ANÁLISE DOS DISCURSOS DE HENRI GAILLARD NOS CONGRESSOS DE CHICAGO (1893) E PARIS (1900): QUANDO O DIREITO AO TRABALHO DEPENDE DA LÍNGUA EM QUE SE ESCUTA

 

José Raimundo Rodrigues[1]

jrrzenga@yahoo.com.br

Universidade Federal do Espírito Santo.

Lucyenne Matos da Costa Vieira-Machado[2]

lumatosvieiramachado@gmail.com

PPGE/UFES

Regina Maria de Souza[3]

resouza@unicamp.br

Universidade Estadual de Campinas

RESUMO

As lutas das comunidades surdas do passado e do presente parecem ser permeadas por questões da língua em que se ensina o trabalhador, pois isso determina também os longos embates jurídicos pelas lutas por direitos legais ao trabalho e suas restrições. Essa vinculação, no caso dos surdos, se faz pela língua de seu país, independente da modalidade linguística. Este artigo tem como objetivo analisar os discursos de Henri Gaillard, escritor e ativista surdo, em dois congressos: Congresso de Chicago (1893) e Seção dos Surdos do Congresso de Paris (1900). A metodologia utilizada é de cunho documental e bibliográfico. Conclui-se que os desafios a um trabalho digno para os surdos vivamente expressos por Gaillard ecoam em um presente eterno sem escuta.

Palavras-chave: direito trabalhista, Henri Gaillard, língua de sinais, Educação de surdos.

 

ANALYSIS OF DEAF HENRI GAILLARD´S SPEECHES AT THE CHICAGO (1893) AND PARIS (1900) CONGRESSES: WHEN THE RIGHT TO WORK DEPENDS ON THE LANGUAGE IN WHICH ONE HEARS

ABSTRACT

The struggles of the deaf communities of the past and present seem to be permeated by issues of the language in which the worker is taught, because this also determines the long legal battles for legal rights to work and its restrictions. This link, in the case of the deaf, is made by the language of their country, regardless of the language modality. This article aims to analyze the speeches of Henri Gaillard, deaf writer and activist, in two congresses: Chicago Congress (1893) and the Deaf Section of the Paris Congress (1900). The methodology used are documentary and bibliographic ones. It is concluded that the challenges to a dignified work for the deaf vividly expressed by Gaillard echo in an eternal present without being listened.

Keywords: labor law, Henri Gaillard, sign language, Deaf education.

 

 

INTRODUÇÃO: OS SURDOS E A QUESTÃO DO TRABALHO

Oh queira

Basta ser sincero e desejar profundo

Você será capaz de sacudir o mundo, vai

Tente outra vez

Tente (tente)

E não diga que a vitória está perdida

Se é de batalhas que se vive a vida

Tente outra vez

(Tente outra vez - Raul Seixas)

O mundo do trabalho tem sido fortemente impactado nas últimas décadas e, recentemente, em decorrência da pandemia da COVID-19, multiplicam-se os números de desempregados, subempregados, precarizados e irregulares. As relações de trabalho na sociedade neoliberal são marcadas por um novo enfoque que é o da rentabilidade.

A remuneração está associada à capacidade de produção do sujeito que, progressivamente, é sugado pelas exigências de flexibilidade, adaptabilidade, capacidade de se submeter a qualquer forma de trabalho para assegurar o seu sustento. Parte desse movimento se delineia pela necessária capacitação do sujeito para o mercado de trabalho que se dá num processo autossabotador, pois quando o sujeito se qualifica, o mercado já tem novas exigências para o trabalhador. Todavia, quase sempre, essas exigências estão associadas à questão da educação.

E como essa realidade dialoga com aqueles que, pertencendo a uma minoria linguística, encontram-se, muitas vezes, no próprio país como estrangeiros e carentes de formação e de empregabilidade? Que tipo de ensino contribuiria para uma possível empregabilidade dos surdos? Parcela considerável da comunidade surda trabalha sem carteira assinada ou em funções que a inferioriza, negando sua capacidade intelectual.

Aliados à epígrafe, continuamos tentando, sem cessar quando decidimos olhar para esta questão do presente bem como movermo-nos nele como uma lacuna entre o passado e o futuro. Para isso, lançamo-nos num movimento retrospectivo em direção ao final do século XIX e início do século XX. Não o fazemos por uma questão de apreço ao passado como se ele pudesse, magicamente, desvelar a realidade presente. Recorremos ao a-priori histórico para poder a partir das pistas produzidas na leitura dos documentos-monumentos, nos determos numa ação afetiva que possa nos ajudar a perceber regularidades discursivas e não discursivas acerca do trabalho na vida dos sujeitos surdos. Destarte este texto tem o intuito de olhar para o documento como um monumento tal como afirma Le Goff:

O documento não é inócuo. É antes, de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. (Le Goff, 2013, pp. 547-548)

Nesse retorno ao passado, sem pretensões de fazer justiça ou de elucubrar uma verdade, desejamos problematizar pelo diálogo com aqueles documentos que, em nossas mãos e sob nossas lentes, são considerados arquivos que nos possibilitam refletir, redizer, repensar. Escolhemos um homem de baixa estatura, tornado surdo por uma bomba. Escolhemos alguém que escapa às grandes levas dos homens distintos e sempre lembrados do passado, pois “a escolha dos mortos dos quais assumimos a palavra é um dos desafios políticos mais importantes para os historiadores” (Albuquerque Júnior, 2019, p. 53). Aproximamo-nos de Henri Gaillard cujos qualificativos como militante surdo, jornalista, editor, podem ser facilmente resumidos naquilo que Foucault denominou como intelectual específico. É a vida que se consolida como arte de uma existência na resistência.

A partir de uma abordagem foucaultiana, retomamos dois discursos de Henri Gaillard sobre as carreiras e profissões destinadas aos surdos. Os textos encontram-se em francês e ainda não foram traduzidos para língua portuguesa. O primeiro discurso foi apresentado no Congresso Internacional de surdos-mudos, em Chicago, no ano de 1893, e o segundo, em 1900, no Congresso Internacional de Surdos-mudos, ocorrido na capital francesa.

Gaillard, apesar dos dezessete anos que separam os eventos, praticamente repete seu discurso, sugerindo como a realidade permanecia estanque. Esses dois recortes que extraímos dos textos dos congressos trazem consigo as marcas do evento que, por seus registros, consideramos monumentos que nos permitem dizer sobre as relações de saber-poder daquele tempo e suas possíveis reverberações ainda em nossos dias.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa documental, que trabalha com duas fontes primárias, e bibliográfica, cujos resultados são, antes de mais nada, provocações para que continuemos a pesquisar. Estamos, pois, numa aposta histórica, numa aposta de que a história que agora também escrevemos sobre esse homem pode ser mais um ecoar de seu pensamento a nos des-afiar, afinal, os desafios costumam ser muito mais cortantes que as situações consolidadas. E passar a mão sobre esses papéis do passado é recortar, mas também deixar-se cortar por eles, ferir-se por suas palavras.

 

FOUCAULT E UMA NOVA COMPREENSÃO DO INTELECTUAL

Foucault desenvolve sua reflexão acerca do intelectual desde sua relação com a questão do poder e da verdade. Foucault distingue o intelectual universal do específico. O intelectual universal é o portador da verdade e da justiça, assumindo certa postura de consciência da sociedade, não tendo uma ação mais particular e local, mantendo um discurso generalista. O intelectual específico age desde outra ordem, tomando por base os problemas locais e práticos, mostrando um conhecimento que é específico.

Em diálogo com Deleuze, Foucault aponta que o intelectual não é mais um sujeito que representa os demais. As massas tem conhecimento e saber, não necessitando daquela figura do intelectual na sua acepção mais popular. Há, todavia, mecanismos que impedem e invalidam os discursos das massas. Desta forma, o papel do intelectual é estar neste lugar em que o poder cerceia, mas também permite a circulação de um discurso.

Foucault entende que o intelectual universal também participa do jogo de poder. São agentes que, ao assumir a ideia de consciência da sociedade, complementam as ações de um sistema que nega saberes das massas.

O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso. (Foucault, 1979, p. 71)

Neste aspecto é preciso recordar que com Foucault também a verdade se manifesta como enunciados e há uma relação circular entre verdade e poder. Atentos ao poder capilarizado é que o intelectual pode compreender-se não como porta-voz de outros, mas como sujeito no qual falam muitos, que há nele uma multiplicidade.

Foucault entende o intelectual como difusor do novo conhecimento, consolidando heterotopias, vislumbrando linhas de fuga. Em um texto curto, Foucault dialoga com José, um operário da Renault. O operário lança uma questão em que demonstra considerar o intelectual como um espelho capaz de reenviar a luz que vem dos explorados. Na resposta, Foucault sugere diminuir a importância dada pelo operário ao intelectual:

Pergunto-me se você não exagera um pouco o papel dos intelectuais. Estamos de acordo, os operários não precisam dos intelectuais para saber o que fazem, eles próprios o sabem muito bem. Para mim, o intelectual é o tipo que está ligado, não aparelho de produção, mas ao aparelho de informação... Seu papel, então, não é de formar a consciência operária, visto que ela existe, mas de permitir a essa consciência, a esse saber operário entrar no sistema de informações, difundir-se e ajudar, consequentemente, outros operários ou pessoas que não têm consciência do que se passa. (Foucault, 2010, p. 87)

Noutro momento do diálogo, Foucault afirma:

Se um intelectual quer compreender o que se passou (e, além de tudo, é seu ofício), é preciso que saiba que o saber primeiro, essencial não está na sua cabeça, mas na cabeça dos operários, e há uma racionalidade em seu comportamento. Desde o século XIX, fizeram com que se acreditasse que o s trabalhadores eram tipos bravos, um pouco impulsivos. Você vê isso nos textos dos burgueses do século XIX. (Foucault, 2010, p. 88)

Em relação à dimensão política, Foucault propõe que o intelectual é aquele que pode contribuir desde o seu conhecimento específico. O intelectual não pode agir como um tutor dos políticos ou quem sabe dos eleitores; mas desde suas práticas pode colaborar para interpretar a realidade:

Se, por um certo número de razões, um intelectual pensa que seu trabalho, suas análises, suas reflexões, sua maneira de agir, de pensar as coisas podem esclarecer uma situação particular, um domínio social, uma conjuntura e que pode, efetivamente, dar sua contribuição teórica e prática, nesse momento, podem-se tirar disso consequências políticas, tomando, por exemplo,o problema do direito penal, da justiça… creio que o intelectual pode trazer, se quiser, à percepção e à crítica dessas coisas elementos importantes, dos quais as pessoas deduzem muito naturalmente, se quiserem, uma certa escolha política. (Foucault, 2010, p. 370)

            Percebemos, portanto, que o papel do intelectual está associado sim ao caráter público, mas a partir de suas condições e problemas práticos. Esse intelectual específico, justamente por saber-se também num jogo de enunciados e ter seu compromisso ético, é um intelectual que compreende-se a si mesmo como uma pessoa do cuidado de si, como alguém que compreende a vida como uma obra de arte, no sentido, de viver plenamente conforme uma coerência que não lhe é estrangeira, de fora, nem tampouco já está dada e constituída, mas que de dentro de si o impele a agir integralmente num movimento que também é cuidado dos outros e do mundo.

 

HENRI GAILLARD E OS INÍCIOS DA CONSTITUIÇÃO DE UMA VIDA SURDA

            Louis Jean Baptiste Henri Gaillard nasceu em 24 de agosto de 1966 na cidade de Paris, filho de Jean Valentin Gaillard e sua mãe Joséphine Louise Chilomène Gallard conforme consta no boletim de registros de antecedentes criminais do Tribunal Civil de Seine, arquivo atual de número 19800035/761/86391. O mundo do trabalho perpassa muito diretamente a vida de Henri Gaillard, pois, filho de operários, experimentou as agruras vividas por sua família no terceiro quartel do século XIX.

Gaillard tornou-se surdo em decorrência de um bombardeio, quando tinha a idade de oito anos. Cantin e Cantin (2017) nos remete à atmosfera familiar vivida diante do ensurdecimento de Gaillard, mencionando as constantes consultas a médicos e a vivência religiosa da mãe que pedia a Deus a cura do filho.

Após o falecimento da mãe, o pai de Gaillard constitui novo matrimônio com Anne-Joséphine Chamoulaud, por quem Gaillard nutre sensível reconhecimento e importância em sua vida. Ainda segundo Cantin e Cantin (2017), após a morte do pai, o ingresso de Gaillard no Instituto de Surdos de Paris, após alguns anos na escola regular, provavelmente, foi apoiado pela família paterna e, de modo particular, pelo tio Ferdinand Gaillard, bem sucedido vinicultor.  Estes elementos iniciais ajudam-no a compreender o contexto no qual Gaillard iniciará seu percurso de subjetivação como surdo.

Aos doze anos Gaillard é admitido no Instituto de Surdos de Paris e teve como professores Charles Champmas e André Valade-Gabel (1831?-1908), filho de Jean-jacques Valade Gabel (1801-1879) renomado propositor do método intuitivo para a educação de surdos. Champmas desempenhou forte papel no desenvolvimento intelectual de Gaillard. Durante seis anos Gaillard estudou no Instituto, saindo dele em 1884, aos dezoito anos e iniciando sua vida profissional como tipógrafo e, posteriormente, como corretor na Imprensa Nacional. Note-se aqui que Gaillard experimentou no contexto do Instituto de Paris os possíveis reflexos iniciais das deliberações do Congresso de Milão (1880).

O vivo contato de Gaillard com a comunidade surda fica marcado por sua participação, em 1886, aos vintes anos, no banquete de surdos, onde lê um soneto de sua autoria em homenagem ao abade l’Épée (Société Universelle des Sourds-Muets, 1887). Talvez, se possa considerar essa apresentação pública do jovem surdo de baixa estatura[4], registrada nos relatórios dos banquetes e a menção à sua profissão de tipógrafo na lista dos convidados como momento que já prefigura a militância desempenhada por Gaillard nos anos seguintes. O próprio Gaillard fará menção à sua participação nos banquetes em de seus pronunciamentos no Congresso Internacional de Surdos-mudos em Chicago (1893):

Mais do que nunca, acho que tive razão quando, num banquete de surdos-mudos em 1889, disse, ratificado por aplausos unânimes: “Confesso, morte na minha alma, que a França é hoje a última da Europa em termos da perfectibilidade de vida que proporciona aos surdos-mudos”. (Gaillard, 1894, p. 126-127 - tradução nossa)

Desta forma, consideramos que o fato de ter estudado no Instituto de Surdos de Paris e sua proximidade com a comunidade surda de então são elementos primordiais na constituição do surdo militante Gaillard. O fato de ter estado junto, na condição de aluno, com aqueles que o precederam como irmãos surdos e o constituir-se surdo trabalhador e engajado nas associações e movimentos de surdos, autoriza Gaillard a pronunciar-se desde um lugar em que sua vida o conduziu a ser o surdo Gaillard.

Seu inconformismo diante da ameaça do método oral fez com que Gaillard cunhasse o termo noétomalalien (inspirado em duas palavras gregas: noéto = ser compreensível e inteligível; e alalie = “sem palavras”). Um de seus objetivos era também distinguir a língua dos surdos da mímica, da pantomima e da fala acompanhada de gestos. “Em relação à Educação, insistiu fortemente na instrução mista noétomalalien e o francês escrito, a escrita constituindo a principal ferramenta de emancipação do surdo na sociedade francesa” (Cantin & Cantin, 2017, p. 278). Será por meio da imprensa que o ativismo de Gaillard se manifestará em defesa da língua dos surdos:

Em 1893, Gaillard propôs à Association Amicale assumir o Le Journal des sourds-muets, fundado por Henry Rémi depois de ter dirigido La Gazette des sourds-muets,  entre 1890 a 1893.  Como redator chefe do Le Journal des sourds-muets de 1893-1901, Henry Gaillard ficou conhecido por sua posição pró-noétomalalien, suplicando o retorno dessa língua na educação das crianças surdas. (Cantin & Cantin, 2017, p. 279 - tradução nossa)

 

GAILLARD E A DEFESA DA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO EM CHICAGO (1893) E PARIS (1900): A QUESTÃO PROFISSIONAL DE UMA MINORIA LINGUÍSTICA

Os congressos organizados por surdos no final do século constituem-se como um campo de pesquisa pouco explorado, afinal foram eclipsados pelo tão narrado Congresso de Milão ocorrido em 1880. Os eventos internacionais organizados por surdos desde o ano de 1889 possibilitam-nos enredar em narrativas outras sobre a educação de surdos, gerando linhas de fuga que escapam às dicotomias e polarizações.

Nestes eventos os surdos mostram como que, a despeito de certas práticas de governamento, a comunidade surda estava em plena atividade, resistente, organizada e combativa. Iremos nos deter aqui sobre dois discursos de Gaillard: O surdo-mudo no trabalho na França: carreiras e profissões; e Carreiras e profissões dos surdos-mudos, assistência para o trabalho. Nestes dois registros, em ocasiões e lugares distintos, Gaillard levanta a bandeira da dignidade do trabalho para os surdos.

Ao apresentar-se em Chicago, durante o congresso ocorrido de 18 a 23 de julho de 1893, suas análises foram publicadas por Gaillard em 1894 com o título Le second congrès international des sourds-muets – Chicago por Gaillard. Inicia seu discurso:

Se eu concordei em vir e discutir diante de vocês esta questão difícil e elevada, tão simples quanto complexa, importante em primeiro lugar, já que é uma questão do pão a ser ganho, ampla e saudavelmente, para poder viver a vida de homens livres, seguros de si, e contando apenas com eles, é porque sou daqueles que subsistem mais do trabalho manual do que do intelectual, e que consequentemente, posso aventurar-me neste assunto com conhecimento de causa. Minhas conexões no mundo dos trabalhadores, especialmente no dos trabalhadores surdos-mudos, são certamente mais numerosas do que as que tenho no mundo da política, das letras, das artes e da grande indústria. Ainda mais, explorei todos os lugares baixos onde se rebaixa o homem miserável, as oficinas e fábricas onde o trabalho obstinado labuta, e as reuniões onde a raiva assola, ai! muitas vezes legítima; eu examinei dolorosas feridas sociais, declínios imerecidos e em todos os lugares, e sempre, vi que surdos-mudos estavam lá e sofriam dessa condição. (Gaillard, 1894, p. 126 - tradução nossa)

            Gaillard demonstra conhecer a realidade dos trabalhadores surdos desde o lugar do trabalhador, na sua associação a eles. Suas palavras sugerem um surdo que se relacionava com seus irmãos e fazia suas as dores e infortúnios vividos por eles, procurando lutar para que a dignidade do trabalho fosse respeitada. Ao colocar-se como o surdo trabalhador, Gaillard mostra com que armas empunha seu discurso. Não o faz como aqueles que de seus ambientes seguros e cômodos dizem algo sobre a vida dos surdos ou como aqueles que em nome da defesa dos surdos elaboram para eles determinadas políticas. Gaillard assume-se como o trabalhador que quer sintetizar num evento de porte internacional o que pode presenciar. Estamos diante de um Gaillard com vinte e seis anos a elevar a voz em favor de políticas trabalhistas na França e o fazendo desde um outro continente, portanto, expondo-se.

            Sua capacidade de análise da realidade dos trabalhadores surdos o faz notar que os problemas percebidos têm sua base numa formação equivocada ligada à escolarização inadequada ministrada nos institutos:

As causas desta situação cruel e lamentável são múltiplas. Em primeiro lugar, existe a má organização das oficinas profissionais nas escolas e a falta de ferramentas, o abandono onde muitas vezes são deixados os jovens surdos-mudos e a falta de supervisão efetiva durante a aprendizagem, a mediocridade do ensino prático e a nulidade do ensino teórico, e, mais do que tudo isso, há a escassez e a má escolha das profissões ensinadas, profissões, a maioria, mortas pela concorrência, a invasão das mulheres e da maquinaria nas oficinas do mundo. Ainda existe a dificuldade que os empregadores colocam em aceitar trabalhadores Surdos-Mudos, tão ancorados neles tantos preconceitos e pré-juízos contra os Surdos-Mudos. (Gaillard, 1894, p. 127 - tradução nossa)

Gaillard parece portar um bisturi a fim de abrir a realidade e expor os problemas tendo em vista um desejo de procurar a solução. O faz de modo sistemático, organizado, partindo do particular para o geral, ampliando a questão para evidenciar que o resultado da educação experimentada pelos surdos tende a fazê-los viver em condições subumanas. Quanto aos empregadores, Gaillard criticamente aponta para uma postura destes eivada de equívocos.  E sua argumentação prossegue afirmando a condição de possibilidade de todos os surdos para todas as profissões:

Em geral, todos os surdos-mudos na França são capazes de exercer todas as profissões, com exceção das que requerem o aparelho auditivo, mas isso requer que eles tenham as capacidades necessárias, leveza ou destreza manual, força de braços e robustez, inteligência e atenção, conhecimento profundo da língua e contabilidade que os seguem. E essas capacidades, latentes ou reveladas, devem ser usadas pelo professor, no melhor interesse da criança. (Gaillard, 1894, p. 127 - tradução nossa)

Gaillard entende que os surdos podem estar nas profissões que mais lhes interessarem. A única ressalva feita por Gaillard é de que os surdos não poderiam atuar em espaços em que o uso da audição fosse decisivo. As diversas profissões deveriam ser ofertadas aos surdos desde a infância para que pudessem, a partir de seus interesses, fazer escolhas profissionais condizentes e não somente serem empurrados para as profissões tidas como de nível inferior. Ao centrar no interesse da criança, Gaillard também avança numa discussão que não cede, de imediato, aos interesses do mercado. Esperava-se, pois, dos mestres uma formação que oferecesse embasamento teórico e prático para os surdos. Entretanto,

Infelizmente, isso é o que menos acontece. Em quase todas as escolas de surdos-mudos existem duas ou quatro, às vezes oito, oficinas profissionais, onde o próprio mestre, se souber um pouco, ensina aos alunos os primeiros princípios da arte, as noções mais elementares, e os deixa por conta própria, o mais rápido possível. Em outras escolas maiores, como, por exemplo, a Instituição Nacional da rue Saint-Jacques, a educação é dada por chefes de oficina, especialmente nomeados para este fim, e a maioria dos quais, deve-se dizer, mostram-se muito devotados, mas não variam na maneira de proceder, consistindo fazer com que os alunos executem e reexecutem sempre o mesmo, evitando o incômodo de lhes dar explicações extensas, o que não poderiam fazer com o método oral puro. (Gaillard, 1894, p. 128 - tradução nossa)

Gaillard demonstra que as oficinas ofertadas nos institutos são mal administradas, lançando o surdo estudante à própria sorte e, em parte, isso se dá pela dificuldade imposta pelo uso do método oral, impossibilitando que orientações mais complexas pudessem ser dadas aos estudantes. Desta maneira, Gaillard associa os problemas das carreiras e profissões também à questão da política linguística adotada na educação de surdos: à época, a ênfase era no treino articulatório, reabilitação auditiva, oralização e escrita da língua nacional.

A formalização da crítica à escola vem na sequência do discurso:

E, triste constatação, esses mestres ignoram ou resistem a todo o progresso feito em sua área, e não traçam o perfil de seus alunos, destinando-os a estar, ao sair da escola, em constante desvantagem com seus companheiros ouvintes. a menos que o jovem surdo-mudo refaça seu aprendizado, dedique mais anos para compensar o tempo perdido pela imprevidência de seus professores. (Gaillard, 1894, p. 128 - tradução nossa)

            O argumento seguinte de Gaillard retoma o objetivo da educação de surdos desde o abade L’Épée, mas o associa também aos princípios cidadãos da Revolução Francesa. O surdo é um cidadão e a digna vivência do trabalho contribui para o pleno exercício da cidadania:

Como podemos ver, para que o surdo-mudo seja verdadeiramente digno de sua regeneração intelectual, obra de Michel de L'Épée, e de sua reabilitação social realizada pela grande Revolução Francesa, é necessário que tenha todos os direitos dos cidadãos livres e aceite todos os deveres, sendo capaz de manter essa excelente categoria de cidadão na sociedade; quer dizer que já não depende dele, que se beneficia com o seu trabalho e com o seu saber, que já não está classificado na categoria dos assistidos, na raça terrível dos inúteis e parasitas. O surdo-mudo, digam o que se diga, ama o trabalho, tem um profundo horror à preguiça que o oprime de tédio, libertinagem que o cansa rapidamente. O que ele quer é aproveitar a vida, não queimá-la.  Portanto, ele tem preferências por estados com salários remunerativos. E ele está certo, porque ele quer justiça. Na verdade, como compensação pela sua enfermidade, ele quer levar sua parte das alegrias humanas, e como essas alegrias só estão ao alcance de quem ganha muito, ele quer uma profissão que lhe permita ser uma dessas pessoas privilegiadas. (Gaillard, 1894, p. 128-129 - tradução nossa)

Outro movimento em torno da autonomia dos surdos é feito por Gaillard. Recusando a condição de sujeito a ser assistido, mas considerando os surdos como cidadãos que podem e devem “falar” por si, Gaillard mostra como há necessidade de uma prática de justiça e que a resistência de muitos surdos a determinados trabalhos tem por motivação não um sentimento de preguiça, mas a percepção de que a vida é espaço-tempo a ser plenamente vivido, tendo acesso ao que existir de melhor. A crítica de Gaillard sugere que se vive numa sociedade caracterizada por desigualdades, mas que jamais o surdo deve submeter-se a isso como uma verdade eterna. Cabe, pois, aos surdos continuar na luta por melhores funções e melhores remunerações. Gaillard tem consciência de que parte do problema está ligado a uma visão religiosa que subjaz na educação iniciada por l’Épée, mas que, posteriormente, parece ter se concentrado mais no cuidado apenas das almas:

Quem se preocupa verdadeiramente com a felicidade dos surdos-mudos, com a sua felicidade possível aqui embaixo e não com a felicidade problemática em um mundo desconhecido, tem o dever de suas colocar em mãos um instrumento cujo uso garanta a realização de suas esperanças. Eles têm o dever de assegurar que o jovem Surdo-Mudo adquira a habilidade necessária para manejar esta ferramenta, para que então a use como sua arma de combate mais segura na vida, para que conquiste por ela o direito de entrar na felicidade da família. Dos privados de natureza, não queremos fazer um privado de educação; por que um ou outro seria privado de existência? Portanto, dê-lhes bons empregos, bem pagos; faça-os aprender esses ofícios com a maior aplicação possível, faça, em uma palavra, tudo o que você deve à sua inteligência revivida, que emergiu do limbo da ignorância por esforços pacientes e soberbos, que merecem admiração. (Gaillard, 1894, p. 129 - tradução nossa)

Em outro momento Gaillard afirma:

Para os surdos-mudos, uma inferioridade semelhante ficará evidente, especialmente se eles saírem das escolas - geralmente congregacionalistas - onde nenhum ofício é ensinado a eles. Em vez disso, eles estão sendo preparados para a vida no alto, para a vida celestial, em vez de para a vida aqui embaixo. (Gaillard, 1894, p. 139 - tradução nossa)

Gaillard, depois de comentar que os surdos de famílias abastadas não costumam trabalhar ou se dedicam a carreiras liberais ou pintura e escultura, mostra que a maioria dos surdos bem sucedidos economicamente, após saírem da escola, são aqueles que aprenderam alguma profissão fora da escola e junto a profissionais ouvintes. Gaillard sugere que uma estratégia possível seria ensinar aos surdos trabalhos bem remunerados em que poucos ouvintes dominem o funcionamento:

Uma coisa admirável a fazer, aliviaria completamente o surdo-mudo, seria ensinar-lhe uma profissão muito artística, que poucos falantes conhecem, o que o tornaria de forma indispensável, procurado por patrões, sempre em demanda de grandes e belos empregos, amplamente pagos. Para tanto, o ensino do desenho deve ocupar um lugar preponderante nas escolas de surdos-mudos, principalmente o desenho industrial. (Gaillard, 1894, p. 131 - tradução nossa)

Gaillard pensa o aprendizado profissional em oficinas fora dos institutos de educação de surdos. Na sua concepção, as oficinas dos institutos são inúteis e deveriam ser extintas. Ao denunciar a ineficiência dos institutos para formar surdos trabalhadores, Gaillard assinala que a qualificação profissional não poderia estar desatrelada de um aprendizado teórico sólido.

Para corroborar com sua argumentação, chega, pois, o momento em que Gaillard apresenta uma estatística sobre a realidade dos adultos surdos trabalhadores na França. Não nos deteremos sobre ela, entretanto, é preciso assinalar o quanto Gaillard foi capaz de pesquisar e sistematizar os dados, evidenciando que a maioria dos surdos encontrava-se em funções tidas como inferiores e desprezadas por ouvintes. Após listar os percentuais de cada profissão, mostrando pleno domínio de organização de seu pensamento na exposição, Gaillard afirma:

Vejamos agora quais são as profissões ensinadas nas escolas: agricultura, jardinagem, tipografia, litografia, carpintaria, escultura em madeira, sapateiro, encadernação, alfaiates. É muito pouco! Bom, se considerarmos que a população escolar de surdos-mudos é de cerca de 3.500 crianças, estremece-se ao pensar que um número tão considerável de jovens surdos-mudos estará condenado a escolher uma dessas profissões, muitas das quais insignificantes, não permitindo mais trazer o suficiente para comprar um pedaço de pão, sofrendo frequentes crises econômicas, e devendo, mais cedo ou mais tarde, desaparecer diante da máquina-ferramenta ou da baixa mão de obra, representada pela mulher ou pelo trabalhador estrangeiro. (Gaillard, 1894, p. 134 - tradução nossa)

            Ou seja, a escola montada na cidade capacita os surdos para profissões que tendem ao desaparecimento ou que são desvalorizadas, logo, o que se assistia na França daquela época estava diretamente relacionado à questão da escolarização ofertada aos surdos. Gaillard ainda analisa as constantes flutuações de oferta de trabalho em decorrência do crescimento de pessoas que dominam uma determinada profissão ou o fato de que alguns empreendimentos estavam migrando para os campos onde os terrenos eram mais acessíveis, deixando grande leva de desempregados e sendo os surdos um dos primeiros a ser demitidos nos momentos de crise. Para Gaillard, também as escolas das regiões rurais não cumpriam bem o seu papel, satisfazendo apenas aqueles surdos acostumados à rotina do campo.

As profissões exercidas pelo maior número de surdos-mudos não são as melhores, por isso há tantos surdos-mudos envergonhados, muitas vezes sem dinheiro, é porque vivem do ofício, ou mal remunerados, ou tendo pouco trabalho em decorrência da concorrência. Portanto, não devemos tomar o grande número de adultos surdos-mudos exercendo as ditas profissões e pedir que sejam ensinadas a jovens surdos-mudos nas escolas. Pelo contrário, devemos estar atentos ao seguinte: que as profissões menos conhecidas, onde os surdos-mudos conseguem ter sucesso, são talvez as mais bem pagas e que, consequentemente, são as mais recomendáveis. Só como nunca poderão ser ensinados nas escolas, é fácil concluir que, pelo interesse do Surdo-Mudo, é fácil concluir que o interesse do surdo-mudo é de ser colocado para fora da escola com uma educação primária satisfatória e absoluta liberdade para escolher tal ou tal profissão que irá atendê-lo e ajudá-lo a ser um cidadão útil para seus concidadãos. (Gaillard, 1894, p. 138 - tradução nossa)

Gaillard nomeia surdos franceses bem sucedidos, reconhecendo que são auxiliados nos empreendimentos por seus familiares que falantes/ouvintes e que tais surdos não tributam à educação recebida o êxito de seus negócios. Em mais um movimento precioso, Gaillard evoca a questão dos salários:

Os salários dos surdos-mudos são sempre iguais aos dos ouvintes com a mesma capacidade; não pode haver distinção feita pelos patrões entre seus trabalhadores surdos-mudos e ouvintes, a menos que os primeiros sejam inferiores aos seus camaradas, ou [eles] sejam tímidos, ignorantes de seus direitos, tal como os patrões acreditam que eles estão autorizados a pagá-los como bem entendam, sem ter que temer seus protestos. Os alunos surdos-mudos que se formam nas escolas são os que mais facilmente se enquadram nessa categoria de pessoas ingênuas. Isso se explica pelo fato de que a escola onde o internato é praticado nunca dará forma à vida do mundo, nunca dará a dureza de temperamento necessária à luta pela vida contemporânea. (Gaillard, 1894, p. 139 - tradução nossa)

Gaillard se recorda de iniciativas particulares de criação de oficinas para surdos-mudos. Todavia, deseja que também o Governo se envolva mais diretamente com a questão pelo incentivo a tais iniciativas, como também pela priorização de encomendas a trabalhadores surdos. E mais uma vez, Gaillard retoma o contexto escolar, mostrando como o momento de término de estudos nos institutos se transforma num momento de decadência para os surdos:

Na verdade, se lá existem muitas sociedades de patrocínio, educação e assistência para os surdos-mudos, por outro lado, as sociedades de alocação de surdos são lamentavelmente deficientes. As próprias escolas, pelo menos as escolas oficiais, negligenciam a colocação de seus alunos concluintes. Quando os surdos-mudos completam seu tempo de estudo, em média de sete a oito anos, eles consideram que sua missão acabou, o que é realmente cruel; o que faria desejar a supressão total das escolas de surdos-mudos, a fim de deixá-los na deliciosa felicidade da ignorância. Pois de que adianta dar instrução e educação se, mais cedo ou mais tarde, pela indiferença social, esta instrução e esta educação devem servir apenas para mostrar ao surdo-mudo que sua condição deve permanecer inferior; que todos esses esforços, como os de seus mestres para libertá-lo do infortúnio de seu destino, devem permanecer improdutivos; que ele é o homem mais irremediavelmente condenado do universo? Os grandes notáveis das letras, das artes, da política, da ciência e da indústria interessados ​​na sagrada causa dos surdos-mudos são uma legião na França. Seria uma questão de agrupar alguns surdos-mudos de elite e o núcleo de uma empresa de colocação de surdos-mudos seria encontrado. Enquanto os falantes/ouvintes usariam suas influências e conselhos, os surdos e mudos recomendariam aqueles que precisam da proteção da sociedade de investimentos. (Gaillard, 1894, p. 142 - tradução nossa)

Gaillard sugere ações concretas no que diz respeito à uma nova organização para a colocação de surdos no mercado de trabalho:

Se, apesar dos melhores motivos do mundo, apesar das lições da experiência, persistirmos em manter oficinas profissionais nas escolas, se acreditarmos na utilidade de uma escola técnica para surdos-mudos, ainda seria necessário promover a transição das oficinas da escola às do mundo e esta tarefa deveria ser delegada à empresa de colocação que apoiaria o jovem trabalhador, ajudaria a aperfeiçoar a diferença entre seus ganhos e o custo de vida, iria comprar-lhe as ferramentas necessárias, até que ele realmente se torne capaz de se sustentar. O Governo e as autarquias devem também, mais do que particulares, contribuir para a regeneração dos Surdos-Mudos através do trabalho, abrindo amplamente as portas das oficinas, fábricas e fábricas que lhes pertencem. (Gaillard, 1894, p. 143 - tradução nossa)

            Gaillard nomeia os políticos franceses que apoiaram as causas dos surdos e também se recorda indignado por não entender a não implementação da sugestão dada pelo grande empresário Eugène Pereire de se criar uma turma de ensino de contabilidade, escrituração, elementos de administração e escrita comercial para surdos. Pensando na possibilidade de que alguns surdos poderiam assumir cargos no governo, Gaillard pontua:

É triste ver que certos surdos-mudos dotados de grandes faculdades de assimilação intelectual, são obrigados a aprender as profissões manuais ou nunca o conseguirão, e com razão, onde vegetarão para sempre. Possibilidade de exercer uma profissão liberal em relação de acordo com suas capacidades, eles se tornariam dignos da categoria social para a qual seus conhecimentos profundos os chamam. (Gaillard, 1894, p. 144 - tradução nossa)

            Gaillard encerra o seu discurso sugerindo a redação de três deliberações a serem votadas no Congresso Internacional de Chicago:

Considerando:

Que, para saber quais são os ofícios mais adequados para os surdos-mudos viverem a vida de homens livres, é necessário conhecer por si mesmo esses ofícios e quem os exerce;

Que os próprios surdos-mudos e os trabalhadores são mais aptos do que ninguém para dar indicações proveitosas:

Emite os seguintes votos:

1°. Que, para todas as questões relativas a carreiras, profissões e ofícios aplicáveis ​​aos surdos-mudos, o conselho seja obtido pela autoridade superior, em cada nação, de uma comissão composta, em igual número, por surdos-mudos e ouvintes-falantes competentes;

2°. Que o Estado e os Municípios dêem livre acesso às suas oficinas e administrações a Surdos-Mudos dotados das capacidades necessárias;

3°. Que as empresas que lidam com a colocação e o apoio a trabalhadores surdos-mudos desempregados sejam criadas sempre que houver necessidade. (Gaillard, 1894, p. 145 - tradução nossa)

O Gaillard que conhecemos pelo registro do Congresso de Chicago é um surdo militante, inconformado com a realidade do trabalho dos surdos, disposto vigorosamente a defender outra forma de profissionalização dos surdos que tem por base um ensino primário qualificado. Recorde-se que na França desse período não era comum um ensino que ultrapasse o nível básico. No mesmo evento, noutra reflexão, Gaillard afirma: “O trabalho de emancipação dos surdos-mudos começou pelos ouvintes, mas, dado o progresso feito pelo mundo surdo-mudo, pode ser completado e acabado pelos próprios surdos-mudos” (Gaillard, 1894, p. 162 - tradução nossa). Estamos, portanto, diante de um surdo de elevada estatura na defesa de seus irmãos.

Em sua participação no Congresso Internacional para Estudos de Questões de Educação e de Assistência de Surdos-Mudos - seção dos surdos, ocorrido entre 06 a 08 de agosto de 1900, na cidade de Paris, Gaillard, praticamente relê vários trechos da reflexão apresentada em Chicago. Mas, Gaillard tem uma justificativa para tal:

Não me parece necessário insistir na questão das carreiras e profissões dos surdos-mudos. Eu já fiz isso no Congresso de Chicago. Aqueles que estiverem interessados nesses detalhes irão se referir a ele. Agora a questão permanece, porque desde então nada foi feito do que eu pedi, nenhuma reforma foi tentada. Seria a teimosia na rotina? Seria má vontade? Seria indolência, essa indolência francesa que só pode se mover lentamente, galvanizar-se para tornar-se uma energia que faz o progresso ter sucesso? Pode ser. Mas creio sim, isso seja dito sem machucar ninguém, que não se quer fazer nada porque as coisas excelentes que se propõem, aquelas que a razão sustenta, que a experiência sustenta, emanam dos surdos-mudos. (Gaillard, 1900, p. 180 - tradução nossa)

            Talvez, Gaillard tivesse vivido a esperança de que após Chicago fossem colocadas em prática as deliberações por ele sugeridas. Segundo ele, o que está em jogo é o fato de que são os surdos mesmos que estão fazendo proposições acerca de seus destinos e não mais os grupos religiosos e os professores ouvintes. São os surdos tomando suas vidas nas mãos. Uma clara reação a qualquer tipo de desejo de tutelar os surdos. O fato de perceber a inércia da realidade, faz com que Gaillard conclame os surdos:

Para mim, mais acostumado ao contato dos homens, mais dotado de agudeza observante, para mim que tenho medido a profundidade de todas as desgraças do infortúnio, não temo repetir o que disse antes: é necessário que os surdos-mudos briguem energicamente para ter o direito de se ocupar dos surdos-mudos eles mesmos; eles devem impor às autoridades públicas o dever de ouvir suas demandas em detrimento de todas as outras. Nestes tempos de livre discussão, livre exame, livre adoção ou livre recusa, nesta era de melhor ação solidária, seria uma ofensa criminal remover os surdos de seus direitos e deveres como cidadãos que são interessados ​​em seus próprios assuntos. Seria anti-humano, monstruoso, negar-lhes o poder de saber o que precisam, explicar o efeito sobre eles do ensino de seus professores, a aplicação de métodos e desejar tal e tal melhoria. (Gaillard, 1900, p. 180-181 - tradução nossa)

            É confiando na potência resistente do associativismo dos surdos que Gaillard retoma a questão do trabalho, das carreiras, das profissões. Considerando também o espaço privilegiado de discussão que eram os congressos, Gaillard rebate as críticas que sofriam. Especificamente, o congresso realizado em Paris em 1900 revestiu-se de uma peculiaridade. Foi um evento em que simultaneamente foram realizadas duas seções: uma de ouvintes, na sua maioria professores de surdos; e uma de surdos, que continha também a participação de alguns ouvintes. Gaillard recorda a relevância dos congressos:

Ah! Eu sei! Alguém que denegriu os congressos de surdo-mudos, o famoso Renz, pronunciou essa apóstrofe: "Desde quando vemos os doentes cuidando de criticar seus médicos e seus remédios?”. Agora, este Renz ainda tem seguidores. Talvez você os conheçam? Em todo caso, apenas para mim ousaram repetir quase as mesmas frases de desprezo sobre vossos esforços. Felizmente, o Governo da República mais uma vez adquiriu a nossa gratidão, aceitando-nos em congressos oficiais, estimando-nos com o mesmo valor que as pessoas comuns. Nossa dignidade é, portanto, afirmada. Agradeço ao Governo, à Comissão Superior da Exposição e, em particular, ao Delegado Chefe do Congresso, Senhor Ilustre Gariel, pela solicitude com a qual gostariam de cercar o trabalho de nossa seção. (Gaillard, 1900, p. 181 - tradução nossa)

O surdo Gaillard, com seus trinta e três anos, mostra-se como grande liderança surda neste evento internacional:

Desculpe-me por esta digressão um pouco fora do contexto de uma questão. Mas é aqui que eu poderia destacar melhor a utilidade do nosso trabalho que parecemos desprezar, é aqui que devo expressar a esperança de que este trabalho seja levado em consideração, é aqui que eu devo pedir-vos que façam a vontade de prosseguir sem falhar a realização de seus desejos até a completa satisfação. (Gaillard, 1900, p. 181 - tradução nossa)

Gaillard comenta que muitos afirmam ser difícil educar os surdos e fazem disso uma forma de se vangloriarem e, ao mesmo tempo, acusar os surdos de alguma debilidade no aprendizado. Gaillard compara os surdos que vivem na zona rural e, quase sempre, aprendem a profissão de seus pais, com aqueles que vivendo nas cidades ampliam seus horizontes de possibilidades profissionais. A partir disso, retoma a argumentação contra as oficinas mantidas nos institutos de educação de surdos:

Assim, não deveríamos mais manter as oficinas nas escolas, que deveriam ser utilizadas, até os 14 ou 15 anos, apenas de sua educação moral, de sua instrução intelectual, com informações de desenho e trabalho manual. Em seguida, coloque-os em aprendizado fora das escolas, em oficinas comuns, com companheiros ouvintes. É lá que eles aprenderão melhor o ofício de sua escolha, que se aperfeiçoarão lá por uma prática diária, se tornarão amigos de seu chefe ou contra-mestre, e assim sempre poderão ter a certeza do pão diário ganhado honrosamente. (Gaillard, 1900, p. 182 - tradução nossa)

Novamente, serve-se da estatística realizada por ele para confrontar as informações sobre a eficácia da educação de surdos:

Em algumas escolas, eles aprendem um ofício que, na maioria das vezes, é uma ocupação vulgar de mulheres, costurando, consertando roupas, lavando roupas, bordando, cozinhando um pouco; mas nunca pensamos em torná-los muito habilidosos nessas profissões. No entanto, nas grandes cidades, surdos-mudos praticam o comércio e a vida. Aqui, novamente, notaremos que estes não são comércios aprendidos na escola. (Gaillard, 1900, p. 187-188 - tradução nossa)

Gaillard encerra sua participação, mais uma vez, sugerindo deliberações a serem votadas pelos congressistas. Na décima sétima resolução, aprovada pela Seção de Surdos no Congresso de Paris, percebemos claramente as digitais de Gaillard:

O Congresso dos Surdos-mudos emite o voto:

1º - Que a educação profissional seja apoiada tanto quanto possível em todas as escolas e que os estudantes sejam colocados, uma vez completado o seu tempo de estudo, nas oficinas comuns no âmbito da sociedade civil (em geral), onde seu aprendizado será mais prático e melhor relacionado às habilidades individuais;

2° - Que, enquanto aguarda-se uma escola de ensino secundário, se criem, na medida do possível, classes onde as disciplinas comerciais e administrativas serão ensinadas aos sujeitos mais dotados para a carreira de funcionário;

3° - Que uma agência de surdos-mudos (assessoria de colocação, recomendações e informações), seja instituído, seja pelo Conselho Municipal de Paris na Bolsa do Trabalho, seja pelo Ministério do Comércio na Agência do Trabalho;

4° - Que um subsídio retirado dos fundos do Pari-Mutuel seja concedido pelo Governo da República em vista das necessidades desta agência no caso de ser a Federação das Sociedades francesas dos surdos-mudos que tomaria a iniciativa de sua criação.

O Congresso, além disso, chama a atenção benevolente dos senhores Senadores, Deputados e Conselheiros Municipais sobre a importância das questões da empregabilidade dos surdos-mudos, os únicos capazes de inseri-los na vida social. (Gaillard & Jeanvoine, 1900, p. 242 - tradução nossa)

Os dois discursos de Gaillard nos apresentam uma perspectiva bastante distinta daquela, por vezes repetida acriticamente, de que a comunidade surda pós-Milão teria vivido um período de fechamento e desânimo.  “O arquivo e os documentos se fabricam, tanto quanto as narrativas que deles se utilizam” (Albuquerque Júnior, 2019, p. 99). Longe de um ostracismo, parece-nos que os textos indicam uma forte resistência por parte dos surdos, manifesta por uma capacidade de se organizarem em associações e congressos. Contemplar o surdo Gaillard como este homem que manifesta seu pensamento com total liberdade nos desafia ainda hoje a pensar a realidade do mundo do trabalho para os surdos.

Gaillard é apresentado nos dois eventos como: editor-chefe da Gazette des Sourds-muets. Sua compreensão das associações de patronato que poderiam patrocinar os primeiros empregos está associada aos investimentos públicos nessa causa dos surdos. Mas não somente isso. Gaillard sabia que a imprensa poderia ser um canal especial para divulgar as lutas dos surdos e fez bom uso disso. Outra área de sua atuação foi a promoção dos artistas surdos e o seu envolvimento com eventos esportivos. Abrem-se aqui duas temáticas que merecem ainda mais aprofundamentos.

            A postura crítica de Gaillard arrebanhou também adversários, até mesmo dentro da comunidade surda. Seus posicionamentos políticos ligados aos republicanos geraram certa indisposição com Victor-Gomer Chambellan, também líder surdo e fiel seguidor do pensamento mais tradicionalista de Ferdinand Berthier. Muitas vezes, por meio da imprensa Gaillard contra-ataca seus opositores. Essa questão ajuda-nos a perceber que  não houve um momento idílico da comunidade surda, mas que, como todo movimento social, foi também marcada por conflitos internos, reconciliações, perspectivas divergentes. Os surdos fazem parte de uma comunidade humana.

 

CONS-CIÊNCIA DE QUE A LUTA CONTINUA: ALGUMAS PALAVRAS PARA RECOMEÇAR O DIÁLOGO

Henri Gaillard morre em 1939. Seu estilo militante o acompanhou até o fim da vida. Neste artigo detivemo-nos na sua participação nos congressos internacionais de surdos. Sua acolhida nestes eventos denota seu compromisso com a comunidade surda e sua preocupação com seus irmãos. A realidade do mundo do trabalho no final do século XIX foi determinante para que Gaillard se subjetivasse como surdo intelectual.

            Os dois discursos, por nós contemplados, caracterizam-se por fortes críticas à educação que era ministrada aos surdos e por uma capacidade de análise da realidade que podem produzir estudiosos insidiosos. Gaillard debruça-se sobre os sofrimentos de seus irmãos, mas não o faz por simples motivação caritativa de inspiração cristã. Imbuído do pensamento de que o caminho aberto pelo abade L’Épée torna possível aos surdos acessar a educação e que é a condição de cidadãos, com direitos e deveres, que permite se exigir dignidade no trabalho, Gaillard junta todos os argumentos para motivar os seus irmãos a permanecer em luta até que alcançassem seus objetivos.

            O descontentamento de Gaillard no evento parisiense não o impede de insistir nos ideais propostos em Chicago, antes o permitem, inclusive, denunciar que existem mecanismos infundados de enfrentamento às suas lutas. Gaillard retoma o discurso de Chicago, agora na sua própria pátria, desafiando políticos e outros surdos bem sucedidos, conclamando-os a se envolverem numa jornada para se garantir a empregabilidade dos surdos após o período de escolarização. Infelizmente, as proposições de Gaillard não se concretizaram e em outros congressos ele permanecerá como o surdo que defende a inserção dos irmãos no mercado de trabalho. No Congresso Internacional de Saint Louis (EUA), novamente, Gaillard discursará sobre a situação dos surdos-mudos, oferecendo uma grande lista com nomes de surdos e suas profissões, deixando-nos uma rica fonte para outras pesquisas.

            A retrospectiva a estes textos pouco conhecidos em nosso continente podem nos ajudar a dialogar com o momento presente. Muitas lutas dos surdos parecem ter se eternizado e agravado nos últimos anos, apesar das legislações que procuram atender algumas de suas demandas. Entretanto, apesar do perceptível aumento no número de surdos com graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, a grande maioria de seus irmãos continuam a ocupar funções subalternas no cotidiano, estão em carreiras diferenciadas de seus pares ouvintes ou experimentam subempregos em função de não terem tido acesso à uma educação que lhe desse condições mínimas para inserção no mercado de trabalho.

            Com os textos de Gaillard não pretendíamos dar respostas, mas, fazer ressoar nos nossos dias aqueles discursos potentes, capazes de implodir concepções, forjar um novo olhar, despertar movimentos, atravessar o interlocutor. Esses surdos do passado a quem devemos nosso pleito de reconhecimento pelas bandeiras desfraldadas e que agora são levadas nas mãos por seus irmãos nos diversos países que, diuturnamente, permanecem lutando por direitos, por reconhecimento, por serem definitivamente tratados como cidadãos. 

            A resistência de Gaillard pode ser uma inspiração que nos ajuda a perceber que as lutas de uma minoria linguística tocam diversos setores da sociedade, ultrapassam os limites da própria comunidade e necessitam de engajamento contínuo, não se deixando satisfazer por migalhas, mas almejando ganhar o pão na plena dignidade. Ainda inspirando-nos em Gaillard, é oportuno pensar que escola os surdos desejam para si tendo em vista que o mercado neoliberal sempre nos devorará com suas demandas, sendo capaz de amanhã, ainda cedo, tornar obsoleto o que hoje luzia como novidade. Talvez, seja hora de se pensar uma educação noétomalaliena...

 

REFERÊNCIAS

Albuquerque Júnior, D. M. (2019). O tecelão dos tempos (novos ensaios de teoria da história). Intermeios.

Cantin, Y. & Cantin, A. (2017). Dictionnaire biographique des grands sourds en France: les Silecieux de France (1450-1920). Archives & Culture.

Foucault, M. (1979) Microfísica do poder. Edições Graal.

Foucault, M. (2010) Repensar a política. In: Foucault, M. (Ed.) Ditos e escritos, vol. VI. Forense Universitária.

Foucault, M. (2014). A arqueologia do saber. Forense Universitária.

Gaillard, H. (1894). Le Second Congrès International des Sourds-muets - Chicago - 1893. Édition du Fox. http://www.2-as.org/editions-du-fox/.

Gaillard, H. (1900). Carreiras e profissões de surdos-mudos: assistência para o trabalho. In Gaillard, H. & JEANVOINE, H. Congrès International pour l’Etude des Questions d’Assistence et d’Education des Sourds-Muets (pp. 180-194). Imprimerie D’ouvriers Sourds-muets.

Gaillard, H. (2002). Gaillard in deaf America: a portrait of the deaf community. Gallaudet.

Gaillard, H. & Jeanvoine, H. (1900). Congrès International pour l’Etude des Questions d’Assistence et d’Education des Sourds-Muets. Imprimerie D’ouvriers Sourds-muets.

Le Goff, J.  (2013). História e memória. UNICAMP.

Renard, M. (2015). Les Congrès Internationaux pour les ou des sourds-muets au XIXe Siècle. Editions du Fox.

Société Universelle des Sourds-Muets (1887). Compte Rendu du Banquet du 28 novembre 1886, a l’ocasion du 174e anniversaire de la naissance de l’abbé de l’Épée. Georges Carré. http://www.culture.gouv.fr/LH/LH224/PG/FRDAFAN84_O19800035v1277661.html

 


 



[1] Professor da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES. Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo.

[2] Professora permanente no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE/UFES) e professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em Linguística (PPGEL/UFES). Coordenadora do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Libras e Educação de Surdos (Giples/Ufes/Cnpq).

[3] Professora permanente no Programa de Graduação e de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas; membro do GT Libras da Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Linguística (ANPOLL); membro da rede de pesquisadores Núcleo Educação para a Integração da La Asociación de Universidades Grupo Montevideo (AUGM).

[4] Além das fotografias, Cantin e Cantin (2017) relatam que por ocasião da viagem de Gaillard aos Estados Unidos para a celebração do centenário da escola de surdos em 1917, consta no registro de navio que sua estatura era de 1m47cm.