Revista Administración Pública y Sociedad

(APyS-IIFAP-FCS-UNC)

Nº 09, Enero-Junio 2020 - ISSN: 2524-9568

O PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR (PAA): DETERMINANTES DE UMA POLÍTICA PÚBLICA QUE PROJETOU O BRASIL NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO (CID)

THE FAMILY FARMING FOOD PURCHASE PROGRAM (PAA): DETERMINANTS OF A PUBLIC POLICY THAT PROJECTED BRAZIL INTO INTERNATIONAL COOPERATION AND DEVELOPMENT (ICD)

EL PROGRAMA DE ADQUISICIÓN DE ALIMENTOS DE LA AGRICULTURA FAMILIAR (PAA): DETERMINANTES DE UNA POLÍTICA PÚBLICA QUE PROYECTÓ A BRASIL EN LA COOPERACIÓN INTERNACIONAL PARA EL DESARROLLO (CID)

MARIA ELISA HUBER PESSINAi

Fecha de Recepción: 01/06/2020 | Fecha de Aprobación: 30/06/2020

Resumo: O início do século XXI foi marcado pela consolidação e expansão dos programas de Cooperação Sul Sul (CSS), despertando grande interesse da comunidade internacional. Alguns países emergentes se destacaram neste fenômeno, como foi o caso do Brasil, cujos programas de Cooperação Internacional voltaram-se, fundamentalmente, para difusão de políticas sociais exitosas no território nacional. Este artigo teve como objetivo analisar em profundidade as particularidades e os resultados domésticos de uma política pública brasileira - o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), do Fome Zero – que contribuiu para transformar o Brasil em referência global no combate à fome e que lhe abriu a oportunidade de incidir sobre a agenda da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) nesse campo. A partir de uma abordagem descritiva e de revisão de literatura, identificou-se que aspectos como forte implicação do Estado e da Sociedade Civil local, dentre outros, foram determinantes para os resultados diferenciados de tal programa no combate à pobreza rural e à insegurança alimentar. Os resultados brasileiros correspondem ao que, há décadas, os programas de Cooperação Internacional tradicionais almejam promover em países em desenvolvimento. Desta forma, espera-se que este trabalho possa contribuir com os debates sobre as mudanças necessárias nos programas de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento no campo do desenvolvimento rural e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).

Palavras-chave:

Segurança

Alimentar e

Nutricional.

Desenvolvimento

Rural.

Cooperação Sul Sul.

PAA.

Fome Zero.

iDoutora em administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós doutoranda no Programa de Pós Graduação em Administração da Universidade Salvador (PPGA - Unifacs). Pesquisadora do Labmundo/UFBA. Email: mariaelisahp@yahoo.com.br

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O programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar (paa): determinantes de uma política pública que (…)| HUBER PESSINA

Abstract: The beginning of the XXI century was marked by consolidation and expansion of the South South Cooperation (SSC) programs, arousing interest in the international community. Some emerging countries stood out in this phenomenon, such as Brazil, whose international cooperation programs focused primarily on disseminating successful social policies in the national territory. In this scenario, this article aimed to analyze in depth the particularities and domestic results of a Brazilian public policy - the Program for the Acquisition of Food from Family Agriculture (PAA), of Zero Hunger - which helped to transform Brazil into a global reference in the fight against hunger and which opened the opportunity to influence on the agenda of International Cooperation for Development in this field. Based on a descriptive approach and a literature review, it was identified that aspects such as strong involvement of the State and local Civil Society, among others, were determinant for the differentiated results of such program in the fight against rural poverty and food insecurity. The Brazilian results correspond to what, for decades, traditional international cooperation programmes have sought to promote in developing countries. Thus, it is hoped that this work will contribute to discussions on changes in International Development Cooperation (IDC) programmes in the field of rural development and Food and Nutrition Security (SAN).

Keywords:

Food and Nutrition

Security.

Rural Development.

South-South

Cooperation.

PAA.

Hunger Zero.

Resumen: El inicio del siglo XXI estuvo marcado por la consolidación y expansión de los programas de Cooperación Sur-Sur (CSS), despertando gran interés de la comunidad internacional. Algunos países emergentes se destacaron en este fenómeno, tal es el caso de Brasil, cuyos programas de Cooperación Internacional se orientaron, fundamentalmente, a la difusión de políticas sociales exitosas en el territorio nacional. Este artículo tiene como objetivo analizar en profundidad las particularidades y los resultados domésticos de una política brasileña -el Programa de Adquisición de Alimentos de la Agricultura Familiar (PAA) de Fome Zero- que contribuyó para transformar a Brasil en referencia global en el combate al hambre y le abrió la oportunidad para incidir en este campo de la agenda de la Cooperación Internacional para el Desarrollo (CID). A partir de un abordaje descriptivo y de revisión de literatura, se identificaron aspectos, como el fuerte compromiso del Estado y de la Sociedad Civil, entre otros, que fueron determinantes para los resultados diferenciados de este programa en el combate a la pobreza rural y a la inseguridad alimentaria. Los resultados brasileños se corresponden con lo que, hace décadas, los programas de Cooperación Internacional tradicionales ansiaban promover en los países en desarrollo. De esta manera, se espera que el trabajo pueda contribuir a los debates sobre los cambios necesarios en los programas de Cooperación Internacional para el Desarrollo en el campo del desarrollo rural y la Seguridad Alimentaria y Nutricional (SAN).

Palabras Clave:

Seguridad

Alimentaria y

Nutricional.

Desarrollo Rural.

Cooperación Sur-

Sur.

PAA.

Hambre Cero.

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Introdução

O fortalecimento das economias emergentes do Sul levou ao aumento expressivo dos programas de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) entre países em desenvolvimento - os países de renda média (PRM), historicamente receptores da ajuda internacional do Norte, passaram, também, para posição de provedores de programas de cooperação para os países de renda baixa (PRB). A intensificação da Cooperação Sul Sul (CSS) esteve associada à necessidade das potências emergentes de se fortalecerem no âmbito das disputas políticas internacionais, assim como, de abrir novos mercados. Assim, a CSS ressurge dividindo aqueles que são otimistas em relação ao potencial de desenvolvimento econômico do Sul e libertação do domínio do Norte, e os críticos mais pessimistas, que veem esse mesmo sucesso do Sul como integrado ao paradigma de desenvolvimento capitalista global existente (Gray & Gills, 2016; Milani, 2012).

Neste cenário, a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi) ganhou significativa visibilidade no início dos anos 2000, no contexto do novo modelo de inserção internacional do país do governo Lula da Silva (2003 – 2011), o qual buscava maior protagonismo internacional e a reorganização do mundo em um espaço multipolar (Cervo, 2003).

ACobradi destaca-se por constituir-se predominantemente pelo compartilhamento de expertises e conhecimentos técnicos com países de realidade socioeconômica semelhantes (IPEA, 2018). Dentre as políticas nacionais que ganharam visibilidade no período citado, destacam-se as políticas nacionais de combate à fome e à pobreza, articuladas sob o programa Fome Zero. As políticas do Fome Zero foram responsáveis por conduzir o Brasil à redução de sua pobreza total de 24,3% para 8,4% da população, entre 2001 e 2012, enquanto a pobreza extrema caiu de 14,0% para 3,5%, no mesmo período (FAO, IFAD e WFP, 2014).

Os resultados das políticas implementadas sob o guarda-chuva do Fome Zero transformaram o Brasil em uma referência mundial para o combate à pobreza e insegurança alimentar, uma vez que o país atingiu, antes do previsto, as principais metas internacionais de redução da proporção de pessoas que sofrem com a fome (FAO, IFAD e WFP, 2014). No âmbito do Fome Zero, a política pública principal para o desenvolvimento rural e agricultura familiar foi o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA. O diferencial do PAA dava- se pelo fato de articular as compras do Estado brasileiro aos pequenos produtores rurais, garantido, ao mesmo tempo, a inserção comercial dos agricultores mais vulneráveis, e a alimentação de qualidade para a população em situação de insegurança alimentar atendidas pelo governo.

O êxito do PAA brasileiro na promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), do fortalecimento da agricultura familiar, da melhoria da renda dos agricultores, da valorização da produção local e de sua diversificação ultrapassou as fronteiras do país, atraindo a atenção internacional (IPEA, 2018; Takagi, Sanches e Graziano da Silva, 2014). Esses resultados ganham mais visibilidade num contexto internacional no qual os sistemas de produção agrícola

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tradicionalmente mediados pelo mercado deixam ainda milhões de pessoas cronicamente subnutridas no mundo, devido a dificuldades de acesso aos alimentos básicos (FAO, 2017), sendo que metade da população mundial que passa fome é formada por pequenos agricultores (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014).

Os resultados exitosos das políticas públicas brasileiras respondiam à necessidade real no âmbito do Sistema Internacional de Cooperação para o Desenvolvimento de soluções para a promoção de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e do desenvolvimento rural, transformando o Brasil no destino de visitas de inúmeras delegações de países e de agências multilaterais interessados em conhecer as experiências brasileiras (Banco Mundial e IPEA, 2012; IPEA, 2018).

O engajamento do então Governo Lula neste campo resultou, ainda, em participações extraordinárias na agenda da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) mundial e na criação de espaços onde o Brasil exerceu liderança, como sua atuação na reforma do Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas (CSA) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), dentre outras. Conferiu ao então presidente do Brasil, ainda, alguns prêmios internacionais por suas atividades na luta global contra a fome e a pobreza, como a Medalha Agrícola da FAO, em 2005, ou o Prêmio “Campeão Global da Luta Contra a Fome”, do PMA, em 2010.

Diante de tal contexto, o objetivo deste artigo é verificar quais foram os determinantes para que o PAA tenha atingido seus resultados no Brasil, gerando interesse da comunidade internacional na sua difusão na forma de CID. Parte-se da premissa que tal política merece atenção destacada por ter conduzido ao centro dos debates da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e desenvolvimento rural um país do Sul, possibilitando-lhe incidir sobre tal agenda. O artigo foi construído a partir de uma revisão bibliográfica de análises de estudiosos do PAA - principalmente da área de desenvolvimento rural -, de estudos de caso diversos e de publicações de funcionários que trabalharam diretamente na concepção ou execução deste programa no Brasil.

Para atingir seu objetivo, o artigo foi dividido em uma primeira sessão que trata da Cobradi, seguida de uma sessão que confirma o Brasil como um ator global na luta contra a fome e, por fim, uma sessão que se dedica a apresentar os resultados do PAA brasileiro e os determinantes nacionais para seu êxito. Espera-se, com este artigo, oferecer uma memória de uma política pública brasileira que obteve resultados diferenciados no campo do desenvolvimento rural e da SAN, assim como dos determinantes que possibilitaram que tal política atingisse seus resultados. Dessa forma, espera-se que esta memória possa contribuir com os debates sobre desenvolvimento rural e SAN em outros países em desenvolvimento, assim como para os debates sobre as reformas na agenda hegemônica das organizações da CID nesse campo.

A Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional – COBRADI

Desde a criação do Sistema Internacional de Cooperação para o Desenvolvimento (SICD), na década de 1950, o Brasil recebe ajuda ao desenvolvimento dos doares tradicionais do Norte, como da Alemanha, Japão, Estados Unidos, dentre outros, principalmente nos setores de meio-ambiente, agricultura, desenvolvimento urbano, energia, saúde e gestão pública (MRE

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2011). Entretanto, apesar de ainda manter seu lugar de receptor da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID), o país se consolidou, também, como doador no contexto da intensificação das relações Sul-Sul, principalmente, após a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2003.

Com a consolidação das políticas sociais e econômicas, o Brasil passou a se engajar, internacionalmente, com os programas de Cooperação Sul-Sul, principalmente com a América Latina e África, sob um discurso fundamentado na solidariedade entre semelhantes, vantagens compartilhadas e na diferenciação daquela Cooperação tradicionalmente ofertada pelo Norte ao Sul (CNS) (Milani, 2012).

A intensificação dos programas de Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi) ocorreu no contexto do novo modelo de inserção internacional do país durante o governo Lula da Silva (2003 – 2011). Com tal estratégia de inserção diferenciada, o país buscou atenuar os prejuízos da globalização e ganhar um maior protagonismo internacional, além de tentar promover a reorganização do mundo em um espaço multipolar. Tal engajamento levou o então presidente Lula a promover uma diplomacia extraordinariamente ativa, contabilizando, em seus primeiros 18 meses de mandato, um total de 100 viagens ao exterior e visitas recebidas de alto nível à Brasília (Almeida, 2004).

A cooperação brasileira possui algumas particularidades que a diferencia da tradicional Cooperação Norte-Sul, regulamentada pelo Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento – CAD, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE. No CAD a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD) é definida como transferências de recursos de origem pública dos países membros da OCDE em favor dos países em desenvolvimento, cumprindo as condições básicas de ter como objetivo principal a promoção do desenvolvimento econômico e o bem-estar dos países receptores e a concessionalidade (doação) mínima de 25% (e de 50% para os países de menor desenvolvimento). Tal ajuda pode ser oferecida na forma de cooperação financeira, cooperação técnica, ajuda humanitária, perdão de dívidas, desde que sempre cumprindo estes dois pré-requisitos (Iglesia-Caruncho, 2005).

Já a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional – COBRADI define-se como:

[...] a totalidade de recursos investidos pelo governo federal brasileiro, totalmente a fundo perdido, no governo de outros países, em nacionais de outros países em território brasileiro, ou em organizações internacionais com o propósito de contribuir para o desenvolvimento internacional, entendido como o fortalecimento das capacidades de organizações internacionais e de grupos ou populações de outros países para a melhoria de suas condições socioeconômicas (IPEA, 2010, p. 11).

Com base em tal definição, a Cobradi diferencia-se da cooperação da OCDE de duas formas fundamentais: os recursos brasileiros não são reembolsáveis, enquanto que a cooperação da OCDE prevê termos financeiros concessionais; segundo, o Brasil também contribui para as instituições multilaterais dos países em desenvolvimento, enquanto que as contribuições dos membros da OCDE, em geral, destinam-se apenas as organizações multilaterais do Norte (IPEA, 2010).

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Outra singularidade da Cooperação Internacional Brasileira diz respeito a forma como é executada, priorizando o uso da máquina pública, seus funcionários e instituições, coordenado pela Agência Brasileira de Cooperação – ABC. Não há fluxos de recursos financeiros para os países beneficiários na Cooperação Brasileira, mas sim do quadro consolidado, na forma de conhecimento e de recursos humanos cedidos aos programas (IPEA, 2016). Assim, é marca da Cobradi a disponibilização de técnicos especializados que já compõem o quadro da administração pública brasileira, que são alocados em programas de cooperação a partir da demanda dos países parceiros. Isso ocorre devido ao fato do Brasil ainda não possuir uma legislação que regulamente a cooperação oferecida, mas apenas aquela recebida1. A legislação brasileira vigente, via de regra, não permite a transferência direta de dinheiro público para outros governos, exceto por intermédio de organizações multilaterais, o que é realizado, principalmente, por intermédio do sistema da ONU (Banco Mundial e IPEA, 2011, p.39).

Como a regra é a não transferência de recursos financeiros, o Brasil atua majoritariamente oferecendo sua expertise em áreas específicas desenvolvida a partir de problemas nacionais similares àqueles da realidade do país de destino. Assim, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde brasileiro, por exemplo, oferecem cursos sobre gestão da saúde integrada e controle e prevenção de doenças tropicais, a Embrapa oferece apoio em programas de desenvolvimento agrícola, entre outros exemplos.

A Cooperação Brasileira é classificada como bilateral ou multilateral e, de acordo com a modalidade da cooperação como bolsas de estudos para estrangeiros; ajuda humanitária; científica e tecnológica (técnica); refugiados no Brasil; operações de paz e contribuições do orçamento brasileiro para organizações internacionais (IPEA, 2010). A cooperação técnica brasileira recebeu visibilidade internacional destacada, uma vez que buscavam difundir para outros países em desenvolvimento políticas públicas consideradas de sucesso domesticamente.

A Cobradi orienta-se pelos princípios estabelecidos na Constituição brasileira2 e segue as diretrizes do Ministério das Relações Exteriores - MRE, que defende a não ingerência nos assuntos internos dos parceiros e a não imposição de condicionalidades. Assim, segundo a ABC (2009), o Brasil possui seis pontos que definem suas diretrizes para a cooperação para ajuda ao desenvolvimento: 1. Diplomacia solidária; 2. Atuação em resposta a demandas de países em desenvolvimento; 3. Reconhecimento da experiência local e adaptação de experiências brasileiras; 4. Não imposição de condicionalidades; 5. Desvinculada de interesses comerciais ou fins lucrativos; 6. Não ingerência em assuntos internos dos países parceiros (ABC, 2009).

Apesar de seu discurso oficial voltado fortemente à solidariedade entre os povos, a Cooperação brasileira tem sido alvo de muitas críticas, direcionadas, principalmente, às seguintes questões: ausência de estratégia (nacional e por país ou grupo de países parceiros); atuação pouco articulada entre os atores brasileiros atuantes, opacidade das informações; promoção de distintos e antagônicos modelos de desenvolvimento agrário existentes no Brasil; promiscuidade entre cooperação, financiamento e investimento; falta de participação social; dentre outros (Beghin, 2014; Almeida, 2016).

Outra crítica, diz respeito aos ganhos comerciais gerados subjacentes aos acordos de Ajuda Internacional. Visitas oficiais presidenciais ao continente africano, por exemplo,

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frequentemente eram acompanhadas de grupos empresariais brasileiros, promovendo a chamada diplomacia comercial, o que repercutiu, nos últimos anos, em uma presença cada vez mais forte de empresas brasileiras como a Odebrecht, a Petrobras, a Vale, a Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, dentre outras, naqueles países (Kraychete et al, 2013; Beghin, 2014; Garcia e Kato, 2016). Segundo Beghin (2014), investimentos de empresas transnacionais brasileiras tem deixado rastros lastimáveis em países da América latina e da África, a exemplo da atuação da Odebrecht no Panamá (em obra que compromete um patrimônio da humanidade), em Angola e em Moçambique (em obra que desloca famílias, que são assentadas em condições aviltantes) e da atuação da Vale em Moçambique (cuja exploração de minério gera problemas ambientais e sociais) (Beghin, 2014).

Na relação Brasil-África, a sociedade civil de ambos os lados apontou, ainda, casos de imbricação de projetos de CSS com interesses econômicos de empresas que, contraditoriamente, geravam efeitos sociais, ambientais e políticos controversos. Nesse sentido, destacam-se as denúncias em relação ao Programa de Cooperação Tripartida para o Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical em Moçambique – ProSavana, coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) em Moçambique, com recursos da Agencia Japonesa de Cooperação Internacional – JICA. O ProSavana tinha por objetivo a criação de novo modelo de desenvolvimento agrícola no Corredor de Nacala, na savana moçambicana, inspirado no projeto de desenvolvimento do cerrado brasileiro que contribuiu para a consolidação do modelo do agronegócio exportador que impera no campo no Brasil até hoje. O programa brasileiro também fora financiado pela cooperação japonesa (ABC, 2009).

O ProSavana foi acusado de representar a transferência de uma política agrícola baseada no latifúndio e na monocultura, que privilegiava o agronegócio voltado para exportação em detrimento do fortalecimento dos pequenos agricultores, que estariam sendo expropriados de suas terras, aprofundando, ainda mais, a pobreza rural em Moçambique (Almeida, 2016). O ProSavana mostrou-se fortemente motivado por interesses do setor privado, principalmente do agronegócio brasileiro e das empresas privadas brasileiras de energia e infraestrutura envolvidas indiretamente no projeto (Garcia e Kato, 2016; Paulino, 2017).

Alguns programas da Cobradi, entretanto, demonstraram alinhamento com os princípios solidários pregados, como foi o caso da entrada da experiência do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA na agenda da cooperação brasileira. O PAA brasileiro foi considerado um programa diferenciado por promover a inclusão social da população rural mais vulnerável e a Segurança Alimentar e Nutricional, assim como, por ter disputado internamente com outros modelos de desenvolvimento neste campo. O PAA brasileiro entrou para agenda da Cobradi de diferentes formas, seja como o PAA África - Purchase from Africans for Africa, elaborado em 2010 para o continente Africano (Paulino, 2017; Pessina, 2018), seja como um programa de compras locais da agricultura familiar no Haiti (Lopes Filho e Sabourin, 2017), dentre outras.

Ao ser difundido para outros países, o PAA brasileiro enfrentou o sistema de crenças das organizações multilaterais de cooperação internacional fundamentadas no livre mercado como vetor de promoção do desenvolvimento rural (Paulino, 2017). Segundo estudo de Lopes Filho e Sabourin (2017), no caso do Haiti, os modelos do PAA

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“foram duramente criticados pelo Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura (FIDA) e pelo Banco Mundial, durante os primeiros anos de implementação, sob a acusação de promover distorções no mercado de alimentos. (...) O Brasil chegou a ser acionado na OMC por eventuais distorções que o programa poderia trazer ao comércio internacional de alimentos” (p. 9).

Segundo Lopes Filho (2017), a promoção da mudança de paradigmas na FAO e no PMA, de forma a incidir internacionalmente na construção de sistemas alimentares mais justos e inclusivos, teria sido parte integrante da estratégia brasileira de combate à fome. Uma das ações concretas de tal investida teria sido materializada na candidatura de Graziano para a FAO (Lopes Filho, 2017).

O Brasil como um ator global no combate à fome

Logo no primeiro ano de mandato do então presidente Lula (2003), foi criado o Programa Fome Zero, um conjunto abrangente de políticas de combate à fome e à exclusão social. Como ação estruturante do Programa Fome Zero, foi criado o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA. Um de seus aspectos inovadores consistia em integrar dimensões relacionadas tanto à política agrícola como à política de segurança alimentar e nutricional (SAN), por meio da compra pelo governo de alimentos oriundos dos pequenos agricultores, visando a promoção do desenvolvimento rural e da segurança alimentar, simultaneamente.

O Projeto Fome Zero identificou, no Brasil, a existência de 44 milhões de pessoas muito pobres (com renda abaixo de US$ 1,00 por dia), que foram consideradas o público potencial beneficiário deste Projeto, por estarem vulneráveis à fome. Essa população pobre representava 28% da população total do país e quase metade da população rural - 46% (Instituto Cidadania, 2001).

Os resultados do Fome Zero transformaram o Brasil em uma referência mundial para o combate à pobreza e insegurança alimentar, uma vez que o país atingiu antes do previsto a meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem com a fome, assim como atingiu antes do previsto a meta mais rigorosa da Cúpula Mundial da Alimentação (World Food Summit) de reduzir pela metade o número absoluto de pessoas famintas até 2015. Segundo o relatório da FAO e outros (2014), entre fevereiro de 2000 e junho de 2004, a taxa de subnutrição no Brasil já havia caído pela metade, de 10,7% para menos de 5%. Entre 2001 e 2012, a pobreza total no Brasil caiu de 24,3% para 8,4% da população, enquanto a pobreza extrema caiu de 14,0% para 3,5%, no mesmo período. Segundo o mesmo relatório, no Brasil, “[...]os esforços iniciados em 2003 resultaram em exitosos processos participativos e coordenação de instituições, implementando políticas que efetivamente reduziram a pobreza e a fome” (FAO, IFAD e WFP, 2014, p. 20).

O êxito do PAA brasileiro atraiu a atenção internacional pela consistência e a eficácia de sua arquitetura e dos efeitos multiplicadores comprovados em seus resultados (Takagi, Sanches e

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Graziano da Silva, 2014; IPEA, 2018). Tais ganhos chamaram atenção numa realidade internacional na qual os sistemas de produção agrícola mediado pelo mercado deixavam como marca 815 milhões de pessoas cronicamente subnutridas no mundo devido a dificuldades de acesso aos alimentos básicos (FAO, 2017). Segundo a FAO (2017), 22, 7% dos habitantes da África Subsaariana ainda são subnutridos; e 33,9% na sua parte oriental (FAO, 2017). Segundo o Banco Mundial, metade da população mundial que passa fome é formada por pequenos agricultores. Na África, maior parte da população vive na zona rural: na Etiópia: 80%, Malauí: 83% , Níger: 81%, Moçambique: 67% (World Bank, 2018). Na África Subsaariana, por exemplo, apesar de serem responsáveis por 80% da oferta de alimentos, “pequenos agricultores estão dentre os mais vulneráveis à insegurança alimentar e às ineficiências dos sistemas alimentares locais e a falta de acesso a mercados inclusivos” (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014, p. 11).

Segundo a FAO, as principais razões para a persistência da insegurança alimentar no mundo não residem, necessariamente, na escassez de alimento, mas, principalmente, em questões relacionadas à pobreza, seguido de questões relacionadas a conflitos e guerras e mudanças climáticas (FAO, 2017) e o aumento do poder dos conglomerados transnacionais sobre as cadeias produtivas dos alimentos (Silva, 2015). O aumento do poder dos conglomerados transnacionais sobre as cadeias produtivas dos alimentos repercute diretamente na permanência de um número significativo de pessoas com fome no mundo. O setor tem se concentrado cada vez mais em poucas mãos, desde os insumos até a distribuição pelas grandes comercializadoras de grão. A receita do mercado global de alimentos é significativa, enquanto em regiões como a África Subsaariana, normalmente 70% a 80% da população está envolvida na agricultura como parte do seu sustento e é muito pobre (Clapp, 2012).

Diante desse contexto, e dos interesses geopolíticos do Brasil, houve um esforço deliberado do Governo Lula em posicionar a luta contra a fome e a pobreza no centro da sua agenda internacional. Tais esforços resultaram em algumas participações na agenda da Segurança Alimentar mundial e criação de espaços onde o Brasil exerceu liderança, destacando-se:

1.Participação ativa do Brasil na elaboração das Diretrizes Voluntárias para realização progressiva do Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA), aprovadas pelo Conselho da FAO em 2004;

2.O papel que o Brasil desempenhou na reforma do Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas (CSA) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), que resultou na criação do Mecanismo para Participação da Sociedade Civil (MSC) e do corpo assessor do Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (HLPE);

3.Em 2010, o Brasil passou a integrar a iniciativa “good humanitarian Donorship” (ghD), único país fora dos tradicionais doadores do Norte a integrar a iniciativa. Juntou-se também ao grupo consultivo da “global Facility for Disaster reduction and recovery” (gFDrr) do Banco Mundial, e ao “humanitarian liaison Working group”, das Nações Unidas. Nesses agrupamentos, o Brasil defendeu, entre outros, a preferência pela utilização de compras locais na realização de assistência humanitária (Beghin, 2014); 4. Criou, em 2006, junto com o ex-presidente da Guatemala, Oscar Berger, o programa Iniciativa América Latina e Caribe

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sem Fome (IALCSH/FAO 2025), que propõe a erradicação completa da fome no continente latino americano até 2025;

5.Brasil foi um ator central na criação da Reunião Especializada em Agricultura Familiar do MERCOSUL (Reunión Especializada de Agricultura Familiar del MERCOSUR - REAF) em 2004;

6.Criação do Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da pobreza, em 2004. Em 2006, o Fundo recebeu, pelo êxito de suas iniciativas, o prêmio “Parceria Sul-Sul para Aliança Sul-Sul”, concedido pelo PNUD, e, em 2010, o Millennium Development Goals Awards. Em 2012, o fundo foi reconhecido com o prêmio South-South and Triangular Cooperation Champions Award, entregue pelo UNOSSC por sua contribuição inovadora para a cooperação sul-sul e cooperação triangular;

7.Participação destacada no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (Consan- CPLP);

8.Brasil foi o principal fundador da CELAC em 2010, no marco da qual instituiu importantes reuniões especializadas no tema da agricultura familiar e segurança alimentar, dentre outros.

Tal engajamento resultou, ainda, em alguns prêmios internacionais para o então presidente Lula por suas atividades na luta global contra a fome e a pobreza, como: Medalha Agrícola da FAO, em 2005; Prêmio pela Paz Felix Houphöuêt-Boigny da UNESCO, em 2009; Prêmio de primeiro lugar entre os países em desenvolvimentos em iniciativa contra a fome pela ONG Action Aid, em 2009, durante a Cúpula Mundial da Alimentação, em Roma; Prêmio “Campeão Global da Luta Contra a Fome”, do PMA, em 2010; O World Food Prize, em 2011, pelo sucesso na implementação de políticas públicas de combate à fome e à pobreza no marco do programa Fome Zero, dentre outros. Destaca-se, ainda, como fruto de tal reconhecimento, a eleição de um brasileiro como primeiro latino-americano a presidir a FAO. O apoio a implantação de programas como o PAA foi uma diretriz enfatizada na plataforma que ancorou a candidatura do Brasil à Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) em 2011 (Takagi, Sanches e Graziano da Silva, 2014). José Graziano da Silva, que havia sido Ministro da Segurança Alimentar (MESA) no primeiro mandato do governo Lula, foi um dos criadores do Fome Zero e comprometeu-se, na sua gestão diante da FAO, com a conclusão do processo de reforma da FAO e com a expansão das parcerias Sul-Sul.

Para coordenar as crescentes atividades internacionais de Combate a Fome do Brasil, em 2004, foi criada a Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome (CGFOME), que funcionaria como uma interface internacional do Fome Zero. A CG Fome deveria ser responsável pela Coordenação da política externa brasileira em Desenvolvimento Rural Sustentável, Segurança Alimentar e Nutricional e Ajuda Humanitária Internacional, tanto na sua vertente emergencial quanto estrutural.

O Brasil recebeu delegação de representantes de diversos países interessados em conhecer os programas brasileiros de luta contra a fome e superação da extrema pobreza, com particular atenção à Estratégia Fome Zero e seus mecanismos de promoção de desenvolvimento e de segurança alimentar e nutricional para a população, como o PAA e PNAE3. Entre 2014 e 2016, o então Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) realizou 147 missões internacionais para

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participar de eventos organizados por outros países, por instituições regionais e por foros globais. O compartilhamento das experiências brasileiras relativas ao tema do desenvolvimento social também ocorreu em eventos realizados no Brasil, por meio da recepção de delegações estrangeiras. O então Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) contabilizou 50 eventos nacionais no mesmo período. Só no ano de 2014, as políticas brasileiras de desenvolvimento social e combate à fome foram compartilhadas com 52 países e três organizações internacionais, considerando missões realizadas tanto no exterior quanto no Brasil. No total, entre 2014 e 2016, as experiências brasileiras foram compartilhadas com 83 países em diferentes regiões do mundo (IPEA, 2018).

A partir da difusão de suas políticas públicas de combate à insegurança alimentar e nutricional, como no PAA África, o Brasil buscou influenciar as agências da ONU e incidir internacionalmente na construção de sistemas alimentares mais justos e inclusivos4. Estudos como o de Milhorance e Soule-Kohndou (2017) confirmam a estratégia reformista dos programas de segurança alimentar da Cobradi no seio das organizações internacionais. Historicamente, o PMA comprava de trades ou recebiam doações destes alimentos vindos do Japão, principalmente, e dos Estados Unidos. FAO e PMA, segundo estudos, possuem o pressuposto do livre mercado como vetor de promoção do desenvolvimento rural, além do uso de sementes híbridas e fertilizantes químicos (Paulino, 2015, 2017; Fouilleux, 2009).

O Fome Zero e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA)

O Projeto Fome Zero – uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil-, foi lançado em outubro de 2001 pelo então candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, após quase 1 ano de construção junto a representantes de organizações não-governamentais, institutos de pesquisa, sindicatos, organizações populares, movimentos sociais e especialistas da área reunidos pelo Instituto Cidadania. O processo de criação o Fome Zero foi coordenado pelo agrônomo e professor do Instituto de Economia da Unicamp, José Graziano da Silva, que, posteriormente, tornar-se-ia o titular do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (Mesa), criado no primeiro ano do Governo Lula, e, em seguida, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO (Takagi, 2010).

Segundo Leão e Maluf (2012), as conquistas no campo da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), no Brasil, foram fruto de mobilização da sociedade civil, lutas e conquistas, e de uma construção que vinha ocorrendo desde a década de 1980. Mais do que uma decisão do governo Lula, aquele representou um período político oportuno, que proporcionou o encontro do interesse da sociedade civil com os objetivos de um plano de governo aberto a tal perspectiva (Leão e Maluf, 2012).

O Programa Fome Zero representou um amplo programa brasileiro de combate à fome e a miséria que conjugou políticas estruturantes – voltadas à redistribuição da renda, crescimento da produção, geração de empregos, reforma agrária, entre outros – e políticas de intervenções de ordem emergencial (Silva et al., 2010). Foi concebido com três níveis de ação: as políticas estruturais, as políticas específicas e as políticas locais. Embora as ações de fortalecimento da agricultura familiar estejam presentes nos três níveis, é no âmbito das políticas estruturais que

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se encontra a principal ação do Fome Zero para a agricultura familiar: o Programa de Aquisição de Alimentos (Grisa e Schneider, 2014).

O Fome Zero foi uma proposta de Política de Segurança Alimentar e Nutricional implantada pela primeira vez no Brasil como prioridade máxima explicitada por um presidente da República, e logo passou a ser considerado referência para outras experiências internacionais. Dentre suas características institucionais, destaca-se o amplo envolvimento da Sociedade Civil na construção e acompanhamento do programa, o envolvimento de diversos ministérios, assim como a conformação do Ministério Segurança Alimentar e Combate à Fome (Mesa) de orçamento considerável – na ocasião, menor apenas do que o dos Ministério da Saúde e da Educação (Takagi, 2010).

O programa Fome Zero compreendia um conjunto integrado de ações entre 19 Ministérios e aplicou uma abordagem de mão dupla que ligava a proteção social à políticas de geração de renda, emprego, produção agrícola familiar e nutrição. Políticas econômicas e programas de proteção social, como o ambicioso programa de transferência de renda Bolsa Família, combinados com programas inovadores para a agricultura familiar, criaram vínculos entre apoio à produção e proteção social, contribuindo para a criação de empregos e elevação dos salários reais, assim como significativas reduções na fome e promoção de maior igualdade de renda (FAO, IFAD e WFP, 2014).

Desde a concepção do Fome Zero, a questão da participação social na implementação da política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) esteve fortemente presente. Assim que tomou posse, o governo Lula implementou uma política de SAN com a edição da Medida Provisória n. 103, de 1o de janeiro de 2003. Nesta Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003, foram criados o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea e o Gabinete do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome – Mesa (Takagi, 2010). Já em sua primeira reunião, em fevereiro de 2003, o Consea elaborou e apresentou diretamente para o Presidente a proposta de lançar o primeiro Plano Safra da Agricultura Familiar. Estimava-se um acréscimo na demanda por alimentos provocada pelas transferências de renda realizadas por meio do cartão alimentação do Programa Fome Zero, o que poderia impulsionar a elevação dos preços ao consumidor. Os elementos de tal Plano serviram de substrato para a criação do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar - PAA (Menezes, Porto e Grisa, 2015).

O Consea representou a instância máxima de participação social para essa política (Menezes, Porto e Grisa, 2015). Ao Consea foi confiada a função de assessoramento direto do Presidente da República na formulação e implantação do Fome Zero, representando o compromisso feito com os movimentos sociais de consolidar, de forma participativa, a política de Segurança Alimentar e Nutricional (Tagaki, 2010). O Consea estava vinculado à Presidência da República, constituindo um órgão de assessoramento imediato ao presidente, e era composto de 2/3 de representantes da sociedade civil e 1/3 do governo federal, sendo presidido por um representante da sociedade civil (Menezes, Porto e Grisa, 2015).

Além da recriação do Consea Nacional, o caráter participativo do Fome Zero se confirmou em diversas esferas do programa, como na recriação também de 27 conselhos estaduais e de dezenas de conselhos municipais para gerirem e controlarem o programa nestes níveis. Nos

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municípios atendidos pelo Fome Zero foram instituídos os Comitês Gestores e estimulados os Conselhos Municipais de Segurança Alimentar e Nutricional. Tais instâncias tornaram-se responsáveis pelo acompanhamento das ações nos municípios, seleção e acompanhamento das famílias que receberiam os benefícios (Takagi, 2010).

Segundo a FAO (2014), “a redução bem-sucedida da fome e da extrema pobreza em áreas rurais e urbanas resultou dessa matriz bem coordenada de políticas lideradas pelo governo com forte engajamento da sociedade civil, e não de uma única ação isolada” (FAO, IFAD e WFP, 2014, p.23). Ainda segundo a FAO, as políticas de fortalecimento da agricultura familiar foram fundamentais para o programa Fome Zero, desde o início - a implementação de inovadoras políticas para agricultura familiar, paralelamente a programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por exemplo, ilustra a abordagem de mão dupla característica do Fome Zero (FAO, IFAD e WFP, 2014).

O PAA foi a principal ação do Fome Zero para a agricultura familiar. Assim como o Fome Zero, o PAA nasceu de um expressivo diálogo que envolveu atores da sociedade civil, intelectuais, instituições governamentais e partidos políticos da esquerda brasileira. Segundo Schneider e outros (2012), sua trajetória peculiar e os atores envolvidos nesse debate garantiram que o PAA representasse uma novidade com relação a outras políticas públicas já existentes para a agricultura familiar. Seu principal diferencial, segundo estes autores, é enfocar um tema que até então era tratado com pouco interesse por atores da rede de políticas para a agricultura familiar, “[...] que é a comercialização dos alimentos oriundos da agricultura familiar, articulando esta questão com outras políticas, como a merenda escolar, os estoques de alimentos e a assistência alimentar” (Schneider, Muller e Silva,2012, p. 3).

Dada sua importância, dentre os programas que compunham o Fome Zero, o programa de compra da agricultura familiar foi o que obteve a segunda maior rubrica, e representou uma das principais proposições dos movimentos sociais ligados ao meio rural, como o Movimento dos Pequenos Agricultores e o Movimento dos Sem-Terra (Takagi, 2010). Logo passou a ser visto “[...] como uma das melhores expressões de criatividade e inovação em políticas públicas, oferecendo demonstrações de acertos inequívocos nas dimensões econômica, social, ambiental, cultural e política” (Porto et al, 2014, p. 36).

O PAA foi instituído pela Lei nº 10.696/20035, durante o primeiro ano da gestão do presidente Lula e do Programa Fome Zero, “com a finalidade de incentivar a agricultura familiar por meio de mecanismos de comercialização nos próprios locais de origem desses produtores, especialmente aquelas camadas deste segmento que produzem em pequenas quantidades e que estão enfrentando dificuldades para agregar valor à produção e também com a finalidade de colaborar no enfrentamento da fome e da pobreza no Brasil” (Moreira et al, 2010, p. 207) .

A proposta do PAA utiliza o orçamento público para compra de alimentos para o chamado mercado institucional (alimentação escolar, hospitais, presídios, distribuição de cestas básicas etc.) das mãos dos pequenos agricultores familiares. Como se observará mais adiante, uma diversidade de estudos de casos revelaram que o PAA brasileiro gerou resultados além do atendimento às necessidades alimentares da população vulnerável, como também a dinamização da economia local, a valorização do cultivo de alimentos de diversidade regional, a melhoria de hábitos alimentares, o fortalecimento do associativismo, entre outros. Tais

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resultados do Fome Zero e do PAA teve grande repercussão e transformaram o Brasil numa espécie de referência internacional no que se refere a políticas de desenvolvimento rural, combate à pobreza e segurança alimentar.

Segundo o governo brasileiro, o objetivo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) era promover tanto o acesso à alimentação quanto incentivar a agricultura familiar (BRASIL, 2012). Ele alcançou estes objetivos ao garantir a comercialização de alimentos e sementes da agricultura familiar, por meio do estabelecimento de preços mínimos e da garantia de compra, ao mesmo tempo que articulava esta produção com os mercados institucionais (creches, merenda escolar, hospitais, restaurantes populares e entidades beneficentes e assistenciais) ou para formação de estoques, atendendo aos princípios da segurança alimentar (Schneider, Muller e Silva, 2012).

Neste programa, o governo comprava os alimentos produzidos diretamente dos agricultores familiares, de assentados da reforma agrária, de comunidades indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, os estocava e distribuía às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial e pelos equipamentos públicos de alimentação e nutrição. O Programa era executado pelo governo federal em parceria com estados e municípios, com dispensa de licitação (Brasil, 2012), o que possibilitava ao agricultor vender diretamente ao governo, a preços próximos aos de mercado e, em alguns casos, ter acesso a antecipação de recursos para plantio. Até então, a aquisição de produtos da agricultura por parte do Estado exigia o processo de licitação, requerida pela Lei nº 8.666/93, restringindo a participação da maioria dos agricultores familiares no mercado institucional, dada a concorrência com segmentos empresariais, geralmente organizados a partir de escalas de produção superiores e custos de produção menores (Triches e Grisa, 2015). Dessa forma, a criação do PAA exigiu um novo marco jurídico, desburocratizando o processo de aquisição e apoiando a comercialização desenvolvida por estes pequenos produtores, desde que os preços não fossem superiores aos praticados nos mercados regionais (Moreira et al, 2010).

Segundo Porto e outros, o PAA foi concebido com originalidade, introduzindo aspectos inovadores em termos de política pública, estabelecendo, pela primeira vez, recursos e metodologia específica para compras públicas de alimentos oriundos da agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais, dialogando com a escala e características organizacionais destes segmentos, definindo processos de compras por dispensa de licitação, permitindo a relação direta entre governo e sociedade civil para a aquisição de alimentos por parte do Estado(Porto et al, 2014, p. 39).

O PAA possuía dois públicos beneficiários: os fornecedores e os consumidores de alimentos. Os beneficiários fornecedores eram os agricultores familiares, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores artesanais, indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais. Os beneficiários consumidores eram os indivíduos em situação de insegurança alimentar e nutricional e aqueles atendidos pela rede socioassistencial e pelos equipamentos de alimentação e nutrição, composta por Restaurante Populares, Cozinhas Comunitárias e Bancos de Alimentos, por entidades socioassistenciais ligadas ao Sistema Único de Assistência Social e pela rede pública de ensino em complementação ao Programa Nacional de Alimentação

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Escolar – PNAE (Brasil, 2012). Dentre o público atendido, eram priorizados povos e comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas e extrativistas, acampados da reforma agrária, atingidos por barragens e agricultores familiares. Dessa forma, o Programa não apenas fortalecia circuitos locais e regionais de comercialização, como valorizava a biodiversidade e a produção orgânica e agroecológica de alimentos; incentivava hábitos alimentares saudáveis e estimulava o associativismo (Brasil, 2012, p. 3).

Os agricultores poderiam participar do PAA individualmente ou por meio de cooperativas ou outras organizações formalmente constituídas como pessoa jurídica de direito privado, precisando comprovar sua qualificação como da agricultura familiar6.

O Programa era operado de forma interministerial, por meio de uma instância governamental colegiada, denominada Grupo Gestor do PAA – GGPAA, composta por seis ministérios. O Programa foi executado, basicamente, por meio de seis modalidades, destacando-se o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE: em 2009, ocorreu a promulgação da Lei n.° 11.947, que ficou conhecida como a Lei da Alimentação (atualizada pela Resolução 26/2013), a qual tornou obrigatória a utilização de no mínimo 30% do valor repassado às Entidades Executoras do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE (estados, municípios, Distrito Federal e escolas federais) na aquisição de gêneros alimentícios dos agricultores familiares. Até então, os processos de aquisição pública para o Programa de alimentação escolar precisavam cumprir a Lei 8.666 para licitações e contratos da Administração Pública, o que favorecia a compra de alimentos formulados e industrializados, que eram comprados de um conjunto selecionado de empresas e distribuídos para todo o território nacional (Triches e Grisa, 2015). A partir deste passo, o Estado passou a considerar não somente o menor preço e a concorrência nas aquisições públicas, mas também outros valores como o social, o ambiental e a saúde.

Um conjunto de leis, resoluções e portarias foram editados para oferecer as definições necessárias para ela ser aplicada. Destaca-se, por exemplo, a Resolução 4, de 2 de abril de 2015, a qual estabeleceu a ordem de prioridade para os fornecedores de alimentos para a alimentação escolar. Segundo esta Resolução, os fornecedores locais têm prioridade, seguido pelo grupo de fornecedores do território rural, do estado e, por último, do país. Estabeleceu também a ordem de prioridade dentro de cada grupo, nos quais lideram os assentamentos de reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas, não havendo prioridade entre eles (Menezes, Porto e Grisa, 2015).

Ao garantir a exigência de aplicação de no mínimo 30% dos recursos do PNAE na compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, a nova lei deu um passo significativo no apoio aos pequenos agricultores, visto o amplo alcance deste programa. O PNAE atuava em todos os estados e municípios do Brasil, o que representava “um público consumidor de aproximadamente 45 milhões de alunos, durante 200 dias por ano” (Menezes; Porto e Grisa, 2015, p.101).

A maioria das modalidades do PAA eram operacionalizadas pela Companhia Nacional de Abastecimento – Conab7, a qual estabelecia relação direta com as organizações dos agricultores familiares, visando à aquisição dos produtos, estoque e distribuição de gêneros alimentares para populações sob insegurança alimentar e nutricional (Porto et al, 2014).

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Outra inovação do programa diz respeito a metodologia de formação de preços, a qual considerava os mercados locais e regionais. O valor de cada produto era previsto no contrato e era variável em cada projeto em função dessa metodologia. A legislação do PAA estabelecia que a sistemática de aquisição dos produtos agropecuários fosse realizada “[...] com base em preços de referência que considerem as diferenças regionais e a realidade da agricultura familiar”. Além disso, o Programa “[...] possibilita a compra de produtos agroecológicos ou orgânicos com acréscimo de preços de até 30% em relação aos preços estabelecidos para produtos convencionais”, em consonância com os princípios do programa de fortalecimento da produção sustentável, valorização da biodiversidade e promoção de hábitos alimentares saudáveis em nível local e regional (Triches e Grisa, 2015, p. 15). Segundo Moreira e outros (2010), tal acréscimo no preço “respeita os diversos modos de vida das populações do campo, fortalecendo a cultura alimentar de cada região e a manutenção da sociobiodiversidade” (Moreira et al, 2010, p.210).

O contrato também respeitava a capacidade de oferta de cada fornecedor, podendo os agricultores participar com a variedade e quantidades de produto que desejassem. Existia um valor máximo por produtor para cada modalidade, sendo que o valor total de um contrato com cada cooperativa ou associação era dado pelo somatório dos valores correspondentes aos produtos de cada um dos agricultores familiares participantes do projeto (Porto et al, 2014).

O PAA se mostrou um importante instrumento de inclusão produtiva dos agricultores mais pobres, aspecto inovador em relação a outros modelos voltados para agricultura da década de 1990, os quais apostavam na integração mercantil dos estabelecimentos e agricultura familiar mais estruturados aos circuitos de inovação tecnológica e de mercado, ao tempo em que consideravam inviável a inclusão dos chamados estabelecimentos “periféricos” (FAO/INCRA, 1994). Desta forma, o PAA surgiu para implicar positivamente na realidade dos “pobres do campo”, historicamente preteridos enquanto público das políticas agrícolas no Brasil. O Estado readequou sua ação para dar conta das particularidades de agricultores que precisavam encontrar novas alternativas de reprodução social (Niederle, 2017). O Programa enfatizou e valorizou a diversidade interna do grupo dos agricultores familiares, evidenciando a diversidade regional, cultural, social, produtiva e alimentar do meio rural brasileiro (Grisa, 2017).

Segundo Moreira e outros (2010), o esforço de priorização das famílias mais pobres e vulneráveis faz do PAA mecanismo de inclusão econômica e social. Estes autores citam o fato de que, dos 137.185 agricultores que acessaram o programa no ano de 2009, por exemplo, mais de 32% eram agricultores enquadrados nos grupos mais pobres: “Nestes grupos são enquadrados os assentados da reforma agrária em fase inicial de implantação dos projetos de assentamentos e agricultores de baixa renda, sendo grande parte destes residentes na região Nordeste do Brasil, que é justamente a região onde temos a maior proporção de agricultores familiares mais pobres acessando o PAA” (Moreira et al, 2010, p. 210).

Os alimentos adquiridos e distribuídos pelo PAA corresponderam a diversidade produtiva local, o que implicou na valorização dos hábitos alimentares locais e a vocação agrícola regional. Segundo estudo realizado por Porto e outros (2014), no primeiro ano de execução do Programa, foram adquiridos 56 tipos de produtos, enquanto em 2012 alcançou-se a cifra de

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374 diferentes itens de produtos alimentícios (Porto et al, 2014). Já o estudo de Mielitz (2014) identificou que o PAA alcançou uma variedade de mais de 400 produtos diferentes adquiridos e distribuídos (Mielitz, 2014).

Muitos estudos de caso, realizados em diferentes regiões do Brasil, relatam as contribuições do PAA para os agricultores familiares em situação de pobreza e para o desenvolvimento rural brasileiro. Segundo tais estudos de caso, o PAA gerou uma série de resultados econômicos e sociais positivos para os agricultores familiares destas regiões, como: inserção nos mercados institucionais e nos demais mercados locais (Pranke, 2015; IPEA 2011; Silva 2013); modificação do modo de produção e de relação do agricultor familiar com o mercado (Silva 2013); estímulo para os agricultores realizarem a transição dos sistemas convencionais para a produção agroecológica (Pranke, 2015; Hilgert et al, 2014); constituição e viabilização de empreendimentos de economia solidária no meio rural brasileiro (Silva e Silva, 2011); fortalecimento da Agricultura Familiar e do desenvolvimento rural sustentável (Silva, 2013; Silva e Ferreira, 2016); percepção dos agricultores quanto à importância do associativismo e cooperativismo / aumento do associativismo e cooperativismo (Silva, 2013; Cabral et al, 2014; Silva e Ferreira 2016; Moreira et al, 2010); melhoria das condições socioeconômicas dos Agricultores Familiares e da localidade em que estes estão inseridos (Silva, 2013; Silva e Ferreira, 2016); aumento da renda familiar, favorecida pela garantia de acesso ao mercado e o escoamento da produção, minimizando perdas e eliminando a figura do atravessador (Assis et al, 2017;Cabral et al, 2014; De Oliveira e Bergamasso, 2014; Silva e Ferreira, 2016); promoção da diversificação produtiva, autoconsumo e segurança alimentar e nutricional dos agricultores familiares beneficiários fornecedores (Assis et al, 2017; Cabral et al, 2014; Camargo et al, 2013; Porto et al, 2014; Mielitz, 2014; Grisa, 2017); fortalecimento de assentamentos rurais (Camargo et al, 2013; De Oliveira e Bergamasso, 2014; Andrade et al, 2012; Schmitt et al, 2013; Medeiros et al, 2011); diversificação da alimentação escolar inserindo novos produtos ao cardápio (De Oliveira e Bergamasso; Triches e Grisa, 2015); aumento da qualidade dos produtos disponíveis nos mercados locais (De Oliveira e Bergamasso, 2014); promoção da agrobiodiversidade, uma vez que, além de alimentos, o Programa também adquiria sementes que eram distribuídas por meio de suas organizações, de agricultor para agricultor (Porto et al, 2014); permanência no trabalho na agricultura em contraposição à busca por trabalho em outros setores (Delgado e Bergamasco, 2017).

Pode-se considerar como outro resultado não planejado, o resgate da produção de alimentos que estavam sendo deixados de ser produzidos por muitas famílias devido o baixo interesse do mercado agrícola. Segundo Grisa (2017), o PAA passou a adquirir um amplo leque de produtos até então produzidos sem destinação comercial, restritos aos espaços do consumo familiar e às relações de reciprocidade. Geralmente, são produtos característicos da produção para o “autoconsumo”, da subsistência das famílias, cultivados em pequenas quantidades, em áreas próximas a casa ou em áreas não aproveitadas para os cultivos comerciais (Siliprandi e Cintrao, 2014). Mielitz (2014), a partir de seu estudo, acrescenta que “[...] vários produtos anteriormente abandonados da prática alimentar cotidiana por não serem considerados modernos, principalmente pelos mais jovens, voltam a ser consumidos” (Mielitz, 2014, p. 67). Tratam-se de modos de vidas que vinham sendo esquecidos ao longo das gerações,

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concebidos como atrasados em um contexto de crescente processo de mercantilização da agricultura (Grisa, 2017).

Dentre os impactos positivos do PAA para o desenvolvimento rural, vale destacar que há uma quantidade significativa de estudos de caso - como os de Camargo et al (2013), De Oliveira e Bergamasso(2014), Andrade e outros (2012), Schmitt e outros (2013), Medeiros e outros (2011), dentre outros estudos de caso - que destacam que o programa ajudou a fortalecer assentamentos recém-criados pela reforma agrária no Brasil. Um estudo de caso realizado por Camargo e outros (2013), em um assentamento ainda em processo de consolidação no Estado de São Paulo, por exemplo, identificou mudanças nos sistemas de produção, na organização social dos agricultores, na forma de exploração dos lotes e na segurança alimentar das famílias decorrentes da implementação do PAA. Segundo os autores, antes do Programa, a preocupação dos assentados limitava-se a produção para o consumo da própria família e ou commodities de fácil comercialização - o que não exigia significativa organização social. Com a implementação do PAA, os beneficiados participam ativamente da associação e, com o aprendizado adquirido no PAA, a associação passou a participar de novos programas governamentais de compra institucional, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), de forma a mitigar problemas ocasionados pelos interstícios entre os convênios. O estudo de caso revelou, ainda, que o PAA provocou um incremento na diversidade de alimentos produzidos pelos agricultores participantes do programa, garantindo ao agricultor acesso a uma dieta mais equilibrada e de melhor qualidade nutricional, além de diminuir a sua dependência em relação a poucos produtos, mitigando os riscos (de produção e de preço) inerentes à atividade agrícola especializada. A pesquisa revelou, também, que, os recursos do PAA eram a principal fonte de renda agrícola da maioria das famílias assentadas, e tinha contribuído para a dinamização da economia do assentamento, fomentando atividades acessórias à agrícola, como de logística e comércio. Segundo o estudo de caso em questão, diante de tais circunstâncias, os agricultores entrevistados se encontravam motivados a continuar desenvolvendo suas atividades agrícolas, bem como a permanecerem no assentamento, revelando ser o PAA instrumento de apoio a permanência no campo destas famílias, historicamente impelidas a migrarem para as periferias dos grandes centros urbanos em decorrência da falta de alternativas no campo (Camargo et al, 2013).

Os estudos de caso analisados apontaram, também, algumas limitações do PAA, como: a restrição a poucos agricultores (De Oliveira; Bergamasso, 2014) – o PAA apresentava-se como um programa pequeno em termos de recursos empregados e agricultores familiares beneficiados (Grisa, 2017). Resultados alcançados até então possuíam uma escala reduzida, tanto pelo seu orçamento, quanto pela dificuldade que existia, por parte de muitas organizações e municípios, de acessarem suas modalidades (Silva e Silva, 2011). Outros estudos apontaram dificuldades relacionadas à organização destes agricultores para constituírem cooperativas e associações - alguns agricultores acabavam encontrando dificuldades na obtenção de informações sobre o programa, não possuíam documentação pessoal ou o DAP para ingressar no PAA. Alguns autores apontam ainda casos de demora na liberação do recurso por parte dos órgãos governamentais (Silva e Ferreira, 2016; Grisa, 2017; Grisa e outros, 2010). Havia, ainda, as dificuldades estruturais como falta ou pouca terra, terras desgastadas, limitações de infraestruturas (estradas, acesso a água, ausência de

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equipamentos e instrumentos de trabalho), dentre outras (Grisa, 2017; Silva e Silva, 2011). Alguns atores apontam ainda limitações no beneficiamento e agregação de valor aos produtos; e carência de assistência técnica especializada (Silva e Silva, 2011; Grisa et al, 2010).

De um modo geral, o PAA obteve um êxito diferenciado no diálogo com as populações com maiores limitações de reprodução social e maior vulnerabilidade. O Programa incitava, assim, um movimento salutar “[...] de manutenção ou de retorno do relacionamento com a terra, de estratégias de reprodução social pautadas por modelos de agricultura geralmente diversificados e promotores de “autonomia”, e de inclusão produtiva de segmentos em situação de vulnerabilidade social” (Grisa, 2017, p.304). Pode-se afirmar que o PAA resgatava para estes grupos a condição de produtores rurais, negadas por outras políticas para o rural brasileiro que os alocava apenas como público de políticas sociais.

Trata-se de uma perspectiva de política agrícola que divergia do que fora, historicamente, ofertado pelo Estado brasileiro, que reconheceu as unidades familiares em situação de vulnerabilidade social na sua singularidade, que não era nem de empresário do campo nem de beneficiário de programa de ajuda social. Nas palavras de Grisa (2017), tratou-se de “privilegiar e fortalecer um ‘rural com gente’ e uma forma de relacionamento distinta com a terra, que a vê como integrante e constituinte indissociável de um modo de vida (Grisa, 2017, p. 306).

Conclusão

Os resultados diferenciados do PAA no enfrentamento da pobreza no campo, na inclusão dos produtores rurais mais pobres nos mercados de alimentos, e na melhoria da Segurança Alimentar e Nutricional do Brasil, levou o programa a ganhar projeção internacional no campo do combate à fome e à insegurança alimentar.

A revisão de literatura realizada revelou que o caráter inovador do PAA adveio de alguns fatores que foram determinantes para o alcance de resultados exitosos no caso brasileiro, dentre os quais destacam-se: amplo envolvimento da Sociedade Civil, historicamente engajada com o desenvolvimento rural no Brasil, desde a construção até o acompanhamento e execução do programa; amplo engajamento do Estado - de comprador para fins de consumo institucional à responsável pelo estoque e distribuição dos alimentos adquiridos por meio da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab e seu sistema de silos públicos; inclusão produtiva de segmentos em situação de vulnerabilidade social, compreendendo-os para além de um empresário do campo ou de beneficiário de programas de ajuda social; articulação com outras políticas públicas nacionais; envolvimento de diversos ministérios; readequação da ação do Estado para contemplar as particularidades dos agricultores mais pobres por meio da flexibilização no estabelecimento dos preços em relação aos produtos convencionais que obedecem a lógica de produção em larga escala, assim como, por meio da adaptação do marco jurídico brasileiro para compras estatais, desburocratizando o processo de aquisição de alimentos dos pequenos produtores, dialogando com a escala e características organizacionais destes segmentos, definindo processos de compras por dispensa de licitação, permitindo a relação direta entre governo e sociedade civil para a aquisição de alimentos por parte do Estado.

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Tais determinantes são considerados inovadores quando confrontados com princípios caros aos programas tradicionais de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento no campo da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e desenvolvimento rural.

Dessa forma, os importantes resultados do PAA e do Fome Zero no Brasil permitiram ao país incidir sobre o sistema de crenças das organizações multilaterais de Cooperação Internacional, fundamentalmente, a do livre mercado como vetor de promoção do desenvolvimento rural.

Desta forma, acredita-se que a sistematização dos determinantes do êxito do PAA brasileiro possa contribuir para as discussões sobre reformas da Cooperação internacional para o Desenvolvimento no campo da SAN, assim como em outras temáticas.

Como sugestão de estudos futuros, seria importante analisar, a partir da exposição detalhada realizada neste trabalho, os aspectos possíveis de serem fomentados ou replicados em outros países em situação socioeconômica semelhante à brasileira, de modo a reproduzir da forma mais aproximada possível os resultados alcançados no caso brasileiro.

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1Decreto nº 5.151 de 22 de julho de 2004. Dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos órgãos e pelas entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, para fins de celebração de atos complementares de cooperação técnica recebida de organismos internacionais e da aprovação e gestão de projetos vinculados aos referidos instrumentos.

2Segundo o artigo 4, IX, da Constituição Federal, em suas relações internacionais, o Brasil deve seguir o princípio de “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.

3Uma variação do PAA, voltado exclusivamente para a compra de alimentos por parte do governo para a alimentação escolar.

4Esta informação repetiu-se nas entrevistas realizadas pela autora deste artigo com o Assessor de Programas de Cooperação Internacional em Segurança Alimentar da CG Fome e integrante da equipe do PAA África desde a sua concepção; com o consultor contratado pela FAO para apoiar a CG Fome na criação e implementação do PAA África; e com a conselheira do Consea, membra da Comissão Permanente sobre assuntos internacionais do conselho e que integrou o grupo consultivo do PAA África como representante do Consea. Entrevistas realizadas em junho de 2018.

5Programa foi elaborado ao longo do primeiro semestre e lançado em julho, com a aprovação da Lei n. 10.696/2003, integrando o primeiro Plano Safra da Agricultura Familiar 2003/2004.

6O fornecedores individuais deviam possuir a Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP), e as organizações de agricultores deviam deter a Declaração de Aptidão ao PRONAF(DAP) Especial Pessoa Jurídica ou outros documentos definidos pelo Grupo Gestor do PAA (GPAA) (BRASIL, 2012), emitidos por entidades e instituições credenciadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA.

7Empresa pública, criada em 1990, a partir da fusão de três empresas públicas: a Companhia de Financiamento da Produção (CFP), a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e a Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem (www.conab.gov.br/institucional)

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