NARRATIVAS EM VÍDEO: POSSIBILIDADES DISCURSIVAS NO ÂMBITO DA AÇÃO EXTENSIONISTA PEQUENOS DO MUNDO
Nathalia Ribeiro Tsiflidis
nathaliatsiflidis@tutanota.com
Curso de Letras Português,
Universidade Federal do Paraná
Brasil
RESUMO
Neste trabalho, serão levantadas questões concernentes ao uso do vídeo como recurso no trabalho com crianças migrantes no âmbito do Pequenos do Mundo, ação extensionista vinculada ao projeto de extensão Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH) da Universidade Federal do Paraná. Resgatando a inserção do vídeo na ação a partir de relatos que a documentam e o percurso desta mídia dentro do projeto, serão expostas algumas possibilidades narrativas do vídeo no trabalho virtual, ilustradas a partir das vídeo-histórias feitas pela equipe durante os anos de 2020 e 2021.
Palavras-chave: migração; infância; vídeo; extensão universitária.
VIDEO NARRATIVES: DISCOURSE POSSIBILITIES IN THE SCOPE OF THE EXTENSIONIST ACTION PEQUENOS DO MUNDO
ABSTRACT
This paper intends to raise issues concerning the video as a resource in the work with migrant children in the context of Pequenos do Mundo, an extension action linked to Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), a project of the Federal University of Paraná (UFPR). Based on reports that document the video insertion in the action and recovering them, this paper wil unfold the narrative possibilities of the video in virtual work, based on the video-stories made by the team during the years 2020 and 2021.
Keywords: migration; childhood, video; university extension.
A Universidade do Migrante
A Universidade do Migrante acontece todos os sábados letivos e é o espaço onde muitos núcleos migrantes de Curitiba e região metropolitana se encontram e se sentem incluídos e ouvidos: sujeitos, portanto. Criado com o intuito de suprir a barreira da língua, em 2013 o projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), vinculado à Universidade Federal do Paraná (UFPR), teve seus primeiros contornos. Com expansão rápida, o PBMIH também incorporava e ofertava outras formações além da linguística. O público de estudantes do projeto também se diversificou em nacionalidade e gênero: a crescente presença de mulheres nas salas de aulas foi acompanhada de um abandono dos estudos por elas – a necessidade de cuidar de seus filhos as afastavam das aulas. Para atender a essa demanda específica, se fez uma ação para trabalhar com essas crianças migrantes durante as aulas de Português Brasileiro (PB) em pareceria com o curso de Psicologia1.
Os Pequenos do Mundo
A turma das crianças aberta em 2017 foi desde o princípio um espaço que permitia as mulheres cuidadoras assistirem às aulas. Em 2018, com a necessidade de refinar a proposta das atividades, iniciamos a estruturação da sala das crianças como uma ação no PBMIH, com objetivos e diretrizes específicas. Rebatizando a sala para Pequenos do Mundo, à luz da Psicologia Histórico-Cultural foi elaborado o papel da ação para que as crianças ganhassem um espaço próprio, que olhasse para suas necessidades e especificidades, propiciando também a elas um acolhimento apropriado2. Toda a metodologia dos Pequenos é baseada no desenvolvimento infantil a partir do uso da arte, dando ênfase à literária por meio de contações de histórias, essenciais no processo de continuação da alfabetização e letramento.
A inserção do vídeo no Pequenos do Mundo
Em 2019, a equipe do Pequenos havia identificado a necessidade de registros das crianças e das atividades, função que passei a desempenhar a partir desse ano. Uma vez em uma sala com 20 crianças e uma câmera na mão, a demanda por meros registros era suprida, mas não havia uma função específica tampouco uma intencionalidade neles. Desde o primeiro encontro, a curiosidade pela câmera chamou a atenção dos pequenos e todos tinham um modo de performar para a câmera: seja posando quando a lente apontasse para onde estava; seja buscando a lente, se movimentando pelo espaço para encontrá-la; ou, inclusive, se escondendo das lentes de forma brincante. A vontade de interação com a câmera também extrapolava o ato de serem registradas, e a câmera podia ser incorporada e ter seu efeito potencializado no trabalho com a equipe. Assim, a partir da história O pintinho ruivo de raiva3 a fotografia e a fotógrafa foram apresentadas às crianças.
Atentando a essa assimilação dos registros audiovisuais pelo Pequenos (e pelos pequenos), no encerramento de 2019 usamos o vídeo em uma apresentação para ilustrar nossas ações, recontando a rotina dos sábados. Em um auditório com estudantes, professoras, extensionistas e crianças, presenciamos a afetividade transformada em imagem: as crianças, sentadas na frente, olhavam atentas para a projeção, se animavam, se reconheciam e se apontavam. Utilizando os registros do ano e os relatos de cada criança, criamos um livro de memórias com o um QR Code do vídeo, direcionando a um link privado no YouTube4.
Propostas (e atravessamentos de uma pandemia)
A partir das atividades de 2019, em 2020 desejamos continuar as atividades com vídeos e fotografias, com planejamento e intencionalidade claros. Com essas motivações, no começo de 2020 planejamos oficinas de vídeos com as crianças, onde permitiríamos que elas se filmassem e criassem suas histórias, com instruções prévias para estimular tanto a apropriação do formato do vídeo, quanto para manipular uma câmera. O que escapou desse planejamento foi uma pandemia suspendendo atividades mundo afora.
Ainda no momento de choque, nos reunimos virtualmente, repensando e nos reorganizando enquanto grupo. O período entre março e maio de 2020 era bastante confuso para todo mundo, e pessoas em contexto migratório poderiam ter várias outras dificuldades, inclusive pela barreira linguística. Seguindo o propósito de manutenção de vínculos, dentro do âmbito do Pequenos criamos um grupo de WhatsApp para circular materiais informativos. Posteriormente, vimos na contação de histórias um caminho para transpormos ao meio virtual nossas atividades, usando o vídeo como suporte.
O vídeo como suporte5
Como arte, o cinema e o vídeo têm sua linguagem própria, com questões de iluminação, ordenação de objetos, sons que permeiam imagens e distribuição de tempo. Seus modos de produção permitem efeitos particulares e também a assimilação de outras artes, e ainda que estas sejam questões fundantes, nos interessa o uso desses efeitos no trabalho com crianças migrantes. Logo, é a este propósito que esse trabalho se dedica.
As reverberações socioculturais que narrativas podem ter são imensas. Há, na escolha e na produção de nossas vídeo-histórias, um ato dialógico implícito6: ao pensarmos em nossas ações, planejamos sua intencionalidade7, considerando quem são os sujeitos que nos ouvirão. A todo momento consideramos a comunidade com a qual trabalhamos e a partir disso pensamos qual história seria adequada para compartilhar com ela e que demandas essa comunidade tem de nós. Essas escolhas se baseiam no princípio central de promover o desenvolvimento infantil, onde está entendido o pensamento crítico, a ampliação da consciência sobre a realidade e o desenvolvimento de funções psicológicas e interesses.
Metodologia da produção dos vídeos
Durante as reuniões semanais, desenhamos um Grupo de Trabalho (GT) dos vídeos, responsável por criar um cronograma para o envio e produção dos vídeos e distribuir as tarefas entre a equipe. O GT dos vídeos era composto por um profissional formado em Artes Cênicas, que direcionava os métodos de contação e propunha dinâmicas de gravação em cada vídeo; eu, extensionista de Letras, responsável pela edição dos materiais recebidos e pela orientação técnica nas gravações; e mais três extensionistas de Psicologia, que auxiliavam na criação de organização do cronograma e na orientação da produção. A este grupo fixo, somava-se outro membro do Pequenos responsável pela contação a cada mês, que fazia a escolha da história, a preparação dos recursos para a contação e a gravação dos vídeos.
Neste GT, o trabalho começava com a pré-produção, escolhendo a história a ser contada a partir de alguns critérios, como histórias que retratassem o cotidiano das crianças, fossem importantes dentro de um cânone ou que não tivessem um fundo moralizante; depois, pensamos em como essa história será contada e quais recursos serão utilizados. Estes são pensados a partir do método de contação escolhido; caso seja uma contação com manipulação de objetos, escolhemos quais serão utilizados: brinquedos, esculturas pequenas, panos e tecidos, utensílios de cozinha ou materiais de papelaria. Essa escolha depende dos recursos que a contadora já dispõe ou tem a possibilidade de produzir.
Depois, na gravação em si, a equipe prepara os materiais que serão utilizados na contação e recebem orientação técnica. Primeiro, escolhemos um local de gravação onde seja possível instalar o cenário, tenha uma luz contínua (natural ou não) e um silêncio razoável para a captação de áudio quando é o caso e onde a contadora possa instalar a si e a câmera para gravar e regravar as cenas pelo tempo necessário. Depois, discutimos o enquadramento optando por uma disposição vertical ou horizontal; a maioria das histórias foi feita na horizontal, preservando um quadro mais tradicional de vídeos. Os poucos vídeos gravados na vertical se aproximavam de uma narrativa mais contemporânea, dialogando com o quadro de smartphones, simulando vídeos de “vlogueiros”, como no vídeo Aprendizados da pandemia, onde simulamos uma videochamada entre a equipe contando sobre habilidades e conhecimentos desenvolvidos no ano anterior.
Ainda sobre a captação de áudio, se a narração fosse gravada junto com a história, sempre que possível a contadora usaria um gravador só para a voz. No geral, se usava um celular para a gravação do vídeo e outro para a voz. Para que se gravasse os vídeos na melhor resolução possível, instruções específicas eram enviadas de acordo com as configurações do modelo de celular. E, por fim, instruções para a organização dos arquivos antes de serem enviados para a edição, nomeando-os com a indicação da cena e do take. Essas orientações diferem em cada vídeo, uma vez que partem do material e dispositivo utilizados.
Uma vez na edição, os arquivos recebidos são assistidos, decupados e editados. Primeiro, os arquivos são assistidos na íntegra para avaliar a qualidade e a necessidade de cada trecho na montagem final. O processo de assistir aos vídeos se confunde com o processo da decupagem, onde os vídeos que serão utilizados são escolhidos e divididos por cenas para facilitar o acesso a cada arquivo no software de edição. Não necessariamente todos os vídeos gravados são utilizados, muito menos na ordem original de suas gravações, pois há alguns critérios para o produto final, como, por exemplo, a duração do vídeo, preferencialmente de até seis minutos, no máximo dez; em histórias muito grandes, algumas partes da história são cortadas, considerando que não dispomos de elementos técnicos que captem a atenção de crianças de diferentes idades por muito tempo como a animação; ainda assim, prezamos por uma inteligibilidade integral da versão final da história que enviamos às crianças.
Com os vídeos escolhidos e organizados no software, monto o primeiro sequenciamento da história, justapondo os vídeos para recriar a ordem da história. Com a primeira montagem feita, assisto ao resultado e avalio o que pode ser feito em termos de efeitos de transição, trilha sonora e inserção de elementos visuais e sonoros para facilitar a compreensão da história e deixá-la mais dinâmica. A escolha dos takes que compõem o vídeo final entra no âmbito na criação artística: além das orientações do diretor artístico e das escolhas operadas pela contadora, há também um lugar de autoria na releitura e reconstrução dessas narrativas a partir do meu olhar técnico e de minha subjetividade artístico-pedagógica.
A edição também compreende a legendagem do vídeo, a fim de auxiliar na compreensão da história e na assimilação do PB, tanto para crianças quanto para os pais em fase de alfabetização em PB, dado que não atuamos apenas com as crianças e é importante que as famílias acessem o conteúdo das histórias. A legendagem respeita o conteúdo oral, não corrigindo abreviações ou excluindo maneirismos linguísticos em busca de um registro formal da língua, que seria inclusive artificial neste contexto; do contrário, as legendas buscam o registro cotidiano da língua que efetivamente usamos. Com o vídeo pronto, postamos no YouTube, acompanhado de um pequeno texto e dos créditos da equipe. O link para a história é sempre enviado no grupo no WhatsApp, algumas vezes acompanhado de vídeos auxiliares com algum recado ou convite para assistirem à história e, caso possível, compartilharem com o que acharam. Estes são enviados apenas pelo WhatsApp e são curtos, dado que são legendados e não podem extrapolar 65MB, limite da própria plataforma.
Vídeos produzidos entre abril e dezembro de 2020
Na esteira das primeiras experiências com os vídeos, definimos em 2020 que usaríamos datas comemorativas como uma referência para a escolha da história contada a cada mês, o que não exigia, no entanto, que as histórias fossem exclusivamente pautadas a partir disso. Abaixo, temos uma descrição de cada vídeo produzido em 2020.
Quadro 1: Vídeos produzidos entre março e dezembro de 2020
Data/Vídeo |
Plataforma |
Objetivos |
Método de contação |
Contadora |
27/Abr/20 - Vídeo-carta para os pequenos do mundo |
YouTube |
Retomar contato com as famílias e testar o alcance dos vídeos para realizar atividades futuras |
Gravação direta de membros da equipe |
Extensionistas e professoras orientadoras do Pequenos do Mundo |
21/jun/20 - Obax (André Neves, 2010) |
YouTube |
Celebrar a criatividade e imaginação |
Manipulação de objetos |
Ana Paula Romani, Maria Gabriel, Victória Klepa, Luísa Lima, Nathalia Tsiflidis |
23/jul/20 - Assim, Assado (Eva Furnari, 2004) |
YouTube |
Apresentar personagens diferentes e celebrar as diferenças |
Interpretação de personagens |
Graziela Lucchesi |
10/ago/20 - Tereza de Benguela (Jarid Arraes, 2019) |
YouTube |
Celebrar a memória de Tereza de Benguela em comemoração à data do Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha (25/jul) |
Contação direta com manipulação de objetos |
Victória Klepa |
22/ago/20 - Barquinho de papel |
YouTube |
Estimular a prática de uma atividade em casa; ensinar as crianças a fazerem dobraduras de papel |
Tutorial de Origami |
Ana Paula Romani e Maria Gabriel |
04/set/20 - A árvore generosa (Shel Silverstein, 2017) |
YouTube |
Estimular a consciência a respeito do meio ambiente em comemoração ao Dia da Árvore (21/ago) |
Contação direta com manipulação de objetos |
Luana Lubke |
26/set/20 - Flicts (Ziraldo, 2014) |
YouTube |
Estimular a celebração de características únicas |
Contação direta com manipulação de objetos |
Maria Beatriz Alverne de Maia Souza |
10/out/20 - Marcelo, Marmelo, Martelo (Ruth Rocha, 1986) |
YouTube |
Estimular pensamento crítico sobre palavras e seus significados |
Interpretação de personagens |
Sunny Osman |
31/out/20 - Dia das Crianças |
YouTube |
Comemorar o dia da criança e estimular a pintura de desenhos enviados |
Gravação de pinturas feita pela equipe |
Extensionistas e professoras orientadoras do Pequenos do Mundo |
15/nov/20 - Pequeno Pode Tudo (Pedro Bandeira, 1995) |
YouTube |
Comemorar o Dia Nacional do Livro (29/10) |
Contação direta com manipulação de objetos |
Luísa Lima |
20/nov/20 - Amoras (Emicida, 2018) |
YouTube |
Celebrar o Dia da Consciência Negra (20/11) |
Teatro lambe-lambe |
Ana Paula Romani |
19/dez/20 - Vídeo-Carta de fim de ano |
YouTube |
Encerramento das atividades em 2020 e projeção para o ano seguinte |
Gravação direta de membros da equipe |
Extensionistas e professoras orientadoras do Pequenos do Mundo |
Fonte: A autora (2021)
Vídeos produzidos entre maio e julho de 2021
Continuando os trabalhos virtuais em 2021, revisitamos nossos processos e ajustamos o fluxo de trabalho, realizando uma pesquisa com as famílias via WhatsApp para investigar a recepção das nossas ações em 2020, indagando também suas expectativas. Para 2021, elegemos então os países originários das famílias do Pequenos como tema, dedicando um mês para cada país com dois vídeos: um de curiosidades enviadas pelas famílias e outro com a contação de uma história daquele país, preferencialmente indicada por elas.
Quadro 2: Vídeos produzidos entre maio e julho de 2021
Data/Vídeo |
Plataforma |
Objetivos |
Método de contação |
Contadora |
01/mai/21 - Aprendizados na pandemia |
YouTube |
Compartilhar atividades aprendidas pela equipe na pandemia e convidar ao primeiro encontro virtual |
Simular uma ligação entre o Palhaço Túlio e alguns membros da equipe |
Nathan Balaguer, Luísa Lima, Amarilys Salomão e Victória Klepa |
22/mai/21 - Curiosidades Venezuela |
|
Compartilhar curiosidades sobre a Venezuela enviadas pelas famílias venezuelanas |
Leitura de texto |
Luana Lubke |
28/mai/21 - Uribí, a madrinha das palavras (María del Pilar Quintero, 2018) |
YouTube |
Apresentar uma história típica venezuelana |
Teatro de sombras |
Victória Klepa |
03/jul/21 - Curiosidades Egito |
|
Compartilhar curiosidades sobre o Egito enviadas pelas famílias egípcias |
Leitura de texto |
Thaís Watanabe |
10/jul/21 - O leão que se vestia de ovelha (Dina Elabd, 2020) |
YouTube |
Apresentar história escrita por uma autora egípcia |
Manipulação de objetos |
Sunny Osman e Graziela Lucchesi |
Fonte: A autora (2021)
Em 2021, repensamos os grupos de trabalho para as histórias: cada contação terá GTs temporários, responsáveis pela contação e por entrar em contato com as famílias, pedindo histórias e curiosidades de seu país. Com a história é escolhida, o grupo entra em contato novamente pedindo a participação das crianças na contação, por áudio desenho.
A história dentro da escolha
É preciso considerar que ainda que ofereça possibilidades narrativas únicas, o uso mais comum do vídeo em nossos trabalhos é a transposição de contação de histórias para o vídeo. Esse uso pode ser encontrado em histórias como Tereza de Benguela, A árvore generosa, Flicts, Amoras e Uribí, A madrinha das palavras. Outros vídeos incorporam recursos próprios do vídeo para a sua realização, como Obax, O leão que se vestia de ovelha, Assim, Assado, Marcelo, Marmelo, Martelo e Pequeno Pode Tudo, onde a mudança de cenários, objetos e maquiagem só é possível pela gravação de diferentes takes.
Obax e O leão que se vestia de ovelha são exemplos de contação com manipulação de objetos escolhas são interessantes. Em ambas histórias, todos os personagens e cenários são representados por objetos, que em Obax variam entre tecidos, brinquedos e utensílios de cozinha, e em O Leão que se vestia de ovelha são exclusivamente tecidos. Em Leão, o tecido amarelo que representa a menina Rana perde o laço azul da infância quando a menina cresce, e enquanto o tecido verde-escuro é escalado para o chão da casa de Rana, o verde-claro fica para a floresta, o azul-escuro para o rio e o vermelho para o pasto. Obax usa um tecido marrom para planícies e outro colorido fazendo as vezes da terra somali.
Assim, Assado também se beneficiou de recursos do vídeo. Em Assim, Assado, a montagem busca emular esquetes, gênero do teatro característico pela comicidade e por ter várias cenas de curta duração, completamente diferentes entre si. A noção de esquete vem com os efeitos de transição entre cada cena, utilizando diferentes dissoluções, zooms cruzados e aberturas em zigue-zague para introduzir um espaço novo, com um novo personagem “diferentão” e sua distinta personificação.
Outra preocupação na produção de nossas vídeo-histórias é a intenção e o estilo da própria contadora, que traz para a contação seu olhar, suas experiências e suas possibilidades. Ainda que existam orientações tanto para a partes criativa e técnica, o estilo de cada contadora é o que permite que nesses mais de 15 meses de trabalho com o vídeo tenhamos produzido contações bastante diferentes e únicas entre si.
Considerações finais
O PBMIH e o Pequenos criaram espaços de ensino e trocas culturais com os quais seus estudantes têm fortes vínculos afetivos e de pertencimento. Essa relação de confiança e credibilidade é fruto de um trabalho constante, afetivo e ativo que acontece desde 2013. Considerando um contexto de crises e incertezas, a nossa presença enquanto ação extensionista é relevante na manutenção de laços com a comunidade migrante, acolhendo suas dificuldades e, levando-as em conta, oferecendo atividades que atendam às suas necessidades. Respeitando as possibilidades e a proposta do Pequenos, encontramos no vídeo uma ferramenta para continuar nosso trabalho promovendo o desenvolvimento das crianças através da arte, que aqui reside nas histórias contadas e gravadas por nós nesse período.
Sistematizar esse conhecimento e metodologia gera a apropriação dessa teoria e consequente melhoria da prática, que segue em curso e, enquanto assim estiver, seguirá em discussão. A constante revisita ao trabalho e seu propósito ressalta a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, pilares da instituição onde trabalhamos, além de impactar minha própria formação, mais consciente das ferramentas de trabalho como agente interdisciplinar – tal como é a natureza do Pequenos, tal como foi minha própria formação.
Este trabalho se propõe a ser um recorte temporal desde o início das nossas atividades remotas até agosto de 2021, período em que foi encerrado. O que extrapolam suas linhas são as próximas atividades, que somaram em si os aprendizados das histórias contadas até aqui e o desejo de aprimorar nossa atuação.
Referências
Bakhtin, M. M. (1997). Estética da criação verbal. Martins Fontes.
Bernardet, J.-C. (1980). O que é cinema. Brasiliense.
Gabriel, M., Pereira, V. A. A. da C., Daher, C. A., & Silva, M. C. F. (2020). Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH): Ações, Reflexões e Reverberações. In J. A. P. Gediel & T. S. Friedrich (Orgs.). Movimentos, Memórias e Refúgios: Ensaios sobre as Boas Práticas da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR) na Universidade Federal do Paraná (pp. 104-111). InVerso.
Romani, A. P., Salomão, A. L., Aoto, C. A., Silva, G. L. R. da, Oliveira, L. L. de, Abreu e Lima, L. M. de, Maia, M. B. de S. A., Gabriel, M., Osman, M. O., Balaguer, N. G., Tsiflidis, N. R., Martins, T., & Klepa, V. de B. (2020). Pequenos do Mundo: resgatando trajetórias, memórias e histórias. In J. A. P. Gediel & T. S. Friedrich (Orgs.). Movimentos, Memórias e Refúgios: Ensaios sobre as Boas Práticas da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR) na Universidade Federal do Paraná (pp. 146-153). InVerso.
Sforni, M. S. de F. (2020). Aprendizagem conceitual e desenvolvimento psíquico: pesquisas sobre a organização do ensino. In S. C. Tuleski, A. de F. Franco & T. M. Calve (Orgs.), Materialismo histórico-dialético e psicologia histórico-cultural: expressões da luta de classes no interior do capitalismo (pp. 328-351). EduFatecie.
Silva, G. L. R. da, Aoto, C. A., Lubke, L., Abreu e Lima, L. M. de, Gabriel, M., Osman, M. O., Tsiflidis, N., & Klepa, V. de B. (2021). Contando histórias, resgatando memórias: arte como mediadora para o resgate de trajetórias e memórias de crianças migrantes. Revista X, 16 (2), 485-524.
Notas
1 Para detalhes e especificidades do histórico do PBMIH, ver Gabriel et al. (2020).
2 Para histórico e detalhes da estrutura do Pequenos do Mundo, ver Silva et al. (2021).
3 O pintinho ruivo de raiva (2019), de Anderson Novello, conta a história do pintinho Alonso, que ganha de Galinha Ruiva, sua mãe, um álbum de fotografias sobre sua infância.
4 Para conferir nossos trabalhos públicos, acesse: https://bit.ly/3Ap9rhY.
5 Embora fundantes das possibilidades técnicas do vídeo, não é do escopo deste trabalho articular teorias próprias do cinema. Para esta leitura, ver Bernardet (1980).
6 Segundo Bakhtin, o uso “da língua efetua-se em forma de enunciados (...) que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (2003, p. 279). Nesse sentido, para além de enunciados diretos da comunidade, também o horizonte social ao qual ela pertence é considerado na formulação de nossas atividades, buscando um diálogo ativo.
7 Intencionalidade, como entendido pela Psicologia Histórico-Cultural, é um dos princípios de um ato educativo sistematizado e planejado, que demanda o desenvolvimento de procedimentos adequados pelo educador que viabilizem a apropriação do conhecimento pelo estudante/criança. Para se aprofundar neste tema, ver Sforni (2020).