LÍNGUAS EM CIRCULAÇÃO NO CAMPO UNIVERSITÁRIO BRASILEIRO: UMA LEITURA GLOTOPOLÍTICA

DE INSTRUMENTOS DE GESTÃO LINGUÍSTICA

 

Ariel Matías Blanco

ariel.blanco@unila.edu.br

Universidade Federal da Integração Latino-Americana

Brasil

 

 

RESUMO

O presente trabalho analisa, a partir de uma perspectiva glotopolítica, a produção de resoluções de política linguística no campo universitário brasileiro. Os objetivos da análise são dois: o primeiro consiste em descrever as características composicionais de um corpus composto por seis resoluções e identificar os modos de enunciar a oficialidade conferida a determinadas línguas. O segundo objetivo busca evidenciar como o discurso sobre o status das línguas na universidade se vincula a processos sócio-históricos mais amplos. O argumento central do artigo defende que as mudanças do perfil sociolinguístico das comunidades universitárias e os processos contemporâneos de integração regional e internacionalização do Ensino Superior são fatores determinantes das condições de produção e circulação de instrumentos linguísticos desse tipo.

Palavras-chave: Glotopolítica; internacionalização; integração regional; instrumentos linguísticos.

 

CIRCULATING LANGUAGES IN THE BRAZILIAN

UNIVERSITY FIELD: A GLOTOPOLITIC READING

OF LANGUAGE MANAGEMENT INSTRUMENTS

 

ABSTRACT

This research analyzes, from a glotopolitical perspective, the production of language policy resolutions in the Brazilian university field. There are two objectives for the analysis: the first is to describe the compositional characteristics of a corpus composed of six resolutions and to identify the ways of enunciating the officialdom conferred on certain languages. The second objective seeks to show how the discourse on the status of languages in the university is linked to broader socio-historical processes. The main argument of the article is that the changes in the sociolinguistic profile of university communities and the contemporary processes of regional integration and internationalization of Higher Education are determining factors in the conditions of production and circulation of linguistic instruments of this type.

Keywords: Glotopolitics; internationalization; regional integration; linguistics instruments.

 

 

Introdução

O presente trabalho indaga os efeitos glotopolíticos da emergência de um tipo particular de instrumento linguístico no interior do campo da educação superior brasileira. Referimo-nos a uma repentina proliferação, principalmente no último lustro, de resoluções de política linguística (e outros documentos análogos) elaboradas por comissões internas e aprovadas pelas instâncias de deliberação universitárias. Os objetivos da análise são dois: o primeiro consiste em descrever as características composicionais de um corpus composto por seis dispositivos normativos e identificar os modos de enunciar o status oficial conferido a determinadas línguas. O segundo objetivo busca estabelecer algumas relações entre o papel institucional atribuído às línguas pelas universidades e processos mais amplos, tais como as políticas nacionais para o Ensino Superior e projetos de integração regional ou internacionalização.

Nosso interesse analítico se concentra em um aspecto fundamental: os modos de nomear o status aquisicional das línguas em circulação que as resoluções determinam ao reconhecer a necessidade de promover seu ensino e aprendizagem. Nesse sentido, o artigo não faz uma análise de conteúdo ou um estudo comparativo dos documentos. O que se propõe é uma leitura discursiva de um setor do arquivo universitário[1] no qual se define o que pode e deve ser dito sobre as línguas na universidade.

A escolha das instituições públicas, cujas resoluções compõem o corpus de análise, partiu das seguintes perguntas de pesquisa: i) As resoluções de política linguística permitem visibilizar a condição plurilíngue das comunidades universitárias? ii) De que modo são enunciadas as línguas de circulação legítima? iii) Em que medida as políticas linguísticas enunciadas nos dispositivos normativos se vinculam a processos sócio-históricos mais amplos e a projetos de gestão democrática?

Com base nessas questões preliminares, foi constituído o corpus de análise a partir de um arquivo-fonte composto por 60 documentos similares. As seis resoluções analisadas pertencem a um conjunto de documentos coletados previamente por uma comissão interna do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Língua(gem) e Interculturalidade (NIELI) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). A montagem do arquivo-fonte teve por finalidade servir de base documental para a redação da versão preliminar da resolução institucional de política linguística da referida universidade, resolução essa que ainda se encontra em processo de construção.

O nosso interesse no tema deriva de uma reflexão coletiva desenvolvida com a finalidade de propor diretrizes de política linguística para uma universidade pública, fronteiriça, diversa e oficialmente bilingue.

Do ponto de vista metodológico, há um aspecto que é preciso explicitar. Trata-se do critério estabelecido para determinar quais documentos do arquivo-fonte seriam levados em consideração. Para tal fim e em função dos objetivos traçados, julgamos que, embora todos os documentos disponíveis tivessem condições de serem tomados como objeto de análise, o grau de diversidade linguística poderia funcionar como parâmetro para definir a pertinência das resoluções que comporiam o corpus.

O alto índice de diversidade linguística de uma Instituição de Ensino Superior (doravante IES) é um fator que pode oportunizar uma melhor compreensão dos efeitos de visibilização e apagamento de repertórios plurilíngues da comunidade universitária, bem como da distribuição desigual de usos legítimos das línguas reconhecidas oficialmente. Dentre os indicadores disponíveis e capazes de mensurar o grau de diversidade linguística numa IES, optamos por tomar os dados produzidos pelo último Censo da Educação Superior. A pesquisa organizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) registrou a proporção estimada de discentes estrangeiros matriculados em cursos presenciais de graduação no ano de 2020.

Sabemos que os dados produzidos devem ser contrastados com outras ferramentas de coleta de dados para minimizar as discrepâncias entre a realidade sociolinguística das IESs e a representação resultante das pesquisas. Contudo, os dados oficiais do Censo podem ser um ponto de partida para a análise que propomos.

As resoluções que constituem o corpus pertencem, dessa forma, a seis das nove universidades federais e estaduais públicas que registraram em 2020 o maior número de estudantes estrangeiros matriculados em cursos de graduação no Brasil. Foram desconsideradas três universidades federais e as instituições privadas que registram um contingente significativo de discentes estrangeiros na modalidade de Educação a Distância (EAD).

Temos consciência de que a situação sociolinguística das IESs nacionais é extremamente complexa e que os dados estatísticos não conseguem captar plenamente tal complexidade, pois não há uma correlação unívoca entre fatores sociolinguísticos e país de origem declarado nas pesquisas. Isso fica evidente nos casos de discentes oriundos das comunidades indígenas e de comunidades surdas brasileiras, para mencionar apenas dois exemplos. Contudo, acreditamos que a pluralidade linguística registrada parcialmente nas estatísticas oficiais faz com que cada IES, principalmente aquelas mais conservadoras, estejam mais propensas a contemplar nas resoluções de política linguística (e em outros documentos) as demandas de novo tipo. Estas novas demandas têm relação com o ingresso no espaço universitário de um novo perfil de estudante, cujas biografias educativas e repertórios linguísticos exigem atenção.

A incomensurabilidade do arquivo universitário ao qual os instrumentos linguísticos pertencem nos obriga a tomar decisões de cunho teórico e metodológico, cujos efeitos políticos e éticos não são inócuos. Dito isso, espera-se que as conclusões evidenciem algumas das tendências que afetam o campo universitário e apontem para novos nichos de investigação interdisciplinar, suscitando desdobramentos das pesquisas glotopolíticas no futuro.

O argumento central que percorre o texto defende que a proliferação de dispositivos normativos de políticas linguísticas responde, em certa medida, a condições de produção e circulação específicas. As políticas nacionais e os modelos de inserção internacional incidem sobre o modo de gerir a diversidade linguística das IESs.

No intuito de cumprir com os objetivos propostos, o artigo apresenta, além desta introdução, as seguintes seções: na primeira parte do texto descreve o alcance e as possibilidades de análise do campo universitário a partir de uma perspectiva glotopolítica. Em seguida, descrevemos as condições de produção e circulação das resoluções de política linguística que conformam o corpus de análise. Na terceira seção, é feita a análise da série de resoluções, estabelecendo algumas relações entre os modos de legitimar as línguas em circulação nas universidades e processos mais amplos. Por fim, na última seção, são tecidas algumas considerações finais com base na análise glotopolítica das resoluções. 

 


 

[…] [L]a universidad ha atravesado un proceso de cambio paradigmático al que contribuyeron tanto factores externos como internos. Este es un momento en el que todo se encuentra indefinido. Los proyectos que proponen un cambio son tan contradictorios que, según la evolución de los conflictos que generen, la pregunta sobre el futuro de la universidad bien puede convertirse en la pregunta de si la universidad tiene futuro. En este contexto, si el objetivo es garantizar el futuro de la universidad, la resistencia a determinados cambios puede no ser un factor negativo.

Boaventura de Sousa Santos

 

A Glotopolítica e o campo universitário

Aquelas e aqueles que, como comenta Arnoux (2018, p. 21), compartilham o interesse pelo campo glotopolítico, são sensíveis aos processos de integração regional. Tal interesse nos tem levado, com maior ou menor ênfase, a partir dos nossos espaços de atuação no Sul global, a interrogar a situação sul-americana e a do Brasil nesses processos. As análises destas questões não são exclusividade da perspectiva que adotamos nesse trabalho, contudo, as reflexões em torno da conformação conflituosa de espaços supranacionais e as intervenções materiais e simbólicas na gestão da diversidade linguística vem se consolidando como um dos objetos de interesse das pesquisas glotopolíticas desenvolvidas em diversas universidades brasileiras e latino-americanas.  

Paralelamente à expansão das reflexões no campo universitário latino-americano sobre as intervenções glotopolíticas em contextos locais, regionais e globais, é necessário salientar o fato de que as práticas científicas nesse universo não escapam totalmente à lógica geral dos campos nos quais “a pesquisa tem por objeto o próprio universo no qual ela se realiza” (Bourdieu, 2011, p. 38). O desafio consiste em considerar no modelo de análise a objetivação das disposições e interesses que as(os) pesquisadoras(es) devem a sua trajetória e a sua posição no próprio campo que buscam objetivar. Isto inclui inclusive os pressupostos que justificam as temáticas privilegiadas, bem como as preferências teóricas mobilizadas na produção de conhecimentos.

No que tange especificamente às intervenções de política linguística voltadas para a integração regional e/ou para a internacionalização por parte das IESs, é necessário que se compreenda, como advertem Guespin e Marcellesi (2021, p. 21), que cada vez mais:

a gestão de uma língua exige comissões, instâncias, ações e meios, financeiros e editoriais, que são da ordem do político. Mas essa política tem que ser iluminada por um conhecimento da realidade das práticas de linguagem nos países implicados, necessária para uma definição negociada dos objetivos (de manutenção, transformação, otimização). 

Os requisitos elencados pelos autores permitem inferir o envolvimento, consciente ou inconsciente, dos (grupos de) docentes-pesquisadores nas intervenções glotopolíticas operadas em diversos setores do campo universitário brasileiro, seja para aumentar ou diminuir as chances objetivas de sucesso de uma determinada ação de política linguística. Na prática, o volume de capital simbólico e específico mobilizado por parte das e dos profissionais que agem desde a estrutura universitária é determinante e pode fazer prevalecer uma determinada orientação na gestão das línguas em circulação.

Considerando o desafio que impõe “o estudo de um mundo ao qual se está ligado por todas as formas de investimentos específicos” (Bourdieu, 2011, p. 26), as pesquisas universitárias, ou melhor, as pesquisas produzidas por (grupos de) agentes envolvidos no campo universitário devem assumir o compromisso de buscar compreender o universo social no interior do qual eles intervêm ao tentar descrevê-lo. Tal atitude demanda uma revisão contínua dos instrumentos teóricos e técnicos de objetivação necessários para objetivar as próprias posições, disposições e interesses. É assim que a reflexão coletiva e crítica dos resultados se torna uma arma de vigilância epistemológica. Por essa razão, a ausência de “retorno crítico” sobre a posição a partir da qual se exprime uma descrição, como adverte Bourdieu (2011, p. 39), a propósito do campo universitário francês, só pode ter como princípio “os interesses associados à relação não analisada que o analista mantém com seu objeto”.

A consolidação de focos de pesquisa glotopolítica nas e desde as universidades no Brasil demonstram que o mercado da educação superior é um locus privilegiado de reflexão, mas também de intervenção. É evidente que um dos temas de reflexão na agenda glotopolítica latino-americana são os processos de unificação de mercados linguísticos regionais e globais, assim como as políticas linguísticas implementadas que contribuem para reforçá-los ou enfraquecê-los. Neste panorama, as denominadas “políticas linguísticas de área idiomática” (Arnoux, 2018) se caracterizam pelas intervenções planejadas sobre a forma (planejamento de corpus) e sobre as funções (planejamento de status) linguísticas. A importância estratégica dos sistemas de ensino para a consolidação de políticas linguísticas de alcance regional ou global justifica que o planejamento denominado “de aquisição” (Cooper, 2003) seja considerado como um terceiro componente a ser contemplado[2].

Tomando como base essas considerações, observa-se que as operações discursivas de nomeação das línguas (estrangeiras, adicionais, oficiais, nacionais, francas, minorizadas, dominantes, hegemônicas, indígenas, regionais, de fronteira, de imigrantes, de integração, de herança etc.), enunciadas conforme os esquemas “x como y e x para y, em que “x” designa uma determinada língua e “y” seu estatuto aquisicional, têm um papel crucial. É a partir dos efeitos de nomeação e designação de funções legítimas que algumas das línguas em circulação podem ser objeto de gestão e de planejamento aquisicional. Esses processos permitem determinar quais (variedades de) línguas devem ser adquiridas oficialmente e quem deve ser a(o) beneficiária(o) dessa aquisição. Cabe acrescentar que a determinação do que ensinar e a quem (Cooper, 2003) incide sobre o estatuto das línguas nomeadas, na medida em que nesse processo são delimitadas as funções legítimas que devem desempenhar no espaço universitário (por exemplo: inglês para intercâmbio, português como língua de acolhimento, espanhol instrumental, alemão como língua de herança etc.).

Transformações na conjuntura glotopolítica do campo da educação básica também incidem sobre o campo universitário. Sob determinadas condições, agentes educacionais de diversos setores (inclusive agentes considerados outsiders) podem compartilhar do mesmo interesse e buscar transformar uma realidade que consideram injusta ou ilegítima. O caso da perda do status de língua estrangeira de instrução na educação básica da língua espanhola no Brasil é um caso recente de disputa nos mercados escolares e de articulação glotopolítica entre agentes engajados nessa luta. Após a revogação da lei nacional 11.161 de 2005 que, na prática, fortaleceu ainda mais a posição quase monopólica do inglês no mercado escolar, começou um movimento de reivindicação em duas frentes: por um lado, mobilizações sociais e ativismo linguístico através dos meios de comunicação e de redes sociais (o movimento #fica espanhol é o mais notório[3]). Por outro lado, ações no nível local, no intuito de buscar apoio de parlamentares para produzir dispositivos legais (pareceres e propostas de emenda constitucional, por exemplo) que devolvessem, ao menos no âmbito estadual ou municipal, a condição de língua estrangeira nos currículos locais. É pertinente mencionar que, enquanto se identificam alguns resultados positivos em alguns municípios, medidas tomadas no nível nacional (suspensão da distribuição de manuais de língua espanhola previstos no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), retirada da opção de língua espanhola do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), diminuição de concursos públicos para a disciplina Língua Espanhola, redução do orçamento e dos investimentos em educação, enfraquecimento de órgãos estratégicos para a educação e para o desenvolvimento científico e tecnológico) provocam um desmantelamento da estrutura existente, impossibilitando a presença do espanhol e de outras línguas no sistema educacional brasileiro. 

Anteriormente, ao menos durante a fase pré-crítica[4], as políticas linguísticas educacionais eram associadas principalmente às grandes decisões tomadas pelos estados nacionais, pois são eles que têm os recursos e a autoridade para realizá-las e fazê-las valer (Calvet, 2007). Do ponto de vista glotopolítico, o estudo das intervenções no espaço da linguagem deve repensar esse postulado para conseguir abordar situações mais dinâmicas e fluídas que escapam a leitura restrita do arquivo jurídico nacional. Um aspecto fundamental que pode orientar a montagem dos corpora de análise de fatos glotopolíticos em pesquisas contemporâneas é a diversificação dos cenários, agentes e materiais pertinentes.

Nesse sentido, o alcance do conceito de instrumento linguístico, cunhado por Auroux (2009) para designar principalmente as gramáticas e os dicionários enquanto pilares do saber metalinguístico ocidental, pode ser ampliado para considerar outros artefatos, tais como tratados sobre aspectos lexicais, silabários, dicionários bilíngues e de sinônimos, manuais de tradução e de estilo, dentre outros (Arnoux, 2016).

De acordo com os objetivos que podem ser determinados, a pesquisa glotopolítica pode contemplar outros materiais, como 

ensayos sobre la lengua, notas normativas en los periódicos, notas lingüísticas a textos clásicos, antologías escolares, obras referidas a aspectos teóricos, reseñas, boletines académicos, programas escolares, traducciones, resoluciones de política lingüística, prólogos a ediciones de textos literarios, discursos de creación o apertura de instituciones dedicadas a las lenguas y sus posibles estatutos [...]. En algunos casos, pueden considerarse, incluso, textos que no tematizan el lenguaje pero que construyen representaciones de lo social que permiten comprender las tensiones, las limitaciones, los objetos privilegiados por los textos lingüísticos, las exclusiones que operan, incluso las decisiones teóricas que adoptan (Arnoux, 2016, p. 26).

No caso das políticas de área idiomáticas, Arnoux (2018, p. 33), identifica e destaca também instrumentos como acordos ortográficos, museus da língua, congressos, programas de ensino de línguas, certificados de proficiência, controle da língua nos meios, criações de universidade para área, mudanças na produção das indústrias culturais, nos meios gráficos, na imprensa etc.

Na medida em que outros instrumentos linguísticos são considerados, outros (grupos de) agentes que produzem e sofrem efeitos no espaço relacional no qual ocupam uma posição também devem ser considerados. Além das intervenções dos Estados, a autora menciona a incidência dos meios de comunicação, as empresas, as organizações não governamentais, os espaços acadêmicos de controle da produção e publicação científica e os órgãos de avaliação de pesquisas que condicionam o ingresso de recursos financeiros (Arnoux, 2018, p. 25).

Nesse sentido e considerando o campo universitário brasileiro, merecem atenção os investimentos materiais e simbólicos de grande alcance (leis nacionais estaduais ou municipais, dispositivos normativos universitários, resoluções, atos administrativos, acordos de cooperação, assinatura de protocolos de intenções etc.), bem como as intervenções mais sutis ou menos sistemáticas que podem assumir a forma de interações em sala de aula entre docentes e estudantes, projetos de extensão, eventos linguístico-culturais, intervenções no espaço público das universidades (pichações, panfletos, sinalética, cartazes e murais) ou nos espaços virtuais de aprendizagem mediados pelas tecnologias. 

A partir dessa ótica, entendemos o campo universitário como espaço relacional de produção de conhecimento e intervenção por meio desse conhecimento produzido. O olhar glotopolítico dos materiais de arquivo podem contribuir para compreender como se defende, promove ou instrumentaliza uma língua sem que isso se confunda com a defesa e a promoção de um sistema de dominação linguística (Guespin & Marcellesi, 2021, p. 27).

 

As condições de produção e circulação das resoluções de política linguística

No plano nacional, a evolução histórica da presença das línguas estrangeiras está determinada à primeira vista por dois fatores: a imigração e a política linguística (Bein, 2016, p. 83). No entanto, a relação entre ambas é complexa. Elas interagem e se apresentam de vários modos. Por exemplo, as iniciativas glotopolíticas do grupo de imigrantes nem sempre estão alinhadas com as respostas oferecidas pelo Estado. Isso pode ser evidenciado nas discrepâncias entre as necessidades dos grupos migrantes e a escolha de línguas estrangeiras autorizadas a compor o currículo escolar ou de línguas empregadas em âmbitos oficiais transestatais. As características da imigração também são variáveis.

Existem ainda diversas variáveis que incidem sobre questões culturais e linguísticas das e dos imigrantes. Por exemplo: a influência exercida pelo país receptor e pela política linguística exterior dos países de origem, os motivos da migração, a concentração populacional no país de destino, as relações com o país de origem, o grau de endogamia, da distância interlinguística e, em se tratando de línguas faladas em países vizinhos, a formação de variedades híbridas (Bein, 2016, p. 83).

Essa complexidade faz supor que uma política linguística omissa a questões como a diversidade linguístico-cultural do território ou as características dos repertórios plurilíngues de seus habitantes seja pela existência de interesses adversos ao reconhecimento dessas condições, seja pela falta de conhecimento acerca da situação sociolinguística vigente dificilmente pode ser implementada sem encontrar resistências. A descrição proposta por Bein (2016) que, em termos gerais, pode explicar a relação tensa entre as políticas linguísticas nacionais e a condição migrante, de certa forma, encontra um correlato nas dinâmicas inerentes ao campo universitário no Brasil. Posto em outros termos, há sempre, entre uma política linguística desconexa das demandas e interesses da sua comunidade universitária, uma relação conflituosa. Quanto mais heterogênea e dinâmica é a situação sociolinguística do espaço universitário, mais complexa se torna a gestão (democrática) das (variedades de) línguas em circulação

Se assumirmos que a política é da ordem do conflito e da diferença (Orlandi, 2007), a condição plurilíngue que caracteriza o campo universitário brasileiro na atualidade faz com que toda decisão de política linguística tomada unilateralmente tenda a ser questionada. Observa-se, contudo, que há, nessa tensão entre (grupos de) agentes engajados no mesmo espaço, uma oportunidade para ampliar os debates sobre educação linguística, assim como para democratizar os instrumentos de deliberação e traçar um horizonte comum.

A superdiversidade (Vertovec, 2007; Blommaert & Rampton, 2011) é uma característica marcante das sociedades contemporâneas cada vez mais interligadas e condicionadas por mercados globais. No campo universitário brasileiro, a intensificação de tal característica acompanha a trajetória histórica da chamada expansão do ensino superior. Durante o século XIX, 4ª etapa da constituição de faculdades no Brasil, de acordo com a periodização proposta por Trindade (2000), começa a ser implantado o modelo de universidade estatal moderna e se inicia um período no qual a relação entre o Estado e as universidades incidirá no tipo de estrutura e de regulação das práticas educacionais.

A estrutura da educação básica seguia o modelo francês, o qual delegava à burguesia a seleção dos conteúdos curriculares de acordo com valores e ideais próprios. As transformações econômicas, culturais e urbanas que acompanharam o processo de industrialização estimularam propostas reformistas desse modelo de educação, incluindo o nível superior.

Os princípios de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e da autonomia didático-pedagógica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial só seriam reconhecidos nacionalmente com a redação da Constituição de 1988. Na configuração do campo universitário brasileiro de inícios do século XX não existiam ainda condições para a formulação de programas de pós-graduação próximos à modalidade stricto sensu. O Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) foram criados no ano de 1951 e a institucionalização dos primeiros programas aconteceria na década posterior.

Em 1935, é fundada a Universidade de São Paulo, que para alguns autores é a primeira universidade moderna, pois traz em seu projeto político-ideológico a vinculação entre Ensino, Pesquisa e Extensão. Durham (2005) explica que muitos docentes eram estrangeiros e que seu processo de conformação foi marcado por confrontos, negociações e compromissos entre setores da burocracia estatal e dos intelectuais com a intenção de preservar ou restringir a autonomia institucional.

Parece uma coincidência que a questão da autonomia universitária nunca seja um assunto fechado; ela retorna insistentemente na forma de estratégias flexibilizadoras da missão universitária. Nesse sentido, as insinuações (ou propostas concretas) de enxertar no tripé Ensino-Pesquisa-Extensão um quarto elemento denominado “inovação”[5] podem ser uma das portas de entrada nas universidades de interesses alheios à missão das IESs, trazendo a possibilidade de perda de autonomia relativa. Uma nota da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, por exemplo, anunciava que em 2019 a USP liderava a relação de IESs com maior incentivo ao empreendedorismo no país, segundo dados da terceira edição do Ranking de Universidades Empreendedoras do Brasil. O ranking é feito a partir da coleta e análise de dados provindas de três fontes: a primeira é uma pesquisa de percepção; a segunda é uma coleta de informações autodeclaradas pelas universidades; já a terceira fonte é de dados de fontes secundárias.

Para representantes da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (ADUSP, 2019), em sintonia com o professor Oliveira, vice-coordenador do Grupo de Pesquisa Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), quando “os inovacionistas” falam em atender a demandas específicas da sociedade, o que se pretende, na verdade, é atender a demandas específicas do mercado.

O golpe cívico-militar-eclesiástico de 1964 foi também um golpe à autonomia universitária. As políticas educacionais projetadas pelo regime autoritário, principalmente em seus primeiros anos, buscaram inibir as tentativas reformistas, desmantelando o movimento estudantil e regulando coercitivamente o trabalho docente (Martins Filho, 1987). O viés repressivo do terrorismo de estado acompanha a tentativa de subordinar o sistema de ensino nacional às políticas de desenvolvimento econômico sob uma lógica de crescente internacionalização econômica, processo esse iniciado em décadas anteriores (Martins, 2018).

O predomínio quantitativo de instituições do setor privado em relação às do setor público é uma caraterística do espaço universitário nacional. Sampaio (2000), identifica que as instituições isoladas privadas mais antigas correspondem ao período de 1945-1961 e associa a consolidação do ensino superior privado no país com o surgimento de uma nova clientela, composta pelas camadas sociais em ascensão, e um mercado de trabalho que requeria formação específica e diplomas de ensino superior.

A multiplicação das instituições privadas nos últimos 50 anos se reflete nos dados revelados pelo último Censo. O ensino superior brasileiro, em sua esmagadora maioria, pertence à iniciativa privada[6]. Em 2020, de um total de 2457 IESs, 2153 instituições pertenciam à categoria privada. Os resultados sobre graduação, no mesmo ano, revelam que 3.238.469 estudantes ingressaram em instituições privadas e 527.006 em instituições públicas, considerando todas as categorias.

Essa discrepância entre ensino superior público e privado traz à tona outro elemento a ser analisado: a modalidade EAD. Segundo o último Censo, no período de 2011 a 2020 houve um expressivo crescimento do número de ingressantes nessa modalidade. Em 2011, os ingressantes na modalidade EAD correspondiam a menos de um quarto dos ingressantes na modalidade presencial. Ao final do período, de forma inédita, ultrapassam em número o total de ingressantes presenciais.

Todos esses indicadores apontam para um longo processo histórico de conformação do campo universitário brasileiro no qual as instituições de ensino público não dispunham de mecanismos eficazes e permanentes de inserção dos setores mais despossuídos de uma espécie de capital cultural e econômico que se adquire principalmente antes do ingresso na Universidade. A distribuição desigual de oportunidades de acesso impossibilitava a obtenção de diplomas reconhecidos. O diploma, enquanto capital cultural institucionalizado, afirma Bourdieu (1979), produz um efeito de distinção capaz de contribuir para perpetuar as desigualdades socioculturais e econômicas. Nessa linha, alguns autores identificam um dualismo estrutural no funcionamento do sistema escolar da educação básica (escolas gratuitas para os pobres e escolas pagas para os ricos) que se inverte no ensino superior (universidades públicas para os ricos e privadas para os pobres).

 A chamada democratização do acesso à educação superior, enquanto bem público e direito universal, passou a ocupar espaço na agenda política nas últimas décadas. Para melhorar e ampliar as condições de acesso foram criadas políticas públicas de expansão e interiorização, ações afirmativas e, no plano internacional, acordos e convênios facilitadores da mobilidade, que mudaram a composição socioeconômica e cultural dos estudantes nacionais e intensificaram o fluxo de estudantes internacionais. As políticas públicas dirigidas à interiorização e à internacionalização do Ensino Superior contribuíram para que setores da população exercessem o direito de acesso e permanência no sistema, direito esse postergado ou ameaçado historicamente de modo explícito ou velado.

Dentre as medidas legais de promoção desse direito, merece destaque a Lei n° 12.711/2012 (Brasil, 2012), que reserva 50% das vagas dos institutos e universidades federais (para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar baixa e para candidatos autodeclarados Pretos, Pardos e Indígenas), e outros programas, como o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), o REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), o PROUNI (Programa Universidade Para Todos) e o PNAES (Programa Nacional de Assistência Estudantil) e a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

O aumento progressivo das matrículas universitárias observado nos resultados dos censos educacionais, bem como as características socioeconômicas e culturais da nova população estudantil reformulou o perfil sociolinguístico das IESs, provocando gestos glotopolíticos contraditórios por parte das autoridades e do corpo docente frente à nova realidade universitária: desde a intensificação do diálogo, criação de espaços de reflexão compartilhada, propostas de ações de acompanhamento ou monitorias, criação de departamentos ou secretarias especializadas e procura de soluções provisórias para paliar a ausência de medidas permanentes; até indiferença ou minimização de problemas estruturais como a evasão escolar e desconhecimento ou negação do novo perfil sociolinguístico e sociocultural dos discentes ingressantes.

Assim, observamos que a velocidade das transformações provoca uma defasagem entre as estratégias de gestão (democrática) da diversidade linguística das IESs e as necessidades das comunidades acadêmicas que ingressam ano a ano. Nessa conjuntura, as resoluções de política linguística se tornam ferramentas comunitárias capazes de acolher a diversidade linguístico-cultural e oferecer soluções inovadoras e permanentes de ordem tecnológica, administrativa e didático-pedagógica.

 

As resoluções de políticas linguísticas (RPLs) e o status das línguas em circulação

Devemos ter em mente que as políticas de expansão do Ensino Superior favoreceram o acesso de novos setores da sociedade brasileira e de outros países à universidade. Os chamados discentes internacionais representam uma parcela significativa das comunidades universitárias. O perfil sociolinguístico dessas novas camadas que podem acessar o Ensino Superior através de editais especiais difere das apresentadas pelos ingressantes nacionais, mas também, apresentam diferenças entre si. As vagas ocupadas por discentes brasileiros oriundos de comunidades indígenas e por discentes de cidadania angolana, japonesa ou paraguaia (para nomear apenas as três nacionalidades com mais representantes, de acordo com o Censo de 2020), evidenciam a pluralidade de repertórios linguísticos em função das quais as universidades precisam basear suas diretrizes e planos de ação institucionais.

Algumas universidades como a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia (UNILAB), a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e a Universidade da Integração da Amazônia (UNIAM) postulam uma vocação regional e preveem em seus estatutos e normativas internas mecanismos orientados a realizar o acolhimento da diversidade linguística. Embora nenhuma medida administrativa possa garantir de antemão que essas metas sejam alcançadas definitivamente, já que se trata de processos e cenários dinâmicos, as universidades, inclusive as consideradas tradicionais ou conservadoras, vem desenvolvendo estratégias de gestão e formação sensíveis à pluralidade das culturas linguísticas[7] universitárias. O interesse crescente por questões tais como direitos linguísticos, acolhimento linguístico-cultural, (multi)letramentos acadêmicos e fenômenos de intercompreensão e translinguagem é um sintoma ainda insuficiente de uma nova sensibilização para a condição superdiversa das IESs.

Assim, os repertórios plurilíngues compartilhados, que as novas condições sócio-históricas geraram no interior do campo universitário, estimulam, paralelamente, as tomadas de decisão institucionais em matéria de gestão linguística. Os critérios através dos quais a circulação de línguas é encorajada ou desestimulada nos diversos domínios universitários encontram sustento em um imaginário que tende a perpetuar uma distinção funcional entre as línguas: de um lado, línguas globais, mais bem equipadas para funcionar na esfera pública, na comunicação institucional e nos âmbitos de produção e divulgação científica. Do outro lado, línguas regionais, de uso restrito, reservada a domínios de uso não oficiais e à produção de gêneros textuais menos monitorados. 

Essa distinção de status entre línguas em circulação, que a sanção de atos decisórios investidos de autoridade pode exacerbar, é reconhecida ou questionada, paralelamente, por meio de inúmeros atos glotopolíticos dissidentes, menos extraordinários que as impactantes políticas linguísticas institucionais. 

A análise da série de resoluções de políticas linguísticas que compõem o corpus capta, em parte, um momento particular do estado do campo universitário brasileiro em que as IESs definem discursivamente o status aquisicional que as línguas em circulação detêm ou deveriam deter.

Levando em consideração os acontecimentos apontados, que certamente contribuíram para criar as condições de emergência de documentos de políticas linguísticas explícitas no espaço universitário, apresentamos na Tabela 1 a série de resoluções que conformam o corpus de análise.

 

Tabela 1. 6 das 9 universidades públicas com mais alto número de estudantes estrangeiros matriculados em cursos de graduação

 

Interface gráfica do usuário, Tabela

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborado pelo autor, com base no Censo de Educação Superior − INEP (2020)

 

As seis universidades pertencem ao grupo das 20 instituições de ensino superior com mais estudantes estrangeiros matriculados no nível de graduação, segundo o Censo da Educação Superior 2020. Das nove universidades públicas incluídas nesse ranking, as três IESs restantes não constam no arquivo-base[8]. A Tabela 1 mostra também o ano de emissão do documento e o número de estudantes estrangeiros matriculados em cada IES. Quatro universidades elaboraram suas respectivas resoluções entre 2018 e 20219, período em que é registrada a maior ocorrência de produção desse tipo de instrumento. Uma outra é datada em 2016, dois anos antes desse período. A resolução mais recente, de 2022, foi apresentada na 644° reunião do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da universidade, no dia 18 de agosto de 2022[9].

No que tange aos elementos recorrentes que compõem a estrutura redacional dos dispositivos normativos, foram identificadas as seguintes regularidades:

 


 

Tabela 2. Elementos recorrentes da estrutura redacional das resoluções analisadas

 

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Fonte: Elaborado pelo autor, com base nas resoluções de política linguística

compreendidas no corpus de análise

 

Apenas a RPL5, que é a única da série que pertence às instituições com vocação integracionista, reserva uma seção do instrumento para contextualizar sua situação estratégica na região que abrange a chamada Grande Fronteira do Mercosul e o Território da Cidadania do Cantuquiriguaçu. Este gesto glotopolítico tendencialmente orientado para o polo integracionista (como veremos mais adiante), emerge nos enunciados referidos às características distintivas da universidade (“a responsabilidade de produzir conhecimento prioritariamente voltado para o desenvolvimento regional”; “a universidade precisa preparar os jovens para criarem soluções adaptadas à sua realidade”; “o estabelecimento de parcerias com universidades das diferentes regiões do mundo, que venham trabalhando na mesma direção”).

Anteriormente, mencionamos que um conjunto de políticas públicas nacionais voltadas para o ensino superior tinha contribuído para a expansão do acesso às universidades, mudando o perfil sociocultural, econômico e sociolinguístico dos estudantes.

Outra iniciativa é o Programa Ciências sem Fronteiras (CsF), criado em 2011. Seu principal objetivo era promover a projeção internacional do Brasil por meio da mobilidade acadêmica. Os principais destinos dos estudantes bolsistas de pós-graduação no ano de 2017 foram os Estados Unidos, seguido do Reino Unido, Canadá, França, Austrália, Alemanha e Espanha. Em abril desse mesmo ano, o MEC anunciou o fechamento definitivo das bolsas de graduação.

O Programa Inglês sem Fronteiras (IsF), surgido em 2012 e vinculado ao Programa mencionado acima, também teve um impacto significativo no espaço universitário nacional. Este programa previa a oferta de cursos EAD e presenciais de língua inglesa e aplicação de testes de proficiência. Seu objetivo era auxiliar os estudantes brasileiros de graduação, ampliando suas chances de acesso a instituições internacionais. Em 2014, a oferta de línguas foi ampliada e o programa mudou de nome.

Ao considerar algumas das principais iniciativas de expansão, integração, interiorização e internacionalização das IESs, observa-se que os programas nacionais de fomento de ações estratégicas regulam a distribuição de recursos mediante a exigência de certos requisitos que as universidades devem atestar formalmente. Esses processos de adequação documental regulados por meio de editais específicos geram uma constante produção de materiais que se incorporam ao arquivo universitário

Nesse sentido, a elaboração de documentos de Política Linguística Institucional se tornou um requisito necessário para concorrer em editais que preveem recursos financeiros, como são os casos dos editais de credenciamento e recredenciamento dos Núcleo de Línguas (NucLI-IsF) vinculados ao Programa IsF e daqueles que visam a incentivar a internacionalização das IESs.

Em relação aos incentivos para internacionalização, em 2017, foi criado um projeto específico: o Programa Institucional de Internacionalização (Capes-PrInt) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes). Os efeitos de tal iniciativa são relevantes, dado que a ênfase na qualidade da produção acadêmica (principalmente em língua inglesa), na mobilidade acadêmica (privilegiando instituições do Norte global) e o interesse em transformar as instituições participantes em “um ambiente internacional” (atrativo para a importação de discentes e pesquisadores de instituições parceiras) favoreceu a criação, revisão ou explicitação de diretrizes de políticas linguísticas por parte das IESs. Ao menos quatro das seis universidades, cujas resoluções de política linguística compõem o corpus analítico, consideraram, direta ou indiretamente, as condições de participação exigidas pelo programa.

A duração dos projetos aprovados e financiados é de 4 anos. Para atender aos pré-requisitos do edital, a instituição concorrente precisou elaborar um plano estratégico e mostrar, por meio de políticas e ações inovadoras, como obterá maior protagonismo internacional.

Sob essas condições, no ano seguinte ao lançamento do Edital nº. 41/2017 Capes-Print, um grande número das IESs brasileiras começaram a produzir seus respectivos Planos e Políticas de Internacionalização Institucional. Em alguns casos, esses documentos reservam alguma seção ou capítulo às Políticas Linguísticas Institucionais. Em outros casos, foram redigidas resoluções específicas.

Castelano Rodrigues (2021), na apresentação de uma pesquisa em andamento, explica algumas das repercussões desse programa e descreve a emergência de um novo contexto de conscientização de questões que envolvem as línguas na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, menciona que a Capes, através do Programa Institucional Capes-Print, pretendia funcionar como uma indutora de políticas de línguas estrangeiras para a internacionalização no nível universitário, já que para concorrer aos recursos as IESs deveriam regulamentar suas diretrizes institucionais de política linguística. 

Mas a autora identifica, a partir dessa demanda do órgão, um movimento contrário em relação ao tipo de internacionalização promovido pelo programa. Trata-se de uma reação adversa inesperada que se instaura dentro de cada comunidade universitária e que promove discussões internas sobre cada realidade sociolinguística. Isso deixa em evidência que o conhecimento e o reconhecimento das línguas da comunidade é uma questão pendente. Em segundo lugar, o programa prioriza um tipo de internacionalização em sentido Sul-Norte, no entanto, as normativas analisadas trazem à tona demandas internas e a visibilização de estudantes marginalizados historicamente que precisam garantir seus direitos linguísticos. Em terceiro lugar, a análise apontou que o funcionamento elitista das universidades se baseava em duas evidências sobre as pessoas que ingressam na universidade: uma supõe que elas conhecem línguas e, a outra, que elas dominam a norma padrão da língua portuguesa inclusive com relação à leitura e escrita acadêmica. 

Com as mudanças do perfil sociolinguístico das universidades, principalmente das federais, tais evidências já não encontram confirmação na realidade. No entender de Castelano Rodrigues (2021), houve um “efeito colateral”, que favoreceu um exercício de reconhecimento de demandas internas, incidindo sobre a memória das línguas e do ensino de línguas no Brasil. 

No caso específico da série de resoluções analisadas que correspondem às IESs com número significativo de estudantes estrangeiros, não se verifica uma menção explícita e generalizada do interesse em se ajustar às exigências desse programa. Apenas a resolução da quinta IES (RPL5) inclui o Edital Capes-Print nº 41/2017 entre os considerandos. A segunda resolução (RPL2) não faz menção ao programa, já que foi emitida quase um ano antes da publicação do Edital do programa Capes-Print. Nos outros quatro instrumentos (RPL1, RPL3, RPL4 e RPL6), também não há referências explícitas. No entanto, a expressiva proliferação de resoluções semelhantes no ano posterior ao lançamento da primeira edição do Capes-Print é significativa do ponto de vista glotopolítico. Na primeira edição, em 2017 (Capes, 2017), cerca de cem instituições se inscreveram e 36 foram selecionadas. Das seis universidades, cujas resoluções fazem parte do corpus, quatro tiveram seus Planos de Internacionalização aprovados (Capes, 2018). A RPL4 define a política linguística adotada pela universidade como “instrumento de internacionalização”, designação que pode indicar o interesse em participar desse programa no futuro.

Quando é considerado o Programa IsF, observa-se uma diferença com respeito ao Programa Capes-PrInt: as referências explícitas se constatam principalmente na fundamentação ou na composição do órgão responsável. (RPL1: “o compromisso da universidade com o programa IsF contribuindo com as ações do NucLi-USP para o fortalecimento do processo de internacionalização"; RPL3: “a Comissão será integrada pelos membros: [...] Coordenador Geral do Programa Idiomas sem Fronteiras da UnB”; RPL4 “do Núcleo de Línguas – NucLI”; RPL5: “Considerando o Edital do MEC nº 29/2017, de Chamada Pública para recredenciamento de universidades federais como Núcleo de Línguas”; RPL6: “Instituir para fins específicos de recadastramento do IsF – NucLi UFRGS, uma Proposta de Política Linguística voltada para a internacionalização no âmbito do programa Idiomas sem Fronteiras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul”). A resolução aprovada em 2016 é a única que não faz menção ao programa, pois seu credenciamento foi autorizado em julho de 2017.

Atualmente, são 118 IESs vinculadas ao programa e de acordo com os dados do relatório nacional, referentes a novembro de 2018, 1496 docentes estavam credenciados. Nota-se que a formação docente e a capacitação em línguas do Programa IsF vão ganhando espaço como ações nas políticas linguísticas permanentes na Educação Superior brasileira.

No processo de redação de “instrumentos de jurisdição da língua” (ORLANDI, 2001), a operação de nomeação de línguas é incontornável. Cada comissão responsável pela redação do documento precisou enunciar nos objetivos, diretrizes, valores, metas e/ou ações prioritárias, quais eram ou deveriam ser as línguas de circulação legítima. O Gráfico 1 representa a presença de línguas nomeadas pelas RPLs.

 


 

Gráfico 1: Frequência de nomeação (mais diferenciado) das línguas

nas diferentes resoluções

 

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Fonte: Elaborado pelo autor, com base nas resoluções analisadas

 

Observa-se no Gráfico 1 que os nomes “português” ou “língua portuguesa” e “inglês” ou “língua inglesa” são os mais frequentes independentemente do ano de aprovação do instrumento. A referência a língua portuguesa está presente em todas as RPLs. A língua inglesa é mencionada em cinco oportunidades, mostrando seu predomínio em relação às demais línguas estrangeiras. O espanhol aparece em terceiro lugar, mencionado em quatro oportunidades. A Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) tem três menções. As línguas francesa, alemã, italiana e japonesa são nomeadas uma ou duas vezes por serem línguas contempladas na oferta de cursos do Programa IsF. O guarani e o kaigang são nomeados apenas na RPL5, já que fazem parte das línguas da comunidade regional na qual a universidade se insere. Houve ainda uma menção ao sistema de escrita tátil, braile, por parte da RPL3.

Da análise das RPLs se depreende ademais um outro modo de nomear as línguas. Trata-se de uma operação de nomeação com um grau mais alto de indiferenciação. Nesses casos, as línguas (ou idiomas) vêm associadas a lugares, grupos ou à condição diferencial que estabelece com outras línguas. A formulação “línguas estrangeiras” é a que mais se reitera, sendo empregada em todas as RPLs. O Gráfico 2 apresenta as formulações e o grau de representatividade nos documentos.

 


 

Gráfico 2: Frequência de nomeação (mais indiferenciado) das línguas

nas diferentes resoluções

 

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Fonte: Elaborado pelo autor, com base nas resoluções analisadas

 

Os atos de nomeação permitem ler no arquivo universitário um confronto entre dois enunciados contrapostos: o primeiro, “língua do Brasil” (registrada apenas uma vez na RPL4) e o segundo, “línguas brasileiras” (presente na RPL5 e acompanhada de outras nomeações inovadoras vinculadas ao valor do regional e das comunidades do Sul Global). A forma morfologicamente marcada da formulação em plural ativa uma memória de lutas em torno da defesa e do reconhecimento de direitos linguísticos negados. Do outro lado, a forma não marcada da formulação em singular remete a um imaginário que naturaliza o monolinguismo e legitima uma única língua nacional. A RPL3 registra uma reformulação (cf. Gráfico 3) que retoma parafrasticamente a segunda: “Português como língua oficial da Nação”.

A análise permitiu evidenciar ainda as opções designativas que atribuem um status aquisicional às línguas em circulação, ou seja, que determinam as funções designadas em domínios de uso das IESs. O Gráfico 3 registra as designações formuladas e as ordena de acordo com sua representatividade nas RPLs.

 


 

Gráfico 3: Status aquisicional das línguas (esquema x como y; x para y)

 

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Os elementos “para” e “como” constituem uma matriz designativa que possibilitam identificar as funções legítimas das línguas em circulação nas universidades. Embora as formulações “língua estrangeira” e “para estrangeiros” sejam as mais frequentes, observa-se uma variedade de opções designativas (“como língua de acolhimento”, “como segunda língua para surdos”, “para falantes de outras línguas”, “como língua adicional” etc.) que não desestabiliza por completo o predomínio da condição de estrangeiridade das línguas nomeadas, mas mostra uma tendência que põe em questão (pre)conceitos arraigados sobre a educação linguística em contextos superdiversos e plurilíngues.

A última reflexão derivada da análise que nos parece pertinente registrar se vincula com o papel das políticas linguísticas universitárias nas relações de reciprocidade interinstitucionais de nível supranacional conhecida como processo de internacionalização.

Na série de resoluções, as referências à internacionalização são recorrentes:

RPL1: “[...] desenvolvimento da área central de línguas da universidade em conformidade com o Plano Institucional e a Política de Internacionalização”; “[..] para o fortalecimento do processo de internacionalização”. “[...] os pressupostos da internacionalização dos alunos na universidade [...]”.

RPL2: “[...] pressupostos da internacionalização [,,,]”; “[...] atividades de internacionalização [...]”; “Comitês Locais de internacionalização [...]”.

RPL3: “língua estrangeira para internacionalização [...]”. “O fortalecimento de programas específicos de internacionalização” [...]”.

RPL4: [...] “como instrumento de internacionalização [...]”; “[...] pressupostos da internacionalização”; “[...] atividades de internacionalização voltadas ao ensino, pesquisa e extensão [...]”.

RPL5: “a política de internacionalização [...]”; “parte da política de internacionalização [...]”.

RPL6: “A Política Linguística para a Internacionalização [...]”; “O comitê de Política Linguística para a Internacionalização [...]”.

Tal recorrência, no entanto, não nos exime de problematizar a categoria Internacionalização e suas implicações para as políticas linguísticas no campo universitário.

Nesse sentido, Perrotta (2016) afirma que a internacionalização é um processo relativamente recente e que ocupa atualmente um lugar central nos discursos sobre a universidade. A sua centralidade no mercado acadêmico global faz com que alguns autores defendam que a internacionalização pode ser uma função universitária comparável às de ensino, pesquisa e extensão. Nesse mercado globalizado e altamente competitivo analisado pela autora, a comercialização da educação superior introduz com mais força os valores do mercado na vida acadêmica, dentre eles: “la competencia, el individualismo, la búsqueda del lucro y formas de gestión empresariales basadas en el marketing y la publicidad para atraer estudiantes, y en la flexibilización laboral de docentes e investigadores” (Perrotta, 2016, p. 43).

O panorama resultante de uma internacionalização submetida a essas condições resulta em restrições na autonomia universitária e perda da soberania dos Estados sobre as atividades de ensino e de pesquisa. Esse efeito é muito mais preocupante nos países dependentes, considerando que os países centrais detêm não só as universidades mais prestigiadas com melhores instalações e infraestrutura para desenvolver pesquisas, mas também são sede das corporações multinacionais hegemônicas no sistema global de produção de conhecimento. A distribuição de prestígio definida pelos rankings internacionais reforça as assimetrias no mercado acadêmico global – e no mercado editorial internacional associado a este – aumentando ainda mais a brecha de desigualdade entre as instituições e os países. (Perrotta, 2016, p. 43).

Para descrever melhor as formas que assumem esses processos, Perrotta (2016) propõe duas categorias analíticas que destacam as características de dois modelos-projetos de internacionalização universitária: por um lado, uma internacionalização denominada fenícia, que é mais competitiva, centrada no mercado e na procura de lucro sob critérios de racionalidade econômica. Por outro lado, uma internacionalização solidária, mais cooperativa e horizontal, orientada para o desenvolvimento socioeconômico, a democratização do conhecimento e a inclusão social (Perrotta, 2016, p. 51-52).

A hegemonia do modelo fenício de internacionalização é contestada através dos movimentos contra-hegemônicos associados aos processos de regionalização e integração regional. Na América Latina e no Caribe, por exemplo, estão surgindo movimentos de resistência à mercantilização da Educação Superior. Esse tipo de internacionalização regional não mercantil cria laços de cooperação entre instituições do Sul Global mediante a conformação de redes acadêmicas com maior ou menor grau de formalização. Essas agrupações geram mais interação entre as universidades e suas comunidades acadêmicas que, graças às novas tecnologias, promovem o trabalho em rede e geram novas formas de integração e articulação. Assim,

la cooperación internacional de las universidades en el escenario actual permite que los conocimientos sean compartidos horizontal y verticalmente –es decir, entre las universidades y entre estas y los sectores menos favorecidos de la sociedad– y fortalecer los procesos de integración regional de América Latina”[10] (Perrotta, 2016, p. 51).

A autora considera que diferenciar as duas formas de internacionalização permite identificar as características mais importantes, pois as experiências de internacionalização são variadas e um mesmo processo pode ter traços de um ou outro modelo.

Do ponto de vista glotopolítico, Arnoux (2018, p. 23) reconhece que as integrações regionais também surgem das exigências do capitalismo global e que nessa etapa as políticas linguísticas em relação ao espanhol e ao português na América do Sul “tienden a gestionar y optimizar la circulación de bienes, personas y servicios en un mercado ampliado”. Contudo, a autora considera que é nesse mesmo espaço que deve ser travada a luta política para transformar coletivamente uma integração, que se coloca em grande medida em termos meramente econômicos, em uma outra que seja capaz de estabelecer laços solidários e agir sobre as múltiplas assimetrias.

Nas resoluções analisadas observamos que o tipo de internacionalização declarado se orienta para um dos dois polos do continuum na forma de duas tendências. Traços dos modelos de internacionalização mercantil e solidária podem ser complementares nos mesmos instrumentos. A primeira tendência é identificada nas resoluções que reconhecem a situação sociolinguística da comunidade universitária. Sob essa orientação, são propostas iniciativas voltadas para o diagnóstico, avaliação e valorização das línguas em circulação. As ações propostas buscam valorizar as culturas linguísticas, considerar os repertórios plurilíngues compartilhados e promover usos mais equilibrados das línguas das comunidades em todos os domínios de atividade universitários. Essas iniciativas, em parte registradas nas resoluções, podem funcionar como estratégias de fomento da cooperação interinstitucional e de ampliação das condições de acesso de estudantes nacionais e internacionais na universidade. Permitem ainda estimular mudanças em práticas e atitudes linguísticas do corpo docente e técnico-administrativo, até então, regidas por uma lógica monolíngue.

A segunda tendência, associada ao modelo de internacionalização mercantil, responde a exigências de um mercado acadêmico cada vez mais globalizado. Nesse caso, as diretrizes de políticas linguísticas se subordinam a critérios externos e privilegiam um melhor posicionamento no cenário mundial de acordo com valores e indicadores globais. Os objetivos e metas estão orientados a um tipo de cooperação subordinada ao Norte global, em que o inglês é legitimado como principal língua de publicações científicas.

Na análise, não foram encontrados casos puros de um ou de outro modelo. No entanto, a RPL5 se aproxima mais, ao menos no plano discursivo, do polo da internacionalização solidária e inclusiva.

Em alguns casos, evidenciou-se uma espécie de tentativa de capitalização da diversidade linguística. Quer dizer, foi registrada a recorrência de formulações indeterminadas (cf. Gráfico 2) que omite a nomeação das línguas, produzindo um efeito de valorização descompromissada do multilinguismo.

Essas disputas pela definição legítima do que implica, a final, internacionalizar o espaço universitário geraram um acontecimento glotopolítico disruptivo interessante, que evidencia a tensão entre um modelo regionalista de tipo inclusivo e solidário e outro internacionalista mercantil e global. No final da reunião na qual foi feita a leitura da RPL3, o relator recebeu um questionamento por parte de uma conselheira a respeito do nome dado à comissão. Conforme o Art. IX do Capítulo IV da resolução, que define as atribuições, a instância responsável foi denominada Comissão de Políticas Linguísticas para a Internacionalização. A conselheira chamou a atenção para os objetivos da política linguística e propôs uma reformulação, solicitando o seguinte nome: Comissão de Políticas Linguísticas para a Integração e a Internacionalização. Ato seguido, a proposta foi acatada pelo relator.

 


 

Considerações finais

Ao longo do artigo procuramos fazer uma leitura glotopolítica de um setor do arquivo universitário. A análise partiu de uma série de resoluções normativas sobre políticas linguísticas produzidas por seis universidades com um alto número de estudantes estrangeiros matriculados em cursos de graduação. Em um primeiro momento, expusemos a produtividade do olhar glotopolítico para abordar esses dispositivos enquanto instrumentos linguísticos produzidos no campo universitário brasileiro. Em um segundo momento, descrevemos as transformações e as iniciativas que incidiram sobre o mercado da educação superior e que favoreceram o ingresso de setores minorizados e historicamente excluídos da população. Uma das consequências mais significativas da expansão do sistema educacional nacional, a nosso ver, foi a presença indissimulável nas salas de aula de um novo perfil sociolinguístico, presença essa que, se reconhecida e valorizada, provoca mudanças na forma de gerir institucionalmente a diversidade linguística. Nesse sentido, consideramos que o olhar indiferente ou desatento para as trajetórias biográficas e especificidades dos repertórios plurilíngues de cada comunidade universitária significa desperdiçar a oportunidade de avançar na construção de uma universidade mais plural e democrática.

A análise das resoluções permitiu ainda observar, por um lado, os elementos comuns da estrutura redacional e, por outro lado, os modos de nomear as línguas de circulação legítima e seus respectivos estatutos aquisicionais.

Finalmente, estabeleceram-se relações entre as políticas linguísticas e processos de internacionalização. As resoluções analisadas mostraram que a temática da internacionalização está, em maior ou em menor medida, na agenda universitária e revelou a coexistência de duas tendências ou orientações: uma associada a um tipo de relação interuniversitária de cunho solidário e inclusivo; e outra, considerada hegemônica, de cunho mercantil e competitivo.

Ao que parece, o avanço de uma internacionalização moldada pela lógica dos mercados globais e a concorrência impiedosa por recursos e projeção internacional estimula um tipo de política linguística universitária desvinculada de um projeto de educação entendida como bem público e direito universal. Sendo assim e sabendo que, como alerta Boaventura de Sousa Santos (2021), estamos em um momento em que tudo se encontra indefinido, resistir a esse avanço é fundamental.

 

 


 

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Notas

 

[1] A noção discursiva de arquivo remete às contribuições teóricas de Michel Pêcheux, Michel Foucault e Jacques Derrida. Cada um dos autores, a partir de sua respectiva filiação teórica e filosófica, questionou a concepção arquivística estritamente documental ou informacional de representar a história. Sob essa ótica, os arquivos não se apresentam como repositórios disponíveis de informações ou dados ordenados tipológica e cronologicamente. O arquivo universitário pode ser entendido como o sistema que rege a formação e a transformação dos enunciados no interior do campo universitário. É no arquivo universitário que se torna possível reconhecer o aparecimento de um dado discurso (e não outro) sobre a diversidade linguística e sobre as línguas de circulação legítima nas universidades. A desconstrução derridiana oferece ainda um elemento produtivo para a Glotopolítica Latino-americana. Ela introduz a questão da política do arquivo e do controle político dos arquivos. Para Derrida (2001), essa é uma questão determinante, que atravessa a totalidade do campo político, já que a democratização efetiva depende da participação e do acesso ao arquivo.

 

[2] Para Cooper (2003) as três modalidades de planejamento linguístico (forma, função e aquisição) estão interrelacionadas. O planejamento de aquisição teria o propósito de expandir o número de usuários e, ao mesmo tempo, gerir os processos de ensino e aprendizagem da língua escolhida.

 

[3] Quanto à conformação e expansão do movimento, ver Fagundes, Lacerda & Santos (2019).

 

[4] Essa etapa da história da área disciplinar das Políticas Linguísticas faz alusão ao período anterior ao desenvolvimento de uma sociolinguística, que Calvet (2007, p. 32) chama de “nativa”.  Na segunda metade do século passado, algumas pesquisas sociolinguísticas começaram a questionar a visão instrumental da linguagem e a importação acrítica de modelos administrativos que dominavam a área do planejamento linguístico. As reivindicações históricas de comunidades linguísticas minorizadas e o engajamento das(dos) cientistas nos conflitos glotopolíticos contribuíram para mudar os fundamentos epistemológicos e práticos da gestão do plurilinguismo no cenário geopolítico do pós-guerra.

 

[5] O termo foi recentemente incorporado à Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional 85, de fevereiro de 2015. Embora a categoria “inovação” apareça em vários dispositivos relacionados ao tratamento da ciência e tecnologia, o Artigo 207, que trata da missão das universidades, ainda permaneceu inalterado.

 

[6] Existe uma aporia que subjaz às políticas governamentais de incentivos ao Ensino Superior. O financiamento público participa da expansão do acesso às universidades e, ao mesmo tempo, perpetua a brecha que separa a educação pública e a privada.

 

[7] Schiffman (1996, p. 5) define cultura linguística como “o conjunto de comportamentos, suposições, formas culturais, preconceitos, sistemas populares de crenças, atitudes, estereótipos, formas de pensar sobre a linguagem e as circunstâncias histórico-religiosas associadas a uma língua específica”.

 

[8] As três instituições são: a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e a Universidade Federal de Santa Catarina.

 

[9] As unidades competentes teriam um prazo de 30 dias para analisar a versão preliminar. A deliberação final ocorreria na reunião do dia 22 de setembro de 2022, mas o assunto não foi pautado nem registrado na ata publicada pela UnB.

 

[10] A autora identifica ao menos três tendências de internacionalização universitárias: “una internacionalización en línea con la tendencia mundial hegemónica sin cuestionarla (internacionalización de statu quo), una internacionalización que se acerca a la tendencia mundial, pero cuestiona algunos de sus aspectos (internacionalización revisionista), y una en franca crítica a la tendencia hegemónica (internacionalización rupturista) (Perrotta, 2016, p. 58).