Brazil and Mexico during the COVID-19 pandemic? The objective is to identify related elements among the two leaders that allow relating policies that contributed to the deepening of economic imbalances and sociopolitical instabilities. The qualitative approach is adopted. As for the procedures, it is characterized as documentary and bibliographical research. It was identified that, although they have different political origins and do not share the same ideology, the two leaders acted in similar ways by underestimating the effects of the pandemic, denying, or delaying strategies to contain the virus and neglecting demands of the poorest.

Keywords: COVID-19; Brazil; Mexico.

 

Fecha de recepción: 26 de mayo de 2023

Fecha de aceptación: 30 de julio de 2023

 

 

Ideologia e pandemia: estudo sobre al concepções políticas dos líderes de Brasil e Mexico es suas implicações diante da crise sanitária da Covid 19 (2020-2022)

 

 

Mateus Webber Matos*

Jacqueline Hernández Haffner**

 

Introdução

 

Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) e Andrés Manuel López Obrador (2018-), respectivamente presidentes de Brasil e México, pertencem a espectros político-ideológicos distintos. O primeiro foi, por quase três décadas, deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro e, em 2018, se elegeu presidente com quase 60 milhões de votos. Nesses cerca de 30 anos de carreira política, Bolsonaro manteve, em linhas gerais, coerência em seus discursos: defendeu a família em moldes tradicionais e conservadores, se posicionou a favor da facilitação do acesso a armamentos pela população, criticou práticas de cooperação Sul-Sul (em especial, as dos governos do Partido dos Trabalhadores), estabeleceu um modelo mais liberal na economia e contestou a relevância social de universidades públicas e da ciência. López Obrador, por seu turno, se identifica com movimentos de cunho mais social, o que se comprova através da criação, em 2011, do partido ao qual está filiado até hoje: Movimiento Regeneración Nacional (MORENA) (Renteria y Arellano-Gault, 2021).

 

Percebe-se, desse modo, que os perfis ideológicos desses dois líderes pertencem a espectros políticos divergentes. Tais visões díspares de mundo entre os dois maiores países da América Latina (tanto em termos de população quanto de PIB) pode, por vezes, enfraquecer esforços no sentido do processo de integração regional e redução de intercâmbios comerciais. Para além disso, a identificação de um líder com uma dada corrente política pode determinar a forma como este reagirá em momentos de crise. Os meses iniciais de 2020 exemplificam esse argumento. Diante da pandemia de COVID-19, eram esperados, de Brasil e México, posicionamentos assertivos e condizentes com as diretrizes dos organismos internacionais de saúde, não só por serem considerados líderes regionais, mas, como no caso brasileiro, também como referência histórica no combate a doenças e do desenvolvimento de suas respectivas vacinas (Calil, 2021).

 

Assim sendo, a ideologia surge como elemento capaz de afetar o comportamento de governos nacionais diante de crises sanitárias globais. Contudo, o alinhamento político-ideológico de quaisquer dois presidentes não implica, necessariamente, que ambas as estratégias terão o mesmo resultado. Os casos brasileiro e mexicano durante os anos de 2020-2022 são emblemáticos nesse sentido, considerando os posicionamentos ideológicos de seus líderes à época. A expectativa internacional depositada no Brasil foi de encontro ao direcionamento dado pelo governo Bolsonaro no combate à ameaça pandêmica. Ao invés de liderança, o Brasil assumiu papel conservador e de negação à gravidade e impactos da COVID-19. O mexicano López Obrador, ainda que não compartilhasse dos valores ideológicos de seu homólogo, recorreu a medidas semelhantes e acabou por afetar negativamente a economia de seu país (Madrid, 2021; Cerda y Martínez-Gallardo, 2022). 

 

É dessa forma que este trabalho procura entender o comportamento, a reação e as (in)ações desses dois presidentes ao longo do intervalo temporal 2020-2022 e no contexto de pandemia de COVID-19. Assim, a pergunta que este trabalho pretende responder é: qual o papel da ideologia nos desempenhos econômico e político de Brasil e México durante a pandemia de COVID-19. O objetivo geral é identificar elementos conexos entre os dois líderes que permitam relacionar políticas que contribuíram para o aprofundamento dos desequilíbrios econômicos e das instabilidades sociopolíticas. Como metodologia, adota-se a abordagem qualitativa. Quanto aos procedimentos, caracteriza-se como pesquisa documental e bibliográfica. De maneira preliminar, identificou-se que, muito embora tenham origens políticas distintas e não partilhem da mesma ideologia, Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador (doravante AMLO) agiram de maneiras análogas ao subestimarem os efeitos da pandemia, ao negarem ou atrasarem estratégias de contenção do vírus e negligenciarem as demandas dos mais pobres.

 

A pandemia de COVID-19 no Brasil de Bolsonaro

 

Os meses finais de 2019 presenciaram o surgimento de um vírus que, em pouco tempo, provou seu poder de dispersão e letalidade. O SARS-CoV-2 – como foi nomeado – atraiu a atenção de cientistas de todo o mundo que logo deram início a pesquisas para mapear o genoma do vírus e, em seguida, desenvolver imunizantes. Como resultado das tensões causadas pelo desconhecido, fronteiras nacionais foram fechadas e o deslocamento de pessoas foi restrito em escala global. O Brasil, todavia, parece ter ido na contramão das medidas sanitárias adotadas pela maioria dos países desde então. Acompanhado por membros de seu governo, Bolsonaro assumiu discurso negacionista e prejudicial não somente à contenção do vírus no Brasil como também às relações com os chineses. A doutrina seguida pelo ex-chanceler Ernesto Araújo (2019-2021), pelo filho Eduardo Bolsonaro, pelo então ministro da Educação Abraham Weintraub (2019-2020) e pelo próprio presidente foi no sentido de culpabilizar a China pelo ambiente pandêmico de forma preconceituosa e infundada (Sawicka, 2020).

 

Importante pontuar que, desde que foram anunciados a descoberta e os primeiros casos de contágio fora da China, o presidente brasileiro e a ala ideológica de seu governo agiram de maneira a minimizar a magnitude da pandemia e suas implicações sanitárias, alinhados às manifestações do então presidente norte-americano Donald Trump (2017-2020). Em pronunciamento na noite de 24 de março de 2020, Bolsonaro expôs alguns argumentos nesse sentido: apelidou a COVID-19 de “gripezinha”, desencorajou o isolamento social, e promoveu o uso de medicamentos para prevenção à doença sem comprovação científica, tais como a hidroxicloroquina. Diante disso, percebe-se que a postura inicial de Bolsonaro em relação à pandemia foi de negacionismo e tentativa de desacreditar e obstruir as recomendações dos órgãos de saúde tanto nacionais quanto internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

 

Outro fator relevante foi o caráter desarticulador do governo federal. A inexistência de protocolos sanitários elaborados pela instância federal fez com que estados e municípios tomassem medidas de maneira autônoma com o objetivo de frear a propagação da doença. A inércia do governo Bolsonaro abriu espaço para que governadores e prefeitos gerenciassem a compra de insumos hospitalares, determinassem o fechamento de escolas e suspendessem atividades não essenciais. Nessa linha, não houve, também, quaisquer políticas no sentido de orientar e estimular a economia nacional, o que “poderia ter sido um fator para a geração de empregos num momento de desaceleração drástica da atividade econômica” (Henriques; Vasconcelos, 2020: 33).

 

Cenário econômico

 

Assim, no que diz respeito ao campo econômico, o esforço de associar o mau desempenho da economia brasileira às práticas de isolamento social dava, de acordo com Bolsonaro, uma justificativa à piora de indicadores socioeconômicos. O argumento de que era necessário voltar à “normalidade” para salvar a economia, ainda que o vírus não estivesse contido, foi defendido diversas vezes pelo círculo mais próximo ao presidente. A proposta era clara: as camadas mais pobres da sociedade, juntamente com as classes médias, importariam menos do que aqueles que detinham o poder financeiro nacional (Akamine, Shiota y Dorsa, 2022). Essas políticas deixaram ainda mais evidentes as desigualdades sociais e de renda na sociedade brasileira, considerando que as recomendações de permanecer em casa e manter distanciamento não eram acompanhadas de programas de auxílio do governo federal (Caponi, 2020; Moura, 2020).

 

O descrédito dado ao isolamento social se mostrou infundado; prova disso foi que tanto os índices de desemprego e de inflação quanto a desaceleração produtiva de forma geral foram agudizados (Moehlecke, 2021). Como se pode notar no gráfico 1, quando o assunto são as taxas interanuais de crescimento do PIB entre países latino-americanos, o Brasil apresentou números consideravelmente mais baixos do que a maioria de seus vizinhos. Isso é verdadeiro não somente para o ano de 2021, mas também para 2020, no qual o país teve variação anual do PIB de 4,2% ante os 7,2% registrados pela média sul-americana (FMI, 2022). Ainda segundo dados obtidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil apresentou, em 2021, a maior taxa de desemprego entre os países pesquisados da América do Sul, no total de 14,2% (FMI, 2022).

 

Gráfico 1 América Latina (17 países): taxas de crescimento interanual do PIB, segundo e terceiro trimestres de 2021 (em porcentagens, baseado em dólares constantes de 2010)

Gráfico, Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente

Fonte: (Cepal, 2022: 62).

 

A partir do gráfico, pode-se inferir que, na média, entre os dois trimestres estudados, o Brasil ficou nas últimas posições do crescimento do PIB dos países sul-americanos. É bem verdade que a economia brasileira demonstra sinais de estagnação desde o ano de 2010 (Feijó; Araújo; Bresser-Pereira, 2022), mas o governo Bolsonaro pouco tem feito para recuperar as atividades produtivas domésticas. Do ponto de vista do setor industrial, a atual gestão federal adotou postura semelhante à de administrações anteriores, qual seja, a carência de medidas que incentivem a produção de bens nacionais de maior valor agregado. Esse processo, que tem seus primeiros sintomas durante a década de 1980, cristaliza-se quando se compara a participação da indústria brasileira na indústria global: em 2002 esse percentual era de 1,90%, baixando para 1,43% em 2015, 1,31% em 2020 até os dados mais atuais de 1,28% em 2021 (Fonseca, Arend y Guerrero, 2020; Moura, 2022).

 

Os serviços também foram afetados pela pandemia de COVID-19. Em agosto de 2020, pouco menos de seis meses após os primeiros casos no país, a produtividade desse setor era de 10% do total apurado no começo do mesmo ano (Souza, 2021), em razão de sua lenta recuperação. Isso se torna evidente quando se analisa duas das categorias de serviços com maiores prejuízos: hotelaria e aviação civil. Ambas fazem parte de uma parcela da economia na qual a volatilidade e a sazonalidade são elementos marcantes e interligadas a algumas variáveis (tais como redução dos postos de trabalho e a precarização das condições laborais, concentração das atividades em poucos aeroportos e o aumento dos custos operacionais e logísticos, queda na produção de aeronaves e suspensão de eventos corporativos e acadêmicos presenciais, bem como de viagens com objetivo turístico) para operarem com certa margem de segurança. No total, foram transportados pouco mais de 45 milhões de passageiros em 2020, o que indica uma redução de 46,7% em relação ao ano de 2019 (Senna y Souza, 2021).

 

Efeitos da pandemia: (in)ações deliberadas do governo Bolsonaro

 

A atuação do governo federal no sentido de atrasar (ou mesmo impedir) a aquisição de vacinas, ainda no segundo semestre de 2020, foi um dos fatores que adiou a reabertura de forma segura e completa de grande parte da economia doméstica. Cabe mencionar, também, a insistência de Bolsonaro no uso de medicamentos sem comprovação científica para o tratamento da doença. Assim, conforme o Senado brasileiro (Campello, 2022: 212), o governo federal incentivou deliberadamente tratamentos ineficazes, o que causou “atraso de um mês na distribuição de vacinas. A administração literalmente ignorou centenas de e-mails da Pfizer oferecendo vacinas e, em vez disso, optou por pagar a mais por uma vacina não aprovada pela Índia, um acordo mais tarde bloqueado por suspeitas de corrupção”.[1]

 

Ainda que com demora e de maneira lenta, o governo federal elaborou políticas de auxílio social frente à impossibilidade da população de exercer suas atividades laborais, e o Auxílio Emergencial surgiu como uma tentativa de amenizar os efeitos econômicos da crise sanitária para as parcelas mais pobres. Muito embora fosse essa a iniciativa esperada de um representante do Executivo federal, tal política gerou desequilíbrio fiscal. Evidência disso é o gráfico 2 que mostra o endividamento público de alguns países latino-americanos, estando o Brasil somente atrás da vizinha Argentina; os dados a seguir apontam uma redução da dívida pública entre dezembro de 2020 e junho de 2021. Contudo, os indicadores brasileiros ficam quase 30 pontos percentuais acima da média dos países latino-americanos analisados. Comparativamente, Peru e México foram tão afetados quanto o Brasil pela crise sanitária e, mesmo assim, possuem endividamento público consideravelmente menor (FMI, 2022).

 

 

Gráfico 2 América Latina (16 países): endividamento público bruto do governo federal, dezembro de 2020 e junho de 2021 (em porcentagens do PIB)

Gráfico, Gráfico de caixa estreita

Descrição gerada automaticamente

 

Fonte: (Cepal, 2021: 94).

 

A má gestão de Bolsonaro diante da crise sanitária da COVID-19 pode estar associada às suas crenças ideológicas. Um dos termos que ganharam maior notoriedade nesse período foi negacionismo, sobretudo quando estava relacionado à Ciência. A essa postura cética pode-se adicionar a defesa de preceitos neoliberais[2] pelo governo brasileiro, como liberdades individuais. Nessa lógica, o Estado repassaria gradativamente funções que antes eram suas para os indivíduos, tais como segurança pública (por meio da facilitação da aquisição de armamento pela população), educação (homeschooling) e saúde (desmonte paulatino do Sistema Único de Saúde [SUS]). Logo, pode-se resumir a postura de Bolsonaro como de caráter negacionista, na qual há banalização da morte, criação de narrativas falsas, produção de inimigos imaginários, enfraquecimento de instituições, ataque à academia e seus(uas) pesquisadores(as), tudo em nome de ideais de liberdade, igualdade e justiça social (Xavier et al., 2022).

 

Como se pode observar, portanto, o estilo de governo de Bolsonaro pertence a uma matriz mais neoliberal e menos estatista, tendo o estado papel social menos ativo e com maior destaque para reformas voltadas aos mercados (Resina, 2021). O neoliberalismo, desde sua concepção no pós Segunda Guerra, se caracteriza pela falta de consenso em torno de sua conceituação (Méndez, 2017; Andrade, 2019). Por esse motivo, tem sido utilizado de maneira quase que indiscriminada em contextos distintos. Não se pretende, dentro do escopo desse artigo, alongar ainda mais o debate acerca do termo. Quando aplicado à América Latina, o neoliberalismo ganha traços sociais ainda mais idiossincráticos, dada a diversidade cultural dos países da região. O conceito de neoliberalismo no qual esse trabalho se ampara, portanto, não se restringe à esfera econômica, uma vez que “É necessário se perguntar como o neoliberalismo ganha adesão na população, como se enraíza em nossos comportamentos e crenças, para além da ortodoxia econômica e da repressão do Estado” (Méndez, 2017: 16).[3]

 

Todos os dados apresentados até aqui nos gráficos podem induzir análises – equivocadas– de que a desorganização no combate à pandemia no Brasil era relativa à inexistência de estratégias e à inaptidão da gestão Bolsonaro em administrar demandas da sociedade. Argumenta-se que, pelo contrário, as crenças religiosas, valores conservadores e perfil político autoritário do presidente brasileiro são fundamentais para a compreensão da gestão da crise por parte do governo, fazendo parte de um planejamento mais amplo e permeado por ideologia que, à época, encontrava respaldo em alguns cantos do globo, tais como os Estados Unidos de Donald Trump (2017-2020), a Polônia de Andrzej Duda (2015-) e a Hungria de Viktor Orbán (2010-).

 

A superlotação de hospitais, a carência de insumos e o grande número de mortos são apenas alguns dos exemplos que compunham o modus operandi bolsonarista, cujo emprego sistemático se baseava na disseminação de informações imprecisas ou incorretas. Pode-se caracterizar essa estratégia como bem determinada “coerente e sistematicamente aplicada por parte do governo Jair Bolsonaro, que, orientando-se pela perspectiva de atingir rapidamente a imunização coletiva (ou ‘imunidade de rebanho’), se utilizou de distintos instrumentos para estimular a intensificação da contaminação” (Calil, 2021: 31). Assim, percebe-se que o discurso do presidente, minimizando os efeitos da COVID-19, a constante recusa na utilização de máscaras, a promoção (direta ou indireta) de aglomerações e o incentivo à volta de atividades econômicas em pleno pico de contaminação podem ser considerados indícios dessa tentativa de imunização de rebanho.

 

Outro ponto importante é a inflação. É certo que a pandemia, de maneira geral, foi um dos indutores do temor da alta inflacionária, especialmente quando diz respeito a países latino-americanos. Estes foram os mais afetados pelo aumento generalizado dos preços ao longo das décadas de 1980 e 1990 e, desde então, fazem do controle inflacionário uma de suas prioridades. De acordo com dados da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o Brasil foi o país com a maior elevação da taxa de inflação (ficando à frente de Estados Unidos, Reino Unido, Japão, China, Rússia, África do Sul e da Zona do Euro), entre os meses de janeiro de 2018 e outubro de 2021. Ainda segundo essa pesquisa, a inflação brasileira teria alcançado os 10,5%, enquanto a Rússia (segunda colocada) atingiu 8% (Cepal, 2021).

 

Por meio desse panorama inicial, pode-se depreender que o Brasil foi um dos mais atingidos não somente com relação ao número de contágios e mortes por COVID-19, mas também do ponto de vista econômico. Isso ocorreu muito em virtude da falsa dicotomia criada por Bolsonaro entre saúde versus economia e sua inaptidão em lidar com a crise sanitária. Na próxima seção, pretende-se investigar a situação do México nesse mesmo período, bem como as políticas elaboradas por AMLO para conter a disseminação do vírus.

 

A pandemia COVID-19 no México de López Obrador

 

Como anteriormente mencionado, AMLO se distancia das crenças político-ideológicas de Bolsonaro. Não obstante, AMLO compartilhou alguns dos discursos e estratégias de seu homólogo brasileiro, tais como o contínuo questionamento sobre a validade de pesquisas científicas, a subestimação dos verdadeiros impactos da pandemia na sociedade mexicana e a não priorização das vidas de seus concidadãos (Madrid, 2021; Cerda y Martínez-Gallardo, 2022; González-Rosas, Arias-Romo y Campos-Canchola, 2022). Outra semelhança com o Brasil é que ambos já demonstravam desempenho econômico titubeante antes de 2020, conjuntura que só piorou daí em diante. Segundo dados do FMI (2022), a economia mexicana caiu cerca de 8,2% em 2020, muito acima da média de -2% de outros países emergentes e em desenvolvimento. Os resultados da tabela 1 evidenciam que essa tendência está se repetindo desde então.

 

Tabela 1 – Panorama de perspectivas para o crescimento econômico de países selecionados

 

Região                                                            2021 (Resultado)     2022 (Projeção)     2023 (Projeção)

Economias de mercados emergentes                         6,8%                        3,8%                      4,4%

e em desenvolvimento

 

México                                                                   4,8%                           2%                       2,5%

Fonte: Adaptado de FMI (2022: 8).

 

Esses dados são, em alguma medida, decorrentes da inércia do governo de AMLO em controlar a crise sanitária logo no início. Prova disso é que, ao contrário do que muitos de seus vizinhos fizeram, o México não foi capaz de elaborar programas de auxílio à sua população de maneira a melhor distribuir sua renda e dirimir efeitos da alta do desemprego e da perda de poder de compra pelos cidadãos (Huesca et al., 2021). De acordo com simulação conduzida por Huesca et al. (2021), quase 30% dos mexicanos estariam vivendo na extrema pobreza em 2020. Com o fechamento de milhares de vagas de emprego e a precarização das condições de trabalho, os mexicanos passaram a atuar no mercado informal. Estima-se que 31 milhões deles (pouco mais de 55% da população economicamente ativa) estejam atualmente na informalidade e, dessa forma, sem qualquer tipo de amparo por parte do estado (Karlik, 2021).

 

Perfil ideológico de AMLO

 

Voltando ao perfil e ao histórico político do líder mexicano, percebe-se que AMLO foi eleito com propostas revolucionárias em questões como combate à violência urbana, à corrupção e erradicação de desigualdades sociais (Renteria y Arellano-Gault, 2021). No que diz respeito à ideologia de AMLO e às principais pautas por ele defendidas, nota-se que seu regime é considerado populista e austero, o que levou a discordâncias (estratégicas, políticas e de discurso) entre o presidente do país e governadores opositores, gerando descoordenação entre os níveis regional e federal no combate à doença (Renteria y Arellano-Gault, 2021).

 

Em razão de ser um termo difuso e utilizado para caracterizar vertentes ideológicas distintas entre si, faz-se importante esclarecer em qual o conceito de populismo no qual o artigo se apoia. De maneira simplificada, o populismo é uma estratégia política da qual líderes se aproveitam com o intuito de se manterem no poder. Um dos elementos essenciais para isso é o estabelecimento de uma comunicação direta entre líder e população, enfraquecendo a atuação das instituições. Dessa forma “o populismo emerge quando líderes personalistas baseiam seu governo em um apoio maciço, porém, em sua maioria, não institucionalizado, de um grande número de pessoas” (Weyland, 2001: 18).

 

No caso brasileiro esse movimento ficou muito claro, na medida que Bolsonaro escolheu plataformas como Twitter, Facebook e YouTube para entrar em contato diretamente com seu público. Além disso, o ex-presidente, foi personagem de episódios de tensão entre a presidência da república e instituições como o Superior Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo. O conceito de populismo mencionado acima se mostra mais adequado, assim, pois, ainda que tenham visões políticas e econômicas diferentes, líderes populistas partilham de uma lógica fundamental: todos, em maior ou menor medida, buscam o poder político (Weyland, 2001).

 

A despeito de diferenças ideológicas, AMLO parece, mais uma vez, agir de maneira análoga ao presidente brasileiro. Ambos prescindem das instituições de Estado para se comunicar com a população, se manifestam de maneira autoritária diante de posicionamentos que os contradigam, confundem a sociedade ao passarem orientações imprecisas sobre protocolos sanitários e reúnem ao seu redor hordas fiéis e dispostas a emular e difundir quaisquer teorias (Caamal-Olvera y García, 2021). Outro fator essencial para a contenção do vírus era o mapeamento e a divulgação das zonas mais atingidas, de preferência diariamente. Considerando que tanto Brasil quanto México são países com elevado número de habitantes e grande território, era necessário realizar acompanhamento das efetividades das estratégias adotadas por cada região, o que ou não foi feito ou foi executado de forma a não dar transparência às informações coletadas.

 

O reflexo das escolhas políticas tomadas por AMLO fez com que o México figurasse na terceira posição no número total de mortes por COVID (331 mil) nas Américas, ficando atrás somente de Estados Unidos (1 milhão e 70 mil) e Brasil (690 mil), posição que segue incômoda, levando-se em consideração o panorama global (5º lugar, atrás também de Índia e Rússia) (OMS, 2022). Renteria e Aellano-Gault (2021: 192) observam que, nas fases iniciais de introdução da COVID-19 no México, o enquadramento das soluções políticas estava “associado às estratégias para fortalecer o clientelismo, como a promoção de um papel passivo dos cidadãos, e aumentar o financiamento dos principais programas associados a transferências de dinheiro e infraestrutura de construção”.[4] A partir do estudo desses autores, ainda que sob certas demandas e condicionados por forte viés político, houve iniciativas do governo mexicano para conter os efeitos da crise sanitária.

 

Assim como aconteceu com a economia do país, o sistema de saúde mexicano já era carente de infraestrutura, insumos e profissionais antes dos primeiros casos de COVID-19 no primeiro trimestre de 2020. O que a nova doença fez foi somente aprofundar as fragilidades de um setor que, há muito, operava em condições inadequadas (Laurell, 2020). Mais uma vez, de forma semelhante ao Brasil, o governo central mexicano não teve iniciativa na aquisição de equipamentos hospitalares (cilindros de gás, luvas, máscaras) e de vacinas, o que possibilitou aos líderes das diferentes regiões dentro do país executarem os planos que mais os conviessem.

 

Ainda que a oferta desses bens em âmbito global não estivesse suprindo a demanda (fazendo com que os preços aumentassem consideravelmente), a melhor estratégia seria, do ponto de vista interno, a criação de um plano centralizado no governo federal (tendo em vista que o Estado tem maior poder de barganha do que suas províncias separadamente) e, externamente, a união de países do Sul Global para a compra de grandes quantidades de vacinas a preço mais atrativos. Este ambiente é conhecido como “complexo médico-industrial” (Laurell, 2020), neste sentido, é que se entende que poderiam ter sido aplicadas outras táticas interna e externamente em relação à doença.

 

Era de se supor que, depois de todo o esforço dispendido por AMLO no sentido contrário às recomendações de especialistas, os índices de apoio popular ao presidente sofressem quedas proporcionais à dimensão que se tornou a crise sanitária de COVID-19. Entretanto, o líder mexicano não só manteve sua aprovação em níveis satisfatórios (55%) como também logrou duas vitórias políticas importantes no verão de 2021: a base governista conservou sua vantagem numérica no Senado e seus aliados foram eleitos governadores na maioria das 15 províncias mexicanas (Cerda y Martínez-Gallardo, 2022). A população mexicana de maneira geral pareceu ter aprovado a postura de AMLO durante a condução da crise, o que, para alguns autores (Renteria; Arellano-Gault, 2021; Cerda y Martínez-Gallardo, 2022) se deveu à estratégia política populista do presidente.

 

Há autores, ainda, que criticam a ideia de que a pandemia de COVID-19 reordenou os caminhos políticos do México. Na visão de Centeno, o país não foi e não é governado por forças de esquerda desde a eleição de AMLO em 2018. Ele argumenta que a inexistência de programas de amparo social aos mais carentes durante a pandemia, o crescente autoritarismo perpetrado pelo presidente, a aparente manutenção do modelo econômico (dito neoliberal) e a não taxação de grandes fortunas são apenas alguns indícios de um perfil de gestão particular adotado por AMLO, chamado de “progressismo falido” (Centeno, 2021).

 

Gráfico 3 – América Latina (7 países): emprego registrado (janeiro de 2019 a março de 2021)

Gráfico, Gráfico de linhas

Descrição gerada automaticamente

 

Fonte: (Cepal, 2021: 82).

 

Para tentar compreender a adesão dos mexicanos a este novo estilo de governar de AMLO, o gráfico 3 aponta as taxas de empregados no intervalo de janeiro de 2019 a março de 2021. A partir da leitura das informações, pode-se inferir que, à exceção de Argentina e Uruguai, o México apresentou desempenho pior do que os outros quatro países pesquisados. Isso significa que não só Costa Rica e El Salvador lidaram melhor com suas crises sanitárias e lograram fomentar seus mercados de trabalho, mas também que os mexicanos ficaram atrás do Peru, economia mais atingida pela COVID-19 nas Américas. Com o intuito de ilustrar esse cenário, constatou-se que o Peru teve o 4º maior índice mundial de mortalidade pelo vírus (1º, considerando-se somente as Américas), com um total de mais de quatro milhões de infectados (OMS, 2022).

 

Nesse momento em que já foram abordados os posicionamentos de Bolsonaro e AMLO ao longo dos últimos anos separadamente, cabe, agora, investigar se as crenças políticas e ideológicas de ambos interferiram nos efeitos que a pandemia de COVID-19 teve em seus respectivos países e, em especial, em suas economias.

 

Ideologia política e pandemia: casos de Bolsonaro e López Obrador

 

Um dos objetivos da presente seção é identificar diferenças e similaridades ideológicas entre Bolsonaro e AMLO. Neste sentido, entende-se que em um primeiro momento, a distância que os separavam do ponto de visto de posicionamento político não condizia com as posturas negacionistas e reativas de ambos os governos nas primeiras semanas de pandemia. Apoiando-se em crenças pessoais e interesses políticos, tanto Bolsonaro como AMLO propagavam que a COVID-19 seria um evento passageiro e com poucos efeitos econômicos. Contudo, o que se viu foi uma retração de ambas as economias em um nível acima do de outros países da região. A demora em instituir programas de auxílio social nesse contexto foi outro fator que prejudicou ambas as economias, cuja taxa de informalidade chegou, ao final de 2021, a cerca de 40% no Brasil (IBGE, 2023), ao passo que, no mesmo ano, esse setor foi responsável por quase 24% do PIB mexicano (INEGI, 2023).

 

 Amparados por políticas populistas, Bolsonaro e AMLO, ao contrário do que poderia se supor inicialmente, mantiveram relativo apoio popular ao longo do período 2020-2021. O “núcleo duro” de Bolsonaro (aquele que endossava quaisquer falas ou atitudes suas) girava em torno de 15-20% do eleitorado em 2022 (Tabak, 2022), que, meses mais tarde, se transformaria em pouco mais de 58 milhões de votos no segundo turno das eleições presidências de 2022. É certo que dentro desse contingente havia graus de adesão distintos ao discurso de Bolsonaro. Contudo, mesmo após figurar no ranking mundial de países com maiores números de contaminados e mortos pela COVID-19, Bolsonaro não se reelegeu por uma margem de 0,9%, ou pouco menos de 2 milhões de votos. Uma vez que a Constituição mexicana veta a possibilidade de reeleição presidencial (os mandatos são de seis anos), AMLO não via sua gestão durante a pandemia como decisiva para a obtenção de mais seis anos à frente do Executivo, diferentemente de seu correspondente brasileiro.

 

Independente do espectro político de seus líderes, Brasil e México já estavam em situações delicadas do ponto de vista econômico em 2018. Esse ano é emblemático, pois foi quando Bolsonaro e AMLO venceram as eleições em seus respectivos países. Essa seção se deterá, sobretudo, no desenrolar do surto pandêmico da COVID-19 a partir dos primeiros meses de 2020. Para tanto, foram delimitados dois enfoques que auxiliarão na compreensão desses dois casos específicos: primeiras reações dos presidentes ao novo vírus e relações de Brasil e México com a China, epicentro inicial da pandemia e maior parceiro comercial da América Latina; e grau de aderência ao posicionamento dos Estados Unidos.

 

China e Estados Unidos, dessa forma, são atores fundamentais para a compreensão do contexto pandêmico de maneira geral. A inclusão da China nessa pesquisa se justifica tanto na medida em que foi aí que surgiram os primeiros casos quanto por ter sido ela alvo de discursos xenófobos por parte de alguns países do Ocidente. Além disso, a China tem, nos últimos 20 anos, se aproximado comercialmente de vários países latino-americanos, o que fez com que os chineses se transformassem em parceiros estratégicos para a região. Os Estados Unidos, por sua vez, serão abordados também pelo seu peso geopolítico na América Latina, assim como por ter se convertido no epicentro da pandemia ainda em 2020 e, finalmente, em razão da postura controversa de seu ex-presidente Donald Trump.

 

Primeiras reações de Bolsonaro e López Obrador à COVID-19 e relações com a China

 

Nesse ponto, Bolsonaro e AMLO parecem ter reagido de maneiras análogas. Ambos discursaram com o intuito de acalmar os ânimos sociais e ressaltaram a importância de se “voltar à normalidade”. Pelo lado do mandatário brasileiro, entretanto, havia um alinhamento com a retórica do então presidente norte-americano Donald Trump (Campello, 2022). Bolsonaro nunca havia escondido sua simpatia pela figura de Trump e, mais uma vez, seguiu a linha argumentativa de que salvar a economia deveria ser o propósito primordial. Já o governo federal mexicano só instaurou estado de emergência no país –fechando escolas e ativando protocolos de distanciamento, por exemplo– 50 dias depois de a OMS ter anunciado o caráter pandêmico da crise, o que, para alguns autores, é indicativo de que o gerenciamento da crise pelo presidente AMLO foi falho, tardio e negligente (Cerda y Martínez-Gallardo, 2022).

 

A falta de ações coordenadas pelo Poder Executivo federal fez com que governadores e prefeitos das mais variadas regiões do Brasil elaborassem protocolos de saúde de maneira autônoma, enquanto o presidente insistia, em rede nacional, que não havia motivos para se preocupar e que um dos medicamentos recomendados para a doença seria a hidroxicloroquina (Moehlecke, 2021). Em poucos meses a droga não só se mostrou ineficaz no tratamento da COVID-19 como também, em muitos casos, causava lesões em órgãos perfeitamente saudáveis. Portanto, Bolsonaro traçou dois caminhos possíveis, tendo, em ambos, justificativas que favorecessem seus discursos:

 

1) no caso de um número alto de mortes, como infelizmente ocorreu, o governo apontaria que o isolamento social foi ineficaz, causando a morte de empresas e empregos; 2) se o cenário fosse de baixo contágio e mortalidade, o governo destacaria a pouca gravidade da pandemia e a quarentena desnecessária imposta por governadores e prefeitos. Nos dois casos, Bolsonaro estaria ao lado do “povo” na defesa de trabalhadores e empresários (Vazquez; Schlegel, 2022: 12).

 

O governo Bolsonaro demonstrou hesitação no processo de tomada de decisão em outra situação: o resgate de brasileiros que se encontravam em outros países quando diversas fronteiras foram fechadas. Em um primeiro momento, a reação de Bolsonaro foi negar transporte a esses cidadãos. Somente depois de pressão popular é que o presidente autorizou o envio de aeronaves que realizaram o deslocamento (Henriques y Vasconcelos, 2020). A hesitação, dessa forma, parece ter sido uma das características da gestão Bolsonaro, além de sua disposição habitual para a confrontação e o ataque (Campello, 2022).

 

Nesse contexto, não é possível negligenciar as relações dos dois países com a China: Sobretudo com o Brasil de Bolsonaro e durante o primeiro ano de pandemia, tensão foi o sentimento que imperou. Isso porque integrantes do círculo próximo ao presidente (como Eduardo Bolsonaro, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo) adotaram o tom utilizado por Trump e passaram a responsabilizar os chineses pela disseminação da doença. Em abril de 2020, Araújo publicou em seu blog “Metapolítica 17” texto citando a COVID-19 como uma criação comunista, forjando o termo “comunavírus”. Ernesto Araújo insinuou a existência de um comunismo-globalista que estaria se utilizando da pandemia para causar rupturas na atual ordem democrática liberal do Ocidente (Araújo, 2020), fazendo alusões ao Partido Comunista Chinês como a liderança por trás desse projeto.

 

Dentro da lógica de um cenário pandêmico, tais hostilidades e o enfraquecimento dos laços diplomáticos com os chineses não eram a melhor alternativa para o Brasil. Em duas situações as consequências desse posicionamento ofensivo de alguns membros do governo Bolsonaro ficaram evidentes: na restrição chinesa à importação de carne brasileira de alguns frigoríficos alegando o número elevado de casos de trabalhadores infectados pela COVID-19 em junho de 2020 e, em outro momento, dificuldades enfrentadas pelo Brasil em negociar a compra de equipamentos e insumos hospitalares com a China (Sawicka, 2020).

 

Esses conflitos tinham potencial de prejudicar as relações Brasil-China que, em especial ao longo dos governos Lula da Silva (2003-2010), se tornaram mais próximas. Os representantes de uma ala mais pragmática da administração Bolsonaro, no entanto, parecem ter conseguido manter as trocas comerciais entre os dois países em níveis razoáveis. Evidência disso foi que 76% do superávit brasileiro de janeiro a abril de 2020 foi proveniente da China, do mesmo modo que houve aumento de 21% nas exportações de soja brasileira para os chineses se comparado ao mesmo intervalo de 2019 (Severo y Feres, 2020).

 

O México, por sua vez, manteve sua tradição de alinhamento com Estados Unidos e Canadá. Em cúpula realizada em Washington e que contou com a presença dos líderes dos três países que compõem a América do Norte, AMLO reiterou a necessidade de o bloco reagir diante do avanço comercial chinês, sugerindo que, caso nada seja feito, em 30 anos os chineses teriam cerca de 42% do comércio mundial, deixando para os membros do NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, na tradução em português) uma fatia de apenas 12% (Manetto, 2021). Para esse grupo, portanto, quando a pauta envolve os chineses ela é, usualmente, tratada do ponto de vista securitário.

 

Por outro lado, parece haver uma tentativa de aproximação dos chineses em relação aos mexicanos. No começo de 2022, o presidente Xi Jinping sinalizou interesse de estreitar os laços entre os dois países, destacando a parceria estratégia desenvolvida desde 2013 e a cooperação mútua construída por ambos durante a pandemia de COVID-19 (XI, 2022). Em termos comerciais, o México exportou para a China quase 30% a mais em 2021 em comparação com o ano anterior, perfazendo um comércio total de US$ 110 bilhões, compostos, basicamente, por produtos agropecuários (Embajada de México, 2022).

 

 

Tabela 2 – Exportações chinesas para Brasil e México entre 2018-2022 (em bilhões de US$)

 

País                                               2018               2019               2020               2021               2022   

Brasil                                         35,1                 36                  34,7                47,6                 60,7     

México                                      44,1                 46,3                44,8                67,4                 118

Fonte: Elaborada pelo autor com base em Comexstat (2023), UN Comtrade Database (2023) e Data Mexico (2022).

 

A partir da leitura da tabela 2, pode-se verificar que houve queda das exportações chinesas tanto para Brasil quanto para México de 2019 para 2020, exatamente o período inicial dos surtos de SARS-CoV-2. Apesar de esperada, tal redução foi bem menor do que aquela prevista pelos governos dos respectivos países. Um detalhe ainda mais interessante é o aumento considerável das exportações chinesas para ambos os países entre 2020-2022, tendo em vista que somente o México quase dobrou suas importações oriundas de seu parceiro asiático de 2021 para 2022.

 

No que diz respeito ao investimento externo direto (IED) chinês no México, esse número saltou de US$ 215 milhões em 2020 para US$ 414 milhões em 2021, aumento de mais de 92% (Embajada de México, 2022). De acordo com dados de agosto de 2022, os bens mexicanos exportados têm os Estados Unidos como principal destino (82,5%), ficando a China com cerca de 1,9%, enquanto 20,3% das importações mexicanas provém dos chineses e 44% de seus vizinhos norte-americanos (Data México, 2022). Por esse motivo, os Estados Unidos são elemento essencial para se compreender a realidade mexicana, ainda mais em um contexto de pandemia. Isso ocorre, pois tanto a economia mexicana quanto a conjuntura política estão historicamente entrelaçados com a dos norte-americanos.

 

Em qualquer circunstância, as relações de Brasil e México com os Estados Unidos já seriam relevantes para se compreender a realidade latino-americana. Se incluirmos um contexto pandêmico à análise, as discussões ganham ainda mais ingredientes. Em um primeiro momento, o que se pode inferir é que, em 2020, Brasil, Estados Unidos e México eram governados por presidentes, em maior ou menor grau, com traços populistas (Renteria; Arellano-Gault, 2021). Independente do espectro político ao qual pertenciam, estes líderes desprezaram “os riscos associados à pandemia, polarizaram a discussão política sobre políticas de saúde pública, criticaram e estigmatizaram minorias e grupos vulneráveis, se envolveram em conflitos com outras instituições governamentais e subestimaram o mérito do serviço público” (Renteria; Arellano-Gault, 2021: 193).[5] Não à toa, eram estes os três países que encabeçavam a lista em número de mortes por COVID-19 nos meses finais de 2020 (Madrid, 2021).

 

A comunidade mexicana nos Estados Unidos foi especialmente afetada durante a pandemia. Isso porque esta parcela da população é responsável por grande parte dos serviços essenciais (transporte, limpeza urbana, trabalhos de cuidado, alimentação). Interessante notar que, em setembro de 2021, a taxa de desemprego dos mexicanos nos Estados Unidos era de somente 4,1%, o que representava melhora em relação aos níveis anteriores à pandemia (Cepal, 2021). Por esse motivo, as remessas de mexicanos emigrados se faziam tão importantes para aqueles que haviam ficado em terras mexicanas. De acordo com dados da Cepal (2021), o envio de valores para o México foi 25% superior em 2021 em relação a 2020 que, por sua vez, foi cerca de 12% maior do que em 2019.

 

Já a ligação do Brasil de Bolsonaro com os Estados Unidos de Donald Trump era nitidamente mais ideológica. As reações adotadas, as (in)ações, os discursos acusatórios contra a China, a subestimação do potencial da COVID-19 e o atraso na compra de vacinas foram somente algumas das medidas tomadas por Trump e emuladas pelo governo Bolsonaro. A retórica do presidente brasileiro foi de divisão, entre aqueles que queriam preservar a economia e o trabalho de milhões contra os que estavam hiper dimensionando os impactos da pandemia (Campello, 2022). A vitória de Joe Biden à presidência norte-americana em novembro de 2021 representou desacoplamento da política externa brasileira à dos Estados Unidos, considerando que Biden agiu de maneira contrária ao seu antecessor e combateu a COVID-19 de maneira mais efetiva. As eleições presidenciais no Brasil mostraram a mesma tendência: assim como Trump havia perdido por, entre outros motivos, negligenciar a maior crise sanitária em 100 anos, Bolsonaro também não se reelegeu por relativizar a dor e os efeitos da pandemia nos lares dos brasileiros. Trump e Bolsonaro agiram da mesma forma desde os momentos iniciais da crise e acabaram, também, no mesmo local: fora da presidência de seus países.

 

Considerações Finais

 

Neste trabalho, buscou-se investigar se as concepções ideológicas de dois presidentes latino-americanos (Jair Bolsonaro no caso brasileiro e AMLO no caso do México) foram determinantes na maneira com a qual conduziram a crise sanitária da COVID-19 que chegou ao continente no início de 2020. A identificação de um líder a uma dada corrente política, pode determinar a forma como este reagirá em momentos de crise. Os meses iniciais de 2020 exemplificaram esse argumento. Diante da pandemia de COVID-19, de Brasil e México eram esperados posicionamentos assertivos e condizentes com as diretrizes dos órgãos internacionais de saúde. Percebeu-se que ambos adotaram posturas similares como a depreciação do potencial de disseminação do vírus e real gravidade da doença, o que fez com que Brasil e México dividissem as primeiras posições em relação ao número total de óbitos e enfrentassem desequilíbrios econômicos e produtivos consideráveis.

 

Em decorrência da inércia do governo de AMLO em controlar a crise sanitária logo no início (ao contrário de muitos de seus vizinhos), o México não foi capaz de elaborar programas de auxílio à sua população de maneira a melhor distribuir sua renda e dirimir os efeitos da alta do desemprego e da perda de poder de compra pelos cidadãos. Com o fechamento de milhares de vagas de emprego e a precarização das condições de trabalho, os mexicanos passaram a atuar no mercado informal.

 

No que diz respeito ao Brasil, pensar as relações diplomáticas sino-brasileiras é pensar em cinquenta anos de parceria, que sobreviveram a diferentes regimes e ideologias políticas (ditadura, passando pela retomada democrática no Brasil, a década neoliberal de 1990, até governos de esquerda como os do PT). Houve, ao longo dos anos 2000, a construção de uma política externa que considerava o Brasil como agente relevante no cenário internacional e a China como uma aliada próxima nesse sentido. O governo de Jair Bolsonaro representou uma ruptura no direcionamento dessa matriz de política externa, enxergando a China menos como parceiro econômico estratégico e mais como alvo de ataques ideológicos.

 

O que se viu, portanto, é que nos casos de Brasil e México a distinção político-ideológica não foi elemento importante em seus posicionamentos diante da crise sanitária. Isso significa que tanto um líder de extrema-direita, como Bolsonaro, quanto um de esquerda, como AMLO, tiveram atitudes semelhantes em um momento delicado de seus governos. Além disso, tiveram discursos parecidos em relação à China, país que, segundo eles, seria o responsável pela origem e disseminação do vírus. Quanto aos Estados Unidos, por mimetização ou não, Brasil e México adotaram posturas alinhadas ao governo, sobretudo, de Donald Trump, no que diz respeito à negação da pandemia e de seus efeitos.

 

Não por acaso, tanto Trump quanto Bolsonaro tentaram a reeleição em 2020 e 2022, respectivamente, e ambos saíram derrotados. Em alguma medida, as implicações da pandemia (tanto econômicas, políticas, sanitárias quanto relativas ao número de infectados e mortos) foram questões que condicionaram o processo eleitoral e enfraqueceram as candidaturas de ambos. Em relação a AMLO, não será possível medir sua aceitação/rejeição no que diz respeito ao gerenciamento da crise sanitária da COVID-19, pois não é permitida a reeleição presidencial no México, uma vez que o mandato corresponde a seis anos. Entretanto, pode-se analisar qual será a resposta da população à(o) candidata(o) escolhido e apoiado por AMLO. Nesse caso é possível que essa correspondência entre a vitória (ou não) da(o) candidata(o) de AMLO e sua gestão à época da pandemia não seja tão perceptível, tendo em vista que, diferentemente dos pleitos presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil, as eleições mexicanas ocorrerão em um momento no qual a população mexicana já não estará tão imersa em um ambiente de insegurança e pânico como os de 2020-2022.

 

Por fim, constatou-se que, não só dentro do âmbito latino-americano, mas também globalmente, Brasil e México estiveram em posições delicadas quanto ao número de contaminados e mortos. Essas foram consequências da irresponsabilidade e da incapacidade de seus líderes em elaborar planos de contenção do vírus e de preservação da vida de seus cidadãos. Para além disso, as relações sino-brasileiras saem estremecidas depois de vários episódios de preconceito e xenofobia de membros do governo Bolsonaro no sentido de associar o vírus ao comunismo ou a um suposto plano chinês para enfraquecer o poder norte-americano.

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* Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI/UFRGS). Especialista em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas (UFRGS). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Relações Internacionais do Sul Global (NEPRISUL). E-mail: mateus.webber@hotmail.com

** Professora Associada III do Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Líder do Grupo de pesquisa dos BRICS (NEBRICS/UFRGS). Chefe do Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) da UFRGS. E-mail: jacqueline.haffner@ufrgs.br

[1] Traduzido no original: “monthslong delay in the distribution of vaccines. The administration ignored literally hundreds of e-mails from Pfizer offering vaccines and, instead, opted to overpay for an unapproved vaccine from India, a deal later stalled over suspicions of corruption”.

[2] O governo Bolsonaro (2019-2022) parece ter colocado em prática o conceito de neoliberalismo apregoado por Harvey (2005, p. 51,77), no qual o autor afirma que “Os teóricos neoliberais têm [...] uma profunda suspeita com relação à democracia. A governança pelo regime da maioria é considerada uma ameaça potencial aos direitos individuais e às liberdades constitucionais. A democracia é julgada um luxo que só é possível em condições de relativa afluência, associado a uma forte presença da classe média para garantir a estabilidade política. [...] Os valores "liberdade individual" e "justiça social" não são necessariamente compatíveis. A busca da justiça social pressupõe solidariedades sociais e a propensão a submeter vontades, necessidades e desejos à causa de alguma luta mais geral em favor de, por exemplo, igualdade social ou justiça ambiental”.

[3] Traduzido no original: “Hay que preguntar cómo el neoliberalismo gana adhesión en la población, cómo se arraiga en nuestros comportamientos y creencias, más allá de la ortodoxia económica y la represión de Estado”.

[4] Traduzido no original: “associated with strategies to strengthen patronage, such as promoting a passive role of citizens, and increasing the funding of flagship programs associated with cash transfers and building infrastructure”.

[5] Traduzido no original: “have minimized the risks associated with the pandemics, have polarized the political discussion about public health policies, have criticized and stigmatized minorities and vulnerable groups, have engaged in conflict with other government institutions and have underrated the merit of public service”.