UNIFICAÇĂO DE SISTEMAS ORTOGRÁFICOS:

O CASO DA LÍNGUA GUARANI MBYA FALADA NO BRASIL

 

Martins, Marci Fileti[1]

marcifm@gmail.com

Museu Nacional-UFRJ

Benites, José[2]

jokabe4@gmail.com

Museu Nacional-UFRJ

 

RESUMO

O sistema ortográfico proposto por Robert Dooley e por professores guarani mbya (1982/1998/2015) é, atualmente, o sistema utilizado pela maioria dos mbya (Sul e Sudeste do Brasil). Somente umas poucas comunidades mbya do estado do Espírito Santo optaram por um sistema ortográfico diferenciado, o que pode estar provocando certo conflito ortográfico. De fato, registros escritos em mbya – pedagógicos: específicos para as escolas mbya; produçőes acadęmicas (monografias/dissertaçőes) de alunos mbya; ambientes virtuais (Facebook/WhatsApp) – apresentam distinta formas ortográficas. Essa constataçăo fomentou uma proposta para unificaçăo do sistema ortográfico do guarani mbya falado no Brasil. O objetivo desse artigo, assim, é refletir sobre essa proposiçăo fornecendo subsídios para a construçăo de políticas linguísticas e educacionais para a língua guarani mbya, notadamente, para a implementaçăo de seu sistema de escrita, a partir da unificaçăo do seu sistema ortográfico.

Palavras-chave: guarani mbya, unificaçăo de sistema ortográfico, política linguística.

 

PETEI RAMI NHEMBOPARAA:

NHANDE GUARANI MBYA AYVU BRASIL PY

 

IPARAA MBOVY'I

Kuaxia para petei rami ojejapo anguă régua, Robert Dooley ha’egui mbya kuery nhombo’ea (1982/1998/2015) ha’egui anguy reve oiporua ve nhombo’ea kuery (Sul e Sudeste do Brasil py). Xo tekoa kuery Estado do Espírito Santo pygua kuery rive ma, oiporu nhembo pará amboae’i rami ju, há’evy ma női porăi rei ju nhemboparaa. Va’eri nhombo’ea mbya kuery ma  heta ve ju petei rami ombopara va’e, nhembo’ea tekoa rupi ői va’e, ha’egui faculdade; (Facebook/ WhatsApp) rupi guive, kova’e ojekuaa rupi ma ojejapo anguărami petei mba’eapo ojexauka anguă petei rami nhembopara oiko anguă rami Brasil py. Kova’e kuaxia onhembopara va’e ma, jaikuaa poră ve anguă, petei’i rami nhemoboparaa  jareko anguă nhande mbya kuery.

Palavras-chave: mbya, petei rami nhembopara, ayvu régua.

                                          

UNIFICATION OF ORTHOGRAPHIC SYSTEMS:

THE CASE OF THE GUARANI MBYA LANGUAGE

SPOKEN IN BRAZIL

 

ABSTRACT

The orthographic system proposed by Robert Dooley and by guarani mbya teachers (1982/1998/2015) is currently the system used by the majority of the Mbya people (South and Southeast of Brazil). Only a few mbya communities in the state of Espírito Santo have opted for a different orthographic system, which may be causing some orthographic conflict. In fact, records written in mbya - pedagogical: specific to mbya schools; academic productions (monographs / dissertations) by mbya students; virtual environments (Facebook / WhatsApp) - present different orthographic forms. This finding fostered a proposal to unify the orthographic system of the mbya guarani spoken in Brazil. The purpose of this article, therefore, is to reflect on this proposition by providing subsidies for the construction of linguistic and educational policies for the Mbya Guarani language, notably, for the implementation of its writing system, from the unification of its orthographic system.

Keywords: guarani mbya, unification of orthographic system, language policy.

 

INTRODUÇĂO

O guarani é hoje um dos idiomas indígenas com o maior número de falantes e está presente também no maior número de países sul-americanos.  De acordo com Morello (2017), por essas características, o guarani pode ser considerado um idioma transnacional. Ivo (2018), por sua vez, apresenta um estudo comparativo do que ela denomina “parcialidades” do guarani faladas no Brasil. A autora afirma, analisando a fonética e a fonologia do mbya, do nhandewa do Sudeste (Săo Paulo/Paraná), do ńandeva do Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul), e do kaiowa, que os resultados obtidos revelaram mais aproximaçőes do que distanciamentos, sendo “possível compreendermos este sistema fonológico como único, embora opere com variaçőes” (Ivo, 2018, p. 272). Dessa perspectiva, o mbya é considerado um dialeto da língua guarani falada no Brasil, a qual pertence ŕ família Tupi-Guarani, do tronco Tupi (Rodrigues, 1986).

Contudo, o tema envolvendo a posiçăo do mbya na família Tupi-Guarani merece ser explorado, em que pese a explicitaçăo das denominaçőes “parcialidade”, “variedade”, “dialeto”, “subdialeto” e “língua” usadas para identificar o mbya neste texto. De uma perspectiva estritamente linguística, o mbya é classificado como uma parcialidade/variedade/dialeto da língua guarani. De outro modo, a identificaçăo do mbya como “língua” busca garantir seu status político, enfatizando, conforme Campbell e Posser (2008), que a definiçăo de língua năo é estritamente um “empreendimento” linguístico, mas ŕs vezes é determinada mais por fatores políticos ou sociais. Além disso, segundo A. S. A. C. Cabral (comunicaçăo pessoal, 09 de junho de 2020), o que se denomina língua/idioma guarani pode ser entendido como um complexo dialetal, e entăo năo se trata de “uma língua guarani”, mas de várias línguas (mbya, kaiowa, nhandeva, xeta, avańe’e (guarani paraguaio), guarani do Chaco (chiriguano), izoceńo, guayaki e guarani antigo[3]), que formariam uma cadeia dialetal.

No que se refere ŕ escrita do mbya falado no Brasil, diremos que esta apresenta-se ainda como um sistema elementar, năo tendo, por exemplo, uma produçăo sistemática de materiais específicos para alfabetizaçăo em língua materna em suas escolas, assim como năo há programas de formaçăo de professores que levem em consideraçăo o desenvolvimento da escrita em sua língua.  Registros escritos em mbya – pedagógicos: específicos para as escolas mbya; produçőes acadęmicas (monografias/dissertaçőes), de alunos mbya; ambientes virtuais (Facebook/WhatsApp) – mostram também, que năo há consenso com relaçăo a sua ortografia, que aparece de distintas formas nos materiais que circulam nos espaços institucionais e năo institucionais.

Diante disso, pretendemos discutir a proposiçăo de unificaçăo do sistema ortográfico do mbya falado no Brasil, em que se destacam por um lado i) o resgate das condiçőes de produçăo[4] envolvendo o estabelecimento deste sistema, que se constitui por uma série de apagamentos e lacunas, e por outro ii) a devida caraterizaçăo de nossa proposiçăo que năo deve ser confundida com “uniformizaçăo ortográfica”. Esta se relaciona a propostas mais ortodoxas, nas quais um sistema ortográfico năo deve levar em consideraçăo diferenças dialetais. Sabemos, contudo, que tanto os nhandeva do Sudeste (SP/PR)[5], os kaiowa (MS), os ava-guarani[6] (PR), assim como os próprios mbya (ES/RJ/PR/SC/RS), já decidiram adotar sistemas ortográficos diferenciados. Essa decisăo vem ao encontro da necessidade destes povos de se distinguirem identitariamente, mesmo falando línguas de um mesmo complexo dialetal. A “unificaçăo ortográfica”, por sua vez, envolve o pressuposto de que circulam para uma mesma língua sistemas ortográficos diferenciados. O caso do mbya que trazemos para a discussăo, configura-se, como veremos, como decisőes envolvendo a utilizaçăo de sistemas ortográficos diferenciados para uma mesma língua.

Atualmente, a maioria dos mbya (Sul e Sudeste do Brasil) utiliza o sistema ortográfico proposto por Robert Dooley e por professores mbya do Posto Indígena Rio das Cobras, do estado do Paraná (1982/1998/2015). Somente umas poucas comunidades que vivem no estado do Espírito Santo, optaram por um outro sistema ortográfico. As motivaçőes que conduziram as comunidades mbya deste estado a tomar essa decisăo năo estăo claras, mas, possivelmente, decorrem da complexidade inerente aos processos de definiçăo de sistemas ortográficos de base fonológica para línguas fortemente ligadas a tradiçăo oral. A reflexăo que aqui se configura, portanto, pretende também fornecer subsídios para a construçăo de políticas linguísticas e educacionais para a língua mbya, notadamente, para a implementaçăo de seu sistema ortográfico levando em consideraçăo a interaçăo entre os aspectos político-sociais (demandas específicas das comunidades de fala) e técnicos (determinaçőes linguístico-pedagógicas)[7] na definiçăo de ortografias.

 

LÍNGUAS DE TRADIÇĂO ORAL E A DEFINIÇĂO DE SISTEMAS ORTOGRÁFICOS

O desenvolvimento de sistemas de escrita para língua de tradiçăo oral é processo que deve ser pensado a longo prazo e que por serem escritas de línguas minoritárias, văo exigir projetos robustos que envolvam o máximo empenho da própria comunidade de fala quanto do Estado, responsável pela implementaçăo de politicas linguísticas e educacionais.

Um elemento fundamental em qualquer sistema de escrita é, obviamente, o seu sistema ortográfico que, nesse processo, está sujeito a mudanças e adaptaçőes, e que segundo Franchetto (2008, p. 32), constitui-se e é reformulado na dependęncia de fatores que, além de serem de natureza “técnica” ou “científica”, săo políticos, ativos ou reativos. A autora destaca, assim, o que ela denomina “guerra dos alfabetos” assinalando que as “diferentes propostas de ortografia e as variadas representaçőes sobre o significado de letras ou grafemas tornam-se espelhos de ideologias em confronto”:

Há em curso no Brasil, e năo começou ontem, mas está cada vez mais acirrada e violenta, uma verdadeira guerra dos alfabetos, cujos combatentes săo pequenos exércitos de missionários, membros de órgăos governamentais e năo-governamentais, linguistas, assessores. Em meio a essa guerra, os índios aliam-se ora a uns, ora a outros, avançando ou recuando, negociando. (Franchetto, 2008, p. 32)

A história do sistema ortográfico mbya no Brasil, está ligada ŕ “pequenos exércitos de missionários” se levarmos em consideraçăo que a primeira proposta e a mais bem sucedida para um sistema ortográfico da língua, é a de Robert Dooley, um missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL). Contudo, năo há registros de divergęncias resultado de “ideologias em confronto”, já que linguistas e pedagogos, assim como assessores e órgăos governamentais no curso desses 38 anos – a primeira proposta de Dooley é de 1982 – năo apresentou crítica a esse sistema, nem tăo pouco uma proposta alternativa.

A reflexăo que estamos propondo aqui, assim, parte da comunidade indígena que há tempos vem refletindo sobre sua escrita, atenta, especialmente, ŕs diferentes grafias utilizadas por seus escritores. Os principais responsáveis por esses questionamentos săo os professores mbya, que tęm como responsabilidade alfabetizar seus alunos por meio de um sistema ortográfico ainda em consolidaçăo. O ambiente pedagógico para os professores nas escolas mbya se torna ainda mais complexo se levarmos em consideraçăo que, em seus primeiros momentos, a escola adentrou nas comunidades mbya sem que houvesse consenso. De fato, os mais velhos, os sábios mbya, năo concordavam com o estabelecimento das escolas nas aldeias. Segundo eles, ao trazer a educaçăo do năo indígena, as escolas iriam eliminar a cultura mbya.

Portanto, os mbya, especialmente professores e alunos, além de enfrentaram a reprovaçăo por parte de sua comunidade, ainda tiveram que lidar como próprio sistema educacional que lhes foi oferecido. Sistema este que năo reflete a educaçăo diferenciada e de qualidade a que os povos indígenas tęm direito. Contudo, ao longo dos anos, mudanças começam a surgir, especialmente, quando os professores mbya passam a questionar o seu papel nos processos de ensino e aprendizagem, levando-os a buscarem posiçőes de maior protagonismo em suas escolas. Essa reflexăo lhes mostrou que as dificuldades enfrentadas para a consolidaçăo de seu sistema de escrita, está também relacionada ŕ escola que lhes é oferecida: na maioria dos casos, esta escola se constitui como um projeto “fechado” organizado para o ensino da língua portuguesa, năo estando preparada para a educaçăo bilíngue, por exemplo.

A educaçăo escolar indígena no Brasil, portanto, mesmo sendo idealizada para ser diferenciada e sendo essa proposiçăo um direito constitucional, năo se apresenta efetivamente com essas características na implementaçăo dos projetos político-educacionais. Esse contexto educacional pode ser analisado a partir do que Mariani (2003) denominou colonizaçăo linguística do Brasil: “o processo histórico que aglutinou a realeza e a igreja portuguesas em um projeto político-linguístico em larga medida comum e simultaneamente nacional e internacional” (p.73):

A mesma autora aponta duas consequęncias fundamentais desse processo colonizador: i) o nascimento de uma tradiçăo de saber metalinguístico sobre as línguas indígenas brasileiras (gramatizaçăo) e ii) o estabelecimento de políticas portuguesas de defesa e implantaçăo do idioma portuguęs no território brasileiro (Brasil monolíngue portuguęs a única língua oficial). Assim, a educaçăo dos e para os povos indígenas, implementada pelo projeto educacional jesuítico/portuguęs, serviu como um meio de dominaçăo, como um instrumento usado pelo colonizador para impor sua cultura e seu projeto político. Em um primeiro momento, funda-se as bases da escrita em línguas indígenas (construçăo de um saber metalinguístico) e promove-se o Tupinambá ŕ categoria de língua franca; em um segundo momento, impőe-se o portuguęs como única língua oficial com consequente exclusăo, do cenário linguístico (também educacional se se levar em consideraçăo o Tupinambá) das outras línguas indígenas faladas no território brasileiro. (Martins, 2016, p. 112)

Diretamente ligada a essa questăo está o que Auroux (1992), denomina revoluçăo tecnológica da gramatizaçăo: “por gramatizaçăo deve-se entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias que săo ainda hoje os pilares do nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (p. 65).

Auroux (1992) afirma também, que o surgimento do saber metalinguístico somente se tornou possível com o advento da escrita. Essa é uma tese controversa, pois se por um lado contraria o pressuposto de que conhecimento metalinguístico foi o que determinou a origem da escrita, por outro circunscreve as sociedades de tradiçăo oral a uma posiçăo inferior: povos que, por năo desenvolveram a escrita, năo estariam aptos ŕ reflexăo metalinguística. Souza (2017), contestando a tese de Auroux (1992) afirma, analisando o bakairi (Família Karibe), que a  “concepçăo de duas línguas em Bakairi – uma de uso comum e outra usada pelo pajé - já aponta, de imediato, um traço de metalinguagem” (p. 47). A mesma autora afirma, ainda, que na origem desse tipo de afirmaçăo – tal qual a de Auroux – está o que Orlandi denomina duas “reduçőes” na história da reflexăo sobre a linguagem:

Na história da reflexăo sobre a linguagem podem ser assinaladas duas reduçőes: reduçăo do fato à disciplina (Linguística) e, consequentemente, se reduz a significaçăo ao linguístico. E assim apagam-se as diferenças entre o verbal e o não-verbal. Tem-se entăo a assepsia do não-verbal pela sua verbalizaçăo necessária. (Orlandi apud Souza, 2016, p.49)

Dessa perspectiva a “reflexăo sobre linguagem” – oralidade versus escrita versus metalinguagem – feitas por Auroux (1992), pode estar sendo determinada por estas “reduçőes” e, nesse caso, o que se apagam săo as diferenças entre a “oralidade” e a “escrita”  com a respectiva “assepsia” do oral pelo escrito.

De fato, segundo Souza (2017), é necessária uma mudança de perspectiva para analisarmos as sociedades de oralidade[8]:

Com isso, năo se toma a escrita – nem tampouco a sua falta – como parâmetro para se definir o que é oralidade. É comum, em nossa cultura, quando se define o oral, fazę-lo por oposiçăo ŕ escrita. A escrita é o parâmetro para se entender o oral. E é também o parâmetro para falar do oral numa sociedade sem (?) escrita... Diferentemente de nossa sociedade, nessas outras, o domínio é do oral, portanto, o oral deve ser pensado na sua própria materialidade “e năo a partir da sua visibilidade em línguas de escrita” (Souza 1994). Sob este enfoque, é possível se falar da constituiçăo de um tipo de memória, que é feita por uma forma de inscriçăo que permite ao mesmo tempo preservar a história do grupo e compreender o que é oralidade. (p. 39)

Contudo, mesmo que se conteste a afirmaçăo de Auroux (1992) sobre ser a escrita o elemento fundador de processos metalinguísticos, diremos que, contemporaneamente[9], a definiçăo de sistemas ortográficos para as línguas de tradiçăo oral, como a mbya, está definitivamente ligada ŕ história da gramatizaçăo, ou seja, é a memória da constituiçăo dos sistemas de escrita – determinado ou determinante do saber metalinguístico – o que estabelece esse empreendimento. É, portanto, na tensăo entre as demandas da comunidade de fala mbya (memória da oralidade) e a cięncia da linguagem (memória da gramatizaçăo/escrita), que pretendemos determinar e planejar o projeto de unificaçăo do sistema ortográfico do mbya falado no Brasil. E se por um lado essa proposta de unificaçăo é motivada por uma demanda da comunidade mbya, por outro deve levar em consideraçăo, em certa medida, conhecimentos estranhos a esta mesma comunidade.

 

OS SISTEMAS ORTOGRÁFICOS DAS LÍNGUAS GUARANI

De tal modo, na base do conhecimento gramatical ocidental, está a motivaçăo para a preponderância dos elementos técnicos-científicos (linguísticos, pedagógicos, etc.) na definiçăo de sistemas ortográficos. É por isso que Berry (apud Mori, 1997) mesmo afirmando que um sistema de escrita deve ser científico e socialmente aceitável, vai dar ęnfase aos critérios linguísticos para a elaboraçăo de um sistema ortográfico. Săo eles:

1)   Princípios técnico-científicos;

2)   Variáveis năo linguísticas;

3)   Tratamento dos compostos;

4)   Tratamentos dos empréstimos,

5)   O tratamento dos sinais de pontuaçăo.

Dos elementos apontados pelos autores, interessa-nos destacar as 2) variáveis năo linguísticas, já que este parece ser um dos critérios mais representativos para a compreensăo do cenário envolvendo o estabelecimento da ortografia mbya. De acordo com Mori (1997), as variáveis năo linguísticas envolvem: i) as atitudes do falante com relaçăo a sua língua, ii) as diferenças dialetais, e iii) a situaçăo sociolinguística da língua em relaçăo ŕs outras línguas da regiăo. No que concerne ŕs diferenças dialetais do complexo Guarani, estas estăo registradas na literatura linguística desde a clássica classificaçăo feita por Rodrigues (1986), e em trabalhos posteriores do qual se destacam o de Rodrigues e Cabral (2012) e o de Dietrich (2010). Os autores propőem que o complexo guarani é constituído por subgrupos linguísticos, dos quais destacamos mais uma vez os falados no Brasil: mbya, nhandewa, ńandeva, kaiowa e ava-guarani. Estudos como os de Morello (2017), por sua vez, evidenciam a unidade do complexo guarani ao propor o status de idioma “transnacional e pluricęntrico” para o complexo guarani. Segundo a autora, a ampla distribuiçăo territorial, do guarani que o distingue como o idioma TG falado no maior número de países sul-americanos (Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia e em menor densidade, também no Peru, Colômbia e Venezuela), lhe confere o caráter de idioma transnacional:     

Estudos recentes mostram que além de ser língua de milhares de paraguaios, incluindo os indígenas guarani, em todos os territórios onde se encontra, é mantida por grande parte do povo que a fala e seus âmbitos de uso estão em franca expansão. Não há dados demolinguísticos atualizados, mas fontes avaliam em mais de 10 milhőes de falantes do guarani. (Morello, 2017, p. 226)

Para apresentar o guarani como idioma pluricęntrico, Morello (2017) parte da hipótese Clyne (1992) e Muhr (2012). Segundo esses autores, uma língua para ser considerada pluricęntrica deve apresentar pelo menos uma, de sete características. Uma análise preliminar do guarani a partir dos critérios propostos, parece indicar que o idioma atende a pelo menos quatro delas:

1)   Tem um estatuto de língua oficial em pelo menos dois países: o avańe’e (guarani-paraguaio) no Paraguai, o mbya em Tacuru – (município de Mato Grosso do Sul), no Brasil, e o guarani do Chaco, na Bolívia;

2)   É ministrado em escolas, promovido e divulgado: tanto o Brasil quanto a Bolívia e o Paraguai, apresentam políticas públicas (linguístico-educacionais), mais ou menos eficientes para esse fim;

3)   Apresenta distância linguística – cada uma de suas variedades tem características linguísticas suficientes que as distinguem uma das outras –: o complexo guarani é composto por várias línguas que formariam uma cadeia dialetal;

4)   É símbolo de expressăo da identidade e da singularidade sociocultural de cada povo: o guarani pode ser considerado um símbolo “de enlace histórico e sociocultural” para os povos que o falam. (Morello, 2017, p. 223).

No que diz respeito ŕ “atitude dos falantes com relaçăo as suas línguas”, podemos afirmar que os mbya, assim como os nhandewa, ńandeva, kaiowa e ava-guarani, ao mesmo tempo que partilham desse “enlace histórico e sociocultural” representado pelo idioma guarani, também se definem por certa singularidade que lhes garante um diferencial identitário: esses povos fazem parte da “naçăo guarani” (Morello, 2017), contudo cada um deles elege do conjunto de elementos culturais disponíveis, aqueles que lhe permitem ocupar uma posiçăo diferenciada no conjunto dessa naçăo. Se por um lado a própria denominaçăo de suas línguas materializa o “enlace”, săo guarani mbya, nhandewa-guarani, ava-guarani, por outro é também pela língua que constroem marcas identitárias próprias.

De fato, a decisăo desses povos de elaborar sistemas ortográficos diferenciados pode estar refletindo as relaçőes construídas, cultural e socialmente, nesse jogo de identificaçăo e diferenciaçăo. Sem adentramos aqui, na questăo complexa envolvendo esse tipo de decisăo, que contraria os princípios técnicos para a definiçăo de sistemas ortográficos: “a padronizaçăo de uma escrita deve estimular a comunicaçăo escrita entre diferentes grupos dialetais” e, portanto, deve representar “a unidade linguística para além das variedades locais”, sendo esta uma condiçăo de “sobrevivęncia desta língua” (Mori, 1997, p. 30), diremos que a decisăo de cada povo de operar com seu próprio sistema ortográfico, envolveria também uma posiçăo conflitante com uma outra característica de um idioma pluricęntrico: a “aceitaçăo da pluricentricidade”. De fato, segundo Clyne (1992) e Muhr (2012), a comunidade linguística ao aceitar o status de sua língua como uma variedade pluricęntrica, passaria a considerá-la como parte de sua identidade social/nacional.

Destacou-se, na análise dessa questăo, a dificuldade de recuperar as condiçőes de produçăo desses sistemas ortográficos. Avaliando alguns materiais linguístico-pedagógicos produzidos para o ensino e aprendizado, observa-se que eles năo fazem referęncia, por exemplo, aos autores (interlocutores situados num tempo e num espaço) dos sistemas ortográficos ali utilizados, assim como năo se explicitam questőes técnicas como a relaçăo entre som (fonemas/alofones) e grafema.  A versăo preliminar do “Livro de Alfabetizaçăo”, de 2008, produzidos por professores guarani (nhandewa, mbya e ava-guarani)[10] com assessoria pedagógica da Secretaria de Estado de Educaçăo do Paraná, mostra-se como um caso exemplar, já que nas tręs versőes preliminares dos materiais, os diferentes sistemas ortográficos năo apresentam indicativos de suas condiçőes de produçăo. Apresentamos os referidos sistemas ortográficos tal qual aparecem na versăo preliminar no “Livro de Alfabetizaçăo”:

Quadro 1.

Livro de Alfabetizaçăo Ava Guarani. 2008.

Quadro 2.

Livro de Alfabetizaçăo Nhandewa Guarani. 2008.

Quadro 3.

Livro de Alfabetizaçăo Guarani Mbya. 2008.

           

No caso da ortografia nhandewa, encontramos informaçőes sobre seu processo de elaborado no livro Liçőes de Gramática Nhandewa-Guarani, Vol. I, de 2016, que é uma publicaçăo do Projeto Gramática Pedagógica do Nhandewa-Guarani da Aldeia Nimuendaju- Terra Indígena Araribá. De acordo com livro, “O alfabeto e as regras ortográficas adotadas... săo resultado da I Convençăo Ortográfica Nhandewa-Guarani... em setembro de 2000... Essa convençăo foi revisada e confirmada... nos dias 16 a 18 de outubro de 2013” (Marcolino et al, 2016, p.19):

Quadro 4.

Liçőes de Gramática Nhandewa-Guarani - 2016