Cleidi
Lovatto Pires[1]
cleidip@terra.com.br
Márcia
Lise Lunardi-Lazzarin[2]
lunazza@gmail.com
Universidade Federal de Santa María, UFSM,
Brasil
RESUMO
Este artigo está ancorado
a uma perspectiva pós-estruturalista e discute aspectos de uma pesquisa no
campo da educação de surdos, que tem por objetivo problematizar a formação de
professores surdos em um Curso Normal de Nível Médio desenvolvido na Escola
Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser (Santa
Maria/RS/Brasil). A intenção é compreender as estratégias de formação de
professores surdos a partir de uma rede discursiva, produzida por um conjunto
de documentos da escola que apresentam os modos de ver, narrar e conduzir a
formação de estudantes surdos. Nesse sentido, é possível compreender a formação
como uma artesania surda pensada para o ofício do professor surdo, em que a
centralidade está na visualidade.
Palavras-chave: surdos, formação, curso
normal, experiência.
FORMATIVE
EXPERIENCE OF DEAF TEACHERS IN A HIGH SCHOOL: THE CONTEXT OF A BILINGUAL PUBLIC
SCHOOL FOR DEAF
ABSTRACT
The article presents a post-structuralist perspective
and discusses aspects of a research in deaf education, it has its goals to
discuss the professional formation of deaf teachers in a normal High School
course developed at “Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando
Coser” (Santa Maria/RS/Brazil). The intention is to understand the strategies
in the formation of deaf teachers from a discursive network, generated from a
group of documents from the High School that reveals the ways to see, narrate
and conduct the professional training of deaf students. Hence, it is possible
to understand the professional formation as a deaf art thought for the deaf
teacher, where the gist is in its visualness.
Keywords: deaf, professional formation, high school, experience.
APRESENTAÇÃO
Este
texto é um recorte de uma pesquisa de doutorado, ainda em andamento, realizada
no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria/Rio
Grande do Sul/Brasil, que versa sobre a formação de professores surdos em uma
escola de curso médio. Para iniciar, pensamos ser necessário localizá-lo a
partir da perspectiva teórico-metodológica à qual nos filiamos, tanto para
problematizar nosso tema de pesquisa quanto para alinhar as ideias da escrita. Salientamos
que as questões deste trabalho, são vistas através das “lentes” da perspectiva
pós-estruturalista. Ao filiarmo-nos a esse campo, a pesquisa passa a ter um
caráter menos prescritivo, previsível e sistemático, menos pretensioso. De
certa forma, o que buscamos é transgredir por meio de uma escrita mais orgânica
ao movimento investigativo, ou seja, imersas nesse estudo deixamos escorrer nossos
pensamentos atravessados por uma materialidade que, às vezes embaraça, dispara
dores, racha, afeta, compondo outros modos de olhar para o mundo e a pesquisa,
pois ambas são indissociáveis. Pesquisar é vida.
Ser desafiada na pesquisa é a busca pelo improvável ou por algo que não
se espera (mas que acontece). Como diz Larrosa (2018), pesquisando e esperando
não se sabe o que, lendo, escrevendo, espreitando, arredando. Produzir
pesquisa, (re)escrever o texto, pensar sobre o próprio pensamento, retomar a
escrita por meio de novos achados sendo desafiadas cotidianamente. E, sobretudo,
se respeitando durante a escrita, sendo generosa consigo, atenta e delicada com
sua produção textual, não esquecendo que seu texto é pesquisa. Constituindo,
portanto, o seu modo de escrita.
Mediante
esse movimento de pensamento investigativo, interessa-nos “entender as experiências formativas que
estão sendo colocadas em funcionamento para a constituição de professores
surdos em um curso Médio-Normal”[1].
A fim de movimentar as peças desse enredo discursivo, fizemos um recorte
da pesquisa mais ampla, para pensar a escola surda como um espaço de formação
de professores surdos. Neste texto, pretendemos analisar um conjunto de dados
produzidos por uma escola pública bilíngue de surdos, a qual vem se ocupando da
formação desses sujeitos em um Curso Normal, no ensino médio.
A EXPERIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
SURDOS
Para
pensar sobre a proposição do Curso Normal da escola de surdos, objeto desta
pesquisa, gostaríamos de destacar que o curso teve seu início no ano de 2006.
Até o momento, já formou 63 professores surdos por meio da formação regular e
aproveitamento de estudos (para egressos do Ensino Médio que desejam fazer a
formação pedagógica como complementação profissional).
A
base comum do curso é composta por áreas do conhecimento que abrangem os
componentes e um marcador na formação profissional dos alunos está vinculado à
parte diversificada (a formação profissional), que também compreende
disciplinas voltadas à pedagogia surda: Língua Brasileira de Sinais e Didática
de Língua de Sinais. Para especificar segue o quadro demonstrativo abaixo:
Quadro 1.
Matriz Curricular do curso.
|
COMPONENTE CURRICULAR |
Carga
Horária Total |
LINGUAGENS |
LÍNGUA
PORTUGUESA – L2 |
200 |
LITERATURA |
100 |
|
ARTE |
67 |
|
EDUCAÇÃO FÍSICA |
100 |
|
LÍNGUA
BRASILEIRA DE SINAIS* |
200 |
|
MATEMÁTICA |
MATEMÁTICA |
200 |
CIÊNCIAS DA NATUREZA |
FÍSICA |
133 |
QUÍMICA |
133 |
|
BIOLOGIA |
133 |
|
CIÊNCIAS HUMANAS |
GEOGRAFIA |
133 |
HISTORIA |
133 |
|
SOCIOLOGIA |
67 |
|
FILOSOFIA |
67 |
|
ENSINO
RELIGIOSO |
ENSINO RELIGIOSO |
67 |
EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS |
67 |
|
LÍNGUA INGLESA |
100 |
|
LÍNGUA ESPANHOLA |
33 |
|
LITERATURA INFANTIL |
67 |
|
EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO |
ESTRUTURA E
FUNCIONAMENTO DE ENSINO |
67 |
PSICOLOGIA
DA EDUCAÇÃO |
67 |
|
SOCIOLOGIA
DA EDUCAÇÃO |
33 |
|
FILOSOFIA
DA EDUCAÇÃO |
33 |
|
|
HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO |
67 |
CONHECIMENTO ESPECÍFICO DA EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO
FUNDAMENTAL E DA EDUCAÇÃO ESPECIAL |
DIDÁTICA GERAL |
267 |
DIDÁTICA
DA LINGUAGEM |
167 |
|
DIDÁTICA DE LÍNGUA DE SINAIS |
133 |
|
DIDÁTICA
DA ARTE EDUCAÇÃO |
133 |
|
DIDÁTICA
DA EDUCAÇÃO FISICA |
133 |
|
DIDÁTICA
DA MATEMATICA |
133 |
|
DIDÁTICA DAS CIÊNCIAS DA NATUREZA |
133 |
|
DIDÁTICA
DAS CIÊNCIAS HUMANAS |
133 |
|
DIDÁTICA
DE ENSINO RELIGIOSO |
133 |
|
TOTAL
DE HORAS |
3633 |
|
PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS |
400 |
|
ESTÁGIO
PROFISSIONAL |
400 |
|
TOTAL
DO CURSO |
4433 |
Segundo
o Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola, a
partir da matriz curricular do curso, “é possível promover uma pedagogia surda
voltada para os artefatos culturais como forma de atuação pedagógica voltada
para o aprendiz surdo como uma experiência pedagógica visual” (2018a, p. 7).
Diríamos
que se trata de uma artesania surda, pensada para o ofício do professor surdo,
em que a centralidade das dinâmicas pedagógicas está na visualidade, nas
imagens. A visualidade é um fator de grande relevância para o gerenciamento das
atividades em sala de aula, o que perpassa a língua de sinais, a expressão
facial e corporal, mas principalmente os recursos pedagógicos construídos
pelos/para os surdos.
Entendemos
ser esse um cenário de militância por uma formação baseada na inserção
cultural, linguística e identitária das comunidades surdas. Entretanto, dizer o
que já foi dito na educação de surdos parece que não dá conta (não relacionando
o dar conta a uma perspectiva totalitária do sujeito) de responder às
inquietações relacionadas à educação de surdos. É preciso tensionar de outro
modo, “[pronunciando] na sala de aula [ou na educação de surdos] uma palavra
humana, isto é, insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade” (Larrosa, 2015, p. 165).
E,
assim outras tramas são rascunhadas, sentidas e fragilizadas. Então, perguntamos:
afinal, o estudante surdo do Curso Normal assume uma proposição protagonista de
artesania durante sua formação? O que deveria ser problematizado ao longo do
curso por meio da diversificação de materiais produzidos? Jogos, livros de
literatura com imagens, atividades filmadas, teatro, maquetes, máscaras,
esculturas, etc. são operacionalizados? Como os alunos surdos se organizam
nesse espaço artesão de formação?
Essas
estratégias engendram-se, por vezes, em cenários entremeados por um movimento
pedagógico que procura pela didatização de um jeito surdo de ensinar, um ideal
a ser alcançado para a condução das condutas de futuros professores surdos. O
que está em jogo aqui é problematizar a necessidade pedagógica de certa busca
por uma normalidade surda.
Diante
desse cenário, nosso olhar deixa-se fluir, sem predeterminar um julgamento ou
juízo de valor. Trata-se de um pensamento que não determina verdades, mas que
trabalha com o acontecimento na pesquisa, que permite que o acontecimento
emerja. Transgredir, conforme fala Larrosa (2003) em
seu texto “O Ensaio e a Escrita Acadêmica”, pode significar imprimir aos nossos
textos um pensamento fluido, leve e provocativo, o que é possível vislumbrarmos
na narrativa do PPP da escola: “multiplicar os
significados e as possibilidades de produção de subjetividades, procurando
assim romper com o processo de homogeneização, proposto pelos neoliberais da
educação, visando com isso discutir diferentes alternativas ao projeto
educacional hegemônico” (2018a, p. 05).
Atualmente,
a escola investigada busca produzir práticas fundamentadas em um discurso de respeito
e afirmação das diferenças, por intermédio de um currículo voltado para a
diferença (PPP, 2018a). O Curso Normal é oferecido nos turnos diurno e noturno,
organizando-se em dois blocos, área do conhecimento e enfoque ou temáticas, visando
a assegurar um processo de ensino e aprendizagem interdisciplinares. A
articulação dos dois blocos do currículo desenvolve-se por meio dos projetos e
das práticas pedagógicas construídos nos seminários integrados, na
transversalidade dos enfoques e temáticas que oportunizam a apropriação do
fazer pedagógico pelo pesquisador/aluno/professor.
Segundo
o regimento (2018b), tal organização possibilita alternativas concretas para o
desenvolvimento da prática docente e da dinâmica escolar, proporcionando a
atuação e a interação dos futuros educadores surdos em diferentes frentes
pedagógicas nas escolas, nos grupos e nas instituições que atendam surdos. Por
fim, ampliam-se as possibilidades de confrontação entre a fundamentação teórica
e a prática concreta de sala de aula, com estímulo ao processo de
ação-reflexão-ação como movimento inerente ao ofício do educador surdo. Dessa maneira,
é possível promover uma pedagogia surda com base em artefatos culturais como
forma de atuação pedagógica voltada para o aprendiz surdo como uma experiência
pedagógica visual.
Os
elementos que envolvem a construção de uma experiência pedagógica visual
conduzem-nos a importantes questionamentos; talvez o principal deles seja: qual
escola de surdos queremos? A escola defendida pela comunidade surda não pode
reduzir-se ao contato de duas línguas, pois há outras facetas da escola de
surdos a serem problematizadas, intimamente relacionadas a questões políticas,
sociais e culturais. Na defesa das escolas de surdos, sugere-se também a
manutenção dos movimentos da comunidade surda, pois elas são concretamente os
locais onde aparecem as vozes surdas que procuram uma escola singular:
As lideranças surdas aproveitando os espaços
oferecidos pelos estudos acadêmicos denominados Estudos Culturais, tendem a
fazer ouvir suas demandas [quando egressos especialmente das escolas de surdos]
e inseridos aos poucos no mundo acadêmico, realizam pesquisas que apontam para
a necessidade de mudanças profundas não apenas pontuais e aparentes. (Rangel & Stumpf, 2012, p. 117)
Argumentar
em defesa da escola é o que emerge. Entretanto, parece que todos os argumentos,
na modernidade, estão sendo descartados, conforme lembram Masschelein e Simons
(2017). Fomentar essa fecunda proposição (o ofício de uma escola formadora) é
necessário, pois se trata de uma formação com peculiaridades potentes acopladas
a uma engrenagem. Trata-se de uma organização escolar na qual os modos de vida
produzem verdades, as certezas deveriam ser provisórias e as verdades,
interrogáveis. Transita-se em um solo incerto, diluindo-se as certezas de
futuro.
Ao
olharmos para a realidade escolar, foi preciso interrogá-la, suspeitar do
reflexo, ou melhor, do espelho dessa realidade. Nesse sentido, o “chão da
pesquisa”, o trajeto investigativo, foi se desenhando e se adensando à medida
que nos debruçávamos sobre o objeto pesquisado. Acompanhando os efeitos da formação
de surdos, professores em um curso Médio-Normal, foi possível traçar um
movimento metodológico que vem nos ajudando a entender os efeitos dessa
formação nos sujeitos surdos que estão em pleno percurso formativo.
Como
forma de registro desses acontecimentos, um diário de campo vem sendo
construído como instrumento para auxiliar na organização das ideias centrais da
pesquisa. O diário de campo é uma das possibilidades de mantermos um tom
etnográfico neste estudo. Ao assumirmos essa condição, o fizemos a partir do
entendimento de que a pesquisa etnográfica se caracteriza pelo:
Contato
direto e prolongado do pesquisador com a situação e/ou grupos selecionados; - Grande
quantidade de dados descritivos, com o acúmulo de locais, fatos, ações,
pessoas, relações, formas de linguagem, etc.; - Existência de um esquema aberto
que permite transitar entre observação e análise...; utilização de diferentes
técnicas de coleta e de fontes de dados. (André, 1980, p. 38)
O
Regimento Escolar (2018b) e o PPP (2018a) apontam também para outros tantos
elementos e lançam-nos para a temática de pesquisa. É uma produção de dados que
nos permitiu compreender a proposição da noção de ofício na “formação” de
estudantes surdos, a ponto de afastar-nos, de certa forma, do termo formação para pensar a partir do termo ofício. Ofício que se afasta da condução
de condutas e que, ao contrário, no seio da escola, provoca possibilidades
amorosas de trilhar o caminho na oficina do mestre. Na esteira oficineira, o
espaço da sala de aula é cotidianamente pensado e alterado pelo professor. Ali
não há receitas, verdades; ofício é um modo de vida, escolhas amorosas que se
dão pelas dúvidas e são refeitas. Segundo Larrosa (2018a,
p. 316):
A
concepção do ofício como a potência, ou a capacidade, ou a faculdade de atuar, e
a implementação dessa potência, sua passagem ao ato, não depende de outra coisa
que do hábito, da héxis, do costume, ou éthos, do que poderíamos chamar de um
saber fazer incorporado, encarnado. Neste sentido o ofício é o passo do ser ao
atuar e do atuar ao ser. O professor defendendo aquilo que é, se converte em
professor, ao atuar como professor, e só pode atuar ao exercer ou atuar como
professor, e só pode atuar como professor enquanto é professor... é necessário
um professor que oficie como professor.
É
necessário um professor oficineiro que imprima artesania em seu cotidiano
escolar. Um exercício artesão que seja capaz de acionar possibilidades outras,
para além das atribuladas “tarefas duras” do cotidiano do professor. Afinal ser
professor não pode ser confundido com ser um funcionário docente.
Faz-se
relevante indagar, suspeitar de “algumas coisas” da escola nesse contexto da
informação, da fluidez e da rapidez dessa sociedade da informação. Para
suspender esse contexto disciplinador, efêmero em que a educação se encontra, o
professor assume a centralidade do processo formativo como alguém que
desenvolve seu ofício, um ofício que não é desenvolvido numa oficina e sim numa
escola, numa sala de aula.
Masschelein
e Simons (2017) no livro “Em Defesa da
Escola” escrevem sobre possibilidade de a escola ter um professor artesão.
Artesão que habita a escola feita de corredores, salas de aula, livros
didáticos e tecnologias. O professor que ocupa um papel particularmente
especial no contexto da sala de aula e da escola como um todo. Pois, nesse
emaranhado, entre informação e conhecimento, os estudantes, por vezes,
constituem opinião sobre as coisas e sobre o mundo com base em eventos rasos e
instantâneos, afinal para o estudante compor-se no grupo é necessário ter opinião sobre tudo e
todos.
Segundo
Larrosa (2017) a falta de tempo é disparadora de ações protocolares por parte
do professor; é necessário demorar-se, é imperioso significar a ação pedagógica
e estar ali. A velocidade, a instantaneidade são elementos que freiam a
experiência e retiram dela a possibilidade de tornar a escola um lugar do
acontecimento, onde silêncio, ação, palavras ditas e não ditas se enchem de
significado a favor daquele objetivo central da
escola-experienciar-aprender-ensinar. Somos impregnados de escola, entretanto,
nosso tempo nela é acelerado, obsessivo/compulsivo. Confunde-se experiência com
excesso de trabalho, ou seja, quanto mais envolve-se com uma situação mais
experiência temos sobre ela como se ela fosse cumulativa, cenário que é nocivo
e destrutivo da experiência, essa tribulação “... é inimiga mortal da
experiência” (Larrosa, 2017, p. 24).
Para
o referido autor, experiência refere-se a:
Possibilidade
de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto
que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar
para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, , e
escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os
olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,
escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e
dar-se tempo e espaço. (Larrosa, 2017, p. 25)
Já
Heidegger (apud Larrosa, 2017, p. 27) anuncia experiência traçando
comparativamente dois aspectos: travessia e perigo, pois:
Fazer
uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se
apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança
receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma
experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que
nos interpela, entrando-nos e nos submetendo a isso. Podemos ser assim
transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do
tempo.
A
experiência como tal nem sempre é exitosa, nem sempre nos mantém em pé, ao
contrário ela é balbuciante, hesitante, nem sempre encontra aquilo que procura,
é indefinível do ponto de vista do objetivo realizado. Muitas vezes, o sujeito
da experiência sofre, vacila e é submetido. Extingue-se aqui a ideia de um
sujeito fortalecido e sempre ereto. Estar aberto a experiência faz do sujeito
aquele que espera e que está aberto ao acontecimento. Trata-se de uma relação
de paixão e amor com o que é vivido a partir da experiência, buscar sentido ao
ir adentrando aos porões e aos acontecimentos vividos assumindo também com
paixão os “padecimentos”.
Experimentar
na escola sempre está vinculada aquilo que faz sentido ao pedagógico e na
relação pedagógica do acontecido. Relação muito particular, singular, que nunca
se repete com sentidos múltiplos, únicos. Quanto mais nos aproximamos da escola
mais a relacionamos com o professor e com seu ofício (quem apropria-se de um
saber específico), ofício que não é descartável.
O
professor muitas vezes, olha para a realidade também como um espaço de produção
de verdades. Verdades que são ditas, escritas, praticadas, externadas, nomeadas
e inventadas, verdades produzidas e naturalizadas. Contudo, “podemos
desconstruir as evidências naturalizadas mostrando como foram produzidas, pois,
se algo não foi sempre assim, nada determina que assim permaneça” (Tedeschi
& Pavan, 2017, p. 776).
Na
possibilidade de ampliarmos o repertório discursivo que envolve o contexto da
formação de professores surdos buscamos por recorrências que pudessem nos dar
outras pistas sobre a constituição desses surdos-professores. Para isso, propomos
ateliês pedagógicos que se aproximam da pesquisa
etnográfica, pois o pesquisador se insere no contexto de pesquisa com base na
observação participante, mantendo contato direto com o campo de pesquisa e com
sua materialidade. Foram
organizados três ateliês. Dois deles realizados com professores da escola e
foram usadas fotografias da produção dos alunos, como disparadores para a
conversa. O terceiro ateliê foi feito com os alunos em finalização do curso e
alguns professores participaram da conversa. Os ateliês foram registrados por
meio de filmagens. Tal atividade não tem a
pretensão de desvelar, revelar ou arredar cortinas; busca um dispositivo de
funcionamento mais ou menos regular em que se articulam a repetição e a
variação, que nomeamos de movimento função de referência. Mobilização que ajuda
a colocar em funcionamento o pensamento do pesquisador acerca dos objetivos e
problema de pesquisa. Experiências que estão em movimento, com seus ritmos, mas
que não são previsíveis. Nesse sentido, a etnografia ajuda a movimentar o
cenário da pesquisa:
Etnografia
crítica refere-se à sua ampla abrangência, uma vez que pode ser empregada em
uma variedade de contextos, tais como a investigação de processos de
escolarização dos alunos da classe trabalhadora (acesso, condições de oferta,
processos de aprendizagem, processos de exclusão); as condições de trabalho dos
professores e do funcionamento das escolas. (Mainardes & Marcondes, 2011,
p. 434)
Há
um traçado, nessas experiências, que vem conduzindo um jeito de fazer a
pesquisa na escola de surdos, o que nos possibilita olhar para seus enunciados,
farejando pistas, recorrências, marcadores e elementos que movimentam o enredo central
deste estudo: conhecer e problematizar
as experiências formativas que estão movimentando a constituição de professores
surdos de uma escola pública bilíngue para surdos.
Problematizar
a formação docente, afastando-nos um pouco da Formação e aproximando-nos da
Experiência de Ser professor surdo, é o que nos mobiliza neste trabalho. Ao
olharmos para o campo discursivo da Formação do Professor, identificamos marcas
de uma visão romantizada de educação, ou seja, há um enredo naturalizado no processo
em que o profissional professor deverá ser formado para emancipar e, consequentemente,
formar o outro (o estudante), com responsabilidade pela constituição de alunos
críticos, autônomos e reflexivos, atentos à sociedade.
As
perguntas que sempre estão permeando a educação: qual é o professor ideal? Como
deve ser a formação? Quais disciplinas devem compor a formação? Para encontrar
tais respostas, programas de formação são pensados e implementados com o
intuito de dar ao professor a capacidade necessária para lecionar e ser um bom
professor, tendo regras a serem aprendidas para seu sucesso.
Na
educação de surdos, os questionamentos também são esses: que professor de
surdos queremos e formamos? Que escola
queremos para surdos? É possível engessar essa escola a partir de formações? O
bilíngue nas escolas de surdos tem “dado conta” de conduzir metodologicamente
práticas bilíngues? O que são práticas bilíngues na escola para surdos, e o que
são práticas bilíngues em escolas comuns de ensino (sob a perspectiva das
políticas de inclusão)? O que significa formar um professor bilíngue? Essas são
questões mobilizadoras do presente estudo.
Problematizar
a escola como um espaço de possibilidades outras, afinal a escola não é uma construção
de concreto onde habitam pessoas; ela é muito mais do que isso, ela é potência
para aprendizagens e para o exercício do oficio de professor, que está
constantemente nos convidando a pensar sobre o que fazemos nela.
O
significado principal da tarefa docente, de uma vida docente, de uma vida
dedicada à educação, é fazer escola. A afirmação pode parecer um pouco banal ou
esdrúxula neste momento em que um dos principais problemas da educação na
América Latina já não é tanto a falta de prédios escolares, mas o que se faz
neles, ou, em outros termos, para quê se vai à escola... daqueles que ingressam
em uma escola já acabada, já definida em seus mínimos detalhes, é a necessidade
de gerar, criar ou inventar algo que não necessariamente está dado pelo fato de
existir uma instituição escolar. (Kohan, 2015, 18)
Visualidade
que é um fator de grande relevância para o gerenciamento das atividades em sala
de aula que perpassa a língua de sinais, a expressão facial e corporal, mas,
sobretudo, os recursos pedagógicos construídos pelos/para os surdos. O registro
para fins de arquivo e de memória para finalidades de toda a ordem estão muito
presentes no cotidiano surdo por meio de registros que, por vezes, são filmados
e fotografados (Banks, 2009).
E
continuamos nos perguntando: o que tem uma escola formadora de professores
surdos que a diferencia das demais escolas formadoras? Nesse cenário, nosso
encontro com as leituras de Larrosa (2003, 2015, 2018), Biesta (2017),
Masschelein e Simons (2017) foi imensamente significativo para que pudéssemos
pensar de outros modos a educação de surdos. Pudemos
entender que aquela escola busca atender a demandas formativas e formadoras, pois
nela também existem experiências, inquietudes, jeitos de estar e viver.
É
a presença do professor movimentando essa experiência na escola com maestria,
construindo momentos singulares e tornando espaços e possibilidades em
experiências constituidoras de uma oficina, e com a sua presença o professor
convida o aluno a palavra, ao silêncio e a artesania. Um professor que se
demora, que não tem pressa forçada pelos ritmos caóticos da modernidade, que
enfrenta o tempo de modo que seja possível, brindar, degustar, escrever, ler,
escrever novamente e que por meio da repetição possa recordar, traçar novas
linhas, outros textos. Professor que possibilite em sua oficina que seus alunos
também sejam presença contra o tempo limitante que, muitas vezes, rejeita a
amorosidade pelo que é estudado. Pensar com amorosidade que se transforma em
experiência.
Experiência
com maestria no ofício; como uma maestria que não se tem apenas como uma
capacidade ou um saber-fazer de caráter técnico, como uma ferramenta, mas sim
que está incorporada naquilo que é, na maneira própria de cada um fazer as
coisas. (Larrosa, 2018b, p. 22)
Para
Larrosa, a experiência não pode ser quantificada, imitada, limitada. A experiência
de sujeitos surdos em uma escola para surdos que pensa sobre o ser professor
surdo é também potencializada e problematizada, é ressignificada, no sentido de
que outras produções discursivas estão sendo constituídas no espaço da
experiência formativa surda.
Larrosa
(apud Pereira & Weiss, 2018, p. 24) apresenta a ideia de experiência de si
que nos ajuda a olhar para as narrativas dos surdos que se tornaram professores
e observar como é que eles ‘... se observam, se decifram, se interpretam, se
descrevem, se julgam, se narram, se dominam, quando fazem determinadas coisas
consigo mesmos’.
Olhar
o ofício do professor e sua artesania. Essa é a ideia. Mudar, conforme aposta
Larrosa (2018a, p. 182), as perguntas atormentadoras que seguem sendo feitas
para o professor: como continuar? Por que continuar?
O
ofício que muda a conversa, entendido aqui como o exercício de ser professor
como algo inseparável daquilo que se faz e daquilo que se é. É preciso ser um
verdadeiro professor, um professor de ofício, sendo um professor que merece ser
chamado de professor e que se constitui no exercício de ser professor.
Ofício
de professor nada tem a ver com cumprir deveres prescritivos, exteriores ao ser
professor. Tem a ver com aquilo que o professor traz consigo. Ofício não é
opressor, não tem receituário, não tem protocolo marcando a linearidade.
Portanto, não tem a ver com formação de professor que ensina sobre a
metodologia a ser usada em sala de aula e aponta para a melhor forma de avaliar
o estudante, formação que organiza cartilhas e apostilas, que dá as
possibilidades de ser professor.
A
escola de surdos é uma escola, nada mais do que uma escola. Lá pode estar
também o acontecimento em um curso de formação de professores surdos.
Estudantes surdos que lá estão não deveriam ser apenas matrículas em um curso
de formação. Olhar para a possibilidade de ofício que potencializa surdos a
serem professores é um desafio nesta pesquisa, que está se desenhando com
traços incertos, trêmulos, sem receituário de um pesquisador que procura uma
resposta previamente pensada. Hesitar em pesquisa em um percurso irregular é a
única certeza, ou seja, não apontar a verdade mais verdadeira a partir daquilo
que possa ser entendido ou vivido como experiência na formação de professores
surdos em um espaço escolar surdo.
O
texto apresentado aponta elementos preliminares acerca da formação de
professores surdos em uma escola de surdos bilíngue. Destacamos que a
proposição da escola, conforme seu Projeto Político Pedagógico e seu regimento
escolar, está pautada em uma educação bilíngue, sendo a Língua Brasileira de
Sinais (Libras) a primeira língua da instituição. A partir desse elemento, a metodologia da
escola vincula-se à Libras e à língua portuguesa escrita
Frente
a esse cenário, tais documentos produzem discursos que garantam uma educação
que preconiza as singularidades surdas na formação. Nesse sentido, a pesquisa
que embasa este artigo aponta que a formação de professores surdos está
ancorada na perspectiva bilíngue. Contudo, a partir dos ateliês realizados com
os professores e alunos, em busca da materialidade para este estudo, foi
possível perceber, com base nos discursos dos professores, que há outras
preocupações no contexto da escola, os quais versam, principalmente, sobre o
que é uma escola e o que faz dela uma escola. Tais elementos dizem respeito ao planejamento,
a interdisciplinaridade, o brincar e a importância de o professor ser um
arquivista movente na sua ação pedagógica, capaz de revisitar as experiências
pedagógicas como acontecimentos que são ou foram experienciados com ouvintes e
com surdos.
Portanto,
há muitas questões envolvendo a escola de surdos. A escola aqui é entendida
como um lugar singular de potência e sem engessamentos. A escola de surdos também
é muito semelhante a uma escola de ouvintes, entretanto, há algo muito singular
quando a Libras está presente no espaço escolar. A pesquisa está mostrando que
essa presença da língua de sinais é sempre reinvindicação de toda a comunidade
escolar, mas, também, é um forte marcador discursivo dos sujeitos surdos que
habitam esse lugar, pois há uma menção constante acerca da necessidade da
presença da Libras no contexto escolar formador.
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[1] A
criação e denominação da Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo
Fernando Coser, pertencente a 8ª CRE, localizada na Rua Valdemar Coimbra s/nº,
Bairro Lorensi, Santa Maria, região central do RS, ocorreu pelo decreto n
38.686 de 09 de julho de 1998. A criação da escola era uma reivindicação em
pauta pela comunidade surda desde a década de 80.