POLÍTICA E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO NA CIÊNCIA E NA EDUCAÇÃO SUPERIOR (PPLICES) COMO CAMPO DE ESTUDO: ESPECIFICIDADES DO OBJETO E PROBLEMÁTICAS EMERGENTES

 

Jesus, Paula Clarice Santos Grazziotin de

paulaclarice@gmail.com

Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC)

Brasil

Oliveira, Gilvan Müller de

gimioliz@gmail.com

Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Brasil

 

RESUMO

Este texto tem por objetivo caracterizar uma área emergente das políticas linguísticas, PPLICES – Política e Planejamento Linguístico para a Ciência e a Educação Superior, explorando a sua relação com o multilinguismo. Assim, discute na sua primeira parte o crescente monolinguismo da produção científica em inglês, apontando implicações desta tendência e relacionando-o com as discussões sobre a colonialidade do saber. Em uma segunda parte, arrola problemáticas possíveis a serem tratadas pela ótica de PPLICES, na chave da produção e da circulação de conhecimento, como a produção científica em línguas minorizadas ou o desenvolvimento de terminologias científicas em diferentes línguas.

Palavras-chave: PPLICES, Política Linguística, Educação Superior, Produção científica.

 

LANGUAGE POLICY AND PLANNING IN SCIENCE AND HIGHER EDUCATION (PPLICES) AS A FIELD OF STUDY: OBJECT SPECIFICITIES AND EMERGING ISSUES

 

ABSTRACT

This paper aims to characterize an emerging language policy area, PPLICES – Language Policy and Planning for Science and Higher Education, exploring its relationship with multilingualism. Thus, in its first part, it discusses the growing monolingualism of scientific production in English, pointing out the implications of this trend and relating it to discussions on the coloniality of knowledge. In a second part, it lists possible problems to be dealt with from the perspective of PPLICES, in the key of knowledge production and circulation, such as scientific production in minorized languages or the development of scientific terminologies in different languages.

Keywords: PPLICES, Language Policy, Higher Education, Scientific production, Multilingualism, Anglicization.

 

INTRODUÇÃO

Ao olhar para a presença das línguas nas publicações científicas, percebe-se um cenário de assimetria e desigualdade, no qual as grandes línguas internacionais concentram a maior parte da produção mundial, com um predomínio importante da língua inglesa sobre as outras. Esse quadro resulta em barreiras linguísticas que invisibilizam conhecimentos produzidos fora da anglofonia, excluindo pessoas e sociedades do campo da ciência.

Internacionalmente, autores como Hamel et al. (2016), De Wit (2016), Amon (2001) e Singh (2017), entre outros, têm apontado a importância de uma explicitação de políticas linguísticas — e seu respectivo planejamento — para uma educação superior efetivamente inclusiva e não autoritária. Um contexto problemático se constitui por uma soma de forças econômicas, geopolíticas e culturais, como é normal na constituição das hegemonias, e por esta razão é necessário que haja políticas para proteger línguas e culturas minoritárias e minorizadas. Diante disso, neste artigo buscamos apresentar as Políticas e Planejamento Linguístico para Ciência e Educação Superior (PPLICES) como um campo de estudos emergente dentro da Política Linguística, analisando algumas especificidades do objeto e as problemáticas emergentes no campo.

A área de PPLICES vem sendo delineada por alguns estudiosos, que têm se dedicado à produção de conhecimento sobre como se deve pensar as línguas nesse contexto. Em inglês, encontramos em Hamel et al. (2016) a sigla LPP for SHE (Language Policy and Planning for Science and Higher Education). Entendendo que uma das tarefas desta pesquisa é contribuir para a construção de uma terminologia adequada em língua portuguesa, neste texto trabalharemos com a tradução PPLICES, citada pela primeira por nós em Oliveira et al. (2017). Como veremos adiante, a complexidade deste objeto tem chamado a Política Linguística a estudar as especificidades da intervenção nas línguas de modo a viabilizar que elas sejam meios de produção e de difusão de conhecimento.

Para isso, trabalharemos a partir da concepção de multilinguismo como a coexistência e o contato de diferentes línguas em um mesmo espaço social – na presente discussão, limitando esse espaço ao campo da ciência e da educação superior. Nesse sentido, apresentamos um conceito:

O termo ‘multilíngue’ se refere aqui à diversidade de significado, expressa através de diferentes códigos, modos, modalidades e estilos que são correntes em um mundo globalizado que está agora constantemente e onipresentemente interconectado. Esse é o mundo onde nossos alunos serão chamados a ‘interagir entre línguas’ e a demonstrar ‘competência translinguística e transcultural’. (Kramsch, 2014, p. 17)

A produção de conhecimentos científicos e, por consequência, o desenvolvimento de tecnologia são elementos-chave para o desenvolvimento econômico dos países, no cenário capitalista. Por isso esses fatores afetam as PPLICES. Uma série de eventos históricos, inclusive a globalização, garantiu que a anglofonia se firmasse como o centro do sistema neste século XXI.

Na educação superior, instituições vêm passando por um processo de anglicização no mundo todo, com o processo de internacionalização que tem promovido ensino, pesquisa e publicações científicas em inglês, mesmo em países não anglófonos. Como consequência desses movimentos, testemunhamos hoje uma tendência mundial a uma ciência monolíngue em que as vozes consideradas relevantes devem falar em inglês. O problemático é que essas políticas incentivam a manutenção do processo excludente que está instaurado na ciência desde mesmo antes da hegemonia do inglês. Afinal, a priorização de uma língua na ciência coloca em risco as línguas periféricas, invisibiliza os conhecimentos que nelas são produzidos e circulam.

Por isso, políticas e planejamento linguístico que promovam o multilinguismo na ciência são estratégias de promover a valorização desse capital linguístico e cultural. Nesse sentido, produzir e circular conhecimentos numa perspectiva de multilinguismo fortalece as universidades e seus pesquisadores, permite que escolham quais interlocutores lhes interessam e em que língua(s) se darão essa interação e as parcerias, possibilitando um espaço de planejamento estratégico associado ao uso das línguas na produção científica.

Pensar as línguas de ensino, de produção e de difusão de conhecimento no espaço universitário e da educação superior em geral, é um novo território sobre o qual a Política Linguística vem sendo chamada a refletir e teorizar. Assim, nas próximas seções, apresentaremos PPLICES como um campo de estudos emergente dentro da Política Linguística e algumas problemáticas. A partir de uma revisão bibliográfica, analisaremos algumas especificidades de seu objeto de estudo, elencando problemas de pesquisa para futuro aprofundamento.

 

O CAMPO DE ESTUDOS DE PPLICES E SUAS ESPECIFICIDADES

Nesta seção buscamos demonstrar os sentidos em que  PPLICES pode ser considerado um campo emergente de estudos, localizando-o  dentro da Política Linguística. Segundo Bianco (2010, p. 143), o termo “Política Linguística” provavelmente foi usado pela primeira vez em Nova Iorque, pelo linguista Uriel Weinreich no começo dos anos 1950. Bianco (2010) também ensina que a categoria “planejamento” foi consolidada na política linguística em 1969, por Heinz Kloss. A Política Linguística pode ser assim compreendida:

In essence this is a typology for classifying the choices government authorities make regarding language and social life. Classically these choices involve identification of a language or communication problem, the formulation of alternative ways of resolving this problem, deciding the norm to be promoted, and implementing it via the education system: a language problem leads to a language policy, which leads to LP [language planning].  (Bianco, 2010, p. 144)

Como vemos, a essência de uma política linguística está no seu caráter interventivo. Hornberger (2015) ensina que fazer pesquisa em política linguística vai além do levantamento dos problemas que afetam as línguas. Este campo envolve também o planejamento linguístico, que são as ações que se fazem sobre as línguas. Este planejamento linguístico se aplica a todos os campos em que problemas tenham sido identificados, inclusive ao da educação superior e da ciência, foco desta discussão.

Mais que uma ciência, a Política Linguística é uma ótica, como afirma Oliveira (2004, p. 175), uma busca por responder perguntas que vêm de fora dela, oriundas de diversos setores das sociedades. Em todos os espaços em que há interação humana por meio das línguas, podemos encontrar questões político-linguísticas, que se referem às relações entre as línguas e seus falantes. As teorizações da Política Linguística são, assim, dialógicas, partem e regressam da sociedade, circulam pelo fazer de diversos agentes sociais

A ciência e a educação superior são atividades essencialmente dialógicas também, então é fundamental explicitar as relações de poder que se estabelecem por meio das línguas em que o conhecimento circula. Diante desta natureza comum, evidencia-se a pertinência da Política Linguística como meio de analisar as relações de poder no campo da ciência e intervir para corrigir injustiças e desigualdades que caracterizam o campo.

Os estudos em política linguística em geral trazem três elementos: o levantamento dos problemas, a proposta de solução (política) e um meio de implementá-la (planejamento). assim, as ferramentas teóricas e conceituais deste campo poderão contribuir para promover uma ciência mais democrática e acessível, a partir de estudos específicos sobre o lugar das línguas na produção e difusão de conhecimento, um objeto que vem demandando a sistematização de suas problemáticas e respostas a elas.

A primeira especificidade desse objeto de estudo, PPLICES, que apresentamos tem a ver com o cenário em que ocorrem as dinâmicas. As instituições de pesquisa e educação superior são espaço estratégico para os Estados, do ponto de vista econômico. Sobre essa questão vejamos:

Sendo a universidade a principal ou uma das principais unidades de produção de C&T no capitalismo contemporâneo, e que passa a dar crescente atenção à pesquisa e integrá-la cada vez mais fortemente com o ensino, é natural que na universidade se sinta de modo muito forte a necessidade de definir estratégias para uma participação ampliada nos “mercados da ciência”, o que num primeiro momento, também para o Brasil, a pauta da internacionalização [O papel da universidade na ciência internacionalizada]. (Oliveira et al., 2017, p. 26)

Por essa razão, as universidades se tornam espaços dos quais se espera uma contribuição para o fortalecimento econômico dos países, de modo mais acentuado hoje do que em épocas passadas. Nesta segunda década do século XXI, a internacionalização das instituições tem sido uma das ações mais marcantes da política universitária no Brasil. Uma análise sobre os documentos institucionais que foram publicados pelas universidades brasileiras neste período mostra que as muitas decisões vêm sendo tomadas sobre as línguas em que faremos ensino, pesquisa, formação de pesquisadores e publicações científicas em nosso país (Jesus, 2018). Tais decisões se materializam em documentos que anunciam as PPLICES adotadas nas instituições a partir de, principalmente, editais de recursos para investimento em internacionalização. E, como o mesmo estudo verificou, as PPLICES que visam à promoção do multilinguismo na ciência feita no Brasil são escassas e estão em minoria (Jesus, 2018).

Não é possível falar em PPLICES sem assumir a existência de um mercado linguístico da ciência e da educação superior. Um mercado linguístico pode ser um espaço assimétrico  no qual, mesmo havendo convivência entre línguas, pode haver uma a que se reconhece maior legitimidade. É a língua ou variedade linguística de prestígio, cujo domínio confere autoridade a seus falantes. Bourdieu (1982) explica:

Pour qu’un mode d’expression parmi d’autres (une langue dan le cas du bilinguisme, un usage de la langue dan le cas d'un société divisée en classes) s’impose comme seul légitime, il faut que le marché linguistique soit unifié et que les différents dialectes (de classe, de région ou d’ethnie) soient pratiquement mesurés à la langue ou à l’usage légitime. L’intégration dan un même “communauté linguistique”, qui est un produit de la domination politique sans cesse reproduit par des institutions capables d’imposer la reconnaissance universelle de la langue dominante, est la condition de l’instauration de rapports de domination linguistique. (p. 28)

Assim o processo de pertencimento a um mercado linguístico depende, também, do domínio da língua ou variedade linguística de maior legitimação no campo, que geralmente é acessível somente a uma elite. Pensando internacionalmente, é preciso aprender a dominar a variedade de prestígio para poder se aproximar do centro do sistema. No contexto global da ciência, este capital hoje se concentra na língua inglesa, assim como em outros momentos da história se concentrou em outras línguas.

É esta dinâmica de poder que pressiona o campo da ciência ao monolinguismo, porque a língua hegemônica domina o mercado, levando os falantes à busca por acessá-la, usá-la, promovê-la. Este uso, porém, impõe custos — de aprendizagem de segunda língua ou de contratação de serviços de tradução, por exemplo — que oneram (e não apenas em sentido financeiro) a produção científica nos países que estão mais distantes do centro do mercado linguístico. Assim, as instituições de pesquisa e educação superior tendem a se adaptar à pressão, a menos que haja uma escolha consciente por oferecer alguma resistência a esse domínio — essa resistência pode depender de PPLICES que promovam o multilinguismo.

Além disso, este espaço a que estamos chamando de cenário em que se dão as PPLICES tem uma complexidade ligada à dupla função que tais instituições exercem desde sua origem. A missão das universidades desde sua gênese combina a formação humana com a preparação para o mercado de trabalho. Esta duplicidade pode ser antagônica quando olhamos para a competitividade que caracteriza o mercado, em oposição à natureza colaborativa do fazer científico. A linha entre a autonomia da educação superior e a vulnerabilidade dessas instituições às pressões do Mercado e do Estado é delicada, complexa e demanda estudos político-linguísticos.

Charle e Verger (1996) descrevem o processo histórico de surgimento das universidades desde a Idade Média, quando se formaram espaços de atuação profissional mais especializados, então sob controle da Igreja e do Estado emergente, até chegar ao formato contemporâneo. Assim é que, desde seu nascimento, mesmo com relativa autonomia, a educação superior se vinculou à oferta de uma formação em acordo com os poderes políticos da sociedade e as ideologias hegemônicas. A presença das línguas no campo da ciência, portanto, não é resultado de algum processo natural mas de um processo histórico sobre o qual é preciso teorizar e intervir. A ausência de políticas é também uma política e no caso das línguas, como pontuou Laborinho (Ponto Final, 2017): “as línguas são formas de afirmação de poder, são formas também de se afirmar do ponto de vista dos negócios e por isso mesmo podemos dizer que as línguas seguem a rota dos negócios”.

Além disso, uma segunda especificidade das políticas linguísticas no campo da ciência é a inescusável tarefa de lidar com a questão da colonialidade do saber. As PPLICES, declaradamente ou não, implicam uma tomada de posição em relação à questão da colonialidade. Isso porque um problema desse modelo de universidade ao qual chegamos é que, no século XXI, ele vive o que Castro-Gómez (2007, p. 80) nomeia como “la crisis de legitimación de la universidad contemporánea en el marco del capitalismo posfordista”. Essa crise, ensina o autor, deve-se ao fato de que a estrutura da universidade é uma herança da colonialidade e, por isso, parte da premissa de que existem conhecimentos legítimos em oposição a conhecimentos ilegítimos e que o papel de dizer qual é cada um deve ser desempenhado a partir de uma estrutura disciplinar e hierarquizada entre os ramos das ciências e entre os centros e as periferias da produção científica.

Porém as mesmas forças constituintes dessa autoridade das universidades as mantêm fragmentadas e submissas às hegemonias. Pois os caminhos encontrados para se manter em seu papel de espaço da produção do conhecimento acabam passando pelas parcerias com o mercado (indústria, empresas, institutos privados de pesquisa, por exemplo). Assim,

Como a produção de C&T implica crescentemente em redes (de colaboração, mas não só) ampliadas, a área de PPLICES analisará a relação entre as línguas e a produção/consumo de C&T, isto é, as características do multilinguismo no ambiente hierarquizado e geopoliticamente competitivo que de um lado tem um interesse máximo em internacionalização, e por outro tem um interesse máximo em atender às necessidades específicas de cada mercado, ou seja, um máximo em customização. (Oliveira et al., 2017, p. 26)

A própria dominância do português e do espanhol nos espaços internos da ciência latino-americana são uma mostra  do papel ocupado pelas línguas europeias sobre as línguas locais, no que Porto-Gonçalves (2005, p. 3) nomeia de “legado epistemológico do eurocentrismo”. O campo de PPLICES tem a tarefa de problematizar este fazer científico do olhar eurocêntrico que fundou nossa educação superior. Lander (2005) explica que a ciência de hoje se constituiu a partir das colonizações e no mesmo sentido Sousa Santos (2009) analisa que “O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as modernas concepções de conhecimento e direito” (p.28).

A colonialidade persiste e seus efeitos na produção de conhecimentos científicos têm a ver com uma suposição de que a sociedade industrial liberal seria a expressão mais avançada do processo histórico, um ponto de chegada para todos os povos e culturas (Lander, 2005). No âmbito das PPLICES, essa ótica muitas vezes se revela em documentos, como os mapeados por Jesus (2018), que têm no subtexto uma concepção semelhante, como se a invisibilidade de certos conhecimentos ou agendas de pesquisa fosse resultado de algum tipo de resignação, uma recusa a lutar pelo espaço e visibilidade, uma incapacidade de adaptação entendida aqui como um sinônimo de anglicização.

A ausência de PPLICES que protejam a diversidade linguística no campo da ciência tem como efeito o apagamento do que se afasta das formas já legitimadas de fazer e circular a ciência. Forattini (1997, p. 5) denuncia a existência de um fenômeno a que chama “imperialismo científico”, caracterizado, entre outros aspectos, pela sujeição dos sistemas universitários dominados ao idioma dos sistemas universitários dominantes no campo da ciência.

Diante da complexidade desses efeitos da violência colonial sobre as políticas linguísticas atuais, fica evidente que será preciso concentrar esforços de pesquisa para compreender essa influência e identificar respostas para a questão de como lidar com essa herança. O campo de PPLICES tem na colonialidade do saber uma especificidade muito característica de seu objeto de estudo, o que reforça a emergência desse campo.

Em nome de sobreviver à violência da colonialidade, os povos dominados resistiram não sem marcas à apropriação de sua cultura e ao apagamento de seus saberes. Mas os estudos contemporâneos das ciências humanas têm levado em conta essa questão, como explica Rosevics (2017):

A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o discurso do colonizador. (p. 188)

A desigualdade entre as línguas é a desigualdade gerada pela submissão de certas culturas ao poderio de outras. Diante dessas dinâmicas de poder, estabelecendo as relações de atribuição de valor a que se refere Bourdieu (1977), evidencia-se a importância de aprofundar o estudo sobre os processos coloniais que foram fundamentais para a constituição do capital nesta economia das línguas.

Isso porque a questão epistemológica não pode ser analisada isoladamente, senão dentro do contexto global, em que as questões econômicas são essenciais. Assim, como já afirmamos em outro momento, o campo de PPLICES “permite ainda, através do entendimento de políticas epistemológicas, elaborar uma crítica ao papel da ciência e da universidade como mera engrenagem produtiva do capitalismo” (Oliveira et al., 2017, p. 26).

As relações entre as línguas no mercado da ciência (na educação superior, na pesquisa, nas publicações, nas traduções...) são marcadas por essa dominação e isso pode custar inclusive a sobrevivência da língua:

There is, however, one caveat: authors in small languages have some reason to be worried by foreign competition; but so do their readers, who may come to fear that eventually their indigenous authors will be forced out of the field through the impact of translated and imported texts. Concern may grow that in the end this will lead to a general erosion of the mother tongue and of domestic culture in general – or, in the terms of this analysis, to an overall depreciation of the original investment in mastery of the mother tongue. In other words, the short-term preferences of individual consumers may damage their collectively accumulated cultural capital in the long run. Moreover, given the low marginal costs of translated texts, the arguments from international trade theory about ‘dumping’ may well apply in the case of cultural exchange too.  (De Swaan, 2010, p. 63)

Os autores que nos sustentam nesta investigação têm alertado para a necessidade de problematizar os poderes hegemônicos que se exercem sobre a ciência e a educação superior no mundo por meio das línguas. Na atualidade, falar dessa hegemonia equivale a falar da dominância do inglês, mas é importante esclarecer que o objeto de PPLICES não se restringe ao estatuto de qualquer língua que ocupe o espaço de hegemonia, mas abarca as relações entre as línguas, o que faz com que este campo enfoque as potencialidades do multilinguismo na ciência, buscando meios de fortalecer cada língua, entender e rever as assimetrias.

Isso nos mostra uma terceira especificidade do campo de PPLICES: uma política linguística não oficializada, no campo da ciência e da educação superior, pode comprometer o próprio fazer científico. Todavia uma das premissas do trabalho científico é que ele seja tão objetivo e democrático quanto possível. Por essa razão, as políticas linguísticas têm de contribuir para maximizar as possibilidades de debate entre pares e poderem ser elas próprias expostas à crítica. É necessário problematizar a impressão de que é possível uma ausência de políticas — quando, pelo contrário, quanto mais invisível é uma política, maior o exercício de poder por meio dela.

Baker (2001, p. 53) defende que o laissez-faire é também uma forma de fazer política linguística: uma forma que frequentemente leva à extinção de línguas minoritárias. A alternativa apontada pelo autor como mais desejável é a elaboração de uma política linguística. Isso significa explicitar as perspectivas e expectativas relativas ao futuro das línguas e estabelecer um plano de ações concretas que viabilizem a consecução de tais objetivos.

Vejamos um exemplo. Há vários relatos de como a atual ocupação de espaço pela língua inglesa se deve à ausência de políticas explicitadas, como o caso da educação superior alemã, descrito abaixo:

Therefore, language policy and education at the university level need further consideration. Also, consistent and effective policy on the teaching of English, as well as other languages, should be made transparent. If the German system of higher education is to be truly reformed and internationalized, students should be supported in their efforts to learn languages — both English and German — at an academic level. (Erling y Hilgendorf, 2006, p. 287)

De fato, qualquer instituição de ensino e pesquisa, sobretudo se pública, é um espaço de execução de uma série de políticas, inclusive linguísticas. Por isso, os sujeitos que atuam nessas instituições devem ter consciência de seu papel neste processo de implementação de políticas. Na citação acima, as autoras afirmam que, para uma reforma real na educação superior de seu país, seria preciso que as políticas incentivassem aprendizado e uso de línguas, no plural. E, de fato, quaisquer PPLICES que reforcem apenas a tendência de anglicização da ciência não podem ser chamadas de reforma. Políticas de promoção do multilinguismo, por outro lado, que facilitem o acesso a diferentes línguas, por meio de um letramento acadêmico nessas línguas, essas sim teriam hoje caráter de inovação.

Ainda sobre as PPLICES que reforçam o monolinguismo na ciência, uma consequência perigosa é que elas podem resultar na ausência de ações estratégicas voltadas a outras línguas além da hegemônica. Mesmo no caso do alemão, citado no exemplo, — uma língua europeia, economicamente forte e com tradição no campo da inovação científica e da educação superior — as autoras apontam que essa língua não tem condições de coexistir de modo equilibrado com o inglês.

Amon reforça esse entendimento, explicando que as línguas podem ter diferentes níveis de funcionalidade, mas a existência de uma língua dominante dificulta o processo de desenvolvimento dessa funcionalidade das demais línguas: “all these functional types of language are somehow hampered in their development if another language dominates the international scientific communication; the actual impact and the social consequences are, however, presumably different for each type” (Amon, 2001, p. 348).

Diante de tudo isso, compreendemos que assumir PPLICES como campo de estudos  é uma necessidade do nosso tempo. Há importantes questões históricas, econômicas e sociais implicadas nas escolhas que se fazem sobre as línguas de produção e circulação de conhecimento e as PPLICES devem amparar essa tomada de decisão, problematizando as assimetrias.

 

PROBLEMÁTICAS DE PPLICES

Tendo levantado as especificidades que caracterizam o campo de PPLICES, nesta seção vamos elencar algumas das problemáticas deste campo. No Brasil, ficou ainda mais evidente a necessidade de produzirmos teorizações sobre PPLICES, no momento em que muitas instituições de educação superior precisam definir políticas para línguas, atendendo a demandas de seu processo de internacionalização (Jesus, 2019).

A urgência de apresentar uma política para não perder as oportunidades de internacionalização induzidas pelo governo federal brasileiro fez com que muitos dos problemas que vieram à tona não fossem respondidos de modo adequado, ou sequer considerados nas PPLICES brasileiras da década de 2010, como ademais aconteceu em outros contextos nacionais.

Podemos sistematizar os problemas de PPLICES em dois grupos, que nomeamos a partir das categorias trazidas por Bourdieu (1977): “produção” e “circulação” de conhecimentos. Encontramos neste autor uma crítica a qualquer estudo sobre as línguas que não leve em consideração o mercado em que se dão as interlocuções por meio das línguas. Ele diz:

A la question saussurienne des conditions de possibilité de l'intellection (i.e. la langue), une science rigoureuse du langage substitue la question des conditions sociales de possibilité de la production et de la circulation linguistiques. Le discours doit toujours ses caractéristiques les plus importantes aux rapports de production linguistique dans lesquels il est produit. (Bourdieu, 1977, p. 19, grifo nosso)

Elegemos como referencial essas duas categorias, “produção” e “circulação”, porque nelas encontramos dois elementos-chave para compreender o lugar das línguas na ciência. Nesta esfera, as condições de produção da língua são as condições de produção de conhecimento científico e acadêmico; assim como as condições de circulação têm a ver com a visibilidade desse conhecimento entre pares cientistas.

Obviamente as línguas não existem desconectadas de seus utilizadores, que por sua vez são sujeitos interagindo em espaços sociais. Essa lógica em que se dá a produção de conhecimento nos mostra que as condições de uso de cada língua são tão amplas e complexas que a produção e a circulação dos conhecimentos, por serem mediadas pelo uso de línguas, variam exatamente conforme o contexto e o alcance geopolítico da própria língua.

Esse olhar sociológico sobre as línguas na ciência evidencia o complexo e peculiar estudo das relações de poder que se exercem nas e por meio das línguas, caracterizando desde logo que PPLICES é um campo de necessário estudo interdisciplinar. A partir de Bourdieu, evidencia-se que cada vez que algum pesquisador publica sua produção em alguma língua, ele o faz dentro de uma relação e nunca de modo neutro. Cabe então pensar que condições são essas em que esse discurso é produzido e circula.

Na questão da produção, identificamos que o campo de PPLICES nos pede respostas sobre, por exemplo, a produção de conhecimentos em línguas minorizadas. Ainda que cada língua tenha em si os conhecimentos e saberes de seu povo, a sistematização desse conhecimento muitas vezes só acontece quando outra língua se apropria deles. Afim com a questão da colonialidade, essa apropriação comumente resulta em pilhagem de conhecimentos e riquezas, uma prática que não é recente, como vemos a seguir:

O ‘descobrimento’ foi um dispositivo legal para reivindicar o direito ao território estrangeiro por parte do poder ocidental europeu, dito descobridor. É pertinente apontar aqui que este último realizou as viagens com objetivo de ‘descobrir’, incluindo as consequências legais relacionadas. Parece estranho que os viajantes, e aqueles em cujo benefício estas viagens eram realizadas, parecem nunca ter considerado a possibilidade de que eles também seriam descobertos no próprio acto de descoberta. Eles estavam confiantes na universalização da sua religião e cultura através da assimilação e integração, na melhor das hipóteses, e também por meio de assassinato, pilhagem, expulsão e destruição, na pior. (Ramose, 2009, p. 142)

Assim, cabe às PPLICES encorpar nosso repertório de recursos para lidar com essa violência, que aconteceu de modo absurdamente assumido na época dos chamados “descobrimentos” e persiste até hoje, quando por meio de práticas predatórias que colocam em competição (desigual) as línguas e as culturas.

Para ilustrar, Hamel (1999) explica que os estudos latino-americanos de mais visibilidade no mundo se encontram nos Estados Unidos, em semelhante paradoxo à situação relatada acima:

Observamos un nuevo boom en estudios latinoamericanos desde comienzo de los años noventa. Hoy en día hay más investigadores universitarios en los estados de California y Nueva York dedicados a estos temas que en toda América Latina en su conjunto. A partir de modelos muy específicos desarrollados en Estados Unidos investigan temas latinoamericanos estrechamente delimitados, sin conocer en muchos casos el contexto socio-histórico más relevante que los condiciona. Y las “soluciones” son cada vez más similares para distintos países y problemáticas. (Hamel, 1999, p. 293)

Um dos resultados de desvalorizar a pesquisa na língua própria em favor da língua mais prestigiada é o enfraquecimento das redes de produção de conhecimento, já que: “Preocupados com a tão decantada ‘visibilidade’, os pesquisadores nacionais tendem a buscar a divulgação dos resultados obtidos, em periódicos anglófonos. Com essa atitude passam, ‘a priori’, as informações aos leitores de outro país”, como aponta Forattini (1997, p. 6).

Um segundo problema da ordem da produção de conhecimentos, que é típico do campo das PPLICES, são os efeitos que uma ciência monolíngue pode ter sobre as línguas nacionais. Não é saudável para as línguas a ideologia de que o monolinguismo na ciência seja um caminho natural e preferencial para a ciência. As PPLICES devem ajudar a pensar meios para valorizar também o conhecimento que é produzido e circula em todas as línguas, sem silenciamentos. Tomemos o caso da educação superior europeia a partir da década de 1990.

O Tratado da União Europeia, que criou o coletivo de Estados da União Europeia, de 1992, trouxe uma tendência à unificação política e econômica entre seus estados membros. Essa tendência se refletiu nas políticas para educação superior. Os responsáveis pelos sistemas de educação superior passaram desde então a buscar uma uniformização em seus sistemas, o que levou à Declaração de Bolonha em 1999, que tem como finalidade primeira o estabelecimento de uma “Área Europeia de Educação Superior”.

Esse movimento poderia e até deveria ter dado impulso a uma definição de políticas linguísticas que amparassem o processo de internacionalização da educação superior. Contudo, não foi essa a escolha dos Estados e instituições. A ausência de uma política explícita com um planejamento linguístico bem definido para promover a diversidade linguística (e de línguas fortes, incluídas no continente a anglofonia, a hispanofonia, a francofonia e a lusofonia, para mencionar apenas quatro) deixou livre o caminho para o fortalecimento da língua inglesa como meio de produção e circulação de conhecimentos científicos.

Na Alemanha, por exemplo, o que há é uma política tácita de anglicização da ciência, identificada desde que o país se dedicou a atender o direcionamento da Declaração de Bolonha para a educação superior, como ensinam as autoras a seguir:

An explicit language policy with respect to the Bologna Declaration initiatives is also lacking in Germany. German policy, however, does refer to a role for English in internationalizing its university system, which in effect suggests the existence of a tacit policy supporting the increasing use of English. (Erling y Hilgendorf, 2006, p. 272).

Sobre ausência de menção às políticas linguísticas nos documentos da educação superior na Europa — como a Declaração de Bolonha e seus desdobramentos —, podemos perceber que é um silêncio comum naquele continente, não caracterizando apenas a Alemanha, como as mesmas autoras registram: “this lack of explicit language policy is not unusual in the history of efforts towards European integration” (Erling y Hilgendorf, 2006, p. 271). Além delas, Amon (2001, p. 343), também alemão, em seus estudos registra a forte anglicização do ensino alemão.

E além de tudo isso, temos questões da ordem da circulação de conhecimentos. Muitas vezes, a educação superior se dá privilegiando a língua nacional, no ensino e nas fontes de pesquisa, originais ou traduzidas. Mas, no momento de fazer circular as descobertas, é cada vez mais comum que os resultados sejam publicados apenas na língua dominante.

Essa prática tem a ver com questões de bibliometria, que estabelecem critérios quantitativos para medir a relevância das publicações e que são estruturadas a partir do centro do sistema, retroalimentando a assimetria. Privilegiar a circulação das descobertas em língua inglesa é uma maneira de reforçar a tendência a uma ciência monolíngue. Essa escolha resulta num empobrecimento da ciência de modo geral, porque uma ciência que se pretenda monolíngue vai resultar na interrupção do diálogo com a produção nas outras línguas.

Ainda na categoria das problemáticas relativas à circulação dos conhecimentos, identificamos a questão da invisibilização de conhecimentos. Nesse contexto em que as PPLICES ainda procuram (ou deveriam procurar) meios de promoção de uma ciência multilíngue, muitos saberes e agendas de pesquisa permanecem invisibilizados perante o sistema global da ciência. Esse problema afeta muitas das línguas locais mas também grandes línguas internacionais como o português e o espanhol.

Sousa Santos descreve a epistemologia ocidental como “pensamento abissal”, que resulta na invisibilização de tudo que não se identifica com centro do sistema:

Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. (Sousa Santos, 2009, p. 23)

Esse abismo de que fala o autor é um retrato do que se vê ao olhar para as línguas no campo da ciência. Muito da produção de conhecimento da periferia se torna invisível aos olhos do centro, por estar ‘do outro lado da linha’ que separa o que é considerado ciência relevante. Na contemporaneidade, ‘este lado da linha’ é a anglofonia.

Por hoje estarem vigentes políticas que privilegiam o monolinguismo na ciência, ou (o que dá no mesmo) pela ausência de uma tomada de posição clara por parte de Estados e instituições, um grande volume de conhecimentos científicos válidos permanece à margem do sistema mundial. Gibbs aborda este processo de invisibilização dos resultados de pesquisas desenvolvidos nos países da periferia do sistema capitalista:

The invisibility to which mainstream science publishing condemns most Third World research thwarts the efforts of poor countries to strengthen their indigenous science journals — and with them the quality of research in regions that need it most. It may also deprive the industrial world of critical knowledge, observes Richard Horton, editor of the Lancet. (Gibbs, 1995, p. 93)

Ao privilegiar que a publicação em inglês é uma condição para ser considerado relevante, cria-se uma barreira linguística que torna difícil a divulgação ampla do que se produz em certos contextos, como a América Latina. O efeito cascata da ciência que só fala uma língua afeta o ensino, a produção de materiais didáticos, o mercado editorial e muitas outras esferas. Amon (2001) exemplifica consequências dessa barreira linguística para a circulação do conhecimento: “the scientists for whom English is a foreign language are disadvantaged in presenting their research, or also their teaching materials, on an international level” (p. 354).

A questão que se apresenta então é: como fazer política linguística para a ciência e educação superior sem contribuir para a manutenção desta barreira abissal, mas ao mesmo tempo ter a produção própria inserida em contextos amplos de leitura e citação?

Tais exclusões demandam uma assunção de responsabilidade linguística por parte das universidades e dos Estados, que virão pela definição de políticas. Veja-se um exemplo que ilustra essa invisibilização — curiosamente é um relato de um cientista brasileiro que chegou a nosso conhecimento publicado num artigo de um autor estadunidense, em língua inglesa:

Rogério Meneghini of the University of São Paulo showed just how few when he studied the papers published by 487 Brazilian Biochemists over a 15-year period. The articles they sent to international journals had received 7.2 citations each, on average. Those sent to Brazilian journals, only three of which are included in the SCI, garnered one ninth as many. Such low visibility is the norm: 70 percent of Latin Americans journals are not included in any index, according to a study by Virginia Cano of Queen Margaret College in Scotland. The thus ‘are condemned to a ghostlike existence’. (Gibbs, 1995, p. 94)

Outro exemplo menciona o sistema de valoração das publicações dos pesquisadores brasileiros “some scientists warn that by favoring papers published in international papers — in Brazil, South Africa and the Philippines such papers are awarded twice as many points as those published domestically — incentive programs may forever doom local journals to leftovers” (Gibbs, 1995, p.95).

Escolher em que línguas ensinar, estudar, publicar e traduzir é escolher uma posição ideológica e principalmente estratégica. Nesse esforço de se aproximar do centro do poder, as instituições são compelidas a renunciar da sua diversidade linguística em nome de uma maior visibilidade. Além do ensino e da pesquisa, a forma de circulação dos conhecimentos também precisa ser revista. A ciência comunica seus resultados por meio, principalmente, da publicação de artigos em periódicos — e existe uma rigorosa hierarquia entre esses espaços de visibilidade, sendo alguns respeitados mundialmente e outros, praticamente desconhecidos no contexto global e até nacional. O grande volume de publicações existente demandou que se estabelecessem critérios de ranqueamento, a partir da medida do impacto causado por cada descoberta em suas áreas do conhecimento.

Mas, por uma consequência da hegemonia estabelecida, os critérios são definidos por sujeitos e instituições que já ocupam os espaços de maior prestígio no campo da ciência. Assim se fecha o ciclo que perpetua a dominância da língua inglesa: os critérios para uma produção ser relevante têm a ver com a quantidade de vezes em que ela é citada. Por essa métrica, os artigos em inglês são considerados os de maior impacto. Essa dinâmica ajuda a manter a ciência predominantemente monolíngue, reduzindo o acesso aos artigos que circulam nas outras línguas. Afinal, o número de menções recebidas por um autor será sempre mais alto se seu texto estiver publicado na língua mais utilizada. Mas isso não significa que essa seja a língua dos principais interlocutores de sua pesquisa, eis um problema.

A proporção desigual da pesquisa nas línguas dos países mais e menos ricos tem chamado atenção. Há uma hegemonia nesse campo e ela acompanha a hegemonia política e econômica. São relações de poder que podem ser assim descritas:

Hay toda una serie de estudios que demuestra cómo desde los centros de poder, en especial de la lengua inglesa y los centros científicos en los Estados Unidos, se desarrolla esa dicotomía, una asimetría entre los campos enunciativos, que le asigna el papel de proveedores de materia prima a los mercados secundarios y terciarios, pero rarísima vez acepta, reconoce e incorpora creativamente una posición teórica diferente a la propia que provenga del tercer mundo. (Hamel, 1999, p. 293)

Uma terceira questão de circulação de conhecimentos, a qual pede atenção às PPLICES, é a da terminologia. A valorização da ciência produzida em uma língua frequentemente pode ser percebida pela existência de termos locais para trabalhar conceitos científicos e desenvolvê-los a partir do olhar da própria cultura. Forattini (1997), no mesmo sentido, afirma que a terminologia é um caminho importante para fortalecer uma língua no campo da ciência. Segundo o autor, o alcance de uma terminologia original é índice da inovação desenvolvida no âmbito da língua e deve ser reconhecido como sucesso da cultura em que se origina:

Nos casos em que, de maneira autóctone, se alcançou linguagem técnico-científica original e foram estabelecidos os alicerces de determinado campo de conhecimentos, há que se dar à língua a “franquia” que foi conquistada. E isso em respeito ao enriquecimento da cultura do país. (Forattini, 1997, p. 8)

Uma pesquisa desenvolvida por Singh (2017) junto a estudantes de pós-graduação na Austrália verificou que, ao ser estimulados a usar todo seu repertório linguístico para produzir suas pesquisas, os estudantes cuja língua materna não era o inglês encontraram maneiras inovadoras de teorizar sobre seus objetos, enriquecendo a metodologia essencialmente monolíngue de sua universidade. Naquele caso, a disponibilidade de recursos linguísticos variados permitiu que os estudantes teorizassem oferecendo ao objeto um olhar totalmente novo.

Assim, diversidade linguística pode funcionar na produção e difusão de conhecimento como um recurso que amplia o capital linguístico, valoriza os bens culturais e empodera sujeitos. PPLICES de promoção do multilinguismo podem ser um caminho de democratização do fazer científico e a publicação na própria língua é um meio essencial para estimular o fortalecimento das comunidades científicas locais e regionais.

Tal papel caberá àqueles que fazem ciência nas línguas do outro lado da linha abissal definida por Sousa Santos (2009), pois

The scientists of the smaller language communities have never had the chance to develop a strong loyalty to their own language, at least not in recent times, since they have always been dependent on some other language for their international communication. (Amon, 2001, p. 351)

E é difícil que os falantes das línguas minorizadas desejem cultivar as próprias línguas quando a maioria das vantagens é reservada para os falantes das línguas do centro do sistema.

A questão da lealdade de que fala Amon é delicada pois não é justo exigir do sujeito que faça, sozinho, um movimento contrário ao fluxo do sistema (sempre tendendo ao centro), baseada em um argumento de ordem moral como a lealdade à própria língua. Incumbe a quem faz a gestão da língua promover condições de exercício desta dita lealdade. Por exemplo, visibilizando o capital cultural e científico que aquela língua minorizada contém.

Ainda no campo das terminologias, é preciso notar que não há, no uso corrente da língua portuguesa, substituto para termos como, por exemplo, “software”, e inclusive é comum encontrá-los dicionarizados (Michaelis, 2017) sem uma palavra equivalente em nossa língua. A naturalização do fenômeno talvez não permita que o senso comum se dê conta, mas um olhar político-linguístico pode identificar aí um traço de valorização da cultura anglófona como berço do desenvolvimento de inovações na área da Informática.

The English-speaking nations have at present a greater research capacity than has any other language community in the world. Therefore, they have also the greatest capacity for modernizing (or elaborating) their language. This capacity is even enlarged by the fact that not only the English-speaking countries’ own scientists and scholars are engaged in this modernization process but also researchers from numerous other countries for whom English serve as the preferred medium of international communication. It is therefore hardly astonishing, that all other languages trail English in degree of modernization. In this situation, some language communities try to coin as much new terminology for their own language as possible by way of translating from English, with the French probably leading this course of action. Some terminology is naturally also created from within these languages, of which a small portion again finds its way into English. (Amon, 2001, p. 350)

Com essa exposição, esperamos ter demonstrado a emergência de PPLICES como um campo de estudos e algumas das complexidades de seu objeto, sem a pretensão de ter definido limites ou de expor um rol taxativo das suas possibilidades. Entendemos que a ciência e a educação superior são espaços de conflito e desigualdades, mas também de diálogos e avanços, e nessa perspectiva construtiva inserimos nosso estudo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de internacionalização das universidades e da produção científica, e as complexidades geradas pela presença de um novo multilinguismo –ainda que em muitos casos restrito a um bilinguismo entre o inglês a língua corrente da universidade (no nosso contexto o português e o espanhol, conforme o caso)– ajudaram a desnaturalizar o monolinguismo reinante nas instituições de ensino superior.

Este movimento vem permitindo a emergência de um olhar político-linguístico em direção às línguas ausentes do fazer universitário: por um lado as línguas minorizadas do país, também elas geradoras de saberes dos mais relevantes; e por outro, as muitas línguas dos demais sistemas de pesquisa e educação superior do mundo, cuja produção não nos chega devido às mesmas barreiras linguísticas que impedem que conheçam a ciência em português ou em espanhol.

PPLICES nos permite discutir de forma sistemática e estratégica as oportunidades que nos abre este novo multilinguismo, mas para que a discussão evolua para ações de proteção e promoção das línguas minoritárias e minorizadas no campo da ciência, incumbe a este campo debruçar-se sobre as problemáticas que a ele se apresentam para construir soluções que contribuam para ações éticas sobre as línguas e a produção e circulação de conhecimentos.

 

REFERÊNCIAS

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