Franceses na historiografia literária brasileira

Helena Bonito C. Pereira

RESUMO

A historiografia literária constitui campo da maior relevância para o estudo sistemático das literaturas nacionais, pois nela se ancora a contextualização necessária quando se tem por objetivo destacar autores ou obras que compõem a tradição literária. No Brasil, essa tradição remonta aos primórdios do séc. XIX, tendo dentre seus primeiros autores o francês Ferdinand Denis, que publicou oRésumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du résumé de l‘histoire littéraire du Brésil em 1826. A França já se tornara o país de inspiração artística para o Brasil durante o exílio do rei

D. João VI, que escolheu viver no Rio de Janeiro em decorrência do assédio das tropas napoleônicas. Muito antes desses episódios, todavia, o Brasil havia sido objeto do livro Voyage au pays du Brésil, publicado em pleno século XVI por Jean de Léry, um dos participantes das chamadas “invasões francesas” no período inicial da colonização das Américas. Ambos trazem relevante contribuição para reflexões em torno da visão do estrangeiro face à natureza e aos habitantes do Brasil e sobre a maneira como tal visão contribuiu para nossa formação literária.

Palavras chave : historiografia literária- Brasil- Ferdinand Denis- Jean de Léry

RESUMEN

La historiografía constituye el campo de mayor relevancia para el estudio sistemático de las literaturas nacionales, pues en ella ancla la contextualización necesaria cuando se tiene el objetivo de destacar autores u obras que componen la tradición literaria. En Brasil, esa tradición se remonta a los principios del siglo XIX, contando entre sus primeros autores al francés Ferdinand Denis, que publicó el Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du résumé de l‘histoire littéraire du Brésil en 1826. Francia se había transformado en el país de inspiración artística para Brasil durante el exilio del rey D. João VI, que escogió vivir en Río de Janeiro a raíz del asedio de las tropas napoleónicas. Mucho antes de esos episodios, sin embargo, Brasil había sido objeto del libro Voyage au pays du Brésil, publicado en pleno siglo XVI por Jean de Léry, uno de los participantes de las llamadas «invasiones francesas» en el período inicial de la colonización de las Américas. Ambos aportan una contribución relevante acerca de la visión del extranjero de cara a la naturaleza y a los habitantes de Brasil y sobre la manera en que esa visión contribuyó para nuestra formación literaria.

Palabras clave : historiografía literaria - Brasil - Ferdinand Denis - Jean de Léry.

ABSTRACT

Literary historiography constitutes a field of major importance for the systematic study of national literatures, since it provides the necessary contextualization for the study of authors or works that compose literary tradition. In Brazil, this tradition is connected to the early 19th century showing, among its first authors, Frenchman Ferdinand Denis, who published Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil in 1826. France had then become the country from which Brazilian artistic inspiration came due to the exile of King João VI, who chose to live in Rio de Janeiro, due to the siege of Napoleonic troops. Long before such episodes, however, Brazil had been subject of the book Voyage au pays du Brésil, published in the 16th century by Jean de Léry, one of the participants of the so-called “French Invasions” at the very beginning of the colonization of the Americas. Both works offer relevant contributions for considering the foreigner’s view of Brazil’s nature and inhabitants and the how such view contributed to our literary formation.

Keywords : Literary historiography- Brazil- Ferdinand Denis- Jean de Léry

Desde seu descobrimento pela expedição de Pedro Álvares Cabral, no alvorecer do séc. XVI, o Brasil tornou-se alvo de cobiça de nações europeias, como França e Holanda. Desses dois países vieram expedições colonizadoras que permaneceram por algum tempo no território brasileiro, tendo sido expulsas sem conseguir desmembrar alguma parte deste imenso país.

Logo após o descobrimento, destacam-se duas expedições francesas. Em uma delas, em 1556, o comandante Nicolas Durand de Villegaignon, à frente de um grupo de calvinistas, ocupou a baía de Guanabara, onde fez construir um forte e fundou a colônia conhecida como França Antártica. Conseguiu defender-se das tropas portuguesas até 1567, quando foi vencido pelos portugueses, que fundaram no local a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Outra expedição francesa deu origem à colônia denominada “França Equinocial”, na altura do Equador (então conhecido como Equinócio). Os franceses fundaram o povoado a que denominaram São Luís, em homenagem a Luís XIII, então rei da França. Instalando-se em 1612, os franceses ampliaram consideravelmente o território em que hoje se encontra o Estado do Maranhão, e ali permaneceram durante três anos, até a capitulação ante os portugueses.

No séc. XIX o Brasil foi palco de numerosas expedições, de natureza muito diferente das que visavam à conquista do território. Tratava-se então, em consonância com o espírito científico, na esteira da busca de conhecimento levada a cabo pelos enciclopedistas, de tentar compreender esse imenso país, escassamente povoado, com incalculáveis riquezas naturais ainda por descobrir. Mas nem só a busca de conhecimentos motivou os viajantes: a possibilidade de estabelecer-se comercialmente foi o que atraiu o jovem Ferdinand de Denis, que aportou no Rio de Janeiro em 1817.

Três séculos e muitas diferenças se interpõem entre Jean de Léry e Ferdinand Denis, reunidos neste estudo por uma particularidade que os aproxima, dentre tantos viajantes franceses que estiveram no Brasil: ambos deixaram relatos particularmente interessantes para a nossa historiografia literária.

Jean de Léry (c. 1534-c. 1613) era um jovem seminarista que integrou o grupo de protestantes que, com Villegaignon, instalaram-se na baía de Guanabara. Em menos de um ano de sua estada, porém, o comandante expulsou esse grupo da colônia recém-fundada. Alguns deles pereceram, mas outros, como Léry, conseguiram permanecer com o apoio dos índios tupinambás e, finalmente, embarcaram de volta para a França, sobrevivendo à travessia em condições terríveis. Seu diário de viagem, perdido e depois reescrito, foi publicado em 1578, com o título de Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil. Tornou-se dessa forma um dos primeiros viajantes a descrever, aos europeus, particularidades da fauna e flora, e em especial da vida entre os indígenas, cujos costumes – dentre os quais a antropofagia ritual – descreveu com surpreendente sobriedade.

A obra de Léry pode ser considerada meramente documental, por sua excepcional carga informativa em um período de desconhecimento quase completo em relação às terras d’além-mar, porém é importante destacar a expressividade de sua linguagem, o que a leva muitas vezes a aproximar-se da literatura. Ao tratar da contribuição de viajantes franceses para a historiografia literária brasileira, cumpre observar que, curiosamente, essa historiografia foi se reescrevendo, aos poucos, de modo a criar “textos fundadores” que, na origem, nenhuma relação tiveram com a literatura. Ao longo do século XX, nossos historiadores passaram a incorporar a Carta de Pero Vaz de Caminha, publicada muito tempo depois de sido escrita, à história da literatura brasileira, apesar da inexistência de qualquer intencionalidade literária como a compreendemos na atualidade. Não se pretende aqui, evidentemente, atribuir semelhante papel à Viagem à terra do Brasil, publicada por Jean de Léry, até porque haveria grande número de relatos em condições análogas, a começar pelo de seu contemporâneo André Thévet, autor das Singularidades da França Antártica. Nem entram em discussão as diferenças de estatuto entre os textos de Léry e de Caminha, visto que este último dirigia-se ao rei de Portugal, e essa nação se consolidaria na colonização do Brasil, ao passo que o primeiro declara ter apenas o objetivo de relatar memórias de uma viagem de indiscutível interesse para os leitores europeus de seu tempo.

Ferdinand Denis (1798-1890), por sua vez, chegou ao Brasil às vésperas da independência política que seria proclamada por D. Pedro I, e não lhe escapou a dimensão desse fato para a história literária brasileira, até então atrelada indissoluvelmente à portuguesa.

Publicou seu Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil [Resumo da história literária de Portugal, seguido do Resumo da história literária do Brasil] na França, em 1826. Nessa altura, já havia escrito outras obras sobre o Brasil e sobre países vizinhos, como Argentina, Paraguai e Guiana Francesa. Sua familiaridade com o movimento romântico desencadeado na Europa desde o final do século XVIII certamente contribuiu para a sua percepção de que deveria ser feito o registro desta incipiente literatura nos trópicos. É notável sua percepção de que a literatura brasileira deveria constituir um corpo à parte da literatura portuguesa, questão que gerou numerosas controvérsias ao longo do século XIX. Quanto às suas atividades intelectuais, pode-se afirmar que Denis foi um pesquisador e sistematizador de parte do que viria a constituir a história da literatura brasileira. Esta última, construída aos poucos, obteve apenas no final do séc. XIX, graças à obra de Sílvio Romero, um caráter abrangente que se aproxima – ainda que com notáveis diferenças – das obras de nossa historiografia literária dos últimos decênios do século passado, como as de Antonio Candido, Luiz Roncari ou José Aderaldo Castelo.

Histoire d’un voyage au pays du Brésil

O Brasil entrou na rota de viajantes franceses no início do século XVI ou, conforme a documentação existente, em 1503, ano em que Paulmier de Gonneville aportou na costa brasileira. No período colonial, destacaram-se duas expedições francesas com permanência relativamente prolongada nas novas terras. A primeira delas foi a França Antártica, fundada por Durand de Villegaignon na enseada diante da qual surgiria a cidade de São Sebastião Rio de Janeiro; a outra, denominada França Equinocial, ocupou parte do Maranhão entre 1612 e 1615 sob a liderança de La Ravardière (Martins 115). Embora não se tenham cumprido os propósitos de colonização, há um saldo bastante positivo, do ponto de vista histórico-cultural, que consiste nos relatos de participantes dessas empreitadas. Sobre a França Antártica escreveram Jean de Léry e André Thévet, enquanto Yves d’Evreux e Claude d’Abbeville deixaram textos sobre a França Equinocial.


Pouco há de comum entre esses dois grupos de franceses, além do fato de escreverem com base no que vivenciaram em sua estada no Brasil; quanto ao mais, separavam-nos diferentes visões de mundo. Thévet e Léry, segundo Wilson Martins “encaravam o Novo Mundo como um capítulo omitido pelo Gênesis”. No fundo, não pareciam muito certos de poder incluir esse espaço nem no Velho nem no Novo Testamento. Assim, deram início à primeira fase do “pensamento utópico” sobre o continente americano e seus habitantes. Eram ambos “espíritos curiosos e observadores, procurando transmitir experiências vividas” (400). D’Abbeville e d’Evreux, ainda segundo o mesmo historiador seriam, “dois franciscanos inocentes, deslumbrados com a perfeição incompreensível das coisas e certos de que a glória do Senhor cantava em cada folha estranha, em cada fruto desconhecido, em cada animal extraordinário”. Ambos eram capuchinhos e, como Thévet, estavam imbuídos de uma interpretação católica do novo mundo. Léry, por sua vez, viera para o Brasil na qualidade de calvinista, e sua vinda se coadunava com os propósitos de Villegaignon, sob os auspícios do Almirante de Coligny.

O historiador Paul Gaffarel observa que Durand de Villegaignon, vice-almirante da Bretanha, cavaleiro de Malta e portador de muitos outros títulos, dera andamento ao projeto de fundação de uma colônia na América após uma extensa trajetória de viagens e conquistas em outros continentes. Em decorrência dos conflitos religiosos que dividiam seu país, Villegaignon mostrava-se bastante motivado a instituir um clima de liberdade religiosa na França Antártica. Pretendia ainda, segundo o mesmo historiador, “chamar, como que para um asilo, os seus compatriotas que desejassem gozar da liberdade de consciência, permanecendo, entretanto, fiéis à Metrópole” (Gaffarel 20). Assim, escreveu a Calvino, com quem estudara na Universidade de Paris, solicitando o envio de propagadores de sua doutrina à América, o que resultou na vinda de três teólogos e catorze genebrinos, entre os quais Jean de Léry, que se tornaria narrador da expedição. Infelizmente, Villegaignon entrou em crise espiritual, abandonou os propósitos alardeados e, a certa altura, os calvinistas foram obrigados a retirar-se para longe do Forte de Coligny, que haviam ajudado a construir, e aguardavam em terra firme a embarcação que os levaria de volta à Europa. Com isso, o autor da Viagem à Terra do Brasil permaneceu em terra, entre os indígenas, onde adquiriu conhecimentos sobre condições topográficas, climáticas, fauna, flora e, principalmente, sobre a população, que incluiria no livro publicado em Genebra muitos anos depois.

Bastante jovem e de formação incompleta quando viajou ao Brasil, Léry só concluiria seus estudos de teologia após seu retorno à França. Embora escrevesse inicialmente sem o intuito de publicar suas anotações, foi um observador curioso e atento. Como outros viajantes de seu tempo e antecipando o detalhismo que marcaria posteriormente as excursões científicas nos séculos XVIII e XIX, Léry descreve detalhadamente tudo o que chama sua atenção nesse novo mundo, mas seu relato se distingue não só pela linguagem saborosa como pelo seu modo de focalizar o outro, o diferente. Isso se deve a fatores diversos, entre eles, provavelmente, o fato de ser bastante jovem e ansioso por aprender a realidade a sua volta, ou a experiência já vivenciada de ser diferente, na condição de calvinista em um país de tradição católica.

Pode-se comprovar a visão atenta e abrangente de Léry desde as páginas do sumário e a organização de Histoire d’un voyage au pays du Brésil. O volume compõe-se de 22 capítulos, desde os motivos da viagem e o embarque até o quase miraculoso regresso à pátria, após uma viagem marcada por fome extrema, tormentas no mar e naufrágios. Dedica a sua estada no Brasil nada menos que 15 capítulos, cujos títulos são suficientes para demonstrar a amplitude de interesses e a capacidade de observação desse viajante-escritor. Pode-se constatar a rigorosa organização cronológica, bem como a progressão dos episódios da chegada e desembarque à descrição de componentes geográficos e recursos naturais, dos capítulos V a XIII, até as considerações de ordem étnica e sociocultural entre os capítulos XIV e XIX:

V – Do descobrimento e primeira vista que tivemos da Índia Ocidental ou terra do Brasil, bem como de seus habitantes selvagens [...]

VI – Do desembarque no forte de Coligny [...]

VII – Descrição do rio Guanabara, também denominado de Janeiro; da ilha de Coligny e do fortim nela edificado, bem como das ilhas vizinhas

VIII – Índole, força, estatura, nudez, disposição e ornatos dos homens e mulheres brasileiros, habitantes da América, entre os quais permaneci quase um ano

IX – Das grossas raízes e do milho com que os selvagens fabricam a farinha, comida em lugar do pão; da bebida a que chamam cauim

X – Dos animais, veação, lagartos, serpentes e outros animais monstruosos da América

XI – Da variedade de aves da América, todas diferentes das nossas; dos bandos de grandes morcegos, das abelhas, moscas varejeiras e outros vermes singulares desse país

XII – Dos peixes mais comuns e do modo de pescá-los

XIII – Das árvores, ervas, raízes e frutos deliciosos que a terra do Brasil produz XIV – Da guerra, combate e bravura dos selvagens

XV – De como os americanos tratam os prisioneiros de guerra e das cerimônias observadas ao matá-los e devorá-los

XVI – Religião dos selvagens da América; erros em que são mantidos por certos trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus

XVII – Do casamento, poligamia e graus de parentesco entre os selvagens bem como o modo de tratar os filhos

XVIII – O que podemos chamar leis e policiamento entre os selvagens; modo por que tratam os visitantes amigos; prantos e discursos festivos das mulheres por ocasião das boas-vindas

XIX – De como tratam os selvagens os seus doentes, dos funerais e sepulturas e do modo de chorar os seus defuntos. (10-11)

Quando comparado a outros relatos de viajantes, nesse período de convulsões como a Reforma, Contra-Reforma e guerras de religião, Viagem à terra do Brasil chama a atenção pela maneira isenta, na medida do possível, com que se refere aos habitantes do Brasil. Seu olhar despiu-se de preconceitos na descrição dos usos e costumes indígenas, o que confere a sua leitura um sabor especial inclusive para o leitor de hoje. Sugestivamente, o capítulo XIV, sobre “guerra, combate e bravura dos selvagens”, contribui para assegurar-lhe um lugar entre os formuladores da idealização romântica da figura do indígena. Mais significativo ainda, para nossa história literária – sem considerar a relevância de suas observações de fundo antropológico, que extrapolam nosso campo de estudo, vale registrar afinidades com a estética romântica, que ocorreria séculos depois, ao observar, por exemplo, a valentia no modo “como os americanos tratam os prisioneiros de guerra e das cerimônias observadas ao matá-los e devorá-los”.

A vivacidade de quem presenciou cenas e interagiu com seus participantes, tanto vencedores como condenados, proporciona a Léry condições para narrar minuciosamente o ritual da execução dos prisioneiros:

Com audácia e incrível segurança, [o prisioneiro] jacta-se das suas proezas passadas e diz aos que o mantêm amarrado: “Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores”.


Cada vez mais feroz, volta-se para ambos os lados exclamando para uns e outros: “Comi teu pai, matei e moqueei teus irmãos, comi tantos homens e mulheres, filhos de vós outros tupinambás, a que capturei na guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes” (...)

“Não és tu da nação dos marajás, que é nossa inimiga? Não tens morto e devorado aos nossos pais e amigos?”

O prisioneiro, mais altivo do que nunca, responde no seu idioma (margaiás e tupiniquins se entendem reciprocamente) pa, che tan tan ajucá atupavé – “Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos”. (...)

Mas tão valente quanto Atílio Régulo ao morrer pela República Romana, a vítima ainda responde: “Meus parentes me vingarão”. (...)

Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice (...). Move-os a vingança.” (194-200)

Sem deixar de ressaltar, algumas vezes, a crueldade dos selvagens para com seus inimigos, Léry acrescenta: “É útil, entretanto, que ao ler semelhantes barbaridades, não se esqueçam os leitores do que se pratica entre nós”. Refere-se a algumas cenas ocorridas na França, inclusive os dramáticos episódios da Noite de São Bartolomeu “a sangrenta tragédia iniciada a 24 de agosto de 1572” (203), e conclui o capítulo estabelecendo um breve paralelo entre a barbárie e a “civilização”:

Não abominemos, portanto, demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair do nosso país, para ver coisas tão monstruosas. (204)

Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du Résumé de l’histoire du Brésil

Ferdinand Denis chegou ao Rio de Janeiro em 1817, quando nessa cidade se concentrava razoável número de franceses, que haviam emigrado como participantes da “Missão francesa”, a convite de D. João VI. No dizer de Antonio Candido, a presença desse grupo foi suficiente para caracterizar, em nossa literatura, um “pré-romantismo franco-brasileiro” (279-286). Sem fazer parte desse grupo, Denis estava motivado, inicialmente, por interesses comerciais, pois pretendia trabalhar no comércio entre o Brasil, até então colônia portuguesa, e a França. Residiu no Rio de Janeiro, mas deslocou-se por terra até a Bahia, o que lhe facultou o ingresso em locais distantes da ocupação litorânea e o contato direto com a natureza, a “cor local”, que lhe causariam funda impressão. Retornou a seu país em 1820, mas, em razão de seus interesses culturais e literários, tornou-se amigo e correspondente de boa parte da intelectualidade brasileira, fato comprovado por uma volumosa troca de cartas durante as décadas seguintes e até o fim de sua vida.

A natureza dos trópicos e as peculiaridades dos habitantes do país, especialmente dos indígenas, atraíram suas atenções. Muitas tribos haviam sido exterminadas, outras estavam subjugadas pelos colonizadores, mas ainda havia um número incalculável de índios vivendo em plena floresta tropical, como o bom selvagem de Rousseau. Foi assim que Denis tornou-se um percursor dos brasilianistas, muito antes que esse rótulo designasse pesquisadores estrangeiros que estudam o país. Denis traduziu para o francês o texto que hoje é considerado fundador da literatura brasileira,

a já mencionada carta de Pero Vaz de Caminha. Além disso, reuniu dados sobre geografia e história, descrições de lugares, cerimônias, usos e costumes, coletou informações gerais sobre clima, fauna, flora. Essa verdadeira massa informativa foi publicada sob o título Le Brésil. Escreveu sobre outros países sul-americanos, como Argentina, Paraguai e Guiana Francesa. Um de seus livros intitula-seBuenos Ayres et le Paraguay, usageset coutumes des habitants de cette partie de I’Amérique [Buenos Aires e Paraguai, usos e costumes dos habitantes dessa parte da América ] e foi lançado em Paris pouco após seu regresso ao velho continente, em 1823.

Denis foi muito além do registro típico feito por viajantes que percorreram o Brasil no séc. XIX, graças à atenta observação e ao registro de aspectos socioculturais e literários. O espaço físico vinha ao encontro de sua sensibilidade, fazendo-o evocar trechos de obras de Bernardin de Saint-Pierre e de Chateaubriand.

Em 1824 publicou Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie [Cenas da natureza nos trópicos e de sua influência sobre a poesia], narrativa que revela seu deslumbramento com a paisagem brasileira. Candido destaca sua contribuição para a nascente literatura brasileira:

A exploração da natureza brasileira como fonte de novas emoções, e o desejo de abordar os temas brasileiros como matéria literária convergem na obra de Ferdinand Denis Cenas da natureza nos trópicos, que Paul Hazard e Georges Le Gentil consideram muito justamente um marco na formação do nosso romantismo.

Nesse livro encontra-se pela primeira vez um tratamento sistemático das impressões despertadas pela natureza do Brasil, com intuito puramente literário. Visivelmente seduzido pelo exemplo dos Quadros da natureza, de Alexandre von Humboldt, Denis aplicou sua fórmula no país que conhecia de perto (...): descrições emocionais e poéticas, em que o exterior vai-se tornando insensivelmente estado d’alma e o homem civilizado parece redescobrir-se, renascendo ao contato de um mundo desconhecido, deixando perceber que ao exemplo do sábio alemão vem juntar-se o naturismo extático de Chateaubriand. (283)

Denis tinha por alvo partilhar com seus compatriotas seu próprio entusiasmo, ressaltando a importância do meio para a criação literária, conforme explicou no prefácio, que se encontra transcrito parcialmente por Maria Helena Rouanet: “Meu livro tem dois objetivos: o de recordar a influência da natureza sobre a imaginação e o de dar a conhecer aos europeus o proveito que podem tirar das grandes cenas, das quais têm, muitas vezes, uma visão imperfeita” (211-212). Apesar de seu entusiasmo, não logrou tal feito. Contrariando suas expectativas, a repercussão do livro na França foi bastante modesta. É o que relata Rouanet, autora do estudo Eternamente em berço esplêndido, em que explica o pouco entusiasmo despertado pela obra de Denis como decorrência dos comentários de Sainte-Beuve, que havia dedicado atenção a Scènes de la nature sous les tropiques no próprio ano de sua publicação. Segundo o crítico francês, o livro de Denis poderia efetivamente tornar-se fonte de inspiração; todavia, ele propiciava a tomada de empréstimo de imagens estrangeiras, o que o transformava em “um perigo a ser evitado”, pois “fala a uma nação sobre uma natureza que ela não compreende...” (Rouanet 216).

Assim, Denis decidiu deixar de lado o público francês, impossibilitado por razões geográficas de partilhar com ele o encanto e o deslumbramento com a contemplação da natureza nos trópicos, e focalizou o público leitor brasileiro. Restava-lhe, portanto, redirecionar sua própria obra, o que fez dois anos depois, lançando o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil. Nesse país recém-emancipado politicamente de Portugal e preocupado com a consolidação de seu estatuto de nação independente – preocupação que permearia a intelectualidade brasileira ao longo do século XIX – Denis deve ter considerado que o público leitor, embora reduzido, poderia interessar-se por sua obra, até pela relevância que cabia à literatura como expressão da identidade nacional.

Como se evidencia já no título, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil foi pioneiro no reconhecimento de uma literatura brasileira autônoma, desvinculada da portuguesa. Paradoxalmente, coube a um viajante francês anunciar em primeira mão a independência literária do Brasil, antes mesmo que os brasileiros o fizessem. Deve-se considerar, todavia, que essa desvinculação registrada por Denis demoraria muitíssimo a se concretizar, como demonstra a proliferação de polêmicas em torno da possível independência literária do Brasil ao longo das décadas seguintes. Hoje, com o avanço dos estudos teóricos sobre pós-colonialismo, parece absurdo que se questionasse o direito do Brasil a ver reconhecida sua literatura como uma das literaturas que se expressam em língua portuguesa. Mas era o estatuto das novas nações no período em que Brasil, bem como toda a América Latina, caminhavam lentamente para a emancipação política. Além disso, quase todos os escritores brasileiros que adquiriam formação acadêmica, faziam-no em Portugal, visto que os primeiros cursos em nível universitário no Brasil surgiram no segundo decênio do século XIX, ou seja, após a publicação da obra de Denis. De qualquer maneira, é inegável que o estabelecimento da literatura brasileira a partir do Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil propiciou um embasamento mais sólido aos escritores brasileiros, para que se empenhassem na efetiva emancipação da literatura nacional.

Consciente de sua importância nesse momento histórico de implantação dos valores e da visão de mundo própria do romantismo, Denis conclamava os escritores brasileiros a rejeitar a herança neoclássica. Deveriam dedicar-se ao que os rodeava, a começar por fontes de inspiração que se encontravam ao alcance de todos, como, por exemplo, a exuberante natureza tropical. Reiterando que, em sua formação, a literatura e a nacionalidade se projetam uma na outra e se complementam, Denis afirma:

O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes das que lhe haviam sido impostas pela Europa, já sente a necessidade de buscar inspirações poéticas em uma fonte que realmente lhe pertence; e, em sua primeira glória nascente, logo nos dará obras-primas desse primeiro entusiasmo, que atesta a juventude de um povo. Se esta parte da América adotou uma língua aperfeiçoada por nossa velha Europa, deve, todavia, rejeitar as idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia; desgastadas por nossa antiga civilização, foram levadas a essas plagas onde as nações não as poderiam compreender muito bem, e onde deveria m ter permanecido desconhecidas (...). A América, finalmente, deve ser livre em sua poesia como em seu governo. (apud Candido 323)

O reduzido interesse despertado pelas Scènes de la nature sous les tropiques na França havia ensinado a Denis que o conhecimento de paisagens tropicais não traria nenhuma contribuição relevante à criação literária em outros países. De forma similar, mas em sentido inverso, em seu entender, os rebanhos e as colinas das paisagens pastoris da Arcádia mostravam-se incompatíveis com a luxuriante natureza dos trópicos. É evidente que a postura de Denis fundamenta-se em sua experiência pessoal e em suas reflexões a partir dos comentários de Saite-Beuve, que devem tê-lo marcado profundamente. Tais considerações não deixam de se revestir de alguma complexidade, pois boa parte da ficção e da poesia europeias do período romântico alcançou expressiva produção, inspirando-se em temas exóticos. A insistência de Denis pela emancipação literária brasileira talvez se deva também a sua vivência in loco no país, em tempo suficiente para a apreensão de tantas características em que ex-colônia e ex-metrópole são diferentes entre si. Seu olhar de estrangeiro captou essa peculiaridade.

O livro de Denis vinha ao encontro das aspirações dos jovens intelectuais que, conhecedores das propostas do romantismo alemão, britânico e francês, desencadeariam a revolução romântica entre nós. Em poucos anos, surgiram quase concomitantemente a historiografia literária, a crítica e o romantismo no Brasil.

Antonio Candido considera a crítica um dos fatores da tomada de consciência da nova realidade, por formar um ponto de vista segundo o qual “a literatura clássica identificava a colônia e a literatura da pátria livre deveria inspirar-se em outros modelos” (323).

O Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil viria a ser obra de referência para muitos críticos literários comprometidos com a consolidação da literatura nacional. Esses esforços, todavia, continuaram a defrontar-se com múltiplos obstáculos. A literatura portuguesa contava já com seis séculos de existência, e para ela convergia habitualmente toda a produção de escritores das colônias que haviam adotado sua língua. Consideravam-se pertencentes à literatura portuguesa os autores ou pensadores que escreveram no Brasil desde o século XVI – basta citar Gregório de Matos e o padre Antônio Vieira como os mais relevantes, independentemente de seu local de nascimento, de sua formação intelectual, da sua permanência na colônia ou na metrópole. O texto de Denis anunciava a possibilidade da existência de uma literatura brasileira desvinculada da portuguesa, em razão das diferenças de meio social, geográfico, etnográfico e – finalmente – literário, entre Portugal e Brasil.

Os critérios de inclusão dos autores, nesse momento de fundação de uma literatura nacional no Brasil, demostravam como o nacionalismo e a ideologia romântica reforçavam-se reciprocamente. Toda a atividade da crítica romântica direcionava-se para a consolidação da nacionalidade. Assim, seriam integrantes do nosso passado literário os autores de períodos anteriores que tivessem manifestado interesse pelos temas brasileiros.

Os poetas árcades ou neoclássicos haviam alcançado uma produção relativamente rica, composta em maior parte por odes, éclogas, sonetos e pequenos poemas épicos. Na esteira de Denis, a crítica romântica brasileira voltou-se de imediato para os poetas que haviam explorado temas brasileiros, como José de Santa Rita Durão, autor de Caramuru, e Basílio da Gama, autor de Uraguai. Essas duas obras concebem-se como poemas épicos e, para tanto, seguem as convenções herdadas da tradição greco-latina e reeditadas no Classicismo do século XVI. Seus poemas narrativos giram em torno de feitos que podem ser considerados memoráveis, apresentam protagonistas com pretensões ao heroísmo e, do ponto de vista formal, preservam a cadência do verso decassílabo, embora neles seja opcional o esquema rítmico. Mas essa forma rígida, que mantém um conteúdo tradicional, adquire um componente inovador: a cor local. Em cenários tropicais (ou subtropicais, como no caso do Uruguai), a natureza obtém visibilidade, tornando-se pouco mais que o pano de fundo do qual sobressaem personagens europeus, que contracenam com indígenas. Estes últimos destacam-se da paisagem, respondem por nomes próprios, enfim, adquirem individualidade.

No caso do neoclassicismo brasileiro, a visão romântica proposta por Denis levou a uma apreciação bastante positiva das obras que privilegiam o exotismo e a cor local. Essa postura, excessivamente marcada pelo outro, pelo diferente, inviabilizou uma concepção menos comprometida, ou mais livre, em relação a manifestações literárias que não adotassem a mesma perspectiva.

Essa distorção seria reconhecida posteriormente por Machado de Assis, ao final do período romântico. No texto que é citado frequentemente como uma das obras-primas da crítica literária brasileira, “Instinto de nacionalidade”, Machado considera que os componentes locais podem levar à criação literária, porém sua ausência está longe de significar pobreza ou insuficiência. Para ele, ao interrogar a vida brasileira e a natureza americana, os prosadores e poetas encontram ali um grande manancial de inspirações, que darão fisionomia própria ao pensamento nacional. O autor de D.

Casmurro observa que Basílio da Gama e Santa Rita Durão

[...] buscaram em roda de si os elementos da nova poesia, e deram os primeiros traços a nossa fisionomia literária, ao passo que outros, Gonzaga por exemplo, respirando os ares da pátria, não souberam desligar-se das linhas da Arcádia nem dos preceitos de seu tempo. Admira-se seu talento, mas não se lhes perdoa o apego ao cajado e à pastora, e nisto há mais erro do que acerto. (apud Coutinho 50)

Machado condena a crítica que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assuntos locais, e conclui que “o que se deve exigir de escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o converta em homem do seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (52). No referido ensaio, provocou uma discussão sobre a universalização da literatura brasileira e ele mesmo, como ficcionista, seria o melhor exemplo dessa tendência.


A crítica literária brasileira viria a abandonar a atração pela natureza e a ênfase na cor local, eliminando finalmente repetições e retomadas das premissas de Denis, apenas no final do século XIX, quando Sílvio Romero deu nova orientação aos estudos críticos em nosso país, com a publicação de sua História da literatura brasileira. Comprometida desde a raiz com os princípios positivistas incorporados por Romero, essa obra inaugurou outra linhagem em nossa historiografia literária. A despeito de uma adesão incondicional aos já mencionados princípios positivistas, de seus juízos de valor equivocados e de escolhas pouco fundamentadas, a história literária escrita por Romero resultou de um enorme esforço de compilação e organização, tendo sido consultada – para adesão ou contestação, não importa – pelas sucessivas gerações de historiadores literários até nossos dias.

Em síntese, a historiografia literária brasileira registra as origens e os impasses da implantação de um corpus literário no país, levando em conta contribuições estrangeiras, relativamente indiretas, como a de Jean de Léry, ou precisamente focada, como a de Ferdinand Denis. Ao retomar seus escritos, enfatizamos seu lugar na escrita dessa história.

Referências

Assis, J. M. Machado de. “Instituto de nacionalidade” Apud Coutinho, Afrânio (Org.)

Caminhos do pensamento crítico . Rio de Janeiro: Americana, 1974.

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira – momentos decisivos. V. 1. Belo Horizonte: Itatiaia; São Pulo: Martins, 1975.

Denis, Ferdinand. Scènes de la letterature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie . Paris: L. Janet, 1824. Apud Rouanet, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido. Rio de Janeiro: Siciliano, 1991.

Léry, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.

Pereira, Helena B. C . Banco de dados do “Projeto Léryy-Assu”. Presença da cultura francesa na historiografia literária brasileira. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1988.

Rivas, Pierre. Encontro entre literaturas: França, Portugal. Brasil. São Paulo: Hucitec, 1995.

Rouanet, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido. Rio de Janeiro: Siciliano, 1991.