EXPERIÊNCIAS GLOTOPOLÍTICAS
DE UMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
Andrea Silva Ponte
Universidade Federal da Paraíba
Brasil
RESUMO
Nos últimos dois anos foram desenvolvidos na Universidade Federal da Paraíba dispositivos com os quais se propõem intervenções linguísticas no âmbito da instituição. Tais intervenções se constroem com o propósito de provocar uma reorientação ideológica e discursiva que situe a questão das línguas em lugar destacado na formação dos estudantes. Trata-se de um movimento deliberado para a conformação de um imaginário que circunscreva as línguas não somente como instrumentos para interações internacionais, mas também como elemento chave na identidade cultural, na formação humana e profissional e na defesa de direitos individuais e coletivos. Este artigo, inscrito no enfoque glotopolítico e de perspectiva etnográfica, se dispõe a descrever estas intervenções e analisar suas condições de produção.
Palavras-chave: glotopolítica; Ensino Superior; internacionalização; capacitação linguística
GLOTTOPOLITICAL EXPERIENCES
AT A BRAZILIAN UNIVERSITY
ABSTRACT
In the last two years, devices were developed at the Federal University of Paraíba with which linguistic interventions are proposed within the scope of the institution. Such interventions are built with the aim of provoking an ideological and discursive reorientation that places the issue of languages in a prominent place in the education of students. It is a deliberate movement for the conformation of an imaginary that circumscribes languages not only as instruments for international interactions, but also as a key element in cultural identity, in human and professional training and in the defense of individual and collective rights. This article, inscribed in the glotopolitical approach and from an ethnographic perspective, sets out to describe these interventions and analyze their conditions of production.
Key words: glotopolitics; University education; internationalization; language training
O presente artigo trata de narrar propostas e ações no campo das línguas na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Inscrita no campo da glotopolítica, a discussão proposta – de perspectiva etnográfica, uma vez que participei diretamente nas ações descritas – por um lado analisa as condições de produção e, por outro descreve, por meio dos textos em que se materializam, as intervenções no âmbito das línguas nesta universidade. Para tanto, trato de situar brevemente o ensino de línguas estrangeiras no Brasil nas diferentes etapas da educação formal, descrevo os processos de internacionalização no Ensino Superior e seus efeitos sobre as línguas e, finalmente, discorro sobre as intervenções no campo da linguagem propostas na UFPB. Esta reflexão se realiza no intuito de contribuir para a construção de políticas linguísticas que atendam às realidades e necessidades locais e se sobreponham a tendências internacionais ditadas por pautas que, muitas vezes, nos são alheias.
O ensino de línguas na educação formal no Brasil: da Educação Básica ao Ensino Superior
O debate acerca do acesso ao ensino formal de línguas estrangeiras ao longo da vida acadêmica dos estudantes no Brasil se dá de diferentes maneiras.
No âmbito da Educação Básica, um olhar cronológico mostra que a presença de línguas estrangeiras no currículo oficial passa por diferentes fases que apontam para uma piora progressiva. Entre as décadas de 40 e 60 do século XX, graças à Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942 – parte da Reforma Capanema, que tinha como objetivo reestruturar o sistema educativo do país – as línguas gozavam de certo prestígio nos currículos, e os alunos da última etapa da Educação Básica tinham acesso ao inglês, ao francês, ao espanhol e às línguas clássicas, latim e grego (Rodrigues, 2010). Em 1961 é publicada a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que não contempla em seu texto o ensino de línguas estrangeiras e muda radicalmente o que previa a lei de 1942. A partir deste momento, caberia a cada governo estadual optar pela inclusão, ou não, de línguas estrangeiras em seus currículos de acordo com os interesses e necessidades de cada região do país. Graças à estrutura já existente no sistema educativo (criada nas décadas anteriores), os estados mantiveram o ensino de línguas, com uma presença mais acentuada do inglês e do francês. Segundo Rodrigues (2010), a LDB dá início a um processo de desoficialização do ensino de línguas estrangeiras na escola, já que de acordo com o texto da lei federal, o Estado se desobriga de garantir o acesso às línguas na Educação Básica. Em 1976, por meio de uma Resolução do Conselho Nacional de Educação, o estudo de uma língua estrangeira moderna volta a ser obrigatório. Apesar do caráter plurilíngue do texto da resolução, que não previa a língua que deveria ser ensinada, o inglês passa progressivamente a ocupar um lugar destacado na escola até que, décadas mais tarde, em 2017, se transforma na única língua estrangeira obrigatória na Educação Básica após a publicação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
O percurso das línguas estrangeiras na Educação Básica – objeto de inúmeras pesquisas no meio acadêmico brasileiro – foi cenário de incontáveis movimentos relacionados a temáticas diversas, como a reorientação do ensino de línguas para que dialogassem com as demais disciplinas no processo formativo dos estudantes, o distanciamento de modelos estrangeiros de expansão linguística internacional, a manutenção de dispositivo legal que garantisse uma perspectiva plurilíngue nas escolas, a oferta obrigatória do espanhol, entre outros. Foi também lugar de origem de ativismos linguísticos, como por exemplo o movimento #FicaEspanhol[1]. Em ocasiões pontuais, temas relacionados à formação inicial dos estudantes ganham espaço nos meios de comunicação e no debate público, no entanto, temas diretamente relacionados à educação linguística em geral costumam ocupar um lugar periférico em todas as etapas da educação formal.
Da mesma forma, no âmbito do Ensino Superior, o debate acerca da capacitação linguística dos estudantes não ocupa um lugar com holofotes. As discussões acerca da necessidade de ensinar línguas a estudantes universitários ganha força nos anos 2000, quando os processos de internacionalização passam a estar na pauta das universidades brasileiras. Em 2011, o governo federal cria o programa Ciência sem Fronteiras (CsF), “que busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional. A iniciativa é fruto de esforço conjunto dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Ministério da Educação (MEC), por meio de suas respectivas instituições de fomento – CNPq e Capes –, e Secretarias de Ensino Superior e de Ensino Tecnológico do MEC” (Brasil, 2022a). O programa previa bolsas de estudo para alunos da graduação e da pós-graduação realizarem intercâmbios no exterior. A execução deste programa revelou o monolinguismo da comunidade universitária brasileira, fruto da presença errática das línguas estrangeiras na Educação Básica, apontada nos parágrafos anteriores.
A partir da premência da capacitação linguística da comunidade acadêmica para poder levar adiante todas as interações com a comunidade científica internacional previstas no Ciência sem Fronteiras, surge, em 2012, o programa Inglês sem Fronteiras, que mais tarde se transformaria em Idiomas sem Fronteiras (IsF), cujo principal objetivo é "[...] promover ações em prol de uma política linguística para a internacionalização do Ensino Superior Brasileiro, valorizando a formação especializada de professores de línguas estrangeiras” (Brasil, 2017a). O CsF é encerrado em 2017 e as diferentes ações do IsF foram incorporadas pelas universidades federais, tendo a ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) como base com a criação da Rede Andifes – IsF[2]. Ambos os programas, CsF e IsF, colocam a questão do “saber línguas” em foco e a capacitação linguística de alunos, professores e funcionários passa a ser incluída entre os desafios da Educação Superior brasileira.
Em 2017, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES lança o PrInt, Programa Institucional de Internacionalização, que passa a pautar os processos de internacionalização das universidades e a destinar os recursos financeiros para sua efetivação. Destinado exclusivamente a alunos de pós-graduação – diferente do CsF, que incluía também alunos de graduação na mobilidade acadêmica internacional -, o PrInt foi
[c]oncebido para desenvolver e implementar a internacionalização das áreas de conhecimento, aí prevista a movimentação de professores e alunos, o PrInt estimula a formação de redes de pesquisas. Com essa iniciativa, a Capes pretende ampliar as ações de apoio à internacionalização na pós-graduação e o consequente aprimoramento da qualidade da produção acadêmica desse segmento da educação (Brasil, 2022b).
O que nos leva de volta à necessidade de saber outras línguas.
A “máquina” da internacionalização e seus efeitos sobre as línguas no espaço do Ensino Superior
Os anseios de internacionalizar não são exclusivos da universidade brasileira, mostram-se igualmente importantes em todos os países e regiões que almejam garantir um lugar destacado em cenários internacionais e globais da ciência e da Educação Superior.
Para a gestão destes cenários foi criada uma “máquina” de sistemas de avaliação e acreditação internacional, que ditam termos e critérios do que passa a ser considerado “bom” ou “ruim”. Estes critérios de qualidade institucional e científica (atualmente indispensáveis para o funcionamento das universidades), para além de avaliar e consequentemente influenciar currículos e programas destas instituições, são um poderoso elemento político, que tensiona relações e define posicionamentos. Leite e Genro (2012) afirmam que uma rede de agências do capitalismo global respalda estes sistemas de acreditação e avaliação, e privilegia uma formação que se pauta pela lógica do mercado.
Nesse cenário, países periféricos, ávidos por ingressar nos círculos dos “bem avaliados” e por atender a critérios estabelecidos por países hegemônicos, buscam a todo custo se adequar a modelos que garantam boas posições em rankings internacionais, ignorando muitas vezes práticas e realidades locais. Esta situação gera o que Finardi, Guimarães e Mendes (2019) chamam de internacionalização passiva: alunos de países periféricos buscam países centrais, mas não o contrário, o que alimenta a ideia de que alguns produzem conhecimento enquanto outros simplesmente consomem este conhecimento. Esta internacionalização passiva gera desequilíbrio na mobilidade acadêmica global e dá espaço, segundo os autores, para a mercantilização do Ensino Superior, onde empresas privadas investem e promovem programas e ações como objetivo de formar profissionais “moldados” nos padrões de qualidade de países hegemônicos.
Tal situação tem inúmeros desdobramentos sobre a formação dos estudantes, mas aqui trataremos de observar concretamente o impacto que esse modelo de internacionalização tem sobre as línguas no âmbito do Ensino Superior.
Internacionalizar a ciência e a produção acadêmica requer ambientes multilíngues para que haja, de fato, intercâmbio e diálogo entre pesquisadores de diferentes regiões do planeta. Não obstante, esta necessidade se depara com dois problemas principais: por um lado, o fato de os sistemas universitários serem majoritariamente monolíngues e, por outro, o fato de haver uma tendência acentuada de concentrar no inglês a produção e o intercâmbio científico, sobretudo em publicações indexadas pelos sistemas internacionais de avaliação já mencionados acima.
A posição hegemônica do inglês nesses espaços foi sendo construída ao longo do século XX e responde a tensões e relações de poder que estão muito além dos muros das universidades. Trata-se de uma posição de status permeada por uma ideologia linguística que promove a ilusão – sustentada por um sólido imaginário global – de que uma única língua – supostamente “neutra” e “globalizada” – no campo da ciência é fundamental para “unir” pesquisadores ao redor do mundo promovendo diálogo e intercomunicação. Neste mesmo terreno, circulam ideologemas que situam o inglês como língua adequada para este fim graças a propriedades estruturais relacionadas, por exemplo, ao léxico.
O valor atribuído ao inglês no campo da ciência e do Ensino Superior é um desdobramento de diferentes hierarquias e relações de poder no âmbito dos sistemas de avaliação e acreditação internacionais. Esta hierarquia entre línguas e países tem seus reflexos na produção cultural e intelectual.
Há, porém, movimentos no sentido contrário. No que se refere às línguas, por exemplo, tem surgido, nos últimos anos, movimentos de resistência que por meio de indivíduos e instituições apontam para a necessidade de romper com a lógica hegemônica em processos de produção e divulgação científica.
Vale mencionar, por exemplo, a Declaração Por uma ciência e educação superior pública, gratuita, crítica, humanista, intercultural, baseada em modelos plurilíngues de investigação e docência, elaborada por integrantes do projeto “Políticas da linguagem na América Latina” da Associação de Linguística e Filologia da América Latina (ALFAL) durante o seu XVIII Congresso Internacional, realizado em Bogotá em 2017. A declaração, elaborada a partir de uma perspectiva latino-americana, propõe:
[...] preservação e fortalecimento de modelos plurilíngues de investigação, docência e comunicação científica, baseados em nossas principais línguas de integração latino-americana, o espanhol e o português, sem nunca fechar as portas para as línguas indígenas e de imigração, e pela apropriação vigorosa do inglês e de outras línguas estrangeiras a partir das necessidades e nas modalidades definidas por nossas comunidades científicas, impulsionando a internacionalização da investigação e do ensino. Tudo isso possibilitará fortalecer uma relação com o inglês a partir de uma posição não marcada pela subalternidade (ALFAL, 2017, p. 3).
Recentemente, um manifesto (Navarro et al., 2022) publicado por um coletivo de doze professores e pesquisadores de universidades de diferentes países propõe dez princípios para a reconsideração da posição hegemônica do inglês como “língua franca” em contextos acadêmico-científicos, naturalizada pelo senso comum:
Como acadêmicas e acadêmicos de diferentes regiões, comprometidos com o desejo do conhecimento —e a participação na produção de conhecimento— em diferentes línguas, tradições e direções, acreditamos que o debate sobre a língua para a troca acadêmico-científica não se trata simplesmente de um assunto de habilidades comunicativas e soluções tecnológicas, mas também —e especialmente— de uma questão de igualdade nas dinâmicas e oportunidades de criação de conhecimentos. Ainda mais, as línguas que se selecionam e legitimam para a troca acadêmico-científica impactam diretamente nas histórias e trajetórias, individuais e coletivas, de produção e recepção de conhecimento, e são centrais para as identidades linguísticas e sociais, para as políticas públicas, e para a garantia de direitos (2022, p. 3).
A discussão proposta pelos autores está além das demandas da internacionalização às que geralmente se relaciona o conhecimento de línguas no Ensino Superior. No manifesto, são propostos dez princípios com o fim de estabelecer o debate e incentivar o uso de “diferentes línguas e variedades para promover o diálogo transnacional em contextos acadêmico-científicos” (p. 3). Destacamos aqui alguns deles: a organização de eventos e congressos deveria trabalhar no sentido de incluir uma audiência o mais diversa possível; o uso do inglês nem sempre promove a inclusão; a escolha de uma língua para a realização e divulgação da pesquisa é um ato político; esta escolha é um direito sociolinguístico; uma suposta “língua franca” pode atuar como língua de dominação; as políticas que garantem o status hegemônico do inglês limitam participações e traduções para outras línguas; tais políticas podem sugerir que o conhecimento produzido em inglês é o único conhecimento real.
As ações e análises propostas neste artigo partem do reconhecimento de que é preciso promover uma reorientação no imaginário que temos sobre as línguas na universidade brasileira. Uma mudança que passa por nossa cultura linguística e pela forma como vemos e tratamos as línguas no espaço da Educação Superior, uma mudança que poderá apontar para a construção de políticas linguísticas que atentem para nossa realidade e atendam nossas necessidades não só no âmbito da internacionalização, mas também para além dela.
A Glotopolítica por duas perspectivas
A análise que se propõe aqui parte, por um lado, de uma perspectiva etnográfica. Guespin e Marcellesi afirmam:
El término glotopolítica puede ser usado con dos fines: para invocar las prácticas y a la vez para referirse al análisis. La glotopolítica es por tanto a la vez una práctica social, a la cual nadie se escapa (“hacemos glotopolítica sin saberlo”, ya seamos simples ciudadanos o ministros de economía), y tiene además vocación de convertirse en disciplina de investigación, una rama hoy necesaria de la sociolingüística (1986/2019, p. 44)
Ocupo aqui este lugar duplo: o de agente – enquanto propositora de intervenções no campo das línguas na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) –, e enquanto analista – que trata de delimitar as condições de produção e as ideologias linguísticas que circulam nestas intervenções. Consciente de que minha análise tem seus limites na fronteira da narrativa das ações, assumo a premissa de que todos somos agentes glotopolíticos e convido outros pesquisadores, que terão a seu favor o distanciamento do objeto no tempo e no espaço, a dar continuidade à análise proposta aqui, o que certamente poderá contribuir com o panorama linguístico no Ensino Superior brasileiro.
Para Zavala (2020), a perspectiva etnográfica pode ser bastante interessante, uma vez que a Glotopolítica não tem como prioridade a análise de estruturas discursivas, mas sim de contextos históricos que indicarão as condições materiais de produção dos discursos analisados. A autora afirma que o projeto etnográfico nos impõe o desafio de transformar as práticas – de onde emergem os textos - em objeto de análise, o que contribui para preencher a lacuna entre a análise do texto e a análise do contexto. A autora afirma que “la etnografía como metodología supone el involucramiento sostenido del investigador a lo largo de un tiempo prolongado en un lugar (o lugares) específicos y la combinación (y contraste) de varias fuentes de información y observación” (2020, p. 207).
Neste sentido, e considerando que a Glotopolítica atende a diferentes tipos de intervenção, me centrarei aqui em dois acontecimentos – concretamente nos textos em que se materializam –: a elaboração da Resolução de Política Linguística para a UFPB (2020) e a criação do Instituto de Estudos Linguísticos e Culturais (2021) na mesma universidade.
Consideramos la glotopolítica como el estudio de las intervenciones en el espacio público del lenguaje y de las ideologías lingüísticas que activan y sobre las que inciden, asociándolas con posicionamientos dentro de las sociedades nacionales o en espacios más reducidos, como el local, o más amplios, como el regional o global (Arnoux & Nothstein, 2013, p. 9).
Estão em jogo aqui as reflexões acerca das representações, imaginários e atitudes dos falantes com relação às línguas. O foco na capacitação linguística de estudantes como resposta à necessidade de internacionalização das instituições de Ensino Superior e a posição hegemônica do inglês neste espaço nos convocam a dois movimentos. Por um lado, analisar a construção histórica e ideológica que nos colocam neste lugar, e, por outro, propor ações – intervenções – que, a partir de outra perspectiva, possam incidir sobre a formação dos estudantes universitários a partir de realidades locais dentro do Brasil e em relação à América Latina. Parece claro que é necessária uma reorientação nos imaginários que situam o inglês como principal (ou única) opção para o intercâmbio acadêmico internacional, e a capacitação linguística enquanto elemento formador em um lugar periférico dentro da universidade.
Tradicionalmente, o ensino de línguas estrangeiras nas universidades brasileiras aparece diluído em inúmeras ações e propostas. Para além dos cursos de Letras, há outros (não todos) que incluem em suas grades curriculares obrigatórias uma ou duas disciplinas (que correspondem a seis meses ou um ano de estudos) de uma língua estrangeira moderna, maioritariamente inglês, espanhol e francês. Para além disso, os cursos de Letras, geralmente por meio de projetos de Extensão[3], oferecem cursos de línguas para a comunidade interna e externa, o que ocorre mais como meio de completar a formação de seus estudantes (na sua maioria, futuros professores) do que como forma de atender a demandas da comunidade. Há universidades mais estruturadas neste sentido que contam com Núcleos, Centros ou Institutos de Línguas e, recentemente, com núcleos do IsF. Estes setores geralmente se dedicam à oferta de cursos de línguas (nem sempre regulares), à realização de exames de proficiência linguística (obrigatórios para os alunos que ingressam em programas de pós-graduação) e à realização de eventos relacionados a temas culturais das línguas ali ensinadas, à formação de professores etc.
A UFPB sempre contou com uma série de ações no âmbito das línguas. Desde os anos 80, por exemplo, o Departamento de Letras Estrangeiras Modernas oferece cursos de Extensão de inglês, francês e espanhol (o alemão também já foi ofertado) e realiza Exames de Proficiência em Leitura em Língua Estrangeira; o Departamento de Língua Portuguesa e Linguística oferece cursos de português para estrangeiros, por meio de seu Programa Linguístico Cultural para Estudantes Internacionais (PLEI) e aplica o exame Celpe-Bras; o Departamento de Línguas de Sinais, também por meio da Extensão, oferece cursos de libras para a comunidade. A universidade conta também com inúmeros projetos em torno da interculturalidade, da tradução, da literatura e do ensino de línguas clássicas.
No entanto, apesar de todas essas ações, a questão linguística parece ocupar um lugar periférico. Um levantamento realizado pela Pró-reitoria de Pós-graduação em 2020 indica que apesar de 84% dos alunos afirmar que precisa melhorar seus conhecimentos em línguas estrangeiras, a grande maioria (aproximadamente 87%) desconhece a oferta de capacitação linguística dentro da universidade.
Por outro lado, sabe-se que o inglês ocupa um lugar destacado. É a língua mais aceita nos exames de proficiência dos programas de pós-graduação. A universidade conta com 76 programas, dos quais 33 aceitam a proficiência somente em língua inglesa e os demais (43) aceitam o inglês e outras línguas (geralmente espanhol, francês e raramente alemão e italiano). As páginas web destes programas estão predominantemente em português (Ponte, 2022). A universidade conta ainda com 58 publicações em seu portal de periódicos, das quais 21 publicações aceitam contribuições somente em língua portuguesa; nos demais casos, além do português, 16 periódicos aceitam trabalhos também em inglês ou espanhol; 2 em inglês; 3 em espanhol; 7 em inglês, espanhol e francês e 6 em inglês, espanhol e francês e outras línguas (Ponte et al., 2021). Cabe destacar que a presença do português nas publicações é vista como problema a ser resolvido a despeito do lugar desta língua na produção científica: em 2018, o Brasil publicou aproximadamente 70.000 artigos científicos (Oliveira, 2020).
A posição hegemônica do inglês, como mencionado neste artigo, responde a uma construção ideológica que se firmou no imaginário social e que se situa nas relações de poder no âmbito da ciência e do ensino superior. Já a relação entre as propostas de capacitação linguística e a comunidade no interior da UFPB se deve a vários motivos, entre eles se destaca a oferta irregular de muitas das ações mencionadas e sua falta de visibilidade dentro da instituição.
Neste cenário surge o movimento de criar dispositivos – setores e documentos – com o fim de alterar o status das línguas (no âmbito da pesquisa e do ensino) dentro da universidade, que se materializa por meio da elaboração da Resolução de Política linguística (UFPB, 2020) e da criação do Instituto de Estudos Linguísticos e Culturais (UFPB, 2021[4]).
A Resolução de Política linguística é o documento que regula a política linguística dentro das instituições de Ensino Superior. Grande parte das universidades federais brasileiras elaboraram suas resoluções de política linguística a partir de 2015, quando este documento passa a ser um dos requisitos do Programa IsF para credenciamento das instituições. Surgem assim, como resposta a uma demanda de um programa específico a serviço da internacionalização e não para dar conta da realidade linguística das universidades em todos os seus aspectos.
Na UFPB, a Resolução de Política linguística é elaborada somente em 2020 e, apesar de considerar o processo de internacionalização como uma de suas pautas, trata de desfazer hierarquias, de forma que a internacionalização é um dos aspectos contemplados no documento, mas não o mais importante. A própria definição de política linguística presente no documento aponta para esta direção:
Política linguística na Universidade Federal da Paraíba se refere às iniciativas que visam a influenciar o comportamento linguístico em relação aos usos de diferentes línguas (maternas, segundas, estrangeiras, adicionais, de acolhimento, de sinais), aos processos voltados à educação linguística e à garantia dos direitos humanos linguísticos em consonância com o caráter democrático da universidade brasileira (UFPB, 2020, Art. 2º).
A menção à educação e aos direitos linguísticos indica uma preocupação mais acentuada com relação à formação dos indivíduos e ao direito sociolinguístico de desenvolver ou ampliar conhecimentos sobre as línguas (não só as estrangeiras). Tal preocupação se materializa também nos princípios expressos no documento:
São princípios da Política Linguística da Universidade Federal da Paraíba:
I - o acesso ao ensino de línguas em todos os âmbitos da universidade;
II - o desenvolvimento de letramentos acadêmicos;
III - o respeito à diversidade linguística;
IV - a difusão nacional e internacional das produções científica, artística e cultural da UFPB;
V - o acesso, a autonomia e a participação de pessoas com deficiência visual e/ou auditiva (UFPB, 2020, Art.3º).
Considerando que a glotopolítica tem como finalidade agir sobre as práticas linguísticas e não somente sobre o corpus ou o status das línguas, é possível afirmar que o texto da resolução de Política linguística da UFPB aposta na criação de dispositivos legais que possam propiciar uma reorientação nas práticas sobre a linguagem tirando o foco da internacionalização e ampliando o leque da importância de questões no campo das línguas na comunidade acadêmica. Assim, para além do ensino de línguas para interação com a comunidade internacional, adquirem importância também temas como a inclusão, o respeito à diversidade linguística e o letramento crítico.
No mesmo sentido, o Instituto de Estudos Linguísticos e Culturais (InELC), cujo funcionamento é aprovado em 2021, surge com o objetivo extrapolar o âmbito departamental e articular projetos já existentes, mencionados em parágrafos anteriores, com o fim de fortalecê-los e fomentar sua ação e visibilidade dentro da UFPB e fora dela:
O InELC dá suporte às atividades de ensino, pesquisa e extensão dos cursos de Letras Estrangeiras Modernas, Letras Português, Letras Clássicas, Libras, Tradução e Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais por meio de atividades de ensino-aprendizagem de línguas, literaturas e culturas, inclusive português para estrangeiros e línguas de povos originários brasileiros; de tradução, redação e revisão de textos em língua portuguesa e estrangeira; de exames de proficiência para os programas de pós graduação, de formação continuada para docentes da Educação Básica, tradutores e mediadores interculturais atendendo a comunidade interna da UFPB e o público em geral (UFPB, 2021, Art. 1º).
Trata-se de criar uma estrutura que atenda às necessidades da UFPB no contexto da formação pluricultural e plurilíngue de sua comunidade e da internacionalização, incluídos aqui o reconhecimento e a promoção do português como língua de produção científica, a importância do resgate e da pesquisa sobre línguas de povos originários do Brasil, e o fortalecimento da formação profissional dos estudantes, como foco na formação de professores, tradutores e mediadores interculturais. Neste sentido, foram empreendidas algumas ações como a promoção do letramento acadêmico em português para a comunidade interna, a ampliação da oferta de línguas estrangeiras com a inclusão do mandarim e a aproximação com outras línguas por meio de ciclos de palestras e conferências com representações do Japão e da Coréia do Sul, a promoção de oficinas e minicursos sobre línguas de povos originários do Brasil, com a participação ativa de membros de comunidades indígenas, a parceria com a Agência de Cooperação Internacional da UFPB no sentido de incluir intercâmbios culturais e linguísticos em novos convênios firmados pela universidade, entre outros. Tais ações respondem aos objetivos do InELC de acordo com seu regimento interno.
O InELC tem como objetivos:
I – Promover a capacitação da comunidade acadêmica da UFPB em línguas estrangeiras para sua inserção em comunidades científicas internacionais;
II – Constituir-se como espaço para a formação prática e teórica para alunos da UFPB. Permitir aos graduandos das licenciaturas de Línguas Estrangeiras Modernas, Língua Portuguesa, Letras Clássicas, Línguas de Sinais e dos bacharelados em Tradução e em Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais supervisionados por professores de seus respectivos departamentos, a atuação como estagiários, responsáveis pelas atividades que serão desenvolvidas no Instituto, como forma de complementar e melhor qualificar sua formação profissional;
III – Fomentar a pesquisa nas áreas de Linguagem, Literatura, Tradução e Mediação Intercultural.
IV – Constituir-se como espaço de desenvolvimento de projetos e programas nas áreas de Ensino de Línguas, Literatura, Formação continuada de professores, Estudos da Linguagem, Tradução e Mediação Intercultural.
V – Ampliar o campo para coleta de dados e aplicação de resultados de pesquisas relacionadas ao ensino-aprendizagem de línguas, tradução, literaturas e culturas.
VI – Aprofundar os conhecimentos sobre o processo ensino/aprendizagem do português língua estrangeira e como língua materna (UFPB, 2021, Art. 8º).
Espera-se, com as intervenções descritas até aqui, produzir efeitos palpáveis dentro da universidade no sentido de situar a questão linguística em lugar destacado na formação dos estudantes em todas as áreas. Trata-se de um movimento deliberado para a conformação de um imaginário que circunscreva as línguas não somente como instrumentos para interações internacionais, mas também como elemento chave na identidade cultural, na formação humana e profissional e na defesa de direitos individuais e coletivos.
Considerações finais
Algumas das contribuições da Glotopolítica enquanto campo disciplinar são a ampliação de atores que podem levar adiante decisões ou intervenções sobre a linguagem e a ampliação de instrumentos materiais por meio dos quais estas intervenções se materializam. A situação descrita neste artigo se encaixa perfeitamente nessas ampliações: docentes enquanto propositores de intervenções no âmbito da linguagem em uma universidade. Tais intervenções provocarão efeitos não só no espaço em que se aplicam, mas também para além dele, combinadas com outras intervenções em outros espaços, perpassadas talvez pelas mesmas ideologias linguísticas.
Uma análise mais profunda, que ultrapassa os limites do acesso a conhecimentos linguísticos no espaço do Ensino Superior, revela um embate ideológico: trata-se de reorientar um imaginário social que tem como base a ideologia linguística que aponta para o monolinguismo em inglês como solução para a produção e divulgação científica e que se sustenta na certeza de que a formação profissional e o conhecimento científico só têm sentido quando submetidos a modelos estrangeiros, certificados e acreditados com selos que, em muitas ocasiões, induzem a exclusão e a desigualdade.
A ruptura dessas hierarquias globais parece ser o único caminho para promover certo equilíbrio na produção do conhecimento. No entanto, a ação glotopolítica e o processo de reorientação discursiva e ideológica não são (nem deveriam ser) automáticos e devem, obrigatoriamente, incluir todos os atores envolvidos:
Una política democrática de la lengua requiere información lingüística en dos direcciones. La de quienes deciden, que deben ser conscientes de que las medidas glotopolíticas sólo son eficaces si los hablantes están convencidos de su validez. Y se trata simplemente de realizar un mejor despliegue retórico sino de que todos los hablantes participen en la investigación, en la discusión y en la decisión. Por eso los problemas que sean sometidos a debate tendrán necesariamente otras dimensiones además de las lingüísticas propiamente dichas. Los responsables deben entender que, lejos de organizar simplemente un debate sobre la lengua, están inevitablemente metidos en una confrontación sobre la interacción entre identidad social y prácticas lingüísticas (Guespin & Marcellesi, 1986/2019, p. 36).
Os efeitos das experiências narradas neste artigo poderão, futuramente, ser observados no espaço social local – dentro da UFPB – e nacional, conjugados com ações de outros agentes em outros espaços. Cabe agora aguardar futuras análises e verificar em que medida tais efeitos incidirão nesses espaços.
Referências
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Notas
[1] Movimento que surge no Rio Grande do Sul após a revogação da Lei 11.161 que determinava a oferta obrigatória do espanhol no ensino médio. O movimento tem agido no sentido de elaborar dispositivos legais que garantam a permanência do espanhol nos currículos dos diferentes estados e municípios brasileiros.
[3] Parte do tripé constitutivo da universidade brasileira (ensino-pesquisa-extensão), a Extensão universitária “é uma prática que promove a aplicação do conhecimento produzido na experiência universitária e, ao mesmo tempo, é um diálogo entre a comunidade acadêmica e a sociedade.”