INTRODUÇÃO

 

Glenda Heller Cáceres

glendacaceres@ufpr.br

Universidade Federal do Paraná, Brasil

 

 

No espaço brasileiro, muitas tem sido as transformações sociais – tanto no ambiente acadêmico quanto fora dele – que incidem sobre o campo da linguagem, mais especificamente das relações entre línguas, destas com seus falantes e entre falantes de diferentes línguas. A  massificação do acesso às tecnologias de comunicação e a velocidade do intercâmbio de informações; a facilidade do deslocamento no tempo-espaço decorrentes da globalização; as velhas e novas políticas de Estado e de vínculos inter e supranacionais e, especialmente, a intensa imigração, às vezes forçada, pela situação de conflito político ou mesmo de desastres naturais dos países de origem, às vezes ambicionada, na tentativa de inserir-se mais amplamente na cena mundial marcada pelas relações internacionais são apenas alguns dos fatores que têm condicionado essas transformações que dão à sociedade brasileira um caráter ainda mais híbrido do que aquele que historicamente fez parte de sua constituição.

Como não poderia deixar de ser, esses fatores são, ao mesmo tempo, resultado e origem de um denso, complexo e imbricado contato entre línguas e de suas possíveis fusões. Da mesma forma, são raiz e produto das intersubjetividades, em que os sujeitos assumem posições e ao mesmo tempo se guiam, em matéria de línguas, a partir de seus imaginários. As intersubjetividades e o universo linguístico (em) que (se) constroem, permeados pela política e pelo político, demandam dos investigadores em ciências da linguagem um olhar vigilante às situações que se manifestam nos mais diversos âmbitos e das mais variadas formas. Apresenta-se, portanto, a esses estudiosos, um campo vasto de pesquisa que é próprio da glotopolítica, entendida como “el estudio de las intervenciones en el espacio público del lenguaje y de las ideologías lingüísticas que activan y sobre las que inciden” (Arnoux & Nothstein, 2014, p. 9).

É dentro desse âmbito que se estabelecem linhas atuais de estudos que devem, de alguma maneira, reconhecer o peso das ideologias e investir na sua desconstrução. Segundo Arnoux (2000), na etapa atual do campo disciplinario da glotopolítica, há um enfoque no estudo de textos não apenas como documentos, mas também como discursos, em que linguagem e história se articulam a partir de uma atividade interpretativa. Os discursos são analisados à luz da conjuntura e “representan la sociedad al mismo tiempo que proponen representaciones de la lengua” (Arnoux, 2000, p. 17). Alinhados a essa vertente, os artigos que compõem este dossiê analisam discursos plasmados em diferentes textos, sejam eles dispositivos (como resoluções universitárias, por exemplo), instrumentos (como os livros didáticos) ou parte da paisagem linguística (como as fachadas/letreiros de estabelecimentos). Todos eles trazem contribuições fundamentais sobre questões glotopolíticas no contexto brasileiro, propondo reflexões não só para especialistas, mas para interessados no tema e fazendo avançar o conhecimento na área.

A partir de um posicionamento teórico-epistemológico glotopolítico, no artigo intitulado Línguas em circulação no campo universitário brasileiro: uma releitura glotopolítica de instrumentos de gestão linguística, Ariel Matías Blanco (Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Brasil) se debruça sobre a perspectiva das universidades acerca das línguas que podem/devem ser promovidas (ou apagadas) no espaço institucional. Em vista disso, o autor toma seis resoluções de políticas linguísticas – entendidas como dispositivos normativos explícitos de regulação – de universidades federais e estaduais públicas entre aquelas que registraram em 2020 o maior número de estudantes estrangeiros matriculados em cursos de graduação no Brasil. Ainda, chama o leitor a coanalisar processos sócio-históricos amplos e projetos de gestão educacional democrática, ambos determinantes das condições de produção e circulação dos referidos dispositivos normativos, e detém-se nos modos de enunciar as línguas em circulação no campo universitário. Assumindo que a construção histórica da Educação Superior está marcada pela superdiversidade e por condicionantes de sua estrutura (perda de autonomia, inserção do princípio mercadológico da inovação, multiplicação de privatizações, etc) mas que, mais atualmente, ações para a democratização do acesso à Educação Superior, enquanto bem público e direito universal, acarretaram alteração no perfil sociolinguístico dos discentes ingressantes nas universidades brasileiras, o autor nos convoca a pensar se, de fato, as recentes resoluções de políticas linguísticas nos permitem visibilizar a condição plurilíngue das comunidades universitárias. Para tal, aproxima-se de categorias analíticas lançadas por Perrotta (2016) acerca de modelos-projetos de internacionalização das instituições de Educação Superior. Ariel Matías Blanco encontra duas tendências, entre os documentos analisados, sobre o tipo de internacionalização declarado no campo universitário brasileiro: uma primeira, que reconhece e promove a pluralidade da situação sociolinguística da comunidade universitária, baseando-se no diagnóstico das línguas em circulação; e uma segunda, mais comum, subordinada a critérios externos, que privilegia o ranking da instituição no cenário mundial em resposta às exigências de um mercado acadêmico globalizado. Segundo o autor, ainda é tempo de resistir a um tipo de política linguística universitária que se desvincula de um projeto de educação como bem público e direito universal.

Essa resistência é explorada a partir de um exemplo concreto, descrito sob uma perspectiva etnográfica, no texto Experiências glotopolíticas na universidade, de Andrea Silva Ponte (Universidade Federal da Paraíba – Brasil). O objetivo da reflexão da autora coaduna com a primeira tendência de internacionalização descrita por Ariel Matías Blanco, já que visa a contribuir para a construção de políticas linguísticas que observem os contextos locais e ultrapassem pautas frequentemente alheias, que buscam atender ditames de tendências internacionais. Em seu texto, a autora constrói um breve percurso histórico sobre o ensino de línguas estrangeiras no Brasil na Educação Básica e, em seguida, estabelece, dentro do campo glotopolítico, relações desse percurso com os projetos de internacionalização na Educação Superior. Em sua análise, nos mostra como diferentes programas de internacionalização são decorrentes da irregularidade da oferta curricular do ensino de línguas estrangeiras na Educação Básica. Também a oferta descontínua das línguas estrangeiras – e uma prevalência histórica do ensino de inglês nas escolas – é responsável pelo que a autora chama “monolinguismo da comunidade universitária brasileira”. Apesar da hegemonia dessa língua em todos os níveis educacionais e de os sistemas de avaliação privilegiarem uma formação que se pauta pela lógica do mercado, Andrea Silva Ponte relata a existência de movimentos contrários a esse cenário, materializados textualmente em instrumentos de regulação política da Universidade Federal da Paraíba. Entendendo-os como produtos de intervenção linguística – portanto, próprios da glotopolítica (Arnoux & Nothstein, 2014) –, a autora analisa dois acontecimentos recentes: a elaboração da Resolução de Política Linguística para a UFPB (2020) e a criação do Instituto de Estudos Linguísticos e Culturais (2021) na mesma universidade. O primeiro deles demonstra uma preocupação em relação à formação dos indivíduos e ao seu direito de desenvolver e ampliar os conhecimentos sobre línguas (em geral, não apenas as estrangeiras), uma vez que se direciona aberta e enfaticamente à educação e aos direitos linguísticos. O segundo, atende às necessidades da instituição para a internacionalização, mas também se orienta para a premência de uma formação pluricultural e plurilíngue da comunidade universitária. Ditas intervenções, que visam a romper com as hierarquias linguísticas globais, são, para a autora, o único caminho para uma promoção equânime da produção de conhecimento e devem ser capazes de promover uma reorientação ideológica e discursiva na formação dos estudantes.

Em Língua, diversidade e ideologias linguísticas em um livro didático de língua portuguesa, Deise Cristina de Lima Picanço (Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil) apresenta, igualmente, as ingerências mercadológicas – neste caso, do mercado editorial e da agenda empresarial no campo da educação (com forte orientação do Banco Mundial) – na produção e distribuição de outro tipo de instrumento linguístico, capaz de modificar as relações sociais e a ecologia linguística (Auroux, 1998): o livro didático de língua portuguesa no Brasil. Segundo a autora, o livro didático é frequentemente entendido como um objeto dotado de verdades sobre ser e estar no mundo e, assim, faz funcionar discursivamente um imaginário tratado socialmente como norma. Ampliando essa compreensão, ela encontra na obra de Kroskrity (2004) pelo menos duas formas de entender as dimensões ideológicas que considera basilares para a análise que propõe. Uma dessas dimensões é a que se relaciona com os interesses de um grupo social e cultural específico. A outra diz respeito à criação e representação institucional de diversas identidades sociais e culturais em disputa num dado território. Partindo dessas dimensões ideológicas e da mobilização de uma compreensão bakthiniana da língua(gem), Deise Cristina de Lima Picanço define três eixos de produção e legitimação de sentidos no livro didático estudado, nomeado “Português - Contexto, Interlocução e Sentido”, da editora Moderna/Santillana. Sobre um dos eixos, Língua(gem) e Norma, a autora revela que, orientados por editais e com a possibilidade de que os livros didáticos sejam adotados por qualquer escola brasileira, autores e editores optam por abordagens abrangentes e discursos genéricos que fazem circular ideologias linguísticas que podem gerar silenciamentos e hierarquizações, não só das línguas, mas também dos falantes. A respeito do eixo Diversidade e Variação, expõe que há uma tendência a uma espécie de conciliação, de unidade dentro da diversidade, que seria capaz de mitigar conflitos em prol da legitimação e padronização da linguagem, reduzindo a noção de diversidade “cientificamente” a outras, tais como variação, norma culta e preconceito linguístico. Por fim, ressalta o eixo do Efeito residual do mito do monolinguismo, no qual os dizeres silenciam a realidade multilíngue que nos constitui como brasileiros. Os enunciados decorrentes dos três eixos produzem efeitos glotopolíticos de apagamento de conflitos e cultivo de identidades homogeneizadoras, fazendo com que estes emerjam como regimes de normatividade nos livros didáticos.

Já uma outra face da glotopolítica – porque fora dos ambientes institucionais e marcada por heterogeneidades linguísticas – aparece no texto de Sara dos Santos Mota, Natieli Luiza Branco e Vinicios Lima Ferreira (Universidade Federal do Pampa – Brasil), A designação dos estabelecimentos comerciais na cidade fronteiriça de Bagé. Nele, os autores analisam a presença da língua espanhola na cidade de Bagé, localizada na faixa de fronteira entre Brasil e Uruguai, e mostram como o contato linguístico português-espanhol produz sentidos na enunciação. Para situar o leitor, eles partem da conceituação de fronteira, valendo-se de estudos desenvolvidos tanto no âmbito da história (no que se refere à cultura e às relações sociais) quanto no âmbito da geografia crítica (especialmente a respeito da relação natureza-homem). Os fenômenos fronteiriços são, portanto, elucidados levando-se em consideração as noções de região, zona e território. Destarte, ressaltam que a fronteira Brasil-Uruguay foi forjada no seio da Região Platina (grande parte do território do Rio Grande do Sul, onde situa-se Bagé, esteve sob domínio espanhol no período colonial) e ali, por meio do comércio (legal e ilegal), de relações familiares e de propriedades rurais, conformou-se uma zona de fronteira, e não uma fronteira como linha divisória. Nesse território, cujos processos de dominação ou apropriação ocorrem simultaneamente em ambos os “lados”, constitui-se uma identidade marcada pela presença (e disputa) das duas línguas em questão. Após apresentar as condições sócio-históricas em que os acontecimentos produzem sentidos – nessa fronteira, caracterizadas pelos conflitos entre as coroas portuguesa e espanhola, pela incursão militar, pelo desenvolvimento da pecuária e, ainda, pela presença de imigrantes de diferentes origens (portugueses, espanhóis, italianos, árabes e negros) – e de relacioná-las à constituição da identidade dos sujeitos na formação desse espaço fronteiriço, os autores analisam os modos de designar (Guimarães, 2003) os estabelecimentos comerciais de Bagé que se fazem parcial ou completamente em língua espanhola. O arquivo, construído durante a pandemia de Covid 19, entre os anos 2021 e 2022, baseou-se em fontes tais como a rede social Instagram e aplicativos de entrega (Ifood e Delivery Much). As análises permitem entrever que os nomes dos estabelecimentos ressignificam enunciações anteriores através do funcionamento de um memorável que, majoritariamente, identifica o lugar social do alocutário como consumidor. Nessa arena glotopolítica, as línguas nacionais “são línguas que coexistem e se misturam, ao constituir o espaço de enunciação fronteiriço e serem partilhadas por seus falantes, marcando uma identidade fronteiriça e instituindo uma territorialidade que é própria do habitar a cidade na fronteira”.

A diversidade temática e teórico-metodológica dos artigos, como é possível observar, enriquece o debate, desvenda os aparentes vínculos pacíficos entre línguas, falantes, instrumentos, dispositivos e territórios, intriga os leitores curiosos e mais do que respostas, alvitra novos questionamentos. Espero que esse seja o anseio despertado nos leitores deste dossiê e que a leitura seja prazerosa e capaz de provocar, igualmente, um engajamento responsivo diante das questões de linguagem apresentadas.

 

 

 

Referências

 

Arnoux, E. N. de (2000). La glotopolítica: transformaciones de un campo disciplinario. In Primer Simposio en la Maestría en Ciencia del Lenguaje. Buenos Aires: ISP “Dr. Joaquín V. González”.

Arnoux, E. N. de, & Nothstein, S. (2013). Glotopolítica, integración regional sudamericana y panhispanismo. In E. N. de Arnoux & S. Nothstein (Eds.), Temas de Glotopolítica. Integración Regional Sudamericana y Panhispanismo (pp. 9-29). Biblos.

Auroux, S. (1992/2009). A revolução tecnológica da gramatização. Contexto.

Guimarães, E. (2003). Designação e espaço de enunciação: um escrito político no cotidiano. Letras, 26, 53-62.  https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11880/7307

Kroskrity, P. V. (2004). Language Ideologies. In A. Duranti (Org.), A Companion to Linguistic Anthropology (pp. 496-517). Blackwell.

Perrotta, D. (2016). La internacionalización de la universidad: debates globales, acciones regionales. UNGS-IEC.