UNIFICAÇĂO DE SISTEMAS
ORTOGRÁFICOS:
O CASO DA LÍNGUA GUARANI
MBYA FALADA NO BRASIL
Martins, Marci Fileti[1]
Museu
Nacional-UFRJ
Benites, José[2]
Museu Nacional-UFRJ
RESUMO
O
sistema ortográfico proposto por Robert Dooley e por professores guarani mbya (1982/1998/2015)
é, atualmente, o sistema utilizado pela maioria dos mbya (Sul e Sudeste do
Brasil). Somente umas poucas comunidades mbya do estado do Espírito Santo
optaram por um sistema ortográfico diferenciado, o que pode estar provocando certo
conflito ortográfico. De fato, registros escritos em mbya pedagógicos:
específicos para as escolas mbya; produçőes acadęmicas
(monografias/dissertaçőes) de alunos mbya; ambientes virtuais
(Facebook/WhatsApp) apresentam distinta formas ortográficas. Essa constataçăo
fomentou uma proposta para unificaçăo do sistema ortográfico do guarani mbya
falado no Brasil. O objetivo desse artigo, assim, é refletir sobre essa proposiçăo
fornecendo subsídios para a construçăo de políticas linguísticas e educacionais
para a língua guarani mbya, notadamente, para a implementaçăo de seu sistema de
escrita, a partir da unificaçăo do seu sistema ortográfico.
Palavras-chave: guarani
mbya, unificaçăo de sistema ortográfico, política linguística.
PETEI RAMI NHEMBOPARAA:
NHANDE GUARANI MBYA AYVU BRASIL PY
IPARAA
MBOVY'I
Kuaxia para petei
rami ojejapo anguă régua, Robert Dooley haegui mbya kuery nhomboea
(1982/1998/2015) haegui anguy reve oiporua ve nhomboea kuery (Sul e Sudeste
do Brasil py). Xo tekoa kuery Estado do Espírito Santo pygua kuery rive ma,
oiporu nhembo pará amboaei rami ju, háevy ma női porăi rei ju nhemboparaa.
Vaeri nhomboea mbya kuery ma heta ve
ju petei rami ombopara vae, nhemboea tekoa rupi ői vae, haegui faculdade;
(Facebook/ WhatsApp) rupi guive, kovae ojekuaa rupi ma ojejapo anguărami petei
mbaeapo ojexauka anguă petei rami nhembopara oiko anguă rami Brasil py. Kovae
kuaxia onhembopara vae ma, jaikuaa poră ve anguă, peteii rami
nhemoboparaa jareko anguă nhande mbya
kuery.
Palavras-chave:
mbya, petei rami nhembopara, ayvu régua.
UNIFICATION OF
ORTHOGRAPHIC SYSTEMS:
THE CASE OF THE GUARANI
MBYA LANGUAGE
SPOKEN IN BRAZIL
ABSTRACT
The
orthographic system proposed by Robert Dooley and by guarani mbya teachers
(1982/1998/2015) is currently the system used by the majority of the Mbya
people (South and Southeast of Brazil). Only a few mbya communities in the
state of Espírito Santo have opted for a different orthographic system, which
may be causing some orthographic conflict. In fact, records written in mbya -
pedagogical: specific to mbya schools; academic productions (monographs /
dissertations) by mbya students; virtual environments (Facebook / WhatsApp) -
present different orthographic forms. This finding fostered a proposal to unify
the orthographic system of the mbya guarani spoken in Brazil. The purpose of
this article, therefore, is to reflect on this proposition by providing
subsidies for the construction of linguistic and educational policies for the
Mbya Guarani language, notably, for the implementation of its writing system,
from the unification of its orthographic system.
Keywords: guarani mbya, unification of orthographic system, language
policy.
INTRODUÇĂO
O
guarani é hoje um dos idiomas indígenas com o maior número de falantes e está
presente também no maior número de países sul-americanos. De acordo com Morello (2017), por essas
características, o guarani pode ser considerado um idioma transnacional. Ivo (2018),
por sua vez, apresenta um estudo comparativo do que ela denomina parcialidades
do guarani faladas no Brasil. A autora afirma, analisando a fonética e a
fonologia do mbya, do nhandewa do Sudeste (Săo Paulo/Paraná), do ńandeva do
Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul), e do kaiowa, que os resultados obtidos
revelaram mais aproximaçőes do que distanciamentos, sendo possível
compreendermos este sistema fonológico como único, embora opere com variaçőes
(Ivo, 2018, p. 272). Dessa perspectiva, o mbya é considerado um dialeto da
língua guarani falada no Brasil, a qual pertence ŕ família Tupi-Guarani, do
tronco Tupi (Rodrigues, 1986).
Contudo,
o tema envolvendo a posiçăo do mbya na família Tupi-Guarani merece ser
explorado, em que pese a explicitaçăo das denominaçőes parcialidade,
variedade, dialeto, subdialeto e língua usadas para identificar o mbya neste
texto. De uma perspectiva estritamente linguística, o mbya é classificado como
uma parcialidade/variedade/dialeto da língua guarani. De outro modo, a
identificaçăo do mbya como língua busca garantir seu status político, enfatizando, conforme Campbell e Posser (2008), que a definiçăo de língua năo é
estritamente um empreendimento linguístico, mas ŕs vezes é determinada mais
por fatores políticos ou sociais. Além disso,
segundo A. S. A. C. Cabral (comunicaçăo pessoal, 09 de junho de 2020), o que se
denomina língua/idioma guarani pode ser entendido como um complexo dialetal, e
entăo năo se trata de uma língua guarani, mas de várias línguas (mbya,
kaiowa, nhandeva, xeta, avańee (guarani paraguaio), guarani do Chaco
(chiriguano), izoceńo, guayaki e guarani antigo[3]),
que formariam uma cadeia dialetal.
No que se refere ŕ
escrita do mbya falado no Brasil, diremos que esta apresenta-se ainda como um
sistema elementar, năo tendo, por exemplo, uma produçăo sistemática de materiais
específicos para alfabetizaçăo em língua materna em suas escolas, assim como
năo há programas de formaçăo de professores que levem em consideraçăo o
desenvolvimento da escrita em sua língua.
Registros escritos em mbya pedagógicos: específicos para as escolas mbya;
produçőes acadęmicas (monografias/dissertaçőes), de alunos mbya; ambientes
virtuais (Facebook/WhatsApp) mostram também, que năo há consenso com relaçăo
a sua ortografia, que aparece de distintas formas nos materiais que circulam
nos espaços institucionais e năo institucionais.
Diante
disso, pretendemos discutir a proposiçăo de unificaçăo do sistema ortográfico
do mbya falado no Brasil, em que se destacam por um lado i) o resgate das
condiçőes de produçăo[4]
envolvendo o estabelecimento deste sistema, que se constitui por uma série de
apagamentos e lacunas, e por outro ii) a devida caraterizaçăo de nossa
proposiçăo que năo deve ser confundida com uniformizaçăo ortográfica. Esta se
relaciona a propostas mais ortodoxas, nas quais um sistema ortográfico năo deve
levar em consideraçăo diferenças dialetais. Sabemos, contudo, que tanto os nhandeva
do Sudeste (SP/PR)[5],
os kaiowa (MS), os ava-guarani[6] (PR),
assim como os próprios mbya (ES/RJ/PR/SC/RS), já decidiram adotar sistemas
ortográficos diferenciados. Essa decisăo vem ao encontro da necessidade destes
povos de se distinguirem identitariamente, mesmo falando línguas de um mesmo complexo
dialetal. A unificaçăo ortográfica, por sua vez, envolve o pressuposto de que
circulam para uma mesma língua sistemas ortográficos diferenciados. O caso do mbya
que trazemos para a discussăo, configura-se, como veremos, como decisőes
envolvendo a utilizaçăo de sistemas ortográficos diferenciados para uma mesma
língua.
Atualmente,
a maioria dos mbya (Sul e Sudeste do Brasil) utiliza o sistema ortográfico
proposto por Robert Dooley e por professores mbya do Posto Indígena Rio das Cobras, do estado do Paraná (1982/1998/2015).
Somente umas poucas comunidades que vivem no estado do Espírito Santo, optaram
por um outro sistema ortográfico. As motivaçőes que conduziram as comunidades mbya
deste estado a tomar essa decisăo năo estăo claras, mas, possivelmente,
decorrem da complexidade inerente aos processos de definiçăo de sistemas
ortográficos de base fonológica para
línguas fortemente ligadas a tradiçăo oral. A reflexăo que aqui se
configura, portanto, pretende também fornecer subsídios para a construçăo de
políticas linguísticas e educacionais para a língua mbya, notadamente, para a
implementaçăo de seu sistema ortográfico levando em consideraçăo a interaçăo
entre os aspectos político-sociais (demandas específicas das comunidades de
fala) e técnicos (determinaçőes linguístico-pedagógicas)[7] na
definiçăo de ortografias.
LÍNGUAS
DE TRADIÇĂO ORAL E A DEFINIÇĂO DE SISTEMAS ORTOGRÁFICOS
O desenvolvimento de sistemas de escrita para
língua de tradiçăo oral é processo que deve ser pensado a longo prazo e que por
serem escritas de línguas minoritárias, văo exigir projetos robustos que envolvam
o máximo empenho da própria comunidade de fala quanto do Estado, responsável pela
implementaçăo de politicas linguísticas e educacionais.
Um elemento fundamental em qualquer sistema de
escrita é, obviamente, o seu sistema ortográfico que, nesse processo, está
sujeito a mudanças e adaptaçőes, e que segundo Franchetto (2008, p. 32),
constitui-se e é reformulado na dependęncia de fatores que, além de serem de
natureza técnica ou científica, săo políticos, ativos ou reativos. A autora
destaca, assim, o que ela denomina guerra dos alfabetos assinalando que as diferentes
propostas de ortografia e as variadas representaçőes sobre o significado de
letras ou grafemas tornam-se espelhos de ideologias em confronto:
Há
em curso no Brasil, e năo começou ontem, mas está cada vez mais acirrada e
violenta, uma verdadeira guerra dos alfabetos, cujos combatentes săo pequenos
exércitos de missionários, membros de órgăos governamentais e
năo-governamentais, linguistas, assessores. Em meio a essa guerra, os índios
aliam-se ora a uns, ora a outros, avançando ou recuando, negociando. (Franchetto,
2008, p. 32)
A história do sistema ortográfico mbya no Brasil, está
ligada ŕ pequenos exércitos de missionários se levarmos em consideraçăo que a
primeira proposta e a mais bem sucedida para um sistema ortográfico da língua,
é a de Robert Dooley, um missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL). Contudo, năo há registros de
divergęncias resultado de ideologias em confronto, já que linguistas e
pedagogos, assim como assessores e órgăos governamentais no curso desses 38
anos a primeira proposta de Dooley é de 1982 năo apresentou crítica a esse
sistema, nem tăo pouco uma proposta alternativa.
A reflexăo que estamos propondo aqui, assim, parte
da comunidade indígena que há tempos vem refletindo sobre sua escrita, atenta, especialmente,
ŕs diferentes grafias utilizadas por seus escritores. Os principais responsáveis
por esses questionamentos săo os professores mbya, que tęm como
responsabilidade alfabetizar seus alunos por meio de um sistema ortográfico
ainda em consolidaçăo. O ambiente pedagógico para os professores nas escolas mbya
se torna ainda mais complexo se levarmos em consideraçăo que, em seus primeiros momentos, a escola adentrou nas comunidades
mbya sem que houvesse consenso. De fato, os mais velhos, os sábios mbya, năo concordavam
com o estabelecimento das escolas nas aldeias. Segundo eles, ao trazer a
educaçăo do năo indígena, as escolas iriam eliminar a cultura mbya.
Portanto, os mbya, especialmente professores e
alunos, além de enfrentaram a reprovaçăo por parte de sua comunidade, ainda
tiveram que lidar como próprio sistema educacional que lhes foi oferecido. Sistema
este que năo reflete a educaçăo diferenciada e de qualidade a que os povos
indígenas tęm direito. Contudo, ao longo dos anos, mudanças começam a surgir,
especialmente, quando os professores mbya passam a questionar o seu papel nos
processos de ensino e aprendizagem, levando-os a buscarem posiçőes de maior
protagonismo em suas escolas. Essa reflexăo lhes mostrou que as dificuldades enfrentadas
para a consolidaçăo de seu sistema de escrita, está também relacionada ŕ escola
que lhes é oferecida: na maioria dos casos, esta escola se constitui como um
projeto fechado organizado para o ensino da língua portuguesa, năo estando
preparada para a educaçăo bilíngue, por exemplo.
A educaçăo escolar indígena
no Brasil, portanto, mesmo sendo idealizada para ser diferenciada e sendo essa
proposiçăo um direito constitucional, năo se apresenta efetivamente com essas
características na implementaçăo dos projetos político-educacionais. Esse
contexto educacional pode ser analisado a partir do que Mariani (2003)
denominou colonizaçăo linguística do Brasil: o processo histórico que
aglutinou a realeza e a igreja portuguesas em um projeto político-linguístico
em larga medida comum e simultaneamente nacional e internacional (p.73):
A mesma autora aponta duas
consequęncias fundamentais desse processo colonizador: i) o nascimento de uma
tradiçăo de saber metalinguístico sobre as línguas indígenas brasileiras
(gramatizaçăo) e ii) o estabelecimento de políticas portuguesas de defesa e
implantaçăo do idioma portuguęs no território brasileiro (Brasil monolíngue
portuguęs a única língua oficial). Assim, a educaçăo dos e para os povos
indígenas, implementada pelo projeto educacional jesuítico/portuguęs, serviu
como um meio de dominaçăo, como um instrumento usado pelo colonizador para
impor sua cultura e seu projeto político. Em um primeiro momento, funda-se as
bases da escrita em línguas indígenas (construçăo de um saber metalinguístico)
e promove-se o Tupinambá ŕ categoria de língua franca; em um segundo momento,
impőe-se o portuguęs como única língua oficial com consequente exclusăo, do
cenário linguístico (também educacional se se levar em consideraçăo o
Tupinambá) das outras línguas indígenas faladas no território brasileiro. (Martins,
2016, p. 112)
Diretamente
ligada a essa questăo está o que Auroux
(1992), denomina revoluçăo tecnológica da gramatizaçăo: por gramatizaçăo deve-se
entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de
duas tecnologias que săo ainda hoje os pilares do nosso saber metalinguístico:
a gramática e o dicionário (p. 65).
Auroux (1992) afirma também,
que o surgimento do saber metalinguístico somente se tornou possível com o
advento da escrita. Essa é uma tese controversa, pois se por um lado contraria
o pressuposto de que conhecimento metalinguístico foi o que determinou a origem
da escrita, por outro circunscreve as sociedades de tradiçăo oral a uma posiçăo
inferior: povos que, por năo
desenvolveram a escrita, năo estariam aptos ŕ reflexăo metalinguística. Souza
(2017), contestando a tese de Auroux (1992) afirma, analisando o bakairi (Família
Karibe), que a concepçăo de duas
línguas em Bakairi uma de uso comum e
outra usada pelo pajé - já aponta, de imediato, um traço de metalinguagem (p. 47). A mesma autora afirma, ainda,
que na origem desse tipo de afirmaçăo tal qual a de Auroux está o que
Orlandi denomina duas reduçőes na história
da reflexăo sobre a linguagem:
Na história da reflexăo sobre
a linguagem podem ser assinaladas duas reduçőes:
reduçăo do fato à disciplina (Linguística) e, consequentemente, se reduz
a significaçăo ao linguístico. E assim apagam-se as diferenças entre o
verbal e o não-verbal. Tem-se entăo a assepsia do não-verbal pela
sua verbalizaçăo necessária. (Orlandi apud
Souza, 2016, p.49)
Dessa perspectiva a
reflexăo sobre linguagem oralidade versus
escrita versus metalinguagem feitas
por Auroux (1992), pode estar sendo determinada por estas reduçőes e, nesse
caso, o que se apagam săo as diferenças entre a oralidade e a escrita com a respectiva assepsia do oral pelo
escrito.
De fato, segundo Souza
(2017), é necessária uma mudança de perspectiva para analisarmos as sociedades
de oralidade[8]:
Com isso, năo se toma a
escrita nem tampouco a sua falta como parâmetro para se definir o que é oralidade.
É comum, em nossa cultura, quando se define o oral, fazę-lo por oposiçăo ŕ
escrita. A escrita é o parâmetro para se entender o oral. E é também o
parâmetro para falar do oral numa sociedade sem (?) escrita... Diferentemente
de nossa sociedade, nessas outras, o domínio é do oral, portanto, o oral deve
ser pensado na sua própria materialidade e năo a partir da sua visibilidade em
línguas de escrita (Souza 1994). Sob este enfoque, é possível se falar da
constituiçăo de um tipo de memória, que é feita por uma forma de inscriçăo que
permite ao mesmo tempo preservar a história do grupo e compreender o que é
oralidade. (p. 39)
Contudo, mesmo que se
conteste a afirmaçăo de Auroux (1992) sobre ser a escrita o elemento fundador
de processos metalinguísticos, diremos que, contemporaneamente[9],
a definiçăo de sistemas ortográficos para as línguas de tradiçăo oral, como a mbya,
está definitivamente ligada ŕ história da gramatizaçăo, ou seja, é a memória da
constituiçăo dos sistemas de escrita determinado ou determinante do saber
metalinguístico o que estabelece esse empreendimento. É, portanto, na tensăo
entre as demandas da comunidade de fala mbya (memória da oralidade) e a cięncia
da linguagem (memória da gramatizaçăo/escrita), que pretendemos determinar e
planejar o projeto de unificaçăo do sistema ortográfico do mbya falado no
Brasil. E se por um lado
essa proposta de unificaçăo é motivada por uma demanda da comunidade mbya, por
outro deve levar em consideraçăo, em certa medida, conhecimentos estranhos a
esta mesma comunidade.
OS SISTEMAS ORTOGRÁFICOS DAS LÍNGUAS GUARANI
De tal modo, na base do conhecimento gramatical
ocidental, está a motivaçăo para a preponderância dos elementos técnicos-científicos
(linguísticos, pedagógicos, etc.) na definiçăo de sistemas ortográficos. É por
isso que Berry (apud Mori, 1997) mesmo afirmando que um sistema de escrita deve
ser científico e socialmente aceitável, vai dar ęnfase aos critérios
linguísticos para a elaboraçăo de um sistema ortográfico. Săo eles:
1) Princípios técnico-científicos;
2) Variáveis năo linguísticas;
3) Tratamento dos compostos;
4)
Tratamentos
dos empréstimos,
5)
O
tratamento dos sinais de pontuaçăo.
Dos elementos apontados pelos autores, interessa-nos
destacar as 2) variáveis năo
linguísticas, já que este
parece ser um dos critérios mais representativos para a compreensăo do cenário
envolvendo o estabelecimento da ortografia mbya. De acordo com Mori (1997), as
variáveis năo linguísticas envolvem: i) as atitudes do falante com relaçăo a
sua língua, ii) as diferenças dialetais, e iii) a situaçăo sociolinguística da
língua em relaçăo ŕs outras línguas da regiăo. No que concerne ŕs diferenças
dialetais do complexo Guarani, estas estăo registradas na literatura
linguística desde a clássica classificaçăo feita por Rodrigues (1986), e em
trabalhos posteriores do qual se destacam o de Rodrigues e Cabral (2012) e o de
Dietrich (2010). Os autores propőem que o complexo guarani é constituído por
subgrupos linguísticos, dos quais destacamos mais uma vez os falados no Brasil:
mbya, nhandewa, ńandeva, kaiowa e ava-guarani. Estudos como os de Morello
(2017), por sua vez, evidenciam a unidade do complexo guarani ao propor o status de idioma transnacional e
pluricęntrico para o complexo guarani. Segundo a autora, a ampla distribuiçăo territorial, do guarani
que o distingue como o idioma TG falado no maior número de países sul-americanos (Brasil, Argentina, Paraguai
e Bolívia e em menor densidade, também no Peru, Colômbia e Venezuela),
lhe confere o caráter de idioma transnacional:
Estudos recentes
mostram que além de ser
língua de milhares de paraguaios, incluindo os indígenas guarani,
em todos os territórios onde se encontra, é mantida por grande
parte do povo que a fala e seus âmbitos de uso estão em franca
expansão. Não há dados demolinguísticos atualizados, mas fontes avaliam em mais de 10 milhőes de falantes do guarani. (Morello,
2017, p. 226)
Para
apresentar o guarani como idioma pluricęntrico, Morello (2017) parte da
hipótese Clyne (1992) e Muhr (2012). Segundo esses autores, uma língua para ser
considerada pluricęntrica deve apresentar pelo menos uma, de sete características.
Uma análise preliminar do guarani a partir dos critérios propostos, parece
indicar que o idioma atende a pelo menos quatro delas:
1) Tem um estatuto
de língua oficial em pelo menos dois
países: o avańee
(guarani-paraguaio) no Paraguai,
o mbya em Tacuru (município de Mato Grosso do
Sul), no Brasil, e o guarani do Chaco, na Bolívia;
2)
É ministrado em escolas,
promovido e divulgado: tanto o Brasil quanto a Bolívia e o Paraguai, apresentam
políticas públicas (linguístico-educacionais), mais ou menos eficientes para
esse fim;
3)
Apresenta distância linguística cada uma
de suas variedades tem características linguísticas suficientes que as
distinguem uma das outras : o complexo guarani é composto por várias línguas que formariam uma cadeia dialetal;
4)
É símbolo de expressăo da identidade e da
singularidade sociocultural de cada povo: o guarani pode ser considerado um símbolo
de enlace histórico e sociocultural para os povos que o falam. (Morello,
2017, p. 223).
No que diz respeito ŕ atitude dos falantes
com relaçăo as suas línguas, podemos afirmar que os mbya, assim como os nhandewa,
ńandeva, kaiowa e ava-guarani, ao mesmo tempo que partilham desse enlace
histórico e sociocultural representado pelo idioma guarani, também se definem
por certa singularidade que lhes garante um diferencial identitário: esses
povos fazem parte da naçăo guarani (Morello, 2017), contudo cada um deles
elege do conjunto de elementos culturais disponíveis, aqueles que lhe permitem
ocupar uma posiçăo diferenciada no conjunto dessa naçăo. Se por um lado a
própria denominaçăo de suas línguas materializa o enlace, săo guarani mbya,
nhandewa-guarani, ava-guarani, por outro é também pela língua que constroem marcas
identitárias próprias.
De fato, a decisăo desses povos de elaborar sistemas
ortográficos diferenciados pode estar refletindo as relaçőes construídas,
cultural e socialmente, nesse jogo de identificaçăo e diferenciaçăo. Sem
adentramos aqui, na questăo complexa envolvendo esse
tipo de decisăo, que contraria os princípios técnicos para a definiçăo de
sistemas ortográficos: a padronizaçăo de uma escrita deve estimular a
comunicaçăo escrita entre diferentes grupos dialetais e, portanto, deve
representar a unidade linguística para além das variedades locais, sendo esta
uma condiçăo de sobrevivęncia desta língua (Mori, 1997, p. 30), diremos que a
decisăo de cada povo de operar com seu próprio sistema ortográfico, envolveria também
uma posiçăo conflitante com uma outra característica de um idioma pluricęntrico:
a aceitaçăo da pluricentricidade. De
fato, segundo Clyne (1992) e Muhr (2012), a comunidade
linguística ao aceitar o status de
sua língua como uma variedade pluricęntrica, passaria a considerá-la como parte
de sua identidade social/nacional.
Destacou-se, na
análise dessa questăo, a dificuldade de recuperar as condiçőes de produçăo
desses sistemas ortográficos. Avaliando alguns materiais
linguístico-pedagógicos produzidos para o ensino e aprendizado, observa-se que
eles năo fazem referęncia, por exemplo, aos autores (interlocutores situados
num tempo e num espaço) dos sistemas ortográficos ali utilizados, assim como
năo se explicitam questőes técnicas como a relaçăo entre som (fonemas/alofones)
e grafema. A versăo preliminar do Livro
de Alfabetizaçăo, de 2008, produzidos por professores guarani (nhandewa, mbya
e ava-guarani)[10]
com assessoria pedagógica da Secretaria de Estado de Educaçăo do Paraná,
mostra-se como um caso exemplar, já que nas tręs versőes preliminares dos
materiais, os diferentes sistemas ortográficos năo apresentam indicativos de
suas condiçőes de produçăo. Apresentamos os referidos sistemas ortográficos tal
qual aparecem na versăo preliminar no Livro de Alfabetizaçăo:
Quadro
1.
Livro de Alfabetizaçăo Ava Guarani.
2008.
Quadro
2.
Livro de Alfabetizaçăo Nhandewa Guarani.
2008.
Quadro
3.
Livro de Alfabetizaçăo Guarani Mbya.
2008.
No caso da
ortografia nhandewa, encontramos informaçőes sobre seu processo de elaborado no
livro Liçőes de Gramática Nhandewa-Guarani, Vol. I, de 2016, que é uma
publicaçăo do Projeto Gramática Pedagógica do Nhandewa-Guarani da Aldeia Nimuendaju-
Terra Indígena Araribá. De acordo com livro, O alfabeto e as regras ortográficas
adotadas... săo resultado da I Convençăo Ortográfica Nhandewa-Guarani... em
setembro de 2000... Essa convençăo foi revisada e confirmada... nos dias 16 a
18 de outubro de 2013 (Marcolino et al, 2016, p.19):
Quadro
4.
Liçőes de Gramática Nhandewa-Guarani
- 2016