Escenas de nuestro “teatro humano”: María Grazia Calandrone e Ieda Magri
Patricia Peterle
patriciapeterle@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Este ensayo tiene como objetivo analizar comparativamente dos libros publicados en 2021, es decir, aún en el período de la pandemia, que retratan búsquedas y retornos de los protagonistas autobiográficos. Brilha como vida de Maria Grazia Calandrone y Uma exposición de Ieda Magri fueron escritas en diferentes espacios culturales, Italia y Brasil, respectivamente, pero que tienen algunos puntos de contacto. La atención se centra en el momento inicial de la lectura y en los elementos elegidos por los dos escritores para iniciar sus tramas. En estas páginas hay una necesidad de búsqueda, de retorno, de quienes hablan para dar forma a lo que solo puede presentarse desde la esfera de lo inacabado, no pudiendo así tener una forma lineal. Entonces, para la construcción de estas tramas narrativas, entran en juego imágenes y fotos familiares, voces ajenas, memorias carcomidas y otros elementos que componen la escena del “teatro humano”. Palabras claves: Inacabado, Maria Grazia Calandrone, Ieda Magri, Montagem
O presente ensaio tem como objetivo colocar lado a lado dois livros publicados em 2021, ou seja, ainda no período da pandemia, que retratam buscas e retornos das personagens protagonistas autobiográficas. Brilha como vida de Maria Grazia Calandrone e Uma exposição de Ieda Magri foram escritos em diferentes espaços culturais, Itália e Brasil, respectivamente, mas que apresentam alguns pontos de contato. O foco se concentra no momento inicial de leitura e nos elementos escolhidos pelas duas escritoras para iniciar suas tramas. Há nestas páginas necessidade de busca, de retorno, de quem fala dar forma à aquilo que só pode se apresentar a partir da esfera do inacabado, não podendo assim ter uma forma linear. Entram em cena, então, para a construção dessas tramas narrativas imagens e fotos de família, vozes de outras pessoas, lembranças carcomidas e outros elementos que compõem a cena do “teatro humano”.
Palavras chaves: Inacabado, Maria Grazia Calandrone, Ieda Magri, Montagem
This essay aims to compare two books published in 2021, that is, still in the pandemic period, which portray searches and returns of the autobiographical protagonists. Brilha
como vida, by Maria Grazia Calandrone, and An exhibition, by Ieda Magri, were written in different cultural spaces, Italy and Brazil, respectively, but have some points of contact. The focus is on the initial moment of reading and on the elements chosen by the two writers to start their plots. In these pages, there is a need for searching, for returning, for those who speak to give form to what can only be presented as unfinished, which prevents a linear form. Then, for the construction of these narrative plots, images and family photos, other people's voices, fragmented memories and other elements that make up the scene of the “human theater” come into play.
Keywords: unfinished, Maria Grazia Calandrone, Ieda Magri, installation
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Mas a vida nos ignora, ignora sobretudo os preconceitos e o obvio. Tudo cicatriza, sem que saibamos. As feridas se abrem e se fecham como valvas no fundo do mar do esquecimento, os episódios submersos lampejam, enquanto a nossa superfície age, compra um casaco de veludo liso cor granada, abastece o tanque. (Maria Grazia Calandrone, Brilha como vida)
Lembro do que você me disse na hora em que mostrei a foto do caminho entre o aeroporto e a casa dos meus pais naquele dia de outubro: gosto de pegar a estrada. No nosso tempo juntos nunca pegamos. Estrada. Não experimentei esse prazer louco que lembro da minha infância: pegar a estrada e ir a algum lugar. A outro lugar.
(Ieda Magri, Uma exposição)
Escrever é um caso de devi, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer vida vivível ou vivida. É um processo, ou seja uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. (Gilles Deleuze, Crítica e clínica)
Toda escrita pode ser pensada como um gesto de resistência. E esta afirmativa foi mais do que testada e corroborada recentemente durante a pandemia de Covid-19, que assolou todos os continentes de norte a sul e de leste a oeste. Fato que pode ser facilmente constado tanto pela quantidade de publicações feitas em diferentes mercados editoriais no período pandêmico e pós-pandêmico quanto pela recorrência do tema. Parece que a iminência da possibilidade real e concreta – de algum modo antecipada – do encontro com a morte, além de gerar diversas reações, promoveu uma espécie de recolhimento numa intimidade vulcânica que, mesmo estando ali, parecia estar de algum modo dormente. Histórias de infância, lendas e personagens familiares, vicissitudes do passado começaram a saltitar nas páginas literárias imbricadas de um desejo de vida, em alguns momentos enredado pelos fios de uma memória que atuava no presente. Quantos protagonistas, então, não tentaram voltar ou (re)construir uma casa, espaço de contradições, tensões e afetos? Quantos não tiveram de enfrentar o embate com questões que apenas despontavam na superfície do mar revolto que é qualquer existência? Quantos passos não são/foram necessários e quantas formas e linguagens não tiveram de ser inventadas para que esse impetuoso retorno pudesse ser registrado, ou pelo menos iniciado?
O presente ensaio propõe pensar, a partir destas considerações iniciais, dois romances publicados ao longo do ano de 2021, que tiveram sucesso de público e de crítica e foram candidatos a importantes prêmios literários em seus respectivos países. Splendi come vita de Maria Grazia Calandrone, publicado em 2021 pela editora romana Ponte alle Grazie, traduzido no Brasil em 2022 com o título Brilha como vida, pela editora mineira Relicário, é o primeiro[2]. O segundo romance, por coincidência também editado
pela mesma editora brasileira, é Uma exposição da escritora, professora e crítica Ieda Magri, original de Santa Catarina e radicada no Rio de Janeiro.[3] Apesar das muitas diferenças que podem ser identificadas desde a latitude, América Latina – Europa, BrasilItália, considerando a complexidade de culturas, de formas de lidar com o passado, de formas de narrar, esses dois romances não deixam de apresentar alguns pontos de contato. De fato, nos dois livros a trama se desenvolve no âmbito familiar, naquele espaço doméstico berço das relações amorosas e de tensões. Outros aspectos que podem balizar esse olhar transversal nas duas obras em questão são: a escrita como uma necessidade; o encontro em nada confortável com uma intimidade inquietante; a ideia de retorno que nas páginas de Maria Grazia Calandrone não pressupõe um deslocamento físico, configurando-se sobretudo a partir de um vórtice memorial, e naquelas de Ieda Magri, diversamente, se realiza por meio do entrecruzamento do deslocamento físico e do vórtice memorial. Lendo e escavando essas narrativas, outras constelações começam a se delinear e vão se configurando: a prevalência de vozes femininas, a presença da figura materna, a violência (mesmo que se trate de violências não semelhantes) e, sobretudo, um trabalho profundo de diante do narrar e da forma narrativa.
Na verdade, estas duas experiências de leitura apontam para a ideia de que no árduo trabalho de composição de uma obra possa estar presente, de algum modo, a transformação do autor. A escrita da vida e a vida da escrita parecem, então, ser um paradoxo: “uma obra literária, cujo lugar é o sujeito que, ao se transformar dessa forma, torna-se capaz de descrevê-la. O valor da obra deriva do experimento, mas este só serve para escrever a obra – ou, ao menos, só demostra seu valor por meio dela”. (Agamben 143). Tal relação do sujeito com ele mesmo, com os outros eus que o habitam, nas duas narrativas escolhidas, se dá mediante o processo de retorno, de rememoração, de encontros (desencontros) que a experiência da e com a escrita vai oferecendo à medida que ela vai sendo tecida.
Texto quer dizer Tecido: mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. (Barthes 74)
Excreção e secreção, a teia construída pela baba, pelas relações das quais o sujeito é agente e se agencia. Não é uma mera coincidência que este animal, a aranha, aparece
primeira pessoa, lembranças cortantes, feridas nunca cicatrizadas – escrita pela autora de cinquenta anos, conhecida como poeta, para a mãe adotiva. Splendi come vita é uma história de amor e ódio (ou desamor, como o define a autora) diante de comportamentos ‘maternos’ não mais compreensíveis nem concebíveis. Ou talvez, melhor, é a história de uma perda, de uma caçada, de um paraíso perdido: com tudo o que biblicamente de inelutáveis tais termos conotam e comportam. Porque a menina adotada ama profundamente a mãe. Depois acontece alguma coisa no seu crescimento e deste momento em diante a mãe não acreditará mais no amor da filha. Passam-se meses e anos, e a fratura da incompreensão aumenta até se tornar intransponível, até o fim do romance – que não revelamos na sua essência – mas que que nos traz duas mulheres adultas, todas elas precisando de amos e, por isso, amáveis’”, Premio Strega, 2021. Web. 30 mar. 2023.
numa poeta como Emily Dickinson, num universo extremamente doméstico e ligada a situações do quotidiano feminino.
A aranha leva a Bola Prata
Nas mãos – ninguém desconfia –
E dançando consigo Mesma
Seu fio de Pérola – desfia –
Do nada ao nada – a porfia –
O comércio insubstancial –
Desafia qualquer Tapeçaria – Na metade do Tempo –
Seus continentes de Luz,
Na hora, levanta – Suprema – Mas logo pende na Vassoura –
Esquecido – seu esquema –
(Dickinson 463)
Como aponta Ana Luisa Amaral, “Dickinson faz depender o voo da aranha, e, portanto, também o jogo da superação dos limites, de um ponto de suspensão que os relativiza [...]” (Amaral 38). Abrem-se assim tapeçarias domésticas, nas quais a aranha parece assumir uma esfera do perturbante: a aranha como o outro dela mesma.
Tendo em vista que neste ensaio não teremos como fazer uma análise detida dos dois romances, a proposta é a de analisar como se dá a entrada neles. Em outras palavras, como vai sendo estabelecido uma relação de leitura que tem início no olhar, abrir a capa e passar para as páginas seguintes. Se por um lado uma crítica em relação ao todo está sendo aqui sacrificada, por outro, se quer potencializar um momento muito especial que é justamente aquele inicial, a saber, como esses dois romances começam suas tramas, que estratégias são usadas. A teia narrativa desde o início parece preferir apostar na visão da numa trama lacunosa e carcomida entre os filamentos que a tecem, pondo em evidência os buracos, a fragmentariedade, o fora que entra para dentro e a explosão ou exposição do dentro em Calandrone e Magri.
A capa é sem dúvida um aspecto a ser notado em Brilha como vida e em Uma exposição. Ambos os livros trazem na capa as autoras num outro momento do percurso da vida. Maria Grazia ainda bebê, com meses de vida, segurada pela mãe adotiva, as duas figuras femininas no meio da foto que parece enfatizar a relação mãe-filha. A escolha da editora parece não ser casual, pois esta capa remete a um passado, tanto pelo tratamento dado à foto, que simula uma antiga polaroid, quanto pela indicação do ano 1965 à esquerda. O título em português manteve o que estava no título em italiano, mas é interessante que com esta montagem da capa brasileira ganha-se algumas concreções. O termo “vida” nele remete à vida da pequena Maria Grazia que está apenas começando e da qual ela ainda não pode ter consciência. Todo nascimento é um modo de renovação e estímulo, justamente, para a vida. A foto, então, é sim uma lembrança que pervive no presente e que, por sua vez, se torna o próprio livro escrito durante a pandemia em 2020 e publicado em 2021. Em Uma exposição de Ieda Magri temos uma outra foto, ocupando todo o espaço da capa e que também não se refere ao um momento do presente. A estratégia aqui é outra. A partir de uma memória compartilhada, percebe-se que essa foto é, certamente, como a de Brilha como vida, uma das fotos que poderia fazer parte das folhas de um álbum de família. Uma foto que pressupõe uma pose: a reunião da família. De fato, pela posição dos corpos é esta a primeira sensação dada a quem a observa. São três corpos, muito provavelmente os de um pai, à esquerda, de camisa mais clara, o da mãe, à direita, percebe-se o cabelo nos ombros e a camisa escura, e o da filha, à esquerda na frente do pai. Não vemos a mão do pai, mas é provável que ela esteja apoiada (ou pelo menos os dedos) no ombro da filha. Dela vemos um pouco mais do que metade do rosto, cortado. Aliás, é uma foto que coloca em evidência corpos, mas corpos retalhados, lacerados. A foto é cortada, com isso parte dos corpos nela presente são sacrificados.
Outro dado é que essas mesmas fotografias fazem parte do aparato iconotextual presente tanto em Brilha como vida quanto em Uma exposição, ou seja, a capa remete ao que está nas páginas, que inevitavelmente remete também para configuração proposta pelas capas.
Na continuação do livro de Calandrone, se entende que a foto da capa foi retirada de um outro suporte que é uma página do jornal Paese Sera, de 10 de julho de 1965 – aqui está a explicação da data na capa, que é um dado importante para o desenvolvimento da trama. Vendo a foto de Magri, confirmamos uma tradicional foto de família e nos damos conta de como os sujeitos nela contidos foram bem sacrificados. Arquivo público o jornal, arquivo íntimo o álbum imaginário de onde foi tirada a foto de Magri.
A capa é um primeiro e mais do que significativo convite à leitura, há indícios que só vamos entender quando a relação com o livro começa a ser estabelecida. Há nela traços que pouco a pouco podem ficar mais legíveis, ela (a capa), então, na verdade coloca em cena uma poética da relação, que perpassa inevitavelmente pela figura do outro (Glissant). Todavia os indícios não param quando ela é virada para que a leitura possa começar (ou melhor, continuar?). Esse momento inicial cuja estaticidade é dada pela fixação de uma imagem, pela própria fotografia, é suspenso com alguns outros paralelismos encontrados nesse espação inicial-iniciático-liminar (limiar) de leitura.
Nesta perspectiva, não podem não chamar a atenção pelo menos os seguintes paralelismos: 1) ambos os livros apresentam uma antecâmara, que é a epígrafe; 2) em ambos os textos a epígrafe é seguida por uma imagem; 3) o texto que vem depois da imagem nos dois casos tem uma forte presença do “eu” autobiográfico e há declaradamente um desejo de se “entender”. Todavia, se por um lado esses paralelismos são facilmente demonstráveis, basta ter à mão os livros e folheá-los, por outro, quanto mais leitura vai se afinando e se torna mais atenta, dando início a esse olhar oblíquo, paradoxalmente, ela mesma parece tender a se fazer mais carcomida (os buracos da teia). Vamos, contudo, por parte, sem ter pressa de entrar nessas narrativas, pois este início de cada uma delas é fundamental.
Dos três pontos indicados, o primeiro é relativo à epígrafe, que não deixa de ser mais um indício, uma vez que a função da própria epígrafe é o de dar um “mote”, um início ao texto que estar por vir. Vejamos abaixo esses dois textos, que podem ser complementares às imagens das capas e que aqui serão lidos na função de antecâmaras:
Te acompanho com palavras, porque com palavras nasci de você (Calandrone, 6-7)
Não éramos os únicos, além dos cães e de outros animais domésticos cujas emoções se ligavam às nossas havia vários séculos, que sonhávamos de noite, mas também os pequenos mamíferos, os ratos e as toupeiras, viviam em um mundo que existia exclusivamente dentro deles enquanto dormiam, como se podia deduzir dos movimentos dos seus olhos, e quem sabe, disse Austerlitz, talvez as mariposas também sonhem, talvez a alface no pomar sonhe quando de noite ergue a vista para a lua. W. G. Sebald (Magri 7)
A primeira é a de Brilha como vida que parece concentrar em poucas palavras uma explosão: o nascimento (“com palavras nasci de você”). Apesar da sintaxe linear, há uma força concentrada nessas letras/palavras que as torna “um objeto feito de palavras” [un oggetto fato di parole] (Calandrone 51), um objeto que responde às suas próprias leis e vibrações, a saber, uma explosão de sensorialidade que é núcleo vital da poesia.[4] Isto coloca a atenção na forma, o modo como a narrativa começa a ser apresentada ao leitor (mesmo que ele ainda não tenha tido tempo para ter consciência disso), e está dando também o tom das próximas páginas. De fato, Brilha como vida foi definido pela crítica e pela própria Maria Grazia Calandrone como um romance lírico, um romance-poesia, que se forma e transborda no interior do próprio livro. Calandrone nesta epígrafe-verso opta por oferecer um lugar privilegiado para a palavra, a linguagem e o nascimento. Se foi com palavras que Calandrone nasceu desse seu interlocutor (que ainda não foi revelado ao leitor), é agora o uso delas que permite a escritora e poeta estar perto e acompanhar a pessoa que está por traz do pronome “te”.[5] O que está em jogo nessas poucas palavras é a história de uma relação tranquila e tortuosa entre mãe e filha. A epígrafe é dirigida a Consolazione Calandrone, mãe adotiva do bebê Maria Grazia, abandonado no parque Villa Borghese, na cidade de Roma. O abandono é, portanto, a possibilidade do início da relação Consolazione-Maria Grazia (aqui entram em cena a foto da capa e a materia de jornal). Consolazione é professora e trabalha com a literatura, e a palavra para ela sempre ocupou um espaço relevante, inclusive depois quando ela vive a perda da visão. A cegueira inesperada da mãe não deixa de ser o germe da escrita de Maria Grazia Calandrone, pois escrita e leitura em voz alta se tornam meios para a pequena Maria Grazia ficar próxima da figura materna, que a partir de um determinado momento vive lacerações e contradições suas que colocam em xeque o próprio relacionamento entre elas.
Chegar à escrita desse romance lírico foi efetivamente um longo processo de gestação, de embate com a própria experiência de escrita (como dar forma com palavras à experiência vivida que não deixa de ser um acúmulo de cicatrizes, que não se apaga?). Outro aspecto a ser lembrado é o fato de outros livros da autora, especialmente, os de poemas trazerem sempre essa questão, que vai se desdobrando, numa linguagem super contemporânea, tendencialmente antilírica e que transborda a esfera do “eu”, apontado para uma responsabilidade ética e estética para com o mundo. Com isso, cria-se uma constelação dentro da produção literária desta autora, um livro de algum modo se relaciona com outros; e, ainda, o olhar investigativo diante das relações humanas passa a perscrutar o mundo e o que nele acontece, o nascimento do primeiro filho, o conflito na Bósnia, a imigração para a Europa, crimes e feminicídios que ocupam as páginas policiais dos jornais, ou eventos do passado como a bomba de Hiroshima. Um percurso que nasce na singularidade de um espaço delimitado, mas que justamente por ir tão a fundo nele é capaz de chegar e tocar os outros espaços. Talvez isto possa também falar da relação de
Maria Grazia Calandrone com um poeta como Giorgio Caproni (1912-1989), que
reinventa sua mãe Anna Picchi em plena juventude através da figura poética de Annina; ou seja, uma personagem possível somente por meio da escrita e do dispositivo ficcional. E foi, exatamente, Caproni (leitor de Antonio Machado) que em mais de uma ocasião fez a seguinte declaração:
Minha ambição, ou vocação, sempre foi a de conseguir, por meio da prática do verso, encontrar, procurando a minha, a verdade de todos. Ou, para ser mais modesto e específico, uma verdade (uma das muitas verdades hipotizáveis) que possa valer não somente para mim, mas também para os outros mézigues (ou “eu mesmos”) que formam o próximo (o Outro, também digamos), dos quais eu sou somente uma das muitas células viventes. O poeta é um minerador, certo. É poeta aquele que consegue descer mais a fundo no que o grande Antonio Machado definia las secretas galerías del alma, e lá tocar os nós de luz que, sob os estratos superficiais, muito diferentes de indivíduo para indivíduo, são comuns a todos, apesar de poucos terem consciência disso. O exercício da poesia resta puro narcisismo até que o poeta se detenha nos fatos singulares exteriores à própria pessoa ou biografia. Mas todo narcisismo cessa assim que o poeta consegue se fechar e mergulhar profundamente dentro de si, e ali descobrir, repito, e trazer para a luz do dia, aqueles nós de luz que não são só do eu, mas de toda a tribo. Aqueles nós de luz que todos os membros da tribo possuem, mas que nem todos os membros da tribo sabem que possuem ou conseguem identificar. (Caproni 111-112)
Pensar as tensões a partir de seus corpos e campos relacionais (rumo também ao fora) é uma das linhas investigativas da proposta não só estética de Maria Grazia, que coloca no centro do laboratório experimental de Brilha como vida, sua própria vida, da infância à fase adulta; ou melhor dizendo, expõe a fratura, a fratura mais profunda que nos funda, para lembrar dessa explosão, assim sintetizada por Andrea Cortellessa (2021).
A epígrafe bem mais longa de Uma exposição parte não de um dentro, mas de um fora, trazendo outras conexões. Além do tamanho, que é uma diferença visual, ela carrega consigo não apenas um sujeito e um interlocutor, mas aponta para uma multiplicidade de formas-de-vida, sintetizada logo no início: “Não éramos os únicos”. A primeira pessoa do plural (éramos) não está considerando aqui somente os seus semelhantes como formasde-vida, mas sim uma série de relações que há séculos teciam elos de variados tipos. Dos animais domésticos mais conhecidos e socialmente aceitos a animais menos convidativos como ratos e toupeiras, à possibilidade de sonhar de um vegetal como é o caso da alface. Olhar para o fora é assim o gesto escritural iniciático de Ieda Magri, necessário para repensar certa intimidade. Se o processo de escrita, também pode ser visto como uma intimidade do sujeito, aqui este se dá a partir do outro, do convívio e retomada de leituras, como se verifica na assinatura no final da epígrafe “W. G. Sebald”. É como se Ieda Magri iniciasse o romance por meio da voz roubada e apropriada do outro, gesto também confirmado na última página do livro, onde se lê os agradecimentos; indício de que esta escrita foi sendo construída, tessela por tessela, através de partilhas e encontros[6].
É preciso dizer que Sebald não é o único companheiro de papel nessa viagem de Magri, existem outros que começam a povoar suas páginas: Bataille e Symborska, por exemplo, são evocados na preparação do salame. Há também uma pergunta retirada de
um livro Cotzee (“Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no seu caso?”). A narradora, como bem enfatiza Paloma Vidal, segue numa direção que é a de investigar e refletir sobre os elos com os outros seres e ainda sobre a vulnerabilidade que faz partes destas mesmas relações. Nas palavras de Paloma Vidal, retiradas da orelha do livro: “Ieda se expõe na relação com a mãe, com o homem que ama, com animais e plantas, para nos fazer sentir as palavras como quem toca a carne de outro ser e se descobre frágil como ele. As palavras, como o alimento, se cultivam e se preparam. E também exibem a dura verdade da sobrevivência”. As palavras dão materialidade a todos esses seres e tecem por meio da experiência da escrita relações, às vezes, invisíveis. Uma exposição é a história de uma reunião familiar no interior do estado brasileiro de Santa Catarina, mas é muito mais do que isto também. Uma das filhas da família Magri retorna ao interior, à longínqua infância camponesa. É ainda filha, mas é, sobretudo, uma mulher de 40 anos independente, que a partir de um momento sente a necessidade de acertar as contas com seu passado[7]. A narrativa se dá, então, entre imagens do passado reconhecido nos espaços e atividades realizadas quando criança e imagens da vida presente que irrompem no texto. O deslocamento, a viagem física e existencial, realmente aconteceu em outubro de 2017. As inúmeras fotografias fazem parte e constroem a tessitura textual (trata-se ainda de um iconotexto); no total são 25 (com exceção de poucas).
O nome de Bataille também está presente no capítulo VIII quando a narradora diz: “Eu me perguntava se as vítimas sabiam que iam morrer” (Magri 51). A morte do boi, o corpo do boi sacrificado é um corpo que fala, que coloca em questão os outros corpos ali ao redor, as outras possíveis vítimas. O ritual era uma tradição, ocorria duas vezes por ano, matar o boi significava encher o freezer. Do corpo do animal para o corpo humano do companheiro, da mãe e da própria narradora. É a exposição das fragilidades que todo e qualquer deslocamento tende a acentuar. Como diz a sentença que conclui um dos capítulos: “É. Muita exposição” (Magri 86). Sentar à mesa também é um ritual, principalmente quando se trata de uma família com origens italianas, que é trazido nestas páginas. Toda uma forma especial e simples do preparo da comida, um cuidado que significa afeto e cuidado para com o outro. Talvez não seja uma mera coincidência quando num determinado momento ao se falar da preparação da comida, irrompe, vindo de lá longe, uma outra língua – o italiano – que suspende, invade, lacera e sacrifica – naquela página – o português.
O segundo aspecto a ser tratado é que logo após a epígrafe nos dois romances temos uma suspensão que se dá com a inserção de uma imagem. Portanto, a falar, a introduzir o leitor na trama é, justamente, uma imagem. Esta escolha é algo comum a Maria Grazia Calandrone e a Ieda Magri, mas, como vimos com a epígrafe, os efeitos e as reverberações não apontam para as mesmas direções. A imagem de Brilha como vida é a mesma que a da capa, agora integrando o recorte de jornal como indicado acima. Com esse gesto, Calandrone traz o real e a história para dentro da ficção. De fato, os planos se entrecruzam e é assim que a trama tem início. As primeiras frases, para além da epígrafe, não são as da autora, são aquelas da reportagem do jornal, são as da legenda que acompanha a imagem. No tocante a Ieda Magri, a foto não é a mesma, até porque a foto lacerada da capa, aparece na página 126, é a penúltima, antes do fim do romance. A imagem escolhida é um caminho aberto, é uma alegoria da viagem que se concretiza.
Uma estrada, duas faixas, a que vai e a que vem, ao redor delas uma vegetação frondosa de árvores altas. Não se sabe o que há por atrás das árvores e o que há depois da curva. Esta foto, provavelmente, tirada de dentro de um meio de transporte, possui analogias com a da capa, apesar de nenhuma parte dela parecer ter sido sacrificada. Mas o que há de comum entre elas? Talvez certa incompletude. Na da capa esta dimensão é dada pelos cortes dos corpos das figuras ali presentes, na que antecede e abre a trama do livro, temos uma imagem que acaba não-acabando. Em outras palavras, as linhas marcadas no asfalto que servem de orientação para os motoristas – não deixam de definir alguns limites – indicam um percurso cujo fim não se vê; aliás, elas enfatizam uma continuidade que é reforçada pela perspectiva e pela presença da curva. Aqui começa a viagem concreta e interior. O que se vai encontrar nelas está ausente da imagem, mas talvez presente nas páginas seguintes a ela.
Esse procedimento introduz o terceiro ponto a ser abordado. Trata-se da forte presença do “eu” autobiográfico e da necessidade – também desejo – de se “entender”; e, aqui, a dimensão da escrita tem um papel crucial nesse processo diante do informe que é uma experiência vivida. A identidade interiorana e camponesa é algo constituinte e que começa a criar inquietações em Magri, como ela mesma afirma na primeira página de seu livro. A genealogia maternal é talvez a busca de Calandrone, que expõe uma conturbada relação declarada logo no início de seu romance lírico:
Sou filha e Lucia, morena Mamãe biológica, suicida nas águas do Tibre quando eu tinha oito meses e ela já aparecia há vintes e nove anos no teatro humano.
Sou filha de Consolazione, loira Mãe adotiva eletiva, por mim fragorosamente decepicionada. (Calandrone 11)
Calandrone sente a necessidade de pôr em evidência essa sua genealogia, a força do verbo ser é intensa nesses dois fragmentos dedicados às suas duas Mamãe e Mãe. Uma constatação que depois é seguida de reflexões existenciais, que depois são dirigidas para o leitor.
No caso de Magri, não se trata de uma genealogia, mas de reencontros, e temos um texto que dialoga diretamente com a última imagem reproduzida. São dadas algumas coordenadas pela autora para que esta viagem possa começar.
No mencionado outubro, minha família faria uma grande festa e meus pais eram os anfitriões [...] O que se segue é a viagem, ao interior da paisagem e de mim mesma para reviver o ritual de preparação dessa grande festa familiar. (Magri 9).
Gestos de resistências. Gestos de inacabamentos.
Contingências das vidas que perpassam por nós. Como aponta Deleuze, escrever não significa dar “forma (de expressão) à matéria vivida”, uma vez que a literatura faz parte da dimensão do informe; e é justamente isto que a montagem presente nestes dois romances expõe.
Gestos de (re)descobertas nas peregrinações existenciais desses eus que de formas variadas fazem parte e revisitam cenas do teatro mais humano, com o qual nos identificamos.
Agambem, Giorgio. O fogo e o relato. Trad. Patricia Peterle e Andrea Santurbano. São Paulo: Boitempo, 2018.
Amaral, Ana Luisa. “Aranhas e musas: reprentações de peota, subjetifidades e identidades na poesia”. Comunicação elaborada no ambito do Projeto “Interidentidades” do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I & D financiada pela Fundação para a Ciência e a tecnologia, integrada no Programa Operacional Ciência, Tecnologia e Oinovação (POCTI), do Quadro de Apoio III (POCTI-SFA-18-500). Fecha de acceso Web. 30 mar. 2023. https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/14198
Barthes, Roland. O Prazer do Texto. Tradução de Jaime Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Calandrone, Maria Grazia. Il giardino della gioia. Milano: Mondadori, 2018.
---. Brilha como vida. Belo Horizonte: Relicários, 2022.
Caproni. Giorgio. A porta morgana: ensaios sobre poesia e tradução. Trad. Patricia Peterle. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017.
Cortellessa, Andrea. “L’esplosione di una stella”. Le parole e le cose. Web. 30.mar.2023. Deleuze, Gilles. Crítica e clínica. Trad. São Paulo: Editora 34.
Dickinson, Emily. Poesia completa. Vol. I. Trad. notas e posfácio Adalbero Müller, prefácio Cristanne Miller. Campinas: Editora Unicamp, 2020.
Glissant, Édouard. Poéticas da relação. Trad. Marcela Vieira e Eduardo Jorge Oliveira. Prefácio Ana Kiffer e Edimilson de Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
Magri, Ieda. Uma exposição. Belo Horizonte: Relicário, 2021.
Fecha de recepción: 11/05/2023
Fecha de aceptación:12/09/2023
[1] Este ensaio é um dos resultados do projeto em rede Conectando Culturas (CNPq 407739/2022-0). Para maiores informações sobre o projeto: www.neclit.ufsc.br
[2] Splendi come vita foi finalista do Premio Strega 2021. A indicação desse romance ao prêmio foi feita pelo poeta e crítico Franco Buffoni com a seguinte motivação: “O romance Splendi come vita é uma longa carta ideal estilisticamente compacta – mesmo sendo composta por páginas de diário, episódios narrados em
[3] Uma exposição foi um dos 2452 romances inscritos no Prêmio Oceanos, avaliados por um júri internacional compostos por 122 escritores, poetas, professores e críticos literários. O romance de Ieda Magri ficou entre as 65 obras semifinalistas. Prêmio Oceanos. Web. 30 mar. 2023.
[4] Ver a esse respeito o poema de Calandrone Inteletto d’amore, publicado no livro Il giardino della gioia (51).
[5] Apesar de não ter sido diretamente quem é esse interlocutor, o leitor atento pode fazer alguma ligação com a capa e com os outros paratextos contidos no livro.
[6] Como a autora irá colocar em diferentes momentos, a escrita deste livro veio de uma relação outra, que a fez se repensar, repercorrer parte de sua história: “Conhecer uma pessoa, recebê-la na vida, é se conhecer de novo. Em outubro de 2017, com essa novidade na vida, me vi às voltas com a necessidade de compreender o que era o meu passado camponês, antes que ele me engolisse” (9) e, no final do livro nos agradecimentos, “Ao Felipe Charbel, quem me pôs a escrever” (131).
[7] “Do nada ou do fundo de mim, essa palavra – camponesa – se tornou definidora, e mesmo que eu não quisesse, saía da minha boca nas horas em que eu menos esperava” (9).