UNIFICAÇÃO DE SISTEMAS
ORTOGRÁFICOS:
O CASO DA LÍNGUA GUARANI
MBYA FALADA NO BRASIL
Martins, Marci Fileti[1]
Museu
Nacional-UFRJ
Benites, José[2]
Museu Nacional-UFRJ
RESUMO
O
sistema ortográfico proposto por Robert Dooley e por professores guarani mbya (1982/1998/2015)
é, atualmente, o sistema utilizado pela maioria dos mbya (Sul e Sudeste do
Brasil). Somente umas poucas comunidades mbya do estado do Espírito Santo
optaram por um sistema ortográfico diferenciado, o que pode estar provocando certo
conflito ortográfico. De fato, registros escritos em mbya – pedagógicos:
específicos para as escolas mbya; produções acadêmicas
(monografias/dissertações) de alunos mbya; ambientes virtuais
(Facebook/WhatsApp) – apresentam distinta formas ortográficas. Essa constatação
fomentou uma proposta para unificação do sistema ortográfico do guarani mbya
falado no Brasil. O objetivo desse artigo, assim, é refletir sobre essa proposição
fornecendo subsídios para a construção de políticas linguísticas e educacionais
para a língua guarani mbya, notadamente, para a implementação de seu sistema de
escrita, a partir da unificação do seu sistema ortográfico.
Palavras-chave: guarani
mbya, unificação de sistema ortográfico, política linguística.
PETEI RAMI NHEMBOPARAA:
NHANDE GUARANI MBYA AYVU BRASIL PY
IPARAA
MBOVY'I
Kuaxia para petei
rami ojejapo anguã régua, Robert Dooley ha’egui mbya kuery nhombo’ea
(1982/1998/2015) ha’egui anguy reve oiporua ve nhombo’ea kuery (Sul e Sudeste
do Brasil py). Xo tekoa kuery Estado do Espírito Santo pygua kuery rive ma,
oiporu nhembo pará amboae’i rami ju, há’evy ma nõi porãi rei ju nhemboparaa.
Va’eri nhombo’ea mbya kuery ma heta ve
ju petei rami ombopara va’e, nhembo’ea tekoa rupi õi va’e, ha’egui faculdade;
(Facebook/ WhatsApp) rupi guive, kova’e ojekuaa rupi ma ojejapo anguãrami petei
mba’eapo ojexauka anguã petei rami nhembopara oiko anguã rami Brasil py. Kova’e
kuaxia onhembopara va’e ma, jaikuaa porã ve anguã, petei’i rami
nhemoboparaa jareko anguã nhande mbya
kuery.
Palavras-chave:
mbya, petei rami nhembopara, ayvu régua.
UNIFICATION OF
ORTHOGRAPHIC SYSTEMS:
THE CASE OF THE GUARANI
MBYA LANGUAGE
SPOKEN IN BRAZIL
ABSTRACT
The
orthographic system proposed by Robert Dooley and by guarani mbya teachers
(1982/1998/2015) is currently the system used by the majority of the Mbya
people (South and Southeast of Brazil). Only a few mbya communities in the
state of Espírito Santo have opted for a different orthographic system, which
may be causing some orthographic conflict. In fact, records written in mbya -
pedagogical: specific to mbya schools; academic productions (monographs /
dissertations) by mbya students; virtual environments (Facebook / WhatsApp) -
present different orthographic forms. This finding fostered a proposal to unify
the orthographic system of the mbya guarani spoken in Brazil. The purpose of
this article, therefore, is to reflect on this proposition by providing
subsidies for the construction of linguistic and educational policies for the
Mbya Guarani language, notably, for the implementation of its writing system,
from the unification of its orthographic system.
Keywords: guarani mbya, unification of orthographic system, language
policy.
INTRODUÇÃO
O
guarani é hoje um dos idiomas indígenas com o maior número de falantes e está
presente também no maior número de países sul-americanos. De acordo com Morello (2017), por essas
características, o guarani pode ser considerado um idioma transnacional. Ivo (2018),
por sua vez, apresenta um estudo comparativo do que ela denomina “parcialidades”
do guarani faladas no Brasil. A autora afirma, analisando a fonética e a
fonologia do mbya, do nhandewa do Sudeste (São Paulo/Paraná), do ñandeva do
Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul), e do kaiowa, que os resultados obtidos
revelaram mais aproximações do que distanciamentos, sendo “possível
compreendermos este sistema fonológico como único, embora opere com variações”
(Ivo, 2018, p. 272). Dessa perspectiva, o mbya é considerado um dialeto da
língua guarani falada no Brasil, a qual pertence à família Tupi-Guarani, do
tronco Tupi (Rodrigues, 1986).
Contudo,
o tema envolvendo a posição do mbya na família Tupi-Guarani merece ser
explorado, em que pese a explicitação das denominações “parcialidade”,
“variedade”, “dialeto”, “subdialeto” e “língua” usadas para identificar o mbya neste
texto. De uma perspectiva estritamente linguística, o mbya é classificado como
uma parcialidade/variedade/dialeto da língua guarani. De outro modo, a
identificação do mbya como “língua” busca garantir seu status político, enfatizando, conforme Campbell e Posser (2008), que a definição de língua não é
estritamente um “empreendimento” linguístico, mas às vezes é determinada mais
por fatores políticos ou sociais. Além disso,
segundo A. S. A. C. Cabral (comunicação pessoal, 09 de junho de 2020), o que se
denomina língua/idioma guarani pode ser entendido como um complexo dialetal, e
então não se trata de “uma língua guarani”, mas de várias línguas (mbya,
kaiowa, nhandeva, xeta, avañe’e (guarani paraguaio), guarani do Chaco
(chiriguano), izoceño, guayaki e guarani antigo[3]),
que formariam uma cadeia dialetal.
No que se refere à
escrita do mbya falado no Brasil, diremos que esta apresenta-se ainda como um
sistema elementar, não tendo, por exemplo, uma produção sistemática de materiais
específicos para alfabetização em língua materna em suas escolas, assim como
não há programas de formação de professores que levem em consideração o
desenvolvimento da escrita em sua língua.
Registros escritos em mbya – pedagógicos: específicos para as escolas mbya;
produções acadêmicas (monografias/dissertações), de alunos mbya; ambientes
virtuais (Facebook/WhatsApp) – mostram também, que não há consenso com relação
a sua ortografia, que aparece de distintas formas nos materiais que circulam
nos espaços institucionais e não institucionais.
Diante
disso, pretendemos discutir a proposição de unificação do sistema ortográfico
do mbya falado no Brasil, em que se destacam por um lado i) o resgate das
condições de produção[4]
envolvendo o estabelecimento deste sistema, que se constitui por uma série de
apagamentos e lacunas, e por outro ii) a devida caraterização de nossa
proposição que não deve ser confundida com “uniformização ortográfica”. Esta se
relaciona a propostas mais ortodoxas, nas quais um sistema ortográfico não deve
levar em consideração diferenças dialetais. Sabemos, contudo, que tanto os nhandeva
do Sudeste (SP/PR)[5],
os kaiowa (MS), os ava-guarani[6] (PR),
assim como os próprios mbya (ES/RJ/PR/SC/RS), já decidiram adotar sistemas
ortográficos diferenciados. Essa decisão vem ao encontro da necessidade destes
povos de se distinguirem identitariamente, mesmo falando línguas de um mesmo complexo
dialetal. A “unificação ortográfica”, por sua vez, envolve o pressuposto de que
circulam para uma mesma língua sistemas ortográficos diferenciados. O caso do mbya
que trazemos para a discussão, configura-se, como veremos, como decisões
envolvendo a utilização de sistemas ortográficos diferenciados para uma mesma
língua.
Atualmente,
a maioria dos mbya (Sul e Sudeste do Brasil) utiliza o sistema ortográfico
proposto por Robert Dooley e por professores mbya do Posto Indígena Rio das Cobras, do estado do Paraná (1982/1998/2015).
Somente umas poucas comunidades que vivem no estado do Espírito Santo, optaram
por um outro sistema ortográfico. As motivações que conduziram as comunidades mbya
deste estado a tomar essa decisão não estão claras, mas, possivelmente,
decorrem da complexidade inerente aos processos de definição de sistemas
ortográficos de base fonológica para
línguas fortemente ligadas a tradição oral. A reflexão que aqui se
configura, portanto, pretende também fornecer subsídios para a construção de
políticas linguísticas e educacionais para a língua mbya, notadamente, para a
implementação de seu sistema ortográfico levando em consideração a interação
entre os aspectos político-sociais (demandas específicas das comunidades de
fala) e técnicos (determinações linguístico-pedagógicas)[7] na
definição de ortografias.
LÍNGUAS
DE TRADIÇÃO ORAL E A DEFINIÇÃO DE SISTEMAS ORTOGRÁFICOS
O desenvolvimento de sistemas de escrita para
língua de tradição oral é processo que deve ser pensado a longo prazo e que por
serem escritas de línguas minoritárias, vão exigir projetos robustos que envolvam
o máximo empenho da própria comunidade de fala quanto do Estado, responsável pela
implementação de politicas linguísticas e educacionais.
Um elemento fundamental em qualquer sistema de
escrita é, obviamente, o seu sistema ortográfico que, nesse processo, está
sujeito a mudanças e adaptações, e que segundo Franchetto (2008, p. 32),
constitui-se e é reformulado na dependência de fatores que, além de serem de
natureza “técnica” ou “científica”, são políticos, ativos ou reativos. A autora
destaca, assim, o que ela denomina “guerra dos alfabetos” assinalando que as “diferentes
propostas de ortografia e as variadas representações sobre o significado de
letras ou grafemas tornam-se espelhos de ideologias em confronto”:
Há
em curso no Brasil, e não começou ontem, mas está cada vez mais acirrada e
violenta, uma verdadeira guerra dos alfabetos, cujos combatentes são pequenos
exércitos de missionários, membros de órgãos governamentais e
não-governamentais, linguistas, assessores. Em meio a essa guerra, os índios
aliam-se ora a uns, ora a outros, avançando ou recuando, negociando. (Franchetto,
2008, p. 32)
A história do sistema ortográfico mbya no Brasil, está
ligada à “pequenos exércitos de missionários” se levarmos em consideração que a
primeira proposta e a mais bem sucedida para um sistema ortográfico da língua,
é a de Robert Dooley, um missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL). Contudo, não há registros de
divergências resultado de “ideologias em confronto”, já que linguistas e
pedagogos, assim como assessores e órgãos governamentais no curso desses 38
anos – a primeira proposta de Dooley é de 1982 – não apresentou crítica a esse
sistema, nem tão pouco uma proposta alternativa.
A reflexão que estamos propondo aqui, assim, parte
da comunidade indígena que há tempos vem refletindo sobre sua escrita, atenta, especialmente,
às diferentes grafias utilizadas por seus escritores. Os principais responsáveis
por esses questionamentos são os professores mbya, que têm como
responsabilidade alfabetizar seus alunos por meio de um sistema ortográfico
ainda em consolidação. O ambiente pedagógico para os professores nas escolas mbya
se torna ainda mais complexo se levarmos em consideração que, em seus primeiros momentos, a escola adentrou nas comunidades
mbya sem que houvesse consenso. De fato, os mais velhos, os sábios mbya, não concordavam
com o estabelecimento das escolas nas aldeias. Segundo eles, ao trazer a
educação do não indígena, as escolas iriam eliminar a cultura mbya.
Portanto, os mbya, especialmente professores e
alunos, além de enfrentaram a reprovação por parte de sua comunidade, ainda
tiveram que lidar como próprio sistema educacional que lhes foi oferecido. Sistema
este que não reflete a educação diferenciada e de qualidade a que os povos
indígenas têm direito. Contudo, ao longo dos anos, mudanças começam a surgir,
especialmente, quando os professores mbya passam a questionar o seu papel nos
processos de ensino e aprendizagem, levando-os a buscarem posições de maior
protagonismo em suas escolas. Essa reflexão lhes mostrou que as dificuldades enfrentadas
para a consolidação de seu sistema de escrita, está também relacionada à escola
que lhes é oferecida: na maioria dos casos, esta escola se constitui como um
projeto “fechado” organizado para o ensino da língua portuguesa, não estando
preparada para a educação bilíngue, por exemplo.
A educação escolar indígena
no Brasil, portanto, mesmo sendo idealizada para ser diferenciada e sendo essa
proposição um direito constitucional, não se apresenta efetivamente com essas
características na implementação dos projetos político-educacionais. Esse
contexto educacional pode ser analisado a partir do que Mariani (2003)
denominou colonização linguística do Brasil: “o processo histórico que
aglutinou a realeza e a igreja portuguesas em um projeto político-linguístico
em larga medida comum e simultaneamente nacional e internacional” (p.73):
A mesma autora aponta duas
consequências fundamentais desse processo colonizador: i) o nascimento de uma
tradição de saber metalinguístico sobre as línguas indígenas brasileiras
(gramatização) e ii) o estabelecimento de políticas portuguesas de defesa e
implantação do idioma português no território brasileiro (Brasil monolíngue
português a única língua oficial). Assim, a educação dos e para os povos
indígenas, implementada pelo projeto educacional jesuítico/português, serviu
como um meio de dominação, como um instrumento usado pelo colonizador para
impor sua cultura e seu projeto político. Em um primeiro momento, funda-se as
bases da escrita em línguas indígenas (construção de um saber metalinguístico)
e promove-se o Tupinambá à categoria de língua franca; em um segundo momento,
impõe-se o português como única língua oficial com consequente exclusão, do
cenário linguístico (também educacional se se levar em consideração o
Tupinambá) das outras línguas indígenas faladas no território brasileiro. (Martins,
2016, p. 112)
Diretamente
ligada a essa questão está o que Auroux
(1992), denomina revolução tecnológica da gramatização: “por gramatização deve-se
entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de
duas tecnologias que são ainda hoje os pilares do nosso saber metalinguístico:
a gramática e o dicionário” (p. 65).
Auroux (1992) afirma também,
que o surgimento do saber metalinguístico somente se tornou possível com o
advento da escrita. Essa é uma tese controversa, pois se por um lado contraria
o pressuposto de que conhecimento metalinguístico foi o que determinou a origem
da escrita, por outro circunscreve as sociedades de tradição oral a uma posição
inferior: povos que, por não
desenvolveram a escrita, não estariam aptos à reflexão metalinguística. Souza
(2017), contestando a tese de Auroux (1992) afirma, analisando o bakairi (Família
Karibe), que a “concepção de duas
línguas em Bakairi – uma de uso comum e
outra usada pelo pajé - já aponta, de imediato, um traço de metalinguagem” (p. 47). A mesma autora afirma, ainda,
que na origem desse tipo de afirmação – tal qual a de Auroux – está o que
Orlandi denomina duas “reduções” na história
da reflexão sobre a linguagem:
Na história da reflexão sobre
a linguagem podem ser assinaladas duas reduções:
redução do fato à disciplina (Linguística) e, consequentemente, se reduz
a significação ao linguístico. E assim apagam-se as diferenças entre o
verbal e o não-verbal. Tem-se então a assepsia do não-verbal pela
sua verbalização necessária. (Orlandi apud
Souza, 2016, p.49)
Dessa perspectiva a
“reflexão sobre linguagem” – oralidade versus
escrita versus metalinguagem – feitas
por Auroux (1992), pode estar sendo determinada por estas “reduções” e, nesse
caso, o que se apagam são as diferenças entre a “oralidade” e a “escrita” com a respectiva “assepsia” do oral pelo
escrito.
De fato, segundo Souza
(2017), é necessária uma mudança de perspectiva para analisarmos as sociedades
de oralidade[8]:
Com isso, não se toma a
escrita – nem tampouco a sua falta – como parâmetro para se definir o que é oralidade.
É comum, em nossa cultura, quando se define o oral, fazê-lo por oposição à
escrita. A escrita é o parâmetro para se entender o oral. E é também o
parâmetro para falar do oral numa sociedade sem (?) escrita... Diferentemente
de nossa sociedade, nessas outras, o domínio é do oral, portanto, o oral deve
ser pensado na sua própria materialidade “e não a partir da sua visibilidade em
línguas de escrita” (Souza 1994). Sob este enfoque, é possível se falar da
constituição de um tipo de memória, que é feita por uma forma de inscrição que
permite ao mesmo tempo preservar a história do grupo e compreender o que é
oralidade. (p. 39)
Contudo, mesmo que se
conteste a afirmação de Auroux (1992) sobre ser a escrita o elemento fundador
de processos metalinguísticos, diremos que, contemporaneamente[9],
a definição de sistemas ortográficos para as línguas de tradição oral, como a mbya,
está definitivamente ligada à história da gramatização, ou seja, é a memória da
constituição dos sistemas de escrita – determinado ou determinante do saber
metalinguístico – o que estabelece esse empreendimento. É, portanto, na tensão
entre as demandas da comunidade de fala mbya (memória da oralidade) e a ciência
da linguagem (memória da gramatização/escrita), que pretendemos determinar e
planejar o projeto de unificação do sistema ortográfico do mbya falado no
Brasil. E se por um lado
essa proposta de unificação é motivada por uma demanda da comunidade mbya, por
outro deve levar em consideração, em certa medida, conhecimentos estranhos a
esta mesma comunidade.
OS SISTEMAS ORTOGRÁFICOS DAS LÍNGUAS GUARANI
De tal modo, na base do conhecimento gramatical
ocidental, está a motivação para a preponderância dos elementos técnicos-científicos
(linguísticos, pedagógicos, etc.) na definição de sistemas ortográficos. É por
isso que Berry (apud Mori, 1997) mesmo afirmando que um sistema de escrita deve
ser científico e socialmente aceitável, vai dar ênfase aos critérios
linguísticos para a elaboração de um sistema ortográfico. São eles:
1) Princípios técnico-científicos;
2) Variáveis não linguísticas;
3) Tratamento dos compostos;
4)
Tratamentos
dos empréstimos,
5)
O
tratamento dos sinais de pontuação.
Dos elementos apontados pelos autores, interessa-nos
destacar as 2) variáveis não
linguísticas, já que este
parece ser um dos critérios mais representativos para a compreensão do cenário
envolvendo o estabelecimento da ortografia mbya. De acordo com Mori (1997), as
variáveis não linguísticas envolvem: i) as atitudes do falante com relação a
sua língua, ii) as diferenças dialetais, e iii) a situação sociolinguística da
língua em relação às outras línguas da região. No que concerne às diferenças
dialetais do complexo Guarani, estas estão registradas na literatura
linguística desde a clássica classificação feita por Rodrigues (1986), e em
trabalhos posteriores do qual se destacam o de Rodrigues e Cabral (2012) e o de
Dietrich (2010). Os autores propõem que o complexo guarani é constituído por
subgrupos linguísticos, dos quais destacamos mais uma vez os falados no Brasil:
mbya, nhandewa, ñandeva, kaiowa e ava-guarani. Estudos como os de Morello
(2017), por sua vez, evidenciam a unidade do complexo guarani ao propor o status de idioma “transnacional e
pluricêntrico” para o complexo guarani. Segundo a autora, a ampla distribuição territorial, do guarani
que o distingue como o idioma TG falado no maior número de países sul-americanos (Brasil, Argentina, Paraguai
e Bolívia e em menor densidade, também no Peru, Colômbia e Venezuela),
lhe confere o caráter de idioma transnacional:
Estudos recentes
mostram que além de ser
língua de milhares de paraguaios, incluindo os indígenas guarani,
em todos os territórios onde se encontra, é mantida por grande
parte do povo que a fala e seus âmbitos de uso estão em franca
expansão. Não há dados demolinguísticos atualizados, mas fontes avaliam em mais de 10 milhões de falantes do guarani. (Morello,
2017, p. 226)
Para
apresentar o guarani como idioma pluricêntrico, Morello (2017) parte da
hipótese Clyne (1992) e Muhr (2012). Segundo esses autores, uma língua para ser
considerada pluricêntrica deve apresentar pelo menos uma, de sete características.
Uma análise preliminar do guarani a partir dos critérios propostos, parece
indicar que o idioma atende a pelo menos quatro delas:
1) Tem um estatuto
de língua oficial em pelo menos dois
países: o avañe’e
(guarani-paraguaio) no Paraguai,
o mbya em Tacuru – (município de Mato Grosso do
Sul), no Brasil, e o guarani do Chaco, na Bolívia;
2)
É ministrado em escolas,
promovido e divulgado: tanto o Brasil quanto a Bolívia e o Paraguai, apresentam
políticas públicas (linguístico-educacionais), mais ou menos eficientes para
esse fim;
3)
Apresenta distância linguística – cada uma
de suas variedades tem características linguísticas suficientes que as
distinguem uma das outras –: o complexo guarani é composto por várias línguas que formariam uma cadeia dialetal;
4)
É símbolo de expressão da identidade e da
singularidade sociocultural de cada povo: o guarani pode ser considerado um símbolo
“de enlace histórico e sociocultural” para os povos que o falam. (Morello,
2017, p. 223).
No que diz respeito à “atitude dos falantes
com relação as suas línguas”, podemos afirmar que os mbya, assim como os nhandewa,
ñandeva, kaiowa e ava-guarani, ao mesmo tempo que partilham desse “enlace
histórico e sociocultural” representado pelo idioma guarani, também se definem
por certa singularidade que lhes garante um diferencial identitário: esses
povos fazem parte da “nação guarani” (Morello, 2017), contudo cada um deles
elege do conjunto de elementos culturais disponíveis, aqueles que lhe permitem
ocupar uma posição diferenciada no conjunto dessa nação. Se por um lado a
própria denominação de suas línguas materializa o “enlace”, são guarani mbya,
nhandewa-guarani, ava-guarani, por outro é também pela língua que constroem marcas
identitárias próprias.
De fato, a decisão desses povos de elaborar sistemas
ortográficos diferenciados pode estar refletindo as relações construídas,
cultural e socialmente, nesse jogo de identificação e diferenciação. Sem
adentramos aqui, na questão complexa envolvendo esse
tipo de decisão, que contraria os princípios técnicos para a definição de
sistemas ortográficos: “a padronização de uma escrita deve estimular a
comunicação escrita entre diferentes grupos dialetais” e, portanto, deve
representar “a unidade linguística para além das variedades locais”, sendo esta
uma condição de “sobrevivência desta língua” (Mori, 1997, p. 30), diremos que a
decisão de cada povo de operar com seu próprio sistema ortográfico, envolveria também
uma posição conflitante com uma outra característica de um idioma pluricêntrico:
a “aceitação da pluricentricidade”. De
fato, segundo Clyne (1992) e Muhr (2012), a comunidade
linguística ao aceitar o status de
sua língua como uma variedade pluricêntrica, passaria a considerá-la como parte
de sua identidade social/nacional.
Destacou-se, na
análise dessa questão, a dificuldade de recuperar as condições de produção
desses sistemas ortográficos. Avaliando alguns materiais
linguístico-pedagógicos produzidos para o ensino e aprendizado, observa-se que
eles não fazem referência, por exemplo, aos autores (interlocutores situados
num tempo e num espaço) dos sistemas ortográficos ali utilizados, assim como
não se explicitam questões técnicas como a relação entre som (fonemas/alofones)
e grafema. A versão preliminar do “Livro
de Alfabetização”, de 2008, produzidos por professores guarani (nhandewa, mbya
e ava-guarani)[10]
com assessoria pedagógica da Secretaria de Estado de Educação do Paraná,
mostra-se como um caso exemplar, já que nas três versões preliminares dos
materiais, os diferentes sistemas ortográficos não apresentam indicativos de
suas condições de produção. Apresentamos os referidos sistemas ortográficos tal
qual aparecem na versão preliminar no “Livro de Alfabetização”:
Quadro
1.
Livro de Alfabetização Ava Guarani.
2008.
Quadro
2.
Livro de Alfabetização Nhandewa Guarani.
2008.
Quadro
3.
Livro de Alfabetização Guarani Mbya.
2008.
No caso da
ortografia nhandewa, encontramos informações sobre seu processo de elaborado no
livro Lições de Gramática Nhandewa-Guarani, Vol. I, de 2016, que é uma
publicação do Projeto Gramática Pedagógica do Nhandewa-Guarani da Aldeia Nimuendaju-
Terra Indígena Araribá. De acordo com livro, “O alfabeto e as regras ortográficas
adotadas... são resultado da I Convenção Ortográfica Nhandewa-Guarani... em
setembro de 2000... Essa convenção foi revisada e confirmada... nos dias 16 a
18 de outubro de 2013” (Marcolino et al, 2016, p.19):
Quadro
4.
Lições de Gramática Nhandewa-Guarani
- 2016
No
que diz respeito à ortografia mbya, ao compararmos a proposta apresentada no
Livro de Alfabetização na língua Guarani Mbya, com a de Dooley (2015) – Quadro
05 – observamos grande semelhança. A única diferença a ser apontada é que a
proposta de Dooley (2015) apresenta dois símbolos gráficos: os dígrafos ku e
gu
ausentes no Livro de
Alfabetização:
Quadro 05.
Sistema Ortográfico (DOOLEY, 2015).
Podemos afirmar,
assim, que a base sonora para a diferenciação dessas ortografias são os
seguintes fones consonantais: i) a oclusiva velar surda labializada /kw/, ii) a oclusiva velar sonora
labializada sonora [gw], alofone da nasal velar labializada [ŋw], iii) a africada palatal sonora [dʒ], alofone da nasal palatal /ɲ/, a africada palato-alveolar
surda /tʃ/, e a
aproximante labiodental /ʋ/[11].
Sistematizaremos as diferentes grafias propostas para
os sistemas ortográficos dessas línguas do seguinte modo:
Quadro
6.
Sons e Grafemas
Fonemas/ Alofones |
|
Grafema Mbya |
Grafema Nhandewa (Sudeste) |
Grafema Ava-Guarani |
/kw/ |
|
ku |
kw |
ku |
/ŋw /
|
|
|
|
|
[gw] [ŋw ]
[ŋgw] |
|
gu ngu |
gw ngw |
gu ngu |
/ɲ/ [ɲ] [dʒ] |
|
j |
dj |
dj |
/tʃ/ |
|
x |
tx |
ch |
/ʋ/
[ʋ], [w], [β̞] [v] |
|
v |
w |
v |
Do
que nos interessa evidenciar nesses registros, é que, com exceção da ortografia
nhandewa, os sistemas ortográficos são apresentados sem que se explicite em que
condições foram produzidos. Em projetos mais recentes, de 2017 e de 2018, como
o do “Saberes Indígenas”, implementado pelo Ministério da Educação – MEC, não
há referência ao sistema ortográfico, sugerindo que no seu entendimento sobre o
tema, os autores não consideram a ortografia como um elemento a ser
problematizado no processo de constituição da escrita destas línguas.
As
motivações para o apagamento das “origens”, tanto dos sujeitos envolvidos no
processo (autores) quanto das questões técnicas (linguístico-pedagógicas) importantes
para a elaboração destes sistemas ortográficos, tornam-se mais claras quando
resgatamos algumas narrativas que versam sobre a escrita e a ortografia mbya.
A ORTOGRAFIA MBYA: REMEMORANDO
O
texto de Ruth Monserrat, “Língua Guarani: fala e escrita”, dos “Cadernos
Temáticos: Educação Escolar Indígena”, implementados, em 2006, pela Secretaria
do Estado de Educação do Paraná, é fonte para o resgate da memória envolvendo
estabelecimento da escrita mbya e de suas propostas ortográficas. Segundo Monserrat,
seu texto é uma breve síntese de temas e questões tratados nos encontros e nos
cursos com professores guarani do Sul e Sudeste do Brasil (SC/PR/RJ/ES), dos
quais participou como docente desde 2003. A autora inicia fazendo referência às
diferentes grafias utilizadas pelos Guarani, afirmando que:
O
motivo pelo qual em Guarani se escreve de forma diferente palavras que são
faladas da mesma forma é que os especialistas, alguém não especialista da
comunidade, quando analisavam o Guarani falado numa determinada região e
propunham nas demais regiões, não se preocupavam em saber se já havia outro
alfabeto em uso nas demais regiões. (Monserrat, 2006, p. 59)
O
texto, que também inclui reflexões sobre questões envolvendo a alfabetização
bilíngue, a relação entre escrita e oralidade, assim como sobre a relação sons/grafemas,
ao se referir aos
guarani de modo genérico, parece estar refletindo um momento em que as
discussões sobre escrita e sistema ortográfico (mbya, nhandewa e ava-guarani) estariam
convergindo para uma proposta uniformizadora que tomava como base certa
ortografia. No entanto, não se explicitam no texto
quais são as ortografias que estariam circulando nas diferentes regiões (“em Guarani
se escreve de forma diferente palavras que são faladas da mesma forma”). E
mesmo legitimando a escrita de certas palavras, como por exemplo, da palavra jakuira “nós cuidamos”, um empréstimo do
verbo cuidar do português, considerada “perfeita em Guarani”, não menciona que o
grafema j faz parte do sistema ortográfico
do mbya proposto por Dooley (1982/1998) para grafar a consoante africada
palato-alveolar sonora [dʒ], que difere da ortografia nhandewa (2000/2003) que utiliza o grafema dj para representar o mesmo som: djakuira. De fato, à data do texto de
Monserrat (2006), os nhandewa já tinham estabelecido o seu sistema ortográfico,
na I Convenção Ortográfica Nhandewa-Guarani, em setembro
de 2000, a qual foi revisada e confirmada em 2003. Outros exemplos de “escrita Guarani” podem ser
identificados no referido texto, como as expressões xe pytã’i “meu filhinho” e nhande ayvu “nossa língua”, que também refletem a grafia proposta por Dooley
– as letras x para a africada alveolar surdas
[tʃ]
e v para fricativa bilabial sonora [β]. De acordo com a ortografia nhandewa,
estas mesma palavras seriam escrita da seguinte forma: txe
pytã’i “meu filhinho”, nhande aywu
“nossa língua”, já que os grafemas escolhidos para as consoantes [tʃ] e [v]
são tx e w, respectivamente.
Se
por um lado é possível afirmar que a ortografia em destaque no texto de
Monserrat para “escrita Guarani”, é aquela proposta por Dooley (1982; 1998)
para o mbya, por outro é possível apenas sugerir que esse sistema ortográfico pode
ter sido indicado, nesse momento, para representar as línguas guarani do Sul e
do Sudeste do Brasil (mbya/nhandewa/ava-guarani?) em uma proposta de
uniformização dialetal, o que de fato não aconteceu.
Resgatando
essa narrativa a partir da memória do povo Mbya, trazemos os depoimentos de
dois dos mais antigos professores mbya: José Virginio Karai Mariano, de aproximadamente 60
anos, e Augustinho Moreira, de 56 anos. Esses depoimentos foram motivados por
questionamentos feitos a eles, e abordam a escrita mbya, assim como a formação
e o trabalho deles como uns dos primeiros professores mbya. Apresentamos a
seguir os relatos desses professores:
José Virgínio Karai Mariano, da Aldeia Serrinha, Ronda Alta – RS (O
texto abaixo foi escrito por ele)
Pois e. Eu fiz o curso
pra bilíngue nos anos 77 a 80. Foi então os três anos de curso e mais 6 meses
de estágio. E o estágio eu fiz na aldeia rio das cobras Paraná. O professor
linguístico era o professor Roberto roller. E a nossa diretora na época
era a Zoraide gulart dos santos. A gente na época tentou usar só um padrão de
escrita na época e as pronúncias das palavras. Mas por causa dos dialetos não
chegamos um acordo. O sul falava de um jeito Paraná São Paulo falava de outro
jeito. E então nunca chegamos a um objetivo comum. Mas eu fiz o possível pelo
menos do primeiro até a quarta série. Mas até agora acho que a escrita a
pronúncia ainda não chegou a um padrão só. Afinal eu parei de dar aula já faz uns vinte anos. Eu ainda acho que vc tá certo de usar estás
ortografia. Porque dá mais certo pra nós mbya guarani. Principalmente pra nós guarani
brasileiro nato.
Augustinho Moreira – Aldeia Estiva RS- 39 anos como professor bilíngue Guarani-Português.
(O texto é resultado de uma tradução para português da fala de Augustinho
Moreira)
Eu fiz o curso nos anos
80, na Terra Indígena Guarita, que fica em Tenente Portela – RS, mas eu fiz o
curso na escola kaingang porque na época não tinha escola na aldeia guarani. Na
época, quem participou do curso foram três guarani, eu, José Mariano que era da
Terra Indígena de Votouro – RS, e o Sebastião Verissimo da Terra Indígena de
Rio das Cobras PR. O curso foi ministrado pelo professor que é da Argentina ou
do Paraguai, não lembro mais de onde ela era mesmo, porque já faz muito tempo.
O nome dele se não me engano é Meliá, não consigo lembrar o nome dele. Nesse
curso, eu aprendi como escrever em guarani. Até hoje sou professor, há mais de
trinta e nove anos. Já nesse tempo, nós estávamos discutindo a escrita e não
conseguimos entrar em acordo, porque o pessoal do Paraná escrevia um pouco
diferente de nós aqui do Rio Grande do Sul, mas eu acho o seu trabalho é muito
bom, pois nós guarani mbya falamos a mesma coisa, no Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espirito Santo, sendo guarani mbya
não tem diferença na fala. Então é isso que tenho para falar, se precisar de
mais informações depois pode me procurar, aguyjevete!
O curso “para bilíngue” a que se refere José Mariano
e no qual Augustinho Moreira aprendeu a “escrever guarani”, eram cursos que
tinham como objetivo a formação de professores mbya para atuarem em suas escolas
ensinado tanto o português – a língua na qual foram alfabetizados – quanto o mbya.
No que diz respeito à escrita mbya e sua ortografia, o que parece consensual
nesses depoimentos é o fato de ambos os professores mencionarem que nas discussões
sobre a escrita (sistema ortográfico?) já se manifestava a dificuldade de se
propor uma padronização devido tanto a diferentes ortografias em circulação na
época, quanto a possíveis diferenças dialetais. Esse período (final da década
de 70 e início de 80), possivelmente, representa os momentos fundadores da
escrita mbya no Brasil, em que se refletem ainda os efeitos da “colonização
linguística”, se levarmos em consideração que os responsáveis pela introdução
da escrita para os mbya foram por um lado um jesuíta: Bartomeu Meliá, e por
outro um missionário evangélico: Robert Dooley (estamos supondo que Roberto roler de Rio das Cobras, citado
por José Mariano, seja Robert Dooley).
Em outro questionamento feito aos dois professores,
agora, relacionado ao alfabeto com o qual foram alfabetizados e que utilizam até
hoje, os referidos professores não conseguiram relacioná-lo com projeto
envolvendo sua elaboração. Contudo, é possível afirmar que o sistema
ortográfico de que fazem uso é idêntico ao proposto por Dooley (1998; 2015). Apresentamos
um excerto do livro “Yvy Ojevy ija ete pe. Terra voltou para o dono - Cultura e
História de Aldeia do Rio Grande do Sul”, produzido em 2008, produzido em um
projeto da Associação das Comunidades Indígenas Mbya Guarani (AIMG) Palhoça –
SC. Esse livro, do qual Augustinho Moreira participou como autor dos textos em
mbya, foi produzido tomando como base a ortografia de Dooley (1998; 2015). O
título da publicação, “Yvy Ojevy ija ete pe”, e o texto em destaque são exemplos
disso:
Quadro 7.
Yvy
Ojevy ija ete pe. Terra voltou para o dono - Cultura e História de Aldeia do
Rio Grande do Sul (2008).
O SISTEMA ORTOGRÁFICO GUARANI MBYA PROPOSTO
POR ROBERT DOOLEY
O sistema ortográfico proposto por Robert Dooley
aparece em sua primeira versão em 1982, na
publicação “Vocabulário Básico do Guarani
Contemporâneo (Dialeto Mbüá do Brasil)” também de sua autoria. Esta
proposta ortográfica foi apresentada,
portanto, dois anos após os cursos realizados pelos professores Mbya (1980),
que afirmaram não haver consenso entre os mbya sobre a definição do sistema ortográfico.
Assim, presume-se que essa primeira proposta ortográfica é resultado de acordo
local, ou seja, de discussões e decisões que incluíram professores e falantes mbya
do Posto Indígena Rio das Cobras, no Paraná, localidade onde Robert Dooley
vivia.
Outras versões do mesmo vocabulário foram
publicadas em 1998: “LÉXICO GUARANÍ, DIALETO MBYÁ: Versão para fins
acadêmicos. Com acréscimos do dialeto nhandéva e outros subfalares do sul do
Brasil”, e em 2015: LÉXICO GUARANI,
DIALETO MBYÁ
com informações úteis para o ensino médio, a aprendizagem e
a pesquisa linguística,
sendo que nestas também há menção ao sistema ortográfico. O sistema ortográfico
de 2015, apresentado nos Quadro 5, é a mais nova versão proposta por Dooley, a
qual não exibe muitas diferenças se comparado a sua primeira proposta de 1982. As
versões de 2015 e de 1998 se distinguem pela inclusão do grafema h para
a consoante fricativa velar surda /h/, ausente do sistema em 1982. Já a
versão de 1998 difere das outras duas (1982/2015) pela escolha do
fonema/alofone para as africadas surdas [tʃ] e [ts], alveolar
e palato-alveolar, respectivamente, grafadas pela letra x: enquanto em 1998 o fonema
é /ts/, em 1982 e 2015 a escolha recai sobre /tʃ/.
Na versão de 1998, Dooley afirma que a publicação foi
fundamentada no Vocabulário Básico de
Mbyá Guaraní de 1982, pois tomou como base dados colhidos junto à comunidade
indígena mbyá do Posto Indígena Rio das Cobras, no Paraná. Entretanto, neste
material de 1998, o autor aponta já para discussões mais amplas envolvendo as decisões
sobre o sistema ortográfico quando faz referências a encontros (Curso de
Capacitação em Língua Guarani - Curitiba, 12-16/05/1997) que reuniu além dos mbya,
também os “Nhandeva do norte e oeste do Paraná”. Ele afirma, ainda, que a
ortografia apresentada, reflete modificações adotadas pelos participantes do referido
curso:
Tanto
a versão atual, como a versão para alunos Guaraní, incluem um grande número de
acréscimos, inclusive os do dialeto Nhandéva do norte e oeste do Paraná, e
ainda outros de subfalares regionais, como, por exemplo, do litoral paulista e
fluminense, muitos deles contribuídos pelos participantes no Curso de
Capacitação em Língua Guarani (Curitiba, 12-16/05/97)... A ortografia aqui
apresentada, reflete modificações adotadas pelos participantes no curso
referido acima. (Dooley, 1998, p. iii)
Mais um movimento para a uniformização das
variedades dialetais do guarani é identificado, sendo que novamente a proposta
que representaria essa padronização seria a de Dooley e de professores e
falantes mbya de Rio das Cobras, agora com a adesão dos representantes “Nhandeva do norte e oeste do Paraná”.
Às três versões do sistema ortográfico nas
publicações de Dooley (1982; 1898; 2015), juntam-se informações de cunho
linguístico envolvendo a relação entre grafemas e sons (fonemas e alofones), sendo
o sistema ortográfico apresentado também como uma “chave de pronúncia” para
falantes do português: o sistema é exibido por meio de um quadro em que junto aos
fonemas/alofones e seus respectivos grafemas são acrescidas informações sobre a
relação entre dos sons do mbya e do português:
Mesmo
nesta versão para fins acadêmicos, as palavras e exemplos ilustrativos são
escritos na ortografia que atualmente vem sendo usada pelos Guaraní, em vez de
serem representados por símbolos fonêmicos ou fonéticos. Deste modo, os
usuários têm acesso tanto à forma escrita comum, como a uma chave para
transcrições fonológicas e fonéticas, que podem ser feitas através de uma
descrição na seção 2 desta Introdução. (Dooley, 1998, p. iii)
Na referida Seção 2, da
Introdução da versão de 1998, Dooley apresenta uma breve
descrição da fonologia em relação à sua representação ortográfica, em que se
destacam informações sobre a nasalização, tonicidade e sílabas, afirmando que a
publicação visa “fornecer informações
técnicas, científicas para o mundo acadêmico e outras pessoas interessadas,
sobre o dialeto Mbyá da língua Guaraní, como ele é atualmente falado no
Brasil.” (Dooley, 1998, p. iii). Essas informações técnicas (referências a trabalhos científicos, termos técnicos, etc.),
que podem ser encontradas também nas versões do vocabulário de 1982 e 2015, refletem
nesses textos a projeção de um leitor especializado apto a compreender o
discurso acadêmico-científico da área da Linguística. Contudo, é sabido
que o leitor guarani tem especificidades e não pode nem mesmo ser comparado a um
leitor não indígena iniciante nos estudos linguísticos. Buscando alcançar o
leitor guarani, Dooley menciona uma outra versão do vocabulário, a qual não
tivemos acesso, orientada por um grupo de professores guarani a ser editada pela
Secretaria do Estado de Educação do Paraná, com o apoio do Ministério de
Educação (MEC), e que tem por finalidade:
Ajudar jovens Guarani que estão estudando
português na escola, ou que querem saber mais sobre a sua própria língua. Esta
versão não inclui informações técnicas, formas históricas, ou referências a
obras científicas. Ambas as versões poderiam ser usadas por falantes do
português que queiram conhecer, e até aprender a falar, o Guaraní. (Dooley, 1998, p. iii)
A
constatação de que as três versões do sistema ortográfico mbya das publicações
de Dooley (1982; 1998; 2015) – compostas por uma série de informações técnicas
indispensáveis para a compreensão da relação fundamental entre sons e grafemas
– não se dirigem, sem alguma ressalva, ao leitor guarani, é exemplar no sentido
de evidenciar o modo como, em certos casos, os conhecimentos linguísticos circulam
nesse tipo de publicação. Se por um lado os jovens guarani “precisam ser
ajudados” a “saber um pouco mais sobre sua língua” (Dooley, 1998, p. iii), por
outro devem fazê-lo sem a apropriação da metalinguagem especifica para esse fim
já que a versão disponibilizada para os jovens “não inclui informações
técnicas, formas históricas, ou referências a obras científicas” (Dooley, 1998,
p. iii). O material em questão parece não ter compromisso com políticas
linguísticas que promovam projetos participativos, pelos quais os falantes
sejam também protagonistas das pesquisas sobre suas línguas.
A DEMANDA POR UNIFICAÇÃO
DA ORTOGRAFIA MBYA
Contudo,
mesmo em um contexto em que as análises mais aprofundadas sobre a definição do seu
sistema ortográfico estavam restritas a certas publicações de cunho
acadêmico-científicas estranhas ao leitor guarani, é possível afirmar que as
discussões sobre este tema avançaram sendo objeto de reflexão de professores
mbya e nhandewa dos cinco estados (RS/SC/PR/RJ/ES), que participaram do
Magistério Kuaa Mbo’e[12],
assim como dos encontros para a consolidação do Protocolo Guarani[13].
Há época, nos primeiros anos do século XXI (2003/2004) esses professores[14] já
identificavam tanto as dificuldades envolvendo o ensino e aprendizagem do
sistema de escrita em sala de aula, quanto a deles próprios para dominaram este
sistema. A outra questão que lhes chamava atenção envolvia a constatação da
existência de diferentes grafias circulando como “escrita guarani”. De tal modo,
no início dos anos 2000, essas questões já era tema de debate e também já
motivavam os professores a discutirem uma proposta de unificação/uniformização
ortográfica para as diferentes grafias em circulação. Contudo, não houve muitas
oportunidades para que essa discussão prosperasse nesse período, e o que
sucedeu, como já
mencionado, foi que a proposta de uniformização dialetal do guarani falado no
Sul e Sudeste, não se estabeleceu. O que se configura atualmente, é
possivelmente a circulação de quatro diferentes sistemas ortográficos: do nhandewa
(2000/2003), do ava-guarani (2008), do kaiowa (1930 (?)), e do mbya
(1982/1998/2015).
O sistema ortográfico mbya – mesmo sendo considerado
o primeiro a ser proposto para a língua guarani no Brasil e que, em determinado
período, ganha certa legitimidade para representar uma proposta de
uniformização dialetal – ainda se apresenta como uma ortografia em adaptação,
por se consolidar. Essa situação é esperada se levarmos em consideração que o
sistema tem somente 38 anos de uso e tem circulação bastante restrita. A questão
em pauta envolvendo as “diferentes grafias” que circulam em textos de
escritores mbya é mais um dos efeitos deste sistema em consolidação. Contudo, a
ocorrências dessas divergências ortográficas são avaliadas como um problema,
sobretudo, para professores mbya que percebem a gravidade de, ainda hoje,
circularem grafias tais quais a da palavra “yynn” para
guarani “água”, que compõe o nome de uma aldeia: Yynn Moroti Wera “Reflexo de
água limpa”. De fato, a palavra “yynn” grafada desse modo, pode ser considerada
completamente estranha para aqueles que minimante dominam a escrita mbya.
Outros exemplos, não tão extremos quanto este,
produzidos em espaços institucionais, são aqui apresentados com dupla
finalidade: descrever esse cenário de desacordo ortográfico e ao mesmo tempo
buscar elementos que explicitem seus fatores determinantes. O primeiro exemplo
é um fragmento de uma monografia
produzida em 2015, no Curso de Licenciatura Intercultural do Sul da Mata
Atlântica – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC:
A pintura corporal dos meninos que é usada no rosto tem forma de ponta
de flecha chamada u´guarani e também
outra chamada xivii redywa, que é como o bigode do
tigre. Os meninos também podem usar uma pintura no rosto que é em forma de cruz
e que se chama krutxu taý pytã djegwaa. (Grifo nosso)
Observa-se no texto desse aluno mbya, uma
série de grafemas que não fazem parte do sistema ortográfico mais usado pelos mbya.
São eles w, tx, dj e gw. Confrontando
esses grafemas com os outros sistemas ortográficos já apresentados, diremos que
eles se assemelham aos grafemas do sistema nhandewa.
Nesse mesmo texto, indentificam-se outras
palavras tais quais “[...] xipa (bolo frito)”, “[...] xondaro
(soldado)” e “Coral Ÿvÿtchi Ovÿ (Nuvens Azuis)”, que por
sua vez refletem o sistema do mbya – x, v –, além disso, observa-se um grafema
inexistente nos três sistemas aqui apresentados: tch da palavra Ÿvÿtchi
“nuvem”. Nesse texto, assim, a escrita mbya aparece como uma “mistura” de
grafias: há elementos da ortografia mbya, assim como da nhandewa, além de um
grafema não identificado em nenhum sistema ortográfico das variedades guarani.
Fundamental nessa discussão, é a menção à escrita
mbya que circula nas comunidades do Espirito Santo. Podemos observar, já no
título do material produzido, em 2008, pelo Projeto Saberes Indígenas na Escola
(Quadro 8) para as escolas mbya do Espírito Santa, que a grafia utilizada na
expressão “Maety Regwa” (Plantio) não é aquela do sistema ortográfico mbya:
Quadro 8.
Projeto
Saberes Indígenas na Escola – 2008.
De fato, de acordo com ortografia mbya a palavra “plantio”
seria escrita com o dígrafo gu: “Maety Regua”. Essa caraterística do
sistema ortográfico usado no Espirito Santo já era mencionada no texto de
Monserrat (2006): “além
disso, há algumas peculiaridades da escrita Guarani no Espírito Santo devido a
certas diferenças entre o alfabeto lá utilizado e o usado nos demais estados do
Sul e do sudeste do Brasil” (p. 62).
O segundo fragmento desse material, exibido também
no Quadro 8 e aqui repetido, apresenta os nomes dos autores, no qual são
identificadas também essas “peculiaridades” na ortografia do Espírito Santo,
que se manifesta pelo uso dos grafemas kw, tx, gw, dj:
Tupã Kwaray – Cacique Jonas Ernesto da Silva
Werá Kwaray – Antônio Carvalho
Keretxu miri – Aurora de S Carvalho
Karai – Mauro Luiz Carvalho
Nhamandu – Silvio Carvalho Goncalves
Keretxu Rete – Aciara Carvalho
Keretxu Rata Miri – Vanda de L Carvalho
Para miri – Lucimara C. Marinho
Ara’i Miri – Lucia Borges da Silva
Karai – Cecilio Vilharves
Wera Dju – Augusto Vaz Filho
Wera Miri – Vânio de Lima Carvalho
Keretxu Endy – Marilza da Silva
-- Sandra Benites
Samaniego
Keretxu Poty – Cleonice de Carvalho Vaz
Karai Txondaro – Giovane Vale dos Santo
Mesmo não tendo acesso ao material completo desse
projeto, podemos, a partir desses dois fragmentos, da capa e da página referente
aos autores do livro, afirmar que o sistema ortográfico utilizado na escrita mbya
no Espirito Santo é semelhante ao do nhandewa. De fato, os grafemas que
aparecem na escrita do título do assim como no nomes dos autores: w, tx, dj e gw são justamente as
letras que distinguem a ortografia nhandewa da dos mbya, que utilizam os
grafemas v, x, j, gu.
Não temos, ainda, elementos para elucidar a
decisão, dos mbya do Espírito Santo, de usar um sistema ortográfico
diferenciado dos demais mbya do Sul e do Sudeste, assim como também não temos ainda
dados para esclarecer as condições de produção dessa ortografia. O que podemos
afirmar é que o que está sendo observado como divergência ortográfica na
escrita mbya, em muitos casos, pode ser considerado como o resultado do
atravessamento do sistema ortográfico do Espírito Santo, que por sua vez
reflete o sistema ortográfico nhandewa. Apresentamos mais um exemplo para
corroborar essa afirmação, agora da Cartilha de Alfabetização Guarani,
elaborada, em 2009, por professores da Aldeia Maciambu, de Palhoça – SC, sendo
esta Cartilha resultado de um projeto ligado ao Ministério Público Federal:
Quadro 9.
Cartilha de Alfabetização Guarani – 2009.
O material monolíngue, que tem por finalidade
o ensino do mbya na escola da comunidade, ao apresentar o sistema ortográfico o
faz destacando diferentes grafias para um mesmo som, sem mencionar a autoria das
ortografias propostas:
Quadro 10.
Cartilha de Alfabetização Guarani – 2009.
Como pode ser observado neste fragmento da
Cartilha (Quadro 10), juntamente com as letras x, j, v, gu e ku, da
ortografia mbya proposta por Dooley, também são apresentadas outras: tx, dj, gw e kw, idênticos aos da ortografia nhandewa. Identificamos mais uma
vez, a ocorrência do grafema tch
inexistente nos três sistemas aqui apresentados. Digno de nota é o fato de um
dos autores desse material, ser um antigo professor de uma comunidade do Espírito
Santo.
Outro material produzido por um mbya do
Espírito Santo é a dissertação de mestrado “Tempo, Aspecto e Modalidade na Língua
Guaraní Mbyá (Tambeopé)”, de Carvalho (2013). Nesse trabalho acadêmico
identifica-se o uso de ortografia também análoga a dos nhandewa, contudo não há
alusão ao tema na dissertação, repetindo-se o já observado em outros escritos
mbya: o apagamento das condições de produção de seu sistema ortográfico. Seguem exemplos de duas orações do mbya falado
nas aldeias do Espírito Santo (Quadro 11), em que se identificam os grafemas w, tx,
e dj idênticos aos ortografia nhandewa
e inexistente na do mbya:
Quadro
11.
Língua Guaraní Mbyá (Tambeopé).
Retomando uma das questões iniciais, aquela
relacionada à distinção necessária entre “uniformização”
e “unificação” ortográfica, diremos que o que se revela no contexto mbya não é
uma disputa pela padronização ortográfica a partir de uma de suas sub-variedades
(variedade mbya do Espirito Santo e as outras variedade do sul e do sudeste), mas
sim um conflito interno ao povo mbya no que diz respeito a proposição do seu sistema
ortográfico: de um lado vemos os mbya do Espirito Santo assumindo um sistema
ortográfico bastante semelhante ao dos nhandewa, e do outro os Mbya do Sul e
todo restante do Sudeste adotando uma ortografia baseada na proposta de Dooley
e dos professores mbya de Rio das Cobras e dos nhandeva do norte e do oeste do
Paraná, que com ele a elaboram. Este cenário que se configura por dois sistemas
ortográficos competindo entre si, pode ser considerado um caso que permite a
proposição de uma unificação ortográfica.
Dito
isso, a nossa proposta de unificação do sistema ortográfico do guarani mbya
falado no Brasil, pretende tomar como base a ortografia proposta por Dooley e
por professores mbya e nhandewa (1982/1998/2015) com as devidas reformulações
apresentadas por Benites (2020)[15].
CONCLUSÃO
A escrita das línguas
mbya, nhandewa, ava-guarani e kaiowa, do complexo dialetal guarani, faladas no
Brasil, é um sistema em consolidação. Mesmo partilhando traços identitários
comuns que lhes conferem certa homogeneidade no conjunto da nação guarani, os
povos falantes dessas línguas decidiram pela definição de sistemas ortográficos
distintos. O sistema ortográfico desse modo, pode estar sendo utilizado como estratégia
identitária para a construção de posições diferenciadas para cada um desses
povos no interior da nação guarani.
As condições de
produção envolvendo a definição desses sistemas ortográficos constituem-se por
apagamentos e lacunas tanto no que diz respeito às questões pertinentes à
autoria e às informações técnico-científica, quanto àquelas relacionadas as decisões
e planejamento que envolvem esse tipo de empreendimento. De fato, nos materiais
linguístico-pedagógicos aqui analisados, que têm como função promover condições
de ensino-aprendizado da escrita nessas línguas, as decisões relativas a
definição da ortografia não são explicitadas, assim como são inexistentes ou
marcadas pelo hermetismo técnico-científico as informações
linguístico-pedagógicas importantes para a sua elaboração. Enquanto o processo
de elaboração do sistema ortográfico nhandewa (SP/PR) aparece como uma exceção nesse
contexto, podendo ser resgatado pelo menos em uma publicação
linguístico-pedagógica direcionada a professores (livro Lições de Gramática
Nhandewa-Guarani. Vol. I, de 2016), as informações sobre o processo de produção
do sistema ortográfico mbya são identificadas somente nas publicações de Dooley
(1982; 1998; 2015) que tem como sujeito leitor o especialista na área da Linguística. De fato, nesses materiais as discussões sobre
a fonologia do mbya e sua necessária relação com os grafemas, por exemplo, são
implementadas por meio de linguagem técnico-científica, o que inibe seu alcance
junto aos leitores mbya que ainda não dominam essa metalinguagem. De tal modo,
o que se observa como apagamento das condições de produção dos sistemas
ortográficos guarani, notadamente do sistema mbya, pode estar relacionado à
ausência de políticas linguísticas que garantam aos falantes mbya o
protagonismo nas pesquisas e na tomada de decisões sobre sua língua.
A
circulação das diferentes ortografias no contexto da escrita mbya, em que se
destaca a decisão dos mbya do Espírito Santo de adotar um sistema ortográfico diverso
dos mbya do Sul e do restante do Sudeste, pode ser entendida como consequência dessa
posição marginal dos mbya neste processo. Portanto, políticas linguísticas que
promovam as condições necessárias para que os sujeitos indígenas possam
compreender que esse e outros temas relacionados a suas línguas, são
empreendimentos político-sociais regulados por fatores linguísticos e não
linguísticos, são decisivas para a transformação desse cenário.
Conclusivamente diremos que nossa proposta de unificação do
sistema ortográfico do mbya falado no Brasil, que toma como base o sistema
proposto por Dooley e por professores guarani com as devidas reformulações
feitas por Benites (2020), necessita ser avaliada pelo povo mbya, que decidirá
se poderá ou não ser implementada. Importante levar em consideração nessa
decisão, a afirmação de Gilvan Müller de Oliveira (Com. pess. setembro de 2019). Segundo ele, a partir de uma
concepção multilíngue do problema, para línguas de uma mesma família
linguística ou mesmo de variedades de línguas pluricêntrica, a orientação é que
estas “usem as mesmas bases ortográficas para permitir aos falantes o máximo de
trânsito entre elas e um máximo aproveitamento de recursos tecnológicos
comuns.” Partindo dessa perspectiva, o caso da língua mbya, em que concorrem
ainda dois sistemas ortográficos, torna-se ainda mais atípico no contexto das
políticas linguísticas para a definição e consolidação de sistemas
ortográficos. Assim, mesmo reconhecendo a complexidade da questão, tanto em
termos técnicos quanto políticos, reiteramos a importância e a necessidade
dessa unificação ortográfica para a consolidação da escrita mbya no Brasil.
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Souza, T. C. C. (2017). Línguas indígenas: memória, arquivo e
oralidade. Revista Policronias.
[1] Professora do Mestrado Profissional em
Linguística e Línguas Indígenas – PROFLLIND, do Departamento de Antropologia -
Museu Nacional –UFRJ.
[2] Professor da Secretaria de Educação do
Estado de Santa Catarina é mestre em Ciências da Linguagem pelo Mestrado
Profissional em Linguística e Línguas Indígenas - PROFLLIND, do Museu Nacional
–UFRJ.
[3]
Esse conjunto de línguas formam o Ramo 1 (Guarani), de acordo com a
classificação de Rodrigues e Cabral (2012). Dietrich (2010) por sua vez,
denomina “Grupo Guarani Meridional” o Ramo 1 dos referidos autore(a)s, e não
inclui o guayaki.
[4]
Segundo Orlandi (1999), as condições de produção são
resultado da correspondência entre o sujeito, a situação e a memória, a qual
sustenta os dizeres desse sujeito.
[5]
São Paulo (SP), Paraná (PR), Espírito Santo (ES), Rio de Janeiro (RJ), Mato
Grosso do Sul (MS), Santa Catarina (SC), Rio Grande do Sul (RS).
[6]
Ava-guarani é autodenominação dos nhandewa que vivem no Paraguai. A partir de
2004, os ava-guarani iniciaram a retomada de seu território tradicional no
Brasil, de onde um dia foram expulsos. Essas terras estão situadas nos
municípios de Guaíra e Terra Roxa, no estado do Paraná.
[7]
A proposição de unificação do sistema ortográfico do mbya envolvendo a
necessária discussão dos princípios técnico-científicos - relação entre grafema
e a fonologia e a morfofonologia da língua, entre outros- é tratada na
dissertação de mestrado de Benites (2020). A investigação proposta neste artigo
reflete aspectos do primeiro e segundo capítulos da referida dissertação.
[8]
“A denominação sociedades
de oralidade, no lugar de sociedades
orais ou ágrafas, esbarra
num aspecto, que considero de grande importância, que é ver na oralidade a
grande marca da identidade dessas sociedades.” (Souza 2016, p. 39).
[9]
“De fato, a proposição norteadora desse trabalho que assinala a necessidade de
se produzir conhecimentos linguísticos sobre os sons da língua Jaminawa em
termos de sistemas fonético e fonológico, como uma das condições para o
desenvolvimento de um sistema ortográfico, expõe a contemporaneidade de uma
ciência da linguagem, que se impõe como gramatização. Dito de outra maneira: o
desenvolvimento de sistemas de escrita é, na atualidade, resultado de uma
reflexão sobre a natureza da linguagem, fruto, portanto, do saber
metalinguístico”. (Martins, 2016, p. 113)
[10]
O sistema ortográfico kaiowa está ligado à Missão Evangélica Caiuá (organização
não governamental ligada a igrejas evangélicas), que levou a escola e a
evangelização para as comunidades Kaiowa: “No que diz respeito ao Kaiova, é
sabido que no Mato Grosso do Sul, foram eles os primeiros a serem escolarizados
e isso ocorreu por meio da já mencionada “Missão Caiua”, que em seu primeiro
momento, tomou o português como a língua da alfabetização”. (Amaurilio, 2019,
p. 63)
[11]
A literatura sobre o tema mostra (Ivo, 2018), que as análises da
fonologia dessas línguas variam no que diz respeito a identificação de alguns
sons assim como no estabelecimento da relação entre fonemas e alofones.
Contudo, é possível afirmar que essas diferentes abordagens não têm grande
impacto na proposição das ortografias para essas línguas.
Sobre o sistema fonológico do mbya e sua relação com o sistema ortográfico ver
Benites (2020).
[12]
Programa de Formação de Professores Guarani “Kuaa Mbo’e – Conhecer, Ensinar dos
professores Guarani das regiões Sul e Sudeste do Brasil, ocorreu de 2003 a 2010
em um esforço das Secretarias de Estado da Educação dos estados do Rio Grande
do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro; o
Ministério da Educação e a Fundação Nacional do Índio. https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/pedagogica/article/view/2924/0
[13]
O Protocolo é um documento orientador para a construção dos
direitos dos indígenas e para a consolidação do que preceitua
a Convenção da Organização Internacional do Trabalho
no169.
https://rca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/protocolo-guarani-versão-Web.pdf
[14]
José Benites, coautor desse trabalho, integrou o corpo discente do Magistério
Kuaa Mbo’e e participou dos encontros do Protocolo Guarani.
[15] “No que diz respeito as questões técnicas, como já explicitado,
os problemas observados nos usos do sistema ortográfico Mbya envolve muito mais
a interferência de outro sistema ortográfico, o do Nhandewa, do que a adequação
da relação entre som e grafema do sistema proposto por Dooley. De tal modo, ao
mesmo tempo que indicaremos reformulações, também é nosso objetivo mostrar que
do ponto de vista linguístico/pedagógico a proposta de Dooley (1982/1998/2013)
para a ortografia Mbya pode ser considerada funcional e de fácil
operacionalização. Essa é uma questão importante pois é essa proposta a que
terá o compromisso político de unificar, da perspectiva ortográfica, a produção
escrita em língua Guarani Mbya no Brasil.” (Benites 2020, p. 59)