EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS DE PROFESSORES SURDOS EM UM CURSO MÉDIO NORMAL: O CONTEXTO DE UMA ESCOLA PÚBLICA BILÍNGUE PARA SURDOS

 

Cleidi Lovatto Pires[1]

cleidip@terra.com.br

Márcia Lise Lunardi-Lazzarin[2]

lunazza@gmail.com

Universidade Federal de Santa María, UFSM, Brasil

 

RESUMO

Este artigo está ancorado a uma perspectiva pós-estruturalista e discute aspectos de uma pesquisa no campo da educação de surdos, que tem por objetivo problematizar a formação de professores surdos em um Curso Normal de Nível Médio desenvolvido na Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser (Santa Maria/RS/Brasil). A intenção é compreender as estratégias de formação de professores surdos a partir de uma rede discursiva, produzida por um conjunto de documentos da escola que apresentam os modos de ver, narrar e conduzir a formação de estudantes surdos. Nesse sentido, é possível compreender a formação como uma artesania surda pensada para o ofício do professor surdo, em que a centralidade está na visualidade.

Palavras-chave: surdos, formação, curso normal, experiência.

 

FORMATIVE EXPERIENCE OF DEAF TEACHERS IN A HIGH SCHOOL: THE CONTEXT OF A BILINGUAL PUBLIC SCHOOL FOR DEAF

 

ABSTRACT

The article presents a post-structuralist perspective and discusses aspects of a research in deaf education, it has its goals to discuss the professional formation of deaf teachers in a normal High School course developed at “Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser” (Santa Maria/RS/Brazil). The intention is to understand the strategies in the formation of deaf teachers from a discursive network, generated from a group of documents from the High School that reveals the ways to see, narrate and conduct the professional training of deaf students. Hence, it is possible to understand the professional formation as a deaf art thought for the deaf teacher, where the gist is in its visualness.

Keywords: deaf, professional formation, high school, experience.

 

APRESENTAÇÃO

Este texto é um recorte de uma pesquisa de doutorado, ainda em andamento, realizada no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria/Rio Grande do Sul/Brasil, que versa sobre a formação de professores surdos em uma escola de curso médio. Para iniciar, pensamos ser necessário localizá-lo a partir da perspectiva teórico-metodológica à qual nos filiamos, tanto para problematizar nosso tema de pesquisa quanto para alinhar as ideias da escrita. Salientamos que as questões deste trabalho, são vistas através das “lentes” da perspectiva pós-estruturalista. Ao filiarmo-nos a esse campo, a pesquisa passa a ter um caráter menos prescritivo, previsível e sistemático, menos pretensioso. De certa forma, o que buscamos é transgredir por meio de uma escrita mais orgânica ao movimento investigativo, ou seja, imersas nesse estudo deixamos escorrer nossos pensamentos atravessados por uma materialidade que, às vezes embaraça, dispara dores, racha, afeta, compondo outros modos de olhar para o mundo e a pesquisa, pois ambas são indissociáveis. Pesquisar é vida.

Ser desafiada na pesquisa é a busca pelo improvável ou por algo que não se espera (mas que acontece). Como diz Larrosa (2018), pesquisando e esperando não se sabe o que, lendo, escrevendo, espreitando, arredando. Produzir pesquisa, (re)escrever o texto, pensar sobre o próprio pensamento, retomar a escrita por meio de novos achados sendo desafiadas cotidianamente. E, sobretudo, se respeitando durante a escrita, sendo generosa consigo, atenta e delicada com sua produção textual, não esquecendo que seu texto é pesquisa. Constituindo, portanto, o seu modo de escrita.

Mediante esse movimento de pensamento investigativo, interessa-nos “entender as experiências formativas que estão sendo colocadas em funcionamento para a constituição de professores surdos em um curso Médio-Normal”[1]. A fim de movimentar as peças desse enredo discursivo, fizemos um recorte da pesquisa mais ampla, para pensar a escola surda como um espaço de formação de professores surdos. Neste texto, pretendemos analisar um conjunto de dados produzidos por uma escola pública bilíngue de surdos, a qual vem se ocupando da formação desses sujeitos em um Curso Normal, no ensino médio.

 

A EXPERIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES SURDOS

Para pensar sobre a proposição do Curso Normal da escola de surdos, objeto desta pesquisa, gostaríamos de destacar que o curso teve seu início no ano de 2006. Até o momento, já formou 63 professores surdos por meio da formação regular e aproveitamento de estudos (para egressos do Ensino Médio que desejam fazer a formação pedagógica como complementação profissional).

A base comum do curso é composta por áreas do conhecimento que abrangem os componentes e um marcador na formação profissional dos alunos está vinculado à parte diversificada (a formação profissional), que também compreende disciplinas voltadas à pedagogia surda: Língua Brasileira de Sinais e Didática de Língua de Sinais. Para especificar segue o quadro demonstrativo abaixo:

Quadro 1.

Matriz Curricular do curso.

 

 

COMPONENTE CURRICULAR

Carga Horária Total

LINGUAGENS

LÍNGUA PORTUGUESA – L2

200

LITERATURA

100

ARTE

67

EDUCAÇÃO FÍSICA

100

LÍNGUA BRASILEIRA DE

SINAIS*

200

MATEMÁTICA

MATEMÁTICA

200

CIÊNCIAS DA NATUREZA

FÍSICA

133

QUÍMICA

133

BIOLOGIA

133

CIÊNCIAS HUMANAS

GEOGRAFIA

133

HISTORIA

133

SOCIOLOGIA

67

FILOSOFIA

67

ENSINO RELIGIOSO

ENSINO RELIGIOSO

67

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

67

LÍNGUA INGLESA

100

LÍNGUA ESPANHOLA

33

LITERATURA INFANTIL

67

EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO

ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DE

ENSINO

67

PSICOLOGIA DA

EDUCAÇÃO

67

SOCIOLOGIA DA

EDUCAÇÃO

33

FILOSOFIA DA

EDUCAÇÃO

33

 

HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO

67

CONHECIMENTO ESPECÍFICO DA EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO FUNDAMENTAL E DA EDUCAÇÃO ESPECIAL

DIDÁTICA GERAL

267

DIDÁTICA DA LINGUAGEM

167

DIDÁTICA DE LÍNGUA

DE SINAIS

133

DIDÁTICA DA ARTE

EDUCAÇÃO

133

DIDÁTICA DA

EDUCAÇÃO FISICA

133

DIDÁTICA DA

MATEMATICA

133

DIDÁTICA DAS CIÊNCIAS

DA NATUREZA

133

DIDÁTICA DAS CIÊNCIAS

HUMANAS

133

DIDÁTICA DE ENSINO

RELIGIOSO

133

TOTAL DE HORAS

    3633

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

     400

ESTÁGIO PROFISSIONAL

     400

TOTAL DO CURSO

     4433

 

Segundo o Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola, a partir da matriz curricular do curso, “é possível promover uma pedagogia surda voltada para os artefatos culturais como forma de atuação pedagógica voltada para o aprendiz surdo como uma experiência pedagógica visual” (2018a, p. 7).

Diríamos que se trata de uma artesania surda, pensada para o ofício do professor surdo, em que a centralidade das dinâmicas pedagógicas está na visualidade, nas imagens. A visualidade é um fator de grande relevância para o gerenciamento das atividades em sala de aula, o que perpassa a língua de sinais, a expressão facial e corporal, mas principalmente os recursos pedagógicos construídos pelos/para os surdos.

Entendemos ser esse um cenário de militância por uma formação baseada na inserção cultural, linguística e identitária das comunidades surdas. Entretanto, dizer o que já foi dito na educação de surdos parece que não dá conta (não relacionando o dar conta a uma perspectiva totalitária do sujeito) de responder às inquietações relacionadas à educação de surdos. É preciso tensionar de outro modo, “[pronunciando] na sala de aula [ou na educação de surdos] uma palavra humana, isto é, insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade” (Larrosa, 2015, p. 165).

E, assim outras tramas são rascunhadas, sentidas e fragilizadas. Então, perguntamos: afinal, o estudante surdo do Curso Normal assume uma proposição protagonista de artesania durante sua formação? O que deveria ser problematizado ao longo do curso por meio da diversificação de materiais produzidos? Jogos, livros de literatura com imagens, atividades filmadas, teatro, maquetes, máscaras, esculturas, etc. são operacionalizados? Como os alunos surdos se organizam nesse espaço artesão de formação?

Essas estratégias engendram-se, por vezes, em cenários entremeados por um movimento pedagógico que procura pela didatização de um jeito surdo de ensinar, um ideal a ser alcançado para a condução das condutas de futuros professores surdos. O que está em jogo aqui é problematizar a necessidade pedagógica de certa busca por uma normalidade surda.

Diante desse cenário, nosso olhar deixa-se fluir, sem predeterminar um julgamento ou juízo de valor. Trata-se de um pensamento que não determina verdades, mas que trabalha com o acontecimento na pesquisa, que permite que o acontecimento emerja. Transgredir, conforme fala Larrosa (2003) em seu texto “O Ensaio e a Escrita Acadêmica”, pode significar imprimir aos nossos textos um pensamento fluido, leve e provocativo, o que é possível vislumbrarmos na narrativa do PPP da escola: “multiplicar os significados e as possibilidades de produção de subjetividades, procurando assim romper com o processo de homogeneização, proposto pelos neoliberais da educação, visando com isso discutir diferentes alternativas ao projeto educacional hegemônico” (2018a, p. 05).

Atualmente, a escola investigada busca produzir práticas fundamentadas em um discurso de respeito e afirmação das diferenças, por intermédio de um currículo voltado para a diferença (PPP, 2018a). O Curso Normal é oferecido nos turnos diurno e noturno, organizando-se em dois blocos, área do conhecimento e enfoque ou temáticas, visando a assegurar um processo de ensino e aprendizagem interdisciplinares. A articulação dos dois blocos do currículo desenvolve-se por meio dos projetos e das práticas pedagógicas construídos nos seminários integrados, na transversalidade dos enfoques e temáticas que oportunizam a apropriação do fazer pedagógico pelo pesquisador/aluno/professor.

Segundo o regimento (2018b), tal organização possibilita alternativas concretas para o desenvolvimento da prática docente e da dinâmica escolar, proporcionando a atuação e a interação dos futuros educadores surdos em diferentes frentes pedagógicas nas escolas, nos grupos e nas instituições que atendam surdos. Por fim, ampliam-se as possibilidades de confrontação entre a fundamentação teórica e a prática concreta de sala de aula, com estímulo ao processo de ação-reflexão-ação como movimento inerente ao ofício do educador surdo. Dessa maneira, é possível promover uma pedagogia surda com base em artefatos culturais como forma de atuação pedagógica voltada para o aprendiz surdo como uma experiência pedagógica visual.

Os elementos que envolvem a construção de uma experiência pedagógica visual conduzem-nos a importantes questionamentos; talvez o principal deles seja: qual escola de surdos queremos? A escola defendida pela comunidade surda não pode reduzir-se ao contato de duas línguas, pois há outras facetas da escola de surdos a serem problematizadas, intimamente relacionadas a questões políticas, sociais e culturais. Na defesa das escolas de surdos, sugere-se também a manutenção dos movimentos da comunidade surda, pois elas são concretamente os locais onde aparecem as vozes surdas que procuram uma escola singular:

 As lideranças surdas aproveitando os espaços oferecidos pelos estudos acadêmicos denominados Estudos Culturais, tendem a fazer ouvir suas demandas [quando egressos especialmente das escolas de surdos] e inseridos aos poucos no mundo acadêmico, realizam pesquisas que apontam para a necessidade de mudanças profundas não apenas pontuais e aparentes. (Rangel & Stumpf, 2012, p. 117)

Argumentar em defesa da escola é o que emerge. Entretanto, parece que todos os argumentos, na modernidade, estão sendo descartados, conforme lembram Masschelein e Simons (2017). Fomentar essa fecunda proposição (o ofício de uma escola formadora) é necessário, pois se trata de uma formação com peculiaridades potentes acopladas a uma engrenagem. Trata-se de uma organização escolar na qual os modos de vida produzem verdades, as certezas deveriam ser provisórias e as verdades, interrogáveis. Transita-se em um solo incerto, diluindo-se as certezas de futuro.

Ao olharmos para a realidade escolar, foi preciso interrogá-la, suspeitar do reflexo, ou melhor, do espelho dessa realidade. Nesse sentido, o “chão da pesquisa”, o trajeto investigativo, foi se desenhando e se adensando à medida que nos debruçávamos sobre o objeto pesquisado. Acompanhando os efeitos da formação de surdos, professores em um curso Médio-Normal, foi possível traçar um movimento metodológico que vem nos ajudando a entender os efeitos dessa formação nos sujeitos surdos que estão em pleno percurso formativo.

Como forma de registro desses acontecimentos, um diário de campo vem sendo construído como instrumento para auxiliar na organização das ideias centrais da pesquisa. O diário de campo é uma das possibilidades de mantermos um tom etnográfico neste estudo. Ao assumirmos essa condição, o fizemos a partir do entendimento de que a pesquisa etnográfica se caracteriza pelo:

Contato direto e prolongado do pesquisador com a situação e/ou grupos selecionados; - Grande quantidade de dados descritivos, com o acúmulo de locais, fatos, ações, pessoas, relações, formas de linguagem, etc.; - Existência de um esquema aberto que permite transitar entre observação e análise...; utilização de diferentes técnicas de coleta e de fontes de dados. (André, 1980, p. 38)

O Regimento Escolar (2018b) e o PPP (2018a) apontam também para outros tantos elementos e lançam-nos para a temática de pesquisa. É uma produção de dados que nos permitiu compreender a proposição da noção de ofício na “formação” de estudantes surdos, a ponto de afastar-nos, de certa forma, do termo formação para pensar a partir do termo ofício. Ofício que se afasta da condução de condutas e que, ao contrário, no seio da escola, provoca possibilidades amorosas de trilhar o caminho na oficina do mestre. Na esteira oficineira, o espaço da sala de aula é cotidianamente pensado e alterado pelo professor. Ali não há receitas, verdades; ofício é um modo de vida, escolhas amorosas que se dão pelas dúvidas e são refeitas. Segundo Larrosa (2018a, p. 316):

A concepção do ofício como a potência, ou a capacidade, ou a faculdade de atuar, e a implementação dessa potência, sua passagem ao ato, não depende de outra coisa que do hábito, da héxis, do costume, ou éthos, do que poderíamos chamar de um saber fazer incorporado, encarnado. Neste sentido o ofício é o passo do ser ao atuar e do atuar ao ser. O professor defendendo aquilo que é, se converte em professor, ao atuar como professor, e só pode atuar ao exercer ou atuar como professor, e só pode atuar como professor enquanto é professor... é necessário um professor que oficie como professor.

 

É necessário um professor oficineiro que imprima artesania em seu cotidiano escolar. Um exercício artesão que seja capaz de acionar possibilidades outras, para além das atribuladas “tarefas duras” do cotidiano do professor. Afinal ser professor não pode ser confundido com ser um funcionário docente.

Faz-se relevante indagar, suspeitar de “algumas coisas” da escola nesse contexto da informação, da fluidez e da rapidez dessa sociedade da informação. Para suspender esse contexto disciplinador, efêmero em que a educação se encontra, o professor assume a centralidade do processo formativo como alguém que desenvolve seu ofício, um ofício que não é desenvolvido numa oficina e sim numa escola, numa sala de aula.

Masschelein e Simons (2017) no livro “Em Defesa da Escola” escrevem sobre possibilidade de a escola ter um professor artesão. Artesão que habita a escola feita de corredores, salas de aula, livros didáticos e tecnologias. O professor que ocupa um papel particularmente especial no contexto da sala de aula e da escola como um todo. Pois, nesse emaranhado, entre informação e conhecimento, os estudantes, por vezes, constituem opinião sobre as coisas e sobre o mundo com base em eventos rasos e instantâneos, afinal para o estudante compor-se no grupo é necessário ter opinião sobre tudo e todos.

Segundo Larrosa (2017) a falta de tempo é disparadora de ações protocolares por parte do professor; é necessário demorar-se, é imperioso significar a ação pedagógica e estar ali. A velocidade, a instantaneidade são elementos que freiam a experiência e retiram dela a possibilidade de tornar a escola um lugar do acontecimento, onde silêncio, ação, palavras ditas e não ditas se enchem de significado a favor daquele objetivo central da escola-experienciar-aprender-ensinar. Somos impregnados de escola, entretanto, nosso tempo nela é acelerado, obsessivo/compulsivo. Confunde-se experiência com excesso de trabalho, ou seja, quanto mais envolve-se com uma situação mais experiência temos sobre ela como se ela fosse cumulativa, cenário que é nocivo e destrutivo da experiência, essa tribulação “... é inimiga mortal da experiência” (Larrosa, 2017, p. 24).

Para o referido autor, experiência refere-se a:

Possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, , e escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (Larrosa, 2017, p. 25)

Já Heidegger (apud Larrosa, 2017, p. 27) anuncia experiência traçando comparativamente dois aspectos: travessia e perigo, pois:

Fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando-nos e nos submetendo a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo.

A experiência como tal nem sempre é exitosa, nem sempre nos mantém em pé, ao contrário ela é balbuciante, hesitante, nem sempre encontra aquilo que procura, é indefinível do ponto de vista do objetivo realizado. Muitas vezes, o sujeito da experiência sofre, vacila e é submetido. Extingue-se aqui a ideia de um sujeito fortalecido e sempre ereto. Estar aberto a experiência faz do sujeito aquele que espera e que está aberto ao acontecimento. Trata-se de uma relação de paixão e amor com o que é vivido a partir da experiência, buscar sentido ao ir adentrando aos porões e aos acontecimentos vividos assumindo também com paixão os “padecimentos”.

Experimentar na escola sempre está vinculada aquilo que faz sentido ao pedagógico e na relação pedagógica do acontecido. Relação muito particular, singular, que nunca se repete com sentidos múltiplos, únicos. Quanto mais nos aproximamos da escola mais a relacionamos com o professor e com seu ofício (quem apropria-se de um saber específico), ofício que não é descartável.

O professor muitas vezes, olha para a realidade também como um espaço de produção de verdades. Verdades que são ditas, escritas, praticadas, externadas, nomeadas e inventadas, verdades produzidas e naturalizadas. Contudo, “podemos desconstruir as evidências naturalizadas mostrando como foram produzidas, pois, se algo não foi sempre assim, nada determina que assim permaneça” (Tedeschi & Pavan, 2017, p. 776).

Na possibilidade de ampliarmos o repertório discursivo que envolve o contexto da formação de professores surdos buscamos por recorrências que pudessem nos dar outras pistas sobre a constituição desses surdos-professores. Para isso, propomos ateliês pedagógicos que se aproximam da pesquisa etnográfica, pois o pesquisador se insere no contexto de pesquisa com base na observação participante, mantendo contato direto com o campo de pesquisa e com sua materialidade. Foram organizados três ateliês. Dois deles realizados com professores da escola e foram usadas fotografias da produção dos alunos, como disparadores para a conversa. O terceiro ateliê foi feito com os alunos em finalização do curso e alguns professores participaram da conversa. Os ateliês foram registrados por meio de filmagens. Tal atividade não tem a pretensão de desvelar, revelar ou arredar cortinas; busca um dispositivo de funcionamento mais ou menos regular em que se articulam a repetição e a variação, que nomeamos de movimento função de referência. Mobilização que ajuda a colocar em funcionamento o pensamento do pesquisador acerca dos objetivos e problema de pesquisa. Experiências que estão em movimento, com seus ritmos, mas que não são previsíveis. Nesse sentido, a etnografia ajuda a movimentar o cenário da pesquisa:

Etnografia crítica refere-se à sua ampla abrangência, uma vez que pode ser empregada em uma variedade de contextos, tais como a investigação de processos de escolarização dos alunos da classe trabalhadora (acesso, condições de oferta, processos de aprendizagem, processos de exclusão); as condições de trabalho dos professores e do funcionamento das escolas. (Mainardes & Marcondes, 2011, p. 434)

Há um traçado, nessas experiências, que vem conduzindo um jeito de fazer a pesquisa na escola de surdos, o que nos possibilita olhar para seus enunciados, farejando pistas, recorrências, marcadores e elementos que movimentam o enredo central deste estudo:  conhecer e problematizar as experiências formativas que estão movimentando a constituição de professores surdos de uma escola pública bilíngue para surdos.

Problematizar a formação docente, afastando-nos um pouco da Formação e aproximando-nos da Experiência de Ser professor surdo, é o que nos mobiliza neste trabalho. Ao olharmos para o campo discursivo da Formação do Professor, identificamos marcas de uma visão romantizada de educação, ou seja, há um enredo naturalizado no processo em que o profissional professor deverá ser formado para emancipar e, consequentemente, formar o outro (o estudante), com responsabilidade pela constituição de alunos críticos, autônomos e reflexivos, atentos à sociedade.

As perguntas que sempre estão permeando a educação: qual é o professor ideal? Como deve ser a formação? Quais disciplinas devem compor a formação? Para encontrar tais respostas, programas de formação são pensados e implementados com o intuito de dar ao professor a capacidade necessária para lecionar e ser um bom professor, tendo regras a serem aprendidas para seu sucesso.

Na educação de surdos, os questionamentos também são esses: que professor de surdos queremos e formamos?  Que escola queremos para surdos? É possível engessar essa escola a partir de formações? O bilíngue nas escolas de surdos tem “dado conta” de conduzir metodologicamente práticas bilíngues? O que são práticas bilíngues na escola para surdos, e o que são práticas bilíngues em escolas comuns de ensino (sob a perspectiva das políticas de inclusão)? O que significa formar um professor bilíngue? Essas são questões mobilizadoras do presente estudo.

Problematizar a escola como um espaço de possibilidades outras, afinal a escola não é uma construção de concreto onde habitam pessoas; ela é muito mais do que isso, ela é potência para aprendizagens e para o exercício do oficio de professor, que está constantemente nos convidando a pensar sobre o que fazemos nela.

O significado principal da tarefa docente, de uma vida docente, de uma vida dedicada à educação, é fazer escola. A afirmação pode parecer um pouco banal ou esdrúxula neste momento em que um dos principais problemas da educação na América Latina já não é tanto a falta de prédios escolares, mas o que se faz neles, ou, em outros termos, para quê se vai à escola... daqueles que ingressam em uma escola já acabada, já definida em seus mínimos detalhes, é a necessidade de gerar, criar ou inventar algo que não necessariamente está dado pelo fato de existir uma instituição escolar. (Kohan, 2015, 18)

Visualidade que é um fator de grande relevância para o gerenciamento das atividades em sala de aula que perpassa a língua de sinais, a expressão facial e corporal, mas, sobretudo, os recursos pedagógicos construídos pelos/para os surdos. O registro para fins de arquivo e de memória para finalidades de toda a ordem estão muito presentes no cotidiano surdo por meio de registros que, por vezes, são filmados e fotografados (Banks, 2009).

E continuamos nos perguntando: o que tem uma escola formadora de professores surdos que a diferencia das demais escolas formadoras? Nesse cenário, nosso encontro com as leituras de Larrosa (2003, 2015, 2018), Biesta (2017), Masschelein e Simons (2017) foi imensamente significativo para que pudéssemos pensar de outros modos a educação de surdos. Pudemos entender que aquela escola busca atender a demandas formativas e formadoras, pois nela também existem experiências, inquietudes, jeitos de estar e viver.

É a presença do professor movimentando essa experiência na escola com maestria, construindo momentos singulares e tornando espaços e possibilidades em experiências constituidoras de uma oficina, e com a sua presença o professor convida o aluno a palavra, ao silêncio e a artesania. Um professor que se demora, que não tem pressa forçada pelos ritmos caóticos da modernidade, que enfrenta o tempo de modo que seja possível, brindar, degustar, escrever, ler, escrever novamente e que por meio da repetição possa recordar, traçar novas linhas, outros textos. Professor que possibilite em sua oficina que seus alunos também sejam presença contra o tempo limitante que, muitas vezes, rejeita a amorosidade pelo que é estudado. Pensar com amorosidade que se transforma em experiência.

Experiência com maestria no ofício; como uma maestria que não se tem apenas como uma capacidade ou um saber-fazer de caráter técnico, como uma ferramenta, mas sim que está incorporada naquilo que é, na maneira própria de cada um fazer as coisas. (Larrosa, 2018b, p. 22)

Para Larrosa, a experiência não pode ser quantificada, imitada, limitada. A experiência de sujeitos surdos em uma escola para surdos que pensa sobre o ser professor surdo é também potencializada e problematizada, é ressignificada, no sentido de que outras produções discursivas estão sendo constituídas no espaço da experiência formativa surda.

Larrosa (apud Pereira & Weiss, 2018, p. 24) apresenta a ideia de experiência de si que nos ajuda a olhar para as narrativas dos surdos que se tornaram professores e observar como é que eles ‘... se observam, se decifram, se interpretam, se descrevem, se julgam, se narram, se dominam, quando fazem determinadas coisas consigo mesmos’.

Olhar o ofício do professor e sua artesania. Essa é a ideia. Mudar, conforme aposta Larrosa (2018a, p. 182), as perguntas atormentadoras que seguem sendo feitas para o professor: como continuar? Por que continuar?

O ofício que muda a conversa, entendido aqui como o exercício de ser professor como algo inseparável daquilo que se faz e daquilo que se é. É preciso ser um verdadeiro professor, um professor de ofício, sendo um professor que merece ser chamado de professor e que se constitui no exercício de ser professor.

Ofício de professor nada tem a ver com cumprir deveres prescritivos, exteriores ao ser professor. Tem a ver com aquilo que o professor traz consigo. Ofício não é opressor, não tem receituário, não tem protocolo marcando a linearidade. Portanto, não tem a ver com formação de professor que ensina sobre a metodologia a ser usada em sala de aula e aponta para a melhor forma de avaliar o estudante, formação que organiza cartilhas e apostilas, que dá as possibilidades de ser professor.

A escola de surdos é uma escola, nada mais do que uma escola. Lá pode estar também o acontecimento em um curso de formação de professores surdos. Estudantes surdos que lá estão não deveriam ser apenas matrículas em um curso de formação. Olhar para a possibilidade de ofício que potencializa surdos a serem professores é um desafio nesta pesquisa, que está se desenhando com traços incertos, trêmulos, sem receituário de um pesquisador que procura uma resposta previamente pensada. Hesitar em pesquisa em um percurso irregular é a única certeza, ou seja, não apontar a verdade mais verdadeira a partir daquilo que possa ser entendido ou vivido como experiência na formação de professores surdos em um espaço escolar surdo.

 

NOTAS FINAIS

O texto apresentado aponta elementos preliminares acerca da formação de professores surdos em uma escola de surdos bilíngue. Destacamos que a proposição da escola, conforme seu Projeto Político Pedagógico e seu regimento escolar, está pautada em uma educação bilíngue, sendo a Língua Brasileira de Sinais (Libras) a primeira língua da instituição.  A partir desse elemento, a metodologia da escola vincula-se à Libras e à língua portuguesa escrita

Frente a esse cenário, tais documentos produzem discursos que garantam uma educação que preconiza as singularidades surdas na formação. Nesse sentido, a pesquisa que embasa este artigo aponta que a formação de professores surdos está ancorada na perspectiva bilíngue. Contudo, a partir dos ateliês realizados com os professores e alunos, em busca da materialidade para este estudo, foi possível perceber, com base nos discursos dos professores, que há outras preocupações no contexto da escola, os quais versam, principalmente, sobre o que é uma escola e o que faz dela uma escola. Tais elementos dizem respeito ao planejamento, a interdisciplinaridade, o brincar e a importância de o professor ser um arquivista movente na sua ação pedagógica, capaz de revisitar as experiências pedagógicas como acontecimentos que são ou foram experienciados com ouvintes e com surdos.

Portanto, há muitas questões envolvendo a escola de surdos. A escola aqui é entendida como um lugar singular de potência e sem engessamentos. A escola de surdos também é muito semelhante a uma escola de ouvintes, entretanto, há algo muito singular quando a Libras está presente no espaço escolar. A pesquisa está mostrando que essa presença da língua de sinais é sempre reinvindicação de toda a comunidade escolar, mas, também, é um forte marcador discursivo dos sujeitos surdos que habitam esse lugar, pois há uma menção constante acerca da necessidade da presença da Libras no contexto escolar formador.

 

REFERÊNCIAS

André, M. E. D. A. (1980). Pesquisa no Cotidiano Escolar. In Fazenda, I. Metodologia da Pesquisa Educacional (pp. 36-45). Cortez.

Banks, M. (2009). Dados Visuais para Pesquisa Qualitativa. Artmed.

Biesta, G. (2017). Para além da aprendizagem: Educação Democrática para um futuro humano. Autêntica.

Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser (2018). 

             Projeto Político Pedagógico.

Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser. (2018). Regimento              Escolar do Curso Normal.

Kohan, W. (2015). O Mestre Inventor-relatos de um viajante educador. Autêntica.

Larrosa, J. (2003). O Ensaio e a Escrita Acadêmica. Educação e Realidade, 28(2), 101-115.      http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25643

Larrosa, J. (2015). Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Autêntica.

Larrosa, J. (2018). [P] de Professor. Pedro e João.

Larrosa, J. (2018). Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor. Autêntica.

Mainardes, J. & Marcondes, M. I. (2011). Reflexões sobre Etnografia Crítica e suas implicações para a pesquisa em educação. Educação & Realidade, 36(2), 425-446.            https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/17004

Masschelein, J. & Simons, M. (2017). Em Defesa da Escola: uma questão política. Autêntica.

RangeL, G. & Stumpf, M. (2012). A Pedagogia da Diferença para o Surdo. In Lodi, A. C. Letramento, Bilinguismo e Educação de  Surdos (pp.113-124). Mediação.

Tedeschi, S. & Pavan, R. (2017). A Produção do Conhecimento em Educação:o Pós-Estruturalismo como potência epistemológica. Práxis Educativa, 12(3), 772-787.             https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/9314

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] A criação e denominação da Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Coser, pertencente a 8ª CRE, localizada na Rua Valdemar Coimbra s/nº, Bairro Lorensi, Santa Maria, região central do RS, ocorreu pelo decreto n 38.686 de 09 de julho de 1998. A criação da escola era uma reivindicação em pauta pela comunidade surda desde a década de 80.

 



[1] Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa  

   Maria. Mestre em Educação.

[2] Doutora em Educação. Professora Associada do Departamento de Educação Especial e do Programa de Pós-

  graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria.