VELHOS CRENTES RUSSOS NO BRASIL:

PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA

 

Galina Petrova

galia.petrova@mail.ru

Universidade Estatal de Relações Internacionais de Moscovo

Rússia

 

 

RESUMO

O artigo é dedicado ao estudo da emigração dos Velhos Crentes russos para o Brasil e dos meios que lhes permitiram manter sua identidade linguística. Analisam-se as características do dialeto da língua russa dos Velhos Crentes que vivem no Brasil.

Os Velhos Crentes mudaram-se para o Brasil após séculos de opressão, que os levou a migrarem sucessivamente da Rússia Central para o leste do país, acabando em muitos casos por se fixar em Harbin (China). Após a revolução de 1949 na China, emigraram para vários países, entre eles, o Brasil, conseguindo evitar a política de nacionalização do Estado Novo. No início do século XXI, várias famílias de Velhos Crentes regressam ao Extremo Oriente russo, completando assim sua volta ao mundo.

Palavras-chave: Velhos Crentes; emigração; língua russa no exterior; dialeto de Velhos Crentes na América Latina.

 

RUSSIAN OLD BELIEVERS IN BRAZIL:

THE PRESERVATION OF LINGUISTIC IDENTITY

 

ABSTRACT

The article is devoted to the study of the emigration of Russian Old Believers to Brazil, the ways that allowed to maintain their linguistic identity and the features of the dialect of the Old Believers living in Brazil.

The Old Believers moved to Brazil after centuries of oppression, as a result of which they first left Central Russia for the East of the country, and many of them moved to Harbin (China). After the 1949 revolution in China, they emigrated to several countries, including Brazil, managing to avoid the Estado Novos nationalization policy. At the beginning of the 21st century, several families of Old Believers decided to return to the Russian Far East, thus completing their round-the-world trip.

Keywords: Old Believers; emigration; Russian language abroad; dialect of Old Believers in Latin America.

 

1. Introdução

Este trabalho, escrito no quadro das pesquisas realizadas pelos cientistas, professores e analistas membros da Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo, é dedicado ao estudo da história da emigração dos Velhos Crentes russos para o Brasil, análise dos meios que lhes permitiram preservar sua identidade linguística, bem como à identificação das características do dialeto da língua russa dos Velhos Crentes que vivem na América Latina e, em particular, no Brasil.

No dialeto dos Velhos Crentes, podemos ver um exemplo de uma língua de imigração, idioma “ilheu”, cercado pela língua majoritária. Temos por objetivo pesquisar os processos típicos que decorrem nele durante o período de emigração, podendo constatar que o idioma afastado da língua metropolitana conserva os traços arcaicos e elabora suas próprias normas de formação de palavras. Também é mais sujeita a mudanças semânticas e à interferência das línguas majoritárias que implica a apropriação fácil de estrangeirismos. No entanto, a particularidade do dialeto dos Velhos Crentes consiste na preservação da língua materna castiça e fluente durante quatro séculos de emigração, o que é condicionado pelos costumes tradicionais e pelo hermetismo de sua sociedade. Não conseguiremos compreender os processos acima indicados sem descrever a história de emigração de Velhos Crentes para o Brasil e a breve característica da fé e cultura deles. No estudo da história e costumes dos Velhos Crentes, a autora baseou-se nos trabalhos de Yu. M. Yukhimenko (2012) e D. V. Semikopov (2021). A história da emigração dos Velhos Crentes para o Brasil, a inserção de imigrantes na sociedade brasileira e a preservação da língua russa materna em sua nova pátria são estudadas nas obras dos descendentes de emigrantes da Rússia que vivem no Brasil, como M. E. Iachinski Mendes (2019), S. Ruseishvili (2018), D. C. Fatuch Rabinowitz (2008), A. Bytsenko (2006) e A. Vorobieff (2006).

Uma série de trabalhos versa sobre a emigração dos Velhos Crentes para a América Latina e ao fenômeno único de preservação de sua língua, fé e tradições ao longo de 4 séculos de emigração: entre eles os artigos de O. A. Matveichev (2019), D. Antonelli (2018), V. V. Kobko e N. B. Kerchelaeva (2012), bem como o documentário de A. V. Pivovarov (2020).

O interesse pelo fenômeno dos Velhos Crentes aumentou devido ao programa de reassentamento dos Velhos Crentes e seu retorno ao Extremo Oriente russo. Nesse contexto, foram publicados vários documentos e artigos: E. Makarova (2017); o portal estatal Reassentamento dos compatriotas; E. Chesnokova (2017) e filmados documentários, por exemplo,  de A. V. Pivovarov (2020).

Ao analisar as características do dialeto dos Velhos Crentes na América Latina, a autora baseou-se no texto do livro de D. T. Zaitsev “O Conto e a Vida de Danila Terentievitch Zaitsev” (2015), bem como nos estudos da dialetóloga russa O. G. Rovnova (2014, 2018) e na entrevista concedida por ela a A. Makeiev (2018).

 

2. Quem são os Velhos Crentes?

Em 1653-1656, na Rússia foi levada a cabo uma reforma eclesiástica cujo objetivo foi unificar os textos sagrados, modernizar o estado russo e renovar a Igreja Ortodoxa. O iniciador da reforma foi o Patriarca Nikon. Nas Sagradas Escrituras e livros litúrgicos traduzidos para o antigo eslavo eclesiástico e transcritos à mão havia muitas inconsistências e distorções. A reforma alinhou-os com os originais gregos, introduzindo também rituais diferentes. A adoção dos ritos e textos gregos provocou uma forte rejeição da parte dos adeptos da antiga fé que acreditavam que a igreja foi reformada segundo os modelos anticristãos. Foi o Arcipreste (rus. Protopope) Avvakum que se tornou chefe dos “cismáticos” (Semikopov, 2021).

Por exemplo, o sinal da cruz de dois dedos dos Velhos Crentes simbolizava a natureza dual de Cristo. Os ortodoxos modernos benzem-se com três dedos que significam a unidade de Deus em três ipóstases. É por isso que os Velhos Crentes se chamam também Velhos Ritualistas (rus. staroobriadtsy).

Assim, os Velhos Crentes (rus. starovery) são partidários dos cânones ortodoxos antigos que antecederam a reforma da igreja de 1653-1656. No confronto entre o Arcipreste Avvakum e o Patriarca Nikon, o czar Alexei Mikhailovich ficou do lado de Nikon. Durante séculos, até o aparecimento em 1905 do Supremo Decreto ao Senado “Sobre o fortalecimento dos princípios da tolerância religiosa” de Nicolau II, pelos crimes contra a fé e a igreja a sentença era a pena de morte, e este artigo foi estendido aos Velhos Crentes. Os principais pregadores da antiga fé foram queimados, exilados ou sofreram terríveis suplícios (Yukhimenko, 2012).

A crueldade da perseguição foi determinada não apenas pela posição dura das autoridades czaristas, mas também pela posição firme dos próprios Velhos Crentes que chegavam ao fanatismo. Algumas comunidades de Velhos Crentes preferiam ser queimadas vivas a se converterem a uma nova fé, pois a auto-imolação, como acreditavam, levava diretamente à salvação da alma (Semikopov, 2021).

Os Velhos Crentes, dispersos por todo o mundo, hoje em dia vivem em cinco continentes e em 20 diferentes países. Na América do Sul existem colônias de Velhos Crentes na Argentina, Bolívia, Uruguai e Brasil. Hoje, apenas no Brasil, no Uruguai e na Bolívia residem cerca de cinco mil russos seguidores da fé antiga (Krilov, 2018).

Na Rússia antes da Revolução de 1917 viviam cerca de 20 milhões de Velhos Crentes. No período do abrandamento do regime, depois de 1905, em que o Czar Nicolau II publicou o decreto de tolerância religiosa, os Velhos Crentes deram um grande impulso ao desenvolvimento industrial da Rússia, sendo que as famílias de comerciantes da velha fé eram de reconhecida idoneidade e riqueza. Atualmente, na Rússia residem de 400 000 a 700 000 Velhos Crentes de várias vertentes (Rovnova, 2018).

Os Velhos Crentes, dispersos por todo o mundo, vivem em cinco continentes e em 20 diferentes países, incluindo Estônia, Letônia, Lituânia, Ucrânia, Moldova, Cazaquistão, Romênia, Polônia, Bulgária, Estados Unidas da América (EUA), Austrália e Canadá. Na América do Sul há colônias de Velhos Crentes na Argentina, Bolívia, Uruguai e Brasil. Hoje, apenas no Brasil, no Uruguai e na Bolívia residem cerca de 5 000 russos seguidores da fé antiga (Krilov, 2018).

 

3. História da emigração

Perseguidos desde o século XVII, os Velhos Crentes foram-se afastando cada vez mais a partir da região central da Rússia para o Leste, para as regiões em que o poder do Estado era mais fraco (Yukhimenko, 2012, pp. 22-23), até que, após as Revoluções de 1917, nos finais dos anos 20, muitos se instalaram em Harbin, na China.

 

3.1. Harbin

No final do século XIX, o governo imperial da Rússia estendeu a Ferrovia Transiberiana que ligaria Moscovo e Pequim com 6 500 quilômetros de trilhos, até Vladivostok. Com o intuito de um traçado mais racional, o governo czarista entrou em acordo com o governo chinês que permitiu que a ferrovia passasse pelo território desse país, pela Manchúria. Harbin, a principal cidade da Ferrovia Oriental da China, foi construída de 1897 a 1902 pelos russos no território chinês e durante 25 anos após a revolução permaneceu uma típica cidade provinciana russa (100 000 russos do total de 430 261 habitantes, em 1920), em que diversas religiões conviviam sem preconceitos. Os Velhos Crentes permaneceram lá por aproximadamente 25 anos.

Procuravam conservar seus costumes milenares, desde os tempos de Bizâncio e da Antiga Rússia Czarista.

No entanto, com o advento da Revolução Chinesa de 1949, a situação alterou-se, pois o novo governo comunista chinês exigiu a saída dos estrangeiros do país (Fatuch Rabinowitz, 2008, pp. 24-26). Na segunda metade da década de 1950, os russos foram postos diante do dilema: regressar à URSS ou deixar a China. Devido às cotas nacionais, os principais destinos para reassentamento desses migrantes eram países da América do Sul e a Austrália.

Alegando perseguições do exêrcito chinês, em 1953 alguns Velhos Crentes escreveram para o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados, solicitando ajuda no sentido de emigrarem para qualquer país livre. A partir de 1953 seguiram para o porto livre de Hongkong, onde alguns conseguiram asilo político. Outros foram para as Filipinas e, daí, para os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Brasil (Fatuch Rabinowitz, 2006, p. 26). O Brasil foi o primeiro país a conceder-lhes vistos e por isso recebeu a maioria dos migrantes.

O maior fluxo de Velhos Crentes residentes na China foi registado em 1957-1958. Esses fatos marcaram o encerramento dos três principais ciclos migratórios de russos para o Brasil (Vorobieff, 2006, p. 25).

A emigração russa para o Brasil foi direcionada principalmente aos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e à Região Sudeste. A União realizava uma ampla campanha de propaganda, principalmente nos países europeus, assinalando os incentivos e vantagens para os imigrantes com o objetivo de implementar programas de colonização em áreas pouco povoadas (Vorobieff, 2006, pp. 25-36).

Os indivíduos de origem russa representavam um contingente oportuno para o governo brasileiro. Os Velhos Crentes eram conhecidos como pessoas laboriosas, pacíficas e responsáveis, agricultores e lavradores que não temiam as adversidades da vida. Para os funcionários de imigração, suas comunidades representavam só um problema: não queriam se separar. A comunidade podia ser transportada e alojada só na íntegra (Ruseishvili, 2018, p. 18).

Como os Velhos Crentes imigraram nos anos 1950, eles conseguiram escapar à política de nacionalização do Estado Novo (1937-1945) promovida por Getúlio Vargas com o intuito de converter todos os imigrantes em cidadãos brasileiros, com a expectativa de que pudessem se aculturar no que o Brasil tinha para oferecer e esquecer, deste modo, sua história, pátria e nação de origem (Iachinski Mendes, 2019, p. 276; Petrova, 2020, p. 116). Assim eles conseguiram preservar sua religião, língua e tradições, construindo casas de oração, habitação e escolas.

Hoje em dia no Brasil existem a Colônia Russa de Primavera de Leste (Mato Grosso, a 241 km de Cuiabá), uma comunidade no município Rio Verde (Goiás), e uma no Paraná (Colônia Santa Cruz).


 

4. Costumes

A comunidade é constituída por algumas famílias, no seio das quais são conservados os princípios patriarcais da sociedade russa do século XIX: os homens ganham a vida e mantêm relações com o mundo externo, as mulheres cuidam de casa e de animais domésticos, assam o pão, costuram os sarafans (vestidos compridos) para suas filhas e camisas para os homens, bordam os cintos. Elas são guardiãs da língua materna que transmitem a seus filhos (Pivovarov, 2020).

No dia a dia, o morador geralmente traja as vestimentas típicas da comunidade. Para o homem, são a calça, camisa colorida e um cinto de pano na cintura para separar seus “dois corpos” e a proibição de se barbear. E a mulher usa seu sarafan e os cabelos cobertos com o lenço (Antonelli, 2018).

Os Velhos Crentes não compram os alimentos nas lojas, cultivando o que consomem, só podem tomar bebidas alcoólicas fabricadas em casa, nunca compartilham a louça com forasteiros, usam roupas costuradas e cintos bordados por suas mulheres.

No entanto, a interferência de duas culturas existe: no Paraná, as famílias brasileiras passaram a comer requiejão, varéniki (ravióis com requeijão), smetana (natas ácidas), enquanto os Velhos Crentes cozinham feijoada e comem pão de arroz.

A aldeia ideal dos Velhos Crentes deve ser isolada dos leigos: para manter suas tradições, proteger os filhos dos vícios e seduções da civilização, eles escolhem as terras mais distantes de cidades e civilização. O aparecimento de bêbados, toxicodependentes, ateus nas proximidades da comunidade obriga os Velhos Crentes a deixarem tudo e mudarem-se para o interior.

Desbravam terras, fertilizam-nas, constróem casas, plantam hortas e pomares, pescam e não dependem dos bens da civilização. A televisão é proibida, exceto os casos em que ela serve para os fins educativos (por exemplo, desenhos animados em russo que servem de material didático para o estudo do russo), mas em todas as casas há Internet que permite comunicar com os parentes nem que estejam noutro país ou noutro continente.

Os familiares não podem se casar entre si até à sétima geração: os Velhos Crentes conhecem muito bem a genealogia da família e não permitem os matrimónios entre parentes. Escolhem os noivos e as noivas para seus filhos em colônias distantes no Uruguai, Argentina, Bolívia, Chile, EUA e Austrália (Matveichev, 2019).

Os matrimônios são duradouros, embora não sejam oficiais. As mulheres casam-se cedo, aos 14-16 anos. A separação é permitida, após muitos entraves e dificuldades. As famílias têm de 10 a 14 filhos. Desta forma, várias colônias de Velhos Crentes em todo o mundo estão ligadas pelos laços de parentesco. Os filhos crescem sadios, trabalhadores e respeitosos.

Quando um confrade se encontra numa situação difícil, seus correligionários devem vir em sua ajuda, mesmo que não o conheçam pessoalmente.

Na América Latina, as crianças frequentam a escola pública onde aprendem a ler e a escrever, estudam português ou espanhol. Mas a tradição manda que para a aldeia seja convidado um professor correligionário. É através da escola russa que são transmitidas tradições antigas: os Velhos Crentes ensinam as crianças a ler os livros sagrados no antigo eslavo eclesiástico; aprendem o alfabeto russo antigo; as crianças cantam os hinos religiosos segundo os “ganchos”, sistema antigo de notação musical. Na maioria dos casos, a instrução das crianças não vai além da escola primária, porque os Velhos Crentes consideram que os quarto anos de escolaridade primária são suficientes para lavrar a terra.

Assim, as crianças permanecem sempre na aldeia em que só se fala russo. As mulheres são guardiãs da língua materna, enquanto os homens a perdem muito mais depressa, já que estão envolvidos nas atividades econômicas da nova pátria (Kobko & Kerchelaeva, 2012).

 

5. Como é a língua russa dos Velhos Crentes na América Latina?

O dialeto dos Velhos Crentes é a língua dialetal falada na Rússia no século XIX, na região de Nizhniy Nóvgorod. Nas suas colônias, os Velhos Crentes mantêm um russo fluente: a quarta geração de imigrantes fala um russo castiço, sem sotaque, mas não é uma língua padronizada. Distante da pátria, ela desenvolve-se, mas segue outro caminho.

Para pesquisar as particularidades do dialeto dos Velhos Crentes, apoiei-me nas memórias de Danila Zaitstev, “O Conto e a Vida de Danila Terentievitch Zaitsev (2015). Danila estudou na escola apenas quatro anos e escreveu seu manuscrito volumoso de 700 páginas em letras de imprensa, foneticamente, tal como as palavras se pronunciam, sem intervalos nem sinais de pontuação. As memórias de Danila Zaitsev representam uma fonte inédita para estudos dialetológicos, na medida em que os dialetos existem só na forma coloquial. A pesquisadora russa Olga Rovnova, presidente da Comissão de Pesquisa de Ritualismo Antigo junto do Comité Internacional de Eslavistas, levou três anos a reescrever o livro conforme a grafia existente, comentando o texto de Danila Zaitsev e compondo um glossário publicado no fim do livro. Ela dedicou múltiplos estudos à pronúncia e ao vocabulário dos Velhos Crentes no mundo e na América Latina (Rovnova, 2014, 2018; Makeiev, 2018).

A pesquisadora observa que os Velhos Crentes são poliglotas involuntários: aprendem facilmente as línguas majoritárias do país de residência, mas a regra rigorosa prescreve que em casa só se fale russo. Os mais idosos que chegaram da China nos finais dos anos 50 afirmam que até agora sabem falar chinês. Os Velhos Ritualistas são verdadeiros nômades: trocam facilmente de país, deixando todos seus pertences e recomeçando a vida a partir de zero. Como testemunha Danila Zaitsev, sua família, com 11 filhos, se tinha mudado mais de 60 vezes, trocando de país à procura da Terra Prometida.

 

5.1. Arcaísmos: No dialeto dos Velhos Crentes são frequentemente usadas as palavras arcaicas: a palavra obsoleta куфайкa (casaco de lã feminino) quer dizer “suéter”, ледник (cave com gelo) – “geladeira”; пытать (torturar) – “perguntar”; опростай наш дом (esvazia nossa casa) significa “abandona a nossa casa”.

 

5.2. Neologismos: As palavras existentes são adaptadas para a nova realidade. Em vez de adotar um neologismo estrangeiro, cria-se, segundo os modelos existentes de formação de palavras, uma palavra nova: ухажерка (de ухаживать, namorar, cortejar) é amante, на бесовских копытчикав – (сom cascos demoníacos) – com saltos altos. Os desenhos animados chamam-se поскакушки, de скакать, pular; a professora escolar é классница, da classe.

 

5.3. As palavras estrangeiras são transformadas segundo os modelos morfológicos russos: пошел потелефонил Филату – fui telefonar ao Filat (correto: пошел позвонил Филату); мексиканин – mexicano (correto: мексиканец); масонин – maçom (correto: масон).

Os vocábulos estrangeiros que não se declinam no russo padrão, no dialeto são declinados e têm uma flexão: ходили в кинах - íamos ao cinema (correto: ходили в кино); 30 000 крузейров в месяц - 30 000 cruzeiros por mês (correto: 30 000 крузейро в месяц); гринги забили весь рынок - os gringos abarrotaram todo o mercado (correto: гринго забили весь рынок).

No processo de adaptação de estrangeirismos acontece:

- a mudança do gênero: вовнутрь жунгли – dentro da selva (джунгли em russo são do masculino plural e no dialeto, do feminino singular); хорошую фильму пропускают – perdem um bom filme (фильм é do masculino, enquanto no dialeto é do femininо);

- da forma morfológica do substantivo: банок стал притеснять – o banco passou a oprimir (a forma correta é банк);

- ou do número: в бизнесах – nos negócios (correto: в бизнесе); привезли продуктуtrouxeram os produtos (correto: продукты).

 

5.4. Mudanças semânticas: As palavras dialetais que se encontram também no russo padrão têm no dialeto outro significado.

 

Tabela 1. Significado das palavras dialetais no dialeto e na língua padrão russa

PALAVRA DIALETAL

SIGNIFICADO NO                       DIALETO

SIGNIFICADO  NA LÍNGUA PADRÃO

прошшаться

pedir desculpa

despedir-se

доказывать

manifestar insatisfação

provar

схватывать

ter náuseas, vomitar

apanhar, pegar

базар

loja

mercado

поганый

pessoa de classe baixa

imundo

простой

vazio

simples

тихий

lento

quieto

крутой

rápido

muito bom, legal

 

5.5. Nas formas dos substantivos e verbos, observam-se:

- fenômenos da etimologia popular: надсмешки; не кланься; загрань паспорт; ушел к бактистам; телевидер; это долговидный ехекутив;

- e outros irregularidades gramaticais e lexicais próprias da língua popular: самоделашна лодка; обои деревни; я и ответю; яйцы; с нём не рыбачу; сумленье; праздник помидоры; я её сполюбил; оне взамужем; россиец (emigrante russo); доложны свенчаться; садят в тюрмы; что хочут творят; я был не нужон; в чем вам помогчи?

 

5.6. A interferência da língua majoritária:

5.6.1. Enquanto Danila Zaitsev está no Brasil, aparecem os vocábulos emprestados na língua majoritária que designam a flora, a fauna e a realidade típica do país: разносветны арары, пирикиты, туканы, всяки-разны макаки и онсы – araras, piriquitos, tucanos de todas as cores, macacos e onças; подходит крупная рыба: пинтаду, суруби, жау, пири-путанга, пирарара, корвина, пиява, куримбаchega o peixe grande: pintado, surubim, jaú, piri-putanga, pirarara, corvina, piava, curimba). В мату залезла кака-то насекома – no mato peguei um inseto; насыпал йерба матеdeitei erva mate; задел тюмор появился рак – roçou um tumor, apareceu o câncer; посто Примавера-до-Лестеposto de gasolina Primavera do Leste; поехали в телефонку бразильску – fomos ao posto telefônico brasileiro, артифисьяльно помогли рыбе – ajudaram artificialmente o peixe; у них агенда ежегодна – têm uma agenda anual; разные бодеги показывать – mostrar várias bodegas; приедет комитиваvai aparecer a comitiva; две лоты, и строят дом – dois lotes e constroem a casa.

5.6.2. Na Bolívia, Argentina ou Peru na fala de Danila Zaitsev aparecem hispanismos, embora em russo existam palavras correspondentes: купили чакру с фруктойcompramos uma fazenda (esp. chacra) com árvores frutíferas (esp. fruta); заходим в инмобилярия – entramos na agência imobiliária (esp. agencia inmobiliaria); на реке трансбордадéрno rio há um ferry-boat (esp. transbordador); испанский виррейo vice-rei (esp. virrey) espanhol; чиленски мужчины считаются мачисто – os homens chilenos se consideram machistas; стансер заявилo fazendeiro (esp. estanciero) declarou; познакомились с однем сьентификом русскимconhecemos um cientista (esp. científico) russo; знак преференции былhavia sinal de preferência; на каждом порту даем вьятик - em cada porto pagamos o viático; хороша експириéнсque boa experiência; oчень много депредаторов – tem muitas feras (esp. depredador); знаменитый видентеum vidente famoso; 4 часа за сексыю4 horas por uma aula (esp. sección).

5.6.3. Enquanto Danila está nos EUA, em sua fala aparecem anglicismos: ходили по казинамfrequentávamos os casinos; полицмен тут как тут – aqui está o policial (ing. policeman); чтобы пообивали сайдингомpara revestir com o siding. Na denominação do tempo, surge: до 14.00 п.мaté as duas horas p. m.

5.6.4. Na Rússia também surgem palavras trazidas da América Latina que designam os conceitos novos cuja denominação em russo Danila Zaitsev ignora: это долговидный ехекутив – é um executivo (esp. ejecutivo) previdente; в Белгороде есть панкартыem Belgorod há cartazes (esp. pancartas); ишо бы добавить божество да приват – falta adicionar a fé e a propriedade privada.

5.6.5. No seu livro, Danila usa comummente as palavras que se encontram em russo, mas têm um significado diferente, isto é, os chamados falsos amigos: твой компромисс немалый – o teu compromisso grande (компромисс em russo só admite o significado de cedência); профессóр – mestre, professor escolar (enquanto em russo профессор significa “catedrático”, “professor titular”); на кажду материю разна тетрадьpara cada matéria, seu caderno (материя em russo significa “área, domínio, esfera” ou “tecido”); вас устраивают номераconvêm-lhe os números? (o russo padrão admite só “convêm-lhe as cifras?”, вас устраивают цифры?)

5.6.6. Na sintaxe, podemos observar construções tipicamente românicas: беру автобус – pego o ônibus (enquanto em russo só é possível *sento-me no ônibus, сажусь в автобус); я думал, что вы знаете рыбачить – pensei que soubessem pescar (em russo знать nunca significa “saber fazer”, уметь. Correto: я думал, что вы умеете рыбачить).

5.7. As características essenciais da fala dos Velhos Crentes. Como se pode observar, o dialeto dos Velhos Crentes possui os traços gerais das línguas “ilhoas”: são a conservação de arcaísmos; neologismos formados segundo seus próprios modelos morfológicos; mudanças semânticas de muitos lexemas; surgimento de inovações lexicais e gramaticais; empréstimo ativo do vocabulário espanhol e português e a adaptação dele.

 

6. Programa de reassentamento

A situação demográfica na Rússia piora: em 1º de janeiro de 2020, a população na Rússia era de 146,74 milhões de pessoas. Pelo segundo ano consecutivo, está em declínio: em 2018 diminuiu quase 100 mil pessoas em relação ao ano anterior e em 2019 - 35,6 mil, segundo dados da Rosstat, Serviço Federal da estatística estatal. De acordo com sua previsão mais realista, em 2036 a população do país será reduzida para 143 milhões de pessoas, e na pior das hipóteses, para 134,38 milhões (Riazanova, 2020).

No contexto do agravamento da situação demográfica o governo russo quer povoar a região mais inóspita do país, o Extremo Oriente russo, de onde os Velhos Crentes migraram para a China. A política demográfica aprovada pelo governo para o Extremo Oriente russo até 2025 prevê a criação de condições e incentivos adicionais para o reassentamento de compatriotas que vivem no exterior, incluindo os Velhos Crentes, que podem desta feita voltar à região para a residência permanente (Reassentamento dos compatriotas).

Neste projeto de colonização do Extremo Oriente russo, os Velhos Crentes são os melhores candidatos: embora os mais velhos deles tivessem nascido na China e nunca conhecessem a terra natal, os Velhos Crentes chamam a Rússia de Pátria Mãe e sonham em retornar às suas origens.

A agência governamental de desenvolvimento do capital humano do Extremo Oriente russo efetuou várias visitas ao Brasil, Bolívia, Uruguai e Argentina para incentivar as comunidades locais de Velhos Crentes a retornar à sua pátria histórica: o leste da Rússia (Krilov, 2018).

Além disso, desde 2016 existe o programa do Governo russo “Hectare no Extremo Oriente” que permite a qualquer cidadão do país obter gratuitamente um hectare de terra na região (Chesnokova, 2017). Tendo uma família de 11-15 pessoas, essa área já pode ser considerada sustentável. No entanto, na América Latina muitos Velhos Crentes possuíam centenas de hectares que cultivavam.

O processo de reassentamento dos Velhos Crentes está no foco da atenção dos média que observam que ele desacelerou devido à pandemia e algumas notícias desfavoráveis que chegam às comunidades da América Latina. O programa de reassentamento precisa de melhorias sérias: não leva em consideração as especificidades, tradições do modo de vida dos Velhos Crentes, seu nível de alfabetização, oportunidades profissionais e preferência por se estabelecer em lugares isolados. Os colonos não possuem conhecimentos jurídicos nem documentos necessários, enfrentando por isso na Rússia infinitas formalidades burocráticas (Vozvrashcheniye staroverov”, 2017; Makarova, 2017).

No entanto, os membros da comunidade não desesperam e continuam a trabalhar. Em Primôrie, os Velhos Crentes fixaram-se principalmente nas aldeias de Dersu, no distrito de Krasnoarmeiskii e Liubitovka, no distrito de Dalnerechenski, bem como na comunidade perto da cidade de Svobodnyi na região de Amur. Eles usam mais de 7 mil hectares de terra. No novo local, nasceram mais de 30 bebês, foram criadas dez novas famílias (Ekspert, 2020).

Desta feita, os descendentes dos Velhos Crentes que chegam à Rússia atual completaram um périplo ao redor do mundo, retornando à região, de onde, após a revolução de 1917, começou a emigração dos seus antepassados.

 

7. Conclusão

Como se pode observar, os Velhos Crentes que se mudaram da Rússia Central para Primôrie, de Primôrie para a China e de lá nos anos 50 do século XX para a América Latina, têm mantido sua identidade linguística por quatro gerações, devido, em grande parte, ao hermetismo da comunidade, à existência em cada comunidade de escola própria, bem como ao papel especial das mulheres que, ficando em casa e fazendo os afazeres domésticos, preservam a pureza da língua russa, transmitindo-a aos filhos. No dialeto dos Velhos Crentes foram conservadas as características linguísticas arcaicas e as mudanças semânticas no significado das palavras. No entanto, ao mesmo tempo, ele destaca-se por inovações lexicais para denotar novos conceitos da vida moderna, pelo empréstimo ativo do vocabulário espanhol e português e sua adaptação, bem como pela formação de palavras segundo seus próprios modelos.

 

 

Referências

 

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